Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Como o garimpo e a mineração agravam as mudanças climáticas? Listamos 5 fatores
O aumento do garimpo no Brasil atrapalha os objetivos do país de frear o aquecimento global e cumprir acordos internacionais.
por Nayara Almeida
Pecuária extensiva derrubando florestas. Queimadas liberando toneladas de CO2 na atmosfera. Carros queimando gasolina. Poluição industrial. Peido de vaca. Esses são alguns dos vilões costumeiros que nos vêm à cabeça quando pensamos em mudanças climáticas.
No entanto, outras atividades, que à primeira vista podem parecer de menor impacto, estão deixando uma pegada cada vez mais crítica. Esse é o caso da mineração e do garimpo, atividades econômicas que explodiram durante o governo Bolsonaro. Só em terras indígenas, o crescimento foi de 500% nos últimos dez anos.
Abaixo, listamos alguns elementos da atividade mineira mineradora que contribuem para as mudanças climáticas.
1 – Equipamentos poluem. E muito.
Na mineração é possível encontrar distintos métodos de lavra, isto é, exploração prática do minério, que podem variar de acordo com ferramentas e proporções de exploração. Geralmente há 2 formas de minerar, lavra a céu aberto, quando os minérios estão em uma parte mais superficial da terra ou em lavra subterrânea, quando estão em uma parte mais profunda do solo. Para a exploração da superfície, é necessário realizar a escavação e a terraplanagem para alcançar os minérios. Perfurar o solo significa destruir e mover pedras, terras compactas, raízes de um canto a outro.
Nesse processo, a atividade mineradora utiliza máquinas para acelerar esse processo. No entanto, estas máquinas possuem baixa eficiência energética e são alimentadas por combustível fóssil, uma das principais fontes de liberação de gases de efeito estufa na atmosfera. Alguns equipamentos podem consumir até 400 litros de diesel por hora, o que lança uma quantidade imensa de gás carbônico (CO2), principal gás do efeito estufa, na atmosfera.
“Poluir para destruir ou destruir para poluir?”
A ponto de comparação, cada uma dessas máquinas emite, em uma hora, CO2 de forma similar a uma viagem (ida e volta) de carro de Fortaleza (CE) até o Rio de Janeiro (RJ).
“Partiu Jeri?”, disse a máquina
2 – Eletricidade – a cadeia mineradora não toma banho curto
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a cadeia minero-metalúrgica consumiu 320.918.220 MWh em 2020, o equivalente a 11% do total da energia elétrica consumida no Brasil naquele ano.
Imagina se o governo te desse subsídio para tomar banho quentinho longo
Seriam necessárias mais de 675 MILHÕES de geladeiras com freezer ligadas 24h por dia durante UM ANO para consumir a mesma quantidade de energia.
A quantidade de refri e cervejinha que estamos deixando de gelar é gigantesca
3 – Desmatamento – derrubar para minerar
Antes da mineração, vem a mina. Parece óbvio, mas não é: mineração gera MUITO desmatamento. Entre 2005 e 2015 a Mineração respondeu por 9% do desmatamento na Amazônia brasileira. A derrubada das árvores se dá principalmente no processo inicial de construção das minas.
Ninguém aguenta mais ver esse tipo de imagem ou morar em territórios assim
O foco no território da Amazônia não é algo de hoje, e muito menos parece que está próximo do fim. Não à toa, cerca de 22% de todos os requerimentos da Agência Nacional de Mineração (ANM) tem como principal alvo o bioma. O território amazônico possui minerais de alto valor e isso justifica o alto interesse de exploração e pressão na Amazônia. Isso significa que tem quase 2,6 milhões de hectares a serem autorizados a atividade de mineração, ou seja, uma área comparável ao território da Argentina e 60 vezes o Estado do Rio de Janeiro.
4 – Ameaça às Terras Indígenas.
Empresas de mineração entraram com incontáveis pedidos de autorização para mineração em áreas que invadem os limites de 204 terras indígenas registradas na Amazônia Legal.
Pesquisas mostram que as terras indígenas e de ocupação tradicional são as maiores protetoras das florestas e contribuem significativamente para o enfrentamento das mudanças climáticas, visto que a mudança de uso da terra e floresta compõem a maior fonte de emissões no Brasil.
Aprecie essa galeria que mostra como as terras indígenas são as maiores protetoras da floresta 👇
A dinâmica de ocupação da mineração é diferente da do agronegócio. Enquanto o agro “come pelas beiradas”, as empresas mineradoras se orientam pela concentração dos minérios e, por isso, acabam por instalar projetos em áreas mais remotas e preservadas.
À merce dos criminosos por um governo pró-garimpo, várias comunidades tem se organizado para expulsar invasores
5 – Barragens e destruição de ecossistemas e como isso pode ser agravado pelo clima extremo
Toda mina possui uma barragem de rejeitos ao lado. O potencial destrutivo desse tipo de barragem é bem conhecido no Brasil, e com as mudanças no regime de chuvas, o nível dessas barragens pode exceder o limite e elas podem se romper com mais facilidade.
Crimes ambientais como Mariana e Brumadinho podem se tornar ainda mais comuns
Em resumo:
E é por isso que, independente do seu ativismo, você deve ser contra o afrouxamento e a liberação da mineração em terra indígena, ser contrário a #PL191Não. Os territórios indígenas, por exemplo, são os grandes responsáveis por deixar a floresta em pé no Brasil. Liberar a atividade mineradora nestes territórios, além de um absurdo antidemocrático, é ir contra a proteção do clima, é ir a caminho do colapso do planeta.
Em vez de liberar a mineração em terra indígena, é ideal que haja o aumento da fiscalização ambiental, que haja punição e regulação para reduzir o desmatamento e atividades que o promovem, como o próprio garimpo e mineração.
de.sa.pa.re.cer, verbo intransitivo
Luh Ferreira, da Escola de Ativismo, reflete sobre esse verbo tão ecoado dentro do meio ativista, à sombra da ausência de Dom Phillips e Bruno Pereira
de.sa.pa.re.cer
“verbo intransitivo, deixar de ser visível, sumir”
Sentimento que se repete no meio ativista, entre professores, entre trabalhadores, escuto cada dia mais gente dizendo – quero sumir daqui.
Talvez por termos vivido situações tão difíceis nos últimos anos? Talvez porque as coisas vão mal no país? Violência, crise econômica, fakenews, polarização, morte, mortes, pandemia que não passa… excessos, insônia, ansiedade…
Tudo isso fazendo parte da nossa vida.
E viver ainda é o que nos resta.
Mas e quando você não quer sumir?
E quando você quer permanecer, lutar. Quando você quer comunicar, dizer ao mundo que algo precisa ser feito por um território e isso se torna um impulso para viver.
Aqui ao contrário de sumir, de desaparecer, se quer afirmar, permanecer. Lutar.
Bruno Araújo, indigenista e Dom Phillips, jornalista. Parceiros de expedição pelo Vale do Javari, segundo maior território indígena do país, mais de 8 milhões de hectares DE.MAR.CA.DOS; maior concentração de povos isolados – isolados minha gente, é por opção! Indígenas que preferem não fazer contato com essa coisa que chamamos de civilização -; acesso extremamente restrito, pelo rio Javari ou Jutaí e pelo ar; território riquíssimo de isolados, marubos, korubos, kanamaris, matis, e tantos mais, fronteira com o Peru e Colômbia. É palco de diferentes conflitos, tráfico, desmatamento, pesca e caça ilegal, invasões de terras indígenas. Conflito armado.
Então onde estão Bruno e Phillips? É o que nos perguntamos desde domingo, quando soubemos que eles não haviam retornado de mais uma expedição para que Phillips pudesse concluir seu livro sobre ideias para salvar e proteger a Amazônia.
Governo Federal? Ministério da Justiça? Funai?
Este lugar está ou deveria estar sob a vossa proteção!
Não podem simplesmente de.sa.pa.re.cer.
Vocês são sim responsáveis por tudo o que acontece em uma região de fronteira e nos territórios indígenas.
A pergunta segue no dia de hoje:
Onde estão Bruno e Phillips?
Onde está o Governo Federal?
É guerra! Não leitoras-es, não aquela constitutiva dos povos indígenas, a guerra que forma um guerreiro, que luta pelo seu povo, pela sua cultura, por seu território, para ser indígena e assim seguir.
A Amazônia vive uma guerra armada, desigual, suja. É pelas costas, é com aliciamento, na base da ameaça, é imagem e semelhança do sujeito, que governa pelo medo, pela confusão, do banditismo.
Sabemos nesta batalha quem precisa desaparecer. Não sabemos?
Ilustração de @crisvector
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Meu perfil nas redes foi invadido. E agora?
Torcidas antifascistas organizam lado popular do futebol para combater opressões e a extrema-direita
Devolvendo o futebol ao povo e articulando a luta à celebração nas arquibancadas e ruas, as torcidas antifascistas vêm ganhando espaço em todo o país.
Por Coletivo Baru
Protestos antifascistas e antirracistas tomaram às ruas de São Paulo em 2020 e foram puxados, em grande medida, por torcidas organizadas l Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Ponte Jornalismo e Pavio
Já faz algum tempo que as bandeiras de time, com a palavra antifascista, estão presentes nas manifestações de esquerda do país, ao lado de movimentos sociais, partidos e sindicatos nos lembrando que o futebol é, antes de qualquer coisa, do povo. E que a união de futebol e política não só é possível, como faz parte de sua própria história.
Das arquibancadas para as ruas e redes sociais, as torcidas antifascistas surgiram e se consolidaram principalmente nos últimos anos, acompanhando a ascensão da extrema-direita no Brasil. São um fenômeno recente, portanto, podendo ser rastreado principalmente a partir de 2014 – apesar de a mais antiga delas ter sido criada em 2005: a Ultras Resistência Coral, torcida anticapitalista do Ferroviário Atlético Clube. “Essa centelha que nós lançamos ganhou corpo, essa chama se espalhou por vários locais do Brasil”, conta Carlos Marques*, da Resistência Coral. Hoje as torcidas antifa encontram-se em todas as regiões brasileiras, e se articulam também em movimentos unificados nacionais e regionais.
“A escalada autoritária e populista de Bolsonaro, usando todas as camisas de time de futebol, foi um divisor de águas: se a direita brasileira está avançando e usando o futebol de palanque fascista, alguém precisa agir”, diz Ot*, torcedor da Resistência Alvinegra, uma das torcidas antifascistas do Clube Atlético Mineiro, surgida em 2019.
E uma coisa puxa a outra: Carlos Marques conta que, uma vez criada a torcida, juntaram-se ao movimento tanto torcedores de esquerda quanto militantes que passaram a se interessar pelo futebol “justamente por esse viés politizado, de esquerda, anticapitalista e classista que a torcida tinha enquanto proposta”. Assim, as torcidas antifascistas vêm se mostrando um importante espaço de encontro e formação política, de luta por direitos e de trabalho de base.
Torcidas abandonam a rivalidade para se unir por uma causa em comum em 2020 l Foto: Pedro Ribeiro Nogueira l Ponte Jornalismo e Pavio
O ativismo das torcidas organizadas antifascistas
“São totalmente compatíveis a luta por direitos e a luta por um futebol mais justo, democrático e popular. Porque entre os direitos da classe trabalhadora está incluso o direito ao lazer e nós sabemos que no Brasil o futebol é um dos principais lazeres de grande parte da população, de parte da classe trabalhadora”, argumenta Carlos Marques. Ot completa: “O futebol é o ambiente perfeito para se discutir as lutas populares. As torcidas, organizadas ou não, são compostas em sua imensa maioria por ‘gente como a gente’: homens e mulheres com poder aquisitivo baixo, que trabalham duro diariamente. O esporte é uma válvula de escape, uma diversão em meio aos problemas do dia a dia”.
Nisso está um dos pontos de partida mais importantes de seu ativismo: a construção conjunta em torno de um ideal comum, aliada à defesa irrestrita de um direito fundamental de toda a classe trabalhadora – o direito ao lazer, à festa, à diversão, ao espetáculo alegre e coletivo que pode ser encontrado em um jogo de futebol. “O futebol é um dos espetáculos mais políticos que existem”, resume Ot.
Daí que uma das frentes de atuação dessas torcidas é a defesa do acesso da população ao estádios, como explica Marques: “Quando nós lutamos contra a mercantilização do futebol, contra a elitização desse esporte, estamos lutando também por esse direito da classe trabalhadora, para que ela tenha esse lazer. Que o futebol volte a ser, ou permaneça, onde é possível, acessível à maioria das pessoas”.
Originalmente um esporte das elites, o futebol tornou-se, ao longo de sua história no Brasil, mais e mais parte da cultura popular. Hoje, parte da luta das torcidas organizadas é para que ele se mantenha de fato acessível ao trabalhador e não volte a ser um privilégio das elites. Carlos explica como o aumento dos preços dos ingressos e a padronização imposta às arquibancadas têm restringido não só quem pode frequentar os jogos, mas também a forma com que pode fazer isso.
Um exemplo é a extinção das “gerais”, que, segundo lembra Carlos, “era aquele espaço que havia nos estádios em que o trabalhador podia pagar um preço mais baixo para assistir a partida do seu time. Se extinguiu o momento que acontecia em alguns estádios, em que, faltando 15 min pra acabar o jogo, os portões eram abertos para que as pessoas pudessem assistir pelo menos aquela parte final. Muita gente que não tinha condição de pagar pelo ingresso entrava nesse momento”. Outra mudança que aponta para a crescente gentrificação do esporte é a alteração do próprio espaço dos estádios, que, a partir da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, passaram a seguir um modelo europeu – o “padrão Fifa”. A forma das torcidas ocuparem as arquibancadas foi alterada e “higienizada”, o que afeta diretamente a própria atuação das organizadas antifascistas, que muitas vezes têm seus materiais barrados de entrar nos estádios devido a seu conteúdo político, por exemplo.
“Nós não vamos aceitar que o trabalhador seja retirado do futebol, nem pelo Atlético e muito menos por presidentes e governantes que estejam no poder. Se precisar brigar, nós iremos”, afirma Ot. Carlos Marques explica qual é essa briga: “É basicamente a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, e isso se reflete também no futebol – mais democrático e mais acessível. Que esse lazer possa ser um direito de todos e todas pertencentes à classe trabalhadora”.
Essa luta não se restringe apenas à presença dos torcedores nos estádios, como completa Carlos: “E, quando se fala de todas e todos, isso implica também lutar no sentido não só do acesso em termos de ter condições de entrar no estádio e pagar o preço do ingresso, mas para que sejam respeitadas as diversidades, para que mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros e negras, possam se sentir bem nesse espaço, sem serem alvos de preconceitos, de machismo, de racismo, de homofobia. Que o espaço do futebol seja de fato acessível também no acolhimento, sem opressões”.
As torcidas antifascistas têm bastante clara a noção de que sua luta nos estádios é indissociável da luta das esquerdas no país, pois entendem que, sendo do povo, o futebol também é o espaço de construção, propagação de ideias, diálogo e trabalho político de tudo aquilo que diz respeito ao povo. Assim, as bandeiras dos times tremulam ao lado das bandeiras das lutas populares.
“O esporte sempre esteve em paralelo aos grandes acontecimentos políticos do país, e é impossível uma luta popular da esquerda ‘eliminar’ o futebol das pautas. É um tiro no pé, visto que uma imensa parte da população brasileira é apaixonada por ele. O papel da esquerda em relação ao futebol é bem simples: o diálogo e propagação de ideias. Conversar com o torcedor é literalmente conversar com o povo”, resume Ot.
O diálogo e a propagação de ideias tornam-se parte da maneira das torcidas antifascistas estarem nos estádios, e variam desde manifestações públicas e ações solidárias a negociações com as diretorias dos times e outras torcidas organizadas.
Exposição de faixas nos estádios, distribuição de panfletos, comunicação virtual, convocação de reuniões entre o clube e os torcedores, apresentação em rádio, presença em manifestações de rua, como em atos de 1º de maio ou contra o governo federal: essas são algumas das formas com que as torcidas antifascistas se comunicam e marcam presença politicamente.
“Um exemplo disso foi a ação que fizemos no dia de aniversário do golpe militar, em 2021, quando torcidas do Brasil todo esticaram faixas pelas cidades e nas portas dos estádios com a frase ‘Ditadura nunca mais’”, lembra Eme.
Eme, integrante do Movimento Unificado das torcidas antifascistas brasileiras, explica que existem diferentes tipos de organização das torcidas no país: aquelas que são perfis e páginas em redes sociais, movimentando-se apenas no ambiente virtual e sem presença nos estádios; outras que são pequenos agrupamentos de militantes, sem vínculo com as organizadas e, portanto, com menor adesão popular; as torcidas que têm interação com as organizadas, seja por possuírem membros delas, seja por trabalharem conjuntamente em algumas frentes; e, por fim, os núcleos antifascistas que se formam dentro das próprias torcidas organizadas.
A Ultras Resistência Coral, do Ferroviário do Ceará, foi pioneira em aliar antifascismo com futebol no país no séc. XXI l Foto: Divulgação
“Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes”
Essa frase, um dos lemas carregados nas faixas da Resistência Coral, descreve um aspecto central da organização dessas torcidas: a união dos torcedores como classe trabalhadora. É o que explica Carlos Marques: “Nós identificamos que o inimigo do torcedor não está do outro lado da arquibancada, vestindo a blusa de um outro clube ou de uma outra torcida organizada. Os verdadeiros inimigos estão ocupando cargos de poder – poder político, econômico… estão, esses sim, trazendo prejuízos e ferindo direitos dos torcedores, sejam eles de torcida organizada ou não”.
É claro que uma coisa não exclui a outra. A luta pelos direitos da classe trabalhadora, contra o neoliberalismo e por um futebol mais democrático não se sobrepõe à torcida apaixonada por um time – na verdade, as duas coisas acontecem lado a lado, como duas faces da mesma moeda. “O que é mais relevante: o fulano de tal estar do meu lado (ideologicamente) ou ele ser de uma torcida rival à minha? E é aí que eu acho super importante a organização: quando falamos sobre pautas antifas, nós ‘esquecemos’ um pouco a cor da camisa do outro, e levamos em consideração que a nossa luta é conjunta, com total respeito ao amor pelo time, é claro”, reforça Ot.
Apesar dessa união sob uma grande bandeira, os conflitos com o meio mais tradicional do futebol e a resistência encontrada por parte de diversos torcedores tornam necessária uma constante negociação e compreensão das formas com que os afetos se organizam nas arquibancadas.
Sobre as relações entre as torcidas organizadas, por exemplo, Eme aponta a importância de dar atenção às rivalidades pré-existentes, sem passar por cima delas em prol do “antifascismo”. “As rivalidades entre torcidas organizadas são muito mais antigas que esse novo movimento antifa nas arquibancadas daqui, muitas delas com histórico de mortes em confrontos, então não é algo que se pode ignorar”, pontua. Quando há ações que não levam em conta essa lógica, mantendo-se alheias ao mundo das torcidas, “sem nenhum trabalho político antes”, o efeito é apenas o de afastamento das organizadas, como explica Eme. Sem haver trabalho de base não há construção política, não há adesão popular e nem um movimento antifascista de fato, capaz de mobilizar e transformar o ambiente do futebol a partir de seus agentes.
O que está no cerne das torcidas antifascistas, afinal, é a união de torcedoras e torcedores como classe trabalhadora e como povo apaixonado pelo futebol, com tudo o que isso implica: os conflitos de classe, a luta por direitos e o anticapitalismo, por um lado; e as rivalidades entre clubes e a paixão pelo time, por outro. A partir do diálogo, da militância que vai do boca-a-boca à luta institucional, e da presença ativa em manifestações e estádios, os torcedores organizados sob a bandeira antifascista atuam para que o futebol (e a política, de forma geral), seja de fato do povo.
Quanto às divergências entre as torcidas ou entre as diferentes posturas partidárias, o trabalho é para que elas não se sobreponham a esse interesse maior. “Cada um no seu canto, mas todos falando a mesma língua: somos antifascistas”, resume Eme, que também coloca ênfase na importância do trabalho de base como princípio de luta: “Acreditamos que a união e paz entre a classe trabalhadora e seus torcedores não virá do dia pra noite com frases feitas ou tentativas forçadas, mas naturalmente conforme esse trabalho político for ganhando cada vez mais adesão entre as massas.”
Torcidas antifascistas no Brasil
Sudeste
Cruzeiro Antifa e RAP – Resistência Azul Popular (Cruzeiro, MG), Galo Ultras Antifa e Resistência Alvinegra (Atlético, MG); Gaviões da Fiel e Coringão Antifa (Corinthians, SP); Mancha Verde, Palmeiras Antifascista e Porcomunas (Palmeiras, SP); Resistência Tricolor Antifascista e Frente Democracia Tricolor (São Paulo, SP); Santos Antifascista (Santos, SP); Flamengo Antifascista e Flamengo da Gente (Flamengo, RJ), Botafogo Antifascista (Botafogo, RJ), Bangu Antifascista (Bangu, RJ), Vascomunistas e Esquerda Vascaína (Vasco, RJ), Fluminense Antifascista (Fluminense, RJ).
Nordeste
TAU Nordeste (união das torcidas antifascistas da região), Antifascista Sport (Sport, PE), Timbu Antifa (Náutico, PE), Azulão Antifa (CSA, AL), Ultras Resistência Coral (Ferroviário, CE), Movimento 3 de fevereiro e Democracia SCFC (Santa Cruz, RE), Vozão Antifa (Ceará, CE), Resistência Tricolor (Fortaleza, CE), Bahia Antifascista e Frente Esquadrão Popular (Bahia, BA), Vitória Antifascista (Vitória, BA), América-NT Antifascista (América, RN), ABC-NT Antifascista (ABC, RN).
Sul
Frente Popular Alviverde e Coxacomunas (Coritiba, PR), Grêmio Antifascista, Antifascistas do Grêmio, Coletivo Elis Vive e Tribuna 77 (Tricolor Gaúcho, RS), Inter Antifascista (Internacional, RS), Londrina Esporte Clube Antifascista (Londrina, PR), Antifascista do Furacão (Atlético, PR).
Norte
Remo Antifascista (Remo, PA), Frente 1914 (Paysandu, PA).
Torcidas Unificadas
Torcidas Antifas Unidas – Nordeste, Torcidas Antifas Unidas – Brasil (TAU-BR).
História: o Ferroviário Atlético Clube (CE) e a Ultras Resistência Coral
“Nada diminui nossa paixão incendiária. Ferroviário, orgulho da classe operária”, grita a torcida Ultras Resistência Coral. A atuação de esquerda da organizada, aliada às causas da classe trabalhadora, opera também um resgate da própria história do time, que “foi forjado na classe operária”, como conta Carlos Marques.
O time cearense foi criado por operários da estrada de ferro que se organizavam em dois times amadores para realizar partidas de futebol nos intervalos de descanso do trabalho, entre um turno e outro. Hoje, relembrar essas raízes é motivo de orgulho e de luta para os torcedores da Ultras Resistência Coral, que têm os interesses da classe trabalhadora como centro de sua atuação anticapitalista. Formada, em sua origem, majoritariamente por estudantes secundaristas e jovens universitários, a Resistência Coral mantém em sua composição o mesmo laço com a classe trabalhadora que o Ferroviário carrega em sua história: atualmente é composta por trabalhadores das mais diversas áreas, contando com um grande número de professores da rede pública de ensino.
De origem anarco-comunista, a Ultras Resistência Coral foi criada, no meio da torcida organizada tradicional, a partir do incômodo gerado pelos comportamentos de incitação ao ódio muitas vezes percebidos nas arquibancadas. Transformando incômodo em imaginação e luta, os torcedores se propuseram a levar uma outra lógica para os estádios, inspirados no modelo de torcidas organizadas europeias, as ultras. Assim nasce a torcida anticapitalista do Ferroviário: como explica Carlos Marques, “uma torcida abertamente de esquerda, politizada, anticapitalista e que tivesse essa postura diferenciada nos estádios de futebol para combater esses tipos de preconceito, a homofobia, o machismo, o racismo. E também outros aspectos que envolvem o sistema capitalista, como a própria mercantilização e a elitização do futebol”.
Para a torcida organizada, contar a história do time faz parte tanto da paixão pelo Ferroviário quanto da construção política de conscientização e identificação de classe. “Nosso clube está diretamente ligado à classe operária e a Resistência Coral buscou fazer um trabalho de resgate dessa história e dessa identidade classista, que durante um bom tempo ficou relegada a segundo plano. Através desse trabalho a torcida do Ferroviário passou a conhecer mais a sua origem operária e reivindicar essa origem e esse caráter diferenciado do nosso clube. Isso contribuiu para que pudéssemos levantar essas questões que envolvem a classe trabalhadora, dos direitos de classe. Foi um diferencial que nos ajudou a fazer com que a luta pela classe trabalhadora fosse incorporada de maneira mais aceitável pela torcida do Ferroviário”, explica Carlos Marques. “É algo que nos mobiliza bastante. Nos orgulha muito ter essa origem, essa caracterização que a gente reivindica e dissemina nos estádios com muito orgulho”, completa.
*Os nomes que aparecem nessa matéria são fictícios, à pedido das fontes.
A saúde mental é coletiva: como o movimento antimanicomial ajudou a criar uma rede de cuidado público
Com a forte mobilização do movimento antimanicomial foi possível obter ganhos como a criação das CAPS e das RAPS; o movimento busca agora a ampliação e a manutenção de políticas públicas
Por Alicia Lobato*
No dia 18 de abril, movimentos sociais tomam as ruas para visibilizar a questão da saúde mental e demandar atendimento humanizado e de qualidade l Foto: Governo da Paraíba
“Por uma sociedade sem manicômios”: foi essa frase que o movimento antimanicomial escolheu em 1987 para levar adiante suas reivindicações pelo fim do uso do eletrochoque e de práticas de torturas em instituições de saúde mental, então conhecidas como hospícios ou manicômios. E foi sob essa frase que o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental deu início a uma greve que durou oito meses e ajudou a avançar no questionamento das instituições de internação de pessoas em sofrimento psíquico e advogando por seus direitos.
Dessa mobilização surgiu a “Articulação Nacional da Luta Antimanicomial”, que tinha como o objetivo pôr fim às instituições manicomiais e lutar pela criação de políticas públicas de saúde para pessoas que precisavam de apoio psicológico.
Após 14 anos de luta, o movimento conseguiu uma vitória significativa: em 2001 foi sancionada a lei nº 10.216/2.001, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e assegura um melhor tratamento de saúde, segundo suas necessidades, além de pôr como direito, respeito e proteção contra qualquer forma de abuso.
Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mantidos pelo SUS e criados em 1992, foram atualizados pela lei e ampliaram um entendimento da saúde mental que foi encarada a partir daquele momento de maneira intersetorial e multidisciplinar, buscando entender a integralidade do sujeito em sofrimento psíquico.
“Tivemos um cenário de ganhos no sentido de não só trazer a pauta antimanicomial para a sociedade, algo que parecia tão naturalizada a pessoa ter algum tipo de transtorno e ir para o manicômio”, afirma Vanessa Furtado, militante da luta antimanicomial e doutoranda em Psicologia na Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN). “Com a lei de 2001, foi-se criando a possibilidade de demonstrar outras formas de cuidados que não o encarceramento e a hospitalização.”
A pressão dos movimentos sociais, também ajudou na criação das redes de atenção psicossocial (RAPS), em 2011, dentro do sistema público de saúde, que contribuíram para a qualidade de vida e o fim do isolamento de pessoas neurodiversas.
“As pessoas hoje conhecem e sabem o que são os CAPS, não só pessoas que estão com casos de transtornos graves, mas outros quadros acabam sendo atendidos”, aponta Furtado, ressaltando a capilarização da rede de atenção à saúde mental.
Ativistas da luta antimanicomial participam de atividade em Macapá (AP) l Foto: Divulgação
Desigualdade regional e resistência ao conservadorismo
Com a ascensão do conservadorismo no país e o regime de austeridade do governo Bolsonaro, os equipamentos de atendimento à população sofreram duros ataques. Para manter os serviços funcionando, os movimentos têm se mobilizado em todos os estados contra o retrocesso e também pela ampliação do atendimento.
Tânia Leal, atuante no movimento antimanicomial do Amapá, conta que o estado é o que menos possui CAPS no país, com cinco unidades. Apenas a capital, no entanto, tem uma população grande o suficiente para demandar cinco unidades.
Para Leal, a luta tem sido árdua, “visto a força do conservadorismo cristão no estado – desde a sociedade até em espaços de tomada de decisão. Além disso, Macapá é a única capital brasileira que não tem uma Unidade de Acolhimento e um CAPS 24h – o que o CAPS Gentileza deveria ser, mas não é”.
Em Macapá, ainda neste mês de maio, está sendo realizada a campanha “Trancar não é Tratar”, em defesa do cuidado em liberdade, focando principalmente na defesa do SUS, que torna possível a existência de espaços como o CAPS. O lançamento da iniciativa aconteceu no dia 10 de Maio, e a programação terá oficinas de lambe, cine debate e rodas de conversa.
A militante analisa que apesar dos avanços que o movimento antimanicomial tem conquistado, no governo atual o debate sobre saúde mental e saúde pública ficou cada vez mais escanteado e, com a pandemia, o próprio movimento teve dificuldade em saber como agir contra a reforma proposta pelo governo federal.
O governo Bolsonaro também aumentou o financiamento para as comunidades terapêuticas de cunho religioso, um movimento que ganha força desde 2016, com Michel Temer. Para a pesquisadora Vanessa, esse redirecionamento exemplifica o desmantelamento das políticas públicas de atenção psicossocial.
Em 2020, a Agência Pública noticiou que apenas no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro foram investidos em comunidades terapêuticas de orientação cristã quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades, cerca de R$ 41 milhões foram para comunidades terapêuticas evangélicas e R$ 44 milhões para católicas.
“Os hospitais psiquiátricos, as casas terapêuticas estão recebendo recursos do governo em detrimento dos CAPS isso é um problema, tem muito município que não tem condições sozinho de manter o CAPS e a ajuda do governo federal vinha diretamente para essa política. Precisamos garantir que as unidades sejam centralizadoras da atenção do usuário, essa política precisa voltar”, afirma Vanessa.
Por conta desse novo cenário, o movimento tem buscado se inserir em outros espaços para seguir atento aos passos do governo federal. A campanha realizada pelo movimento da luta antimanicomial no Amapá, por exemplo, tem feito críticas abertas às comunidades terapêuticas. De acordo com o material da campanha divulgado pelo movimento, já foi registrada pelo Ministério Público a existência de tortura, trabalho escravo e intolerância religiosa nesses espaços.
Tânia afirma que eles têm lutado por inspeções constantes nas comunidades terapêuticas e em clínicas de reabilitação no Amapá, e acrescenta, “temos denunciado incansavelmente esses espaços, mesmo com episódios de censura e retaliação”.
Em todo o país, manifestantes que defendem os direitos das pessoas em sofrimento psiquíco tomam as ruas no dia 18 de maio l Foto: Luta Antimanicomial RJ via Brasil de Fato
Daqui em diante
Hoje, falar sobre saúde mental é assunto costumeiro na vida das pessoas e nas redes sociais. Mas, a história do movimento antimanicomial mostra que, acima de tudo, essa questão é coletiva e social. E, sendo assim, questões como classe social, gênero e raça não podem ser deixadas de lado ao pensar o cuidado, a luta e a formulação de políticas públicas.
A pesquisadora Vanessa Furtado lembra que grande parte da população residente e hospitalizada nos hospitais psiquiatricos no Brasil são declarados como negros ou pardos, e complementa, “isso ainda é reflexo desse processo de racismo instituido no Brasil é que vai gerar formas de expressão de sofrimento diferente”.
Para Tânia Leal, o cenário de desigualdade também é percebido no Amapá, onde houve um aumento visível de pessoas em situação de rua, sendo “grande parte delas usuárias dos CAPS”. Além disso, ela continua “é grande o número de pessoas em sofrimento psíquico internadas nas alas psiquiátricas dos hospitais da cidade. Apesar do contexto nocivo, o movimento da luta antimanicomial continua resistindo dia após dia”, conclui.
*Alicia Lobato é jornalista e faz parte da equipe da Escola de Ativismo.
O surgimento, a resistência e as fabulações quilombolas no livro “Narrativas do Interior”
Livro foi escrito em conjunto com a comunidade e conta a história do território, sua cultura e seus habitantes
Pedro Silva e sua mãe, Lindalva, durante as celebrações do Dia do Rio Jauquara
Pedro costumava anotar e transcrever as cantigas que seu avô, seu Francisco, cururueio, cantador e tocador de viola de cocho, entoava. Mais do que seu avô, seu Francisco é memória viva da cultura do Vão Grande, uma região quilombola que reúne cinco comunidades, localizada entre duas morrarias perto de Barra do Bugre, no estado do Mato Grosso. Foram dessas anotações, num caderninho, que surgiram os primeiros rascunhos do que seria o livro “Narrativas do Interior”, lançado no dia 28 de abril.
“Pessoas especiais deixam histórias especiais”, disse emocionado Pedro Silva, ao lado de sua mãe, Lindalva, que citou como sua grande inspiração. O lançamento aconteceu pisando no chão do território durante a celebração do Dia do Rio Jauquara, que corta e alimenta a comunidade.
“O livro conta o que vocês do Vão Grande já sabem. Vamos contando as coisas bonitas mas também as dificuldades que a gente passa”, disse o autor em referência às ameaças do agronegócio e da construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) que ameaça o rio. “É uma história de respeito e de cuidado com a nossa cultura”.
Editado e publicado sem fins lucrativos pela Escola de Ativismo e a Sociedade Fé e Vida, o livro fala do território, de suas pessoas e cultura, do mutirão ou muchirum, da construção das casas, lendas, mitos, contos e causas, sabedorias e ervas medicinais. Também grava em páginas a hospitalidade das pessoas, a religiosidade e a vida do rio.
Sem mais delongas, quem quiser ler o “Narrativas do Interior” pode baixá-lo aqui.
O dia do rio
“Rio Jauquara, Rio Jauquara,
Eis aqui minha homenagem pra essas águas que não para
Rio Jauquara, Rio Jauquara,
Com suas águas cor de anil, eis aqui minha homenagem, 28 de abril”
– Dito Baiano
Como se marca um aniversário de rio que existe desde sempre? A comunidade de Vão Grande ensina que se celebra a partir da luta e do compromisso dos moradores com suas águas, de modo que, a data de fundação do Comitê Popular do Rio Jauquara, que integra o Comitê Popular do Rio Paraguai, é o aniversário do rio, em 28 de abril.
O primeiro aniversário foi em 2019, enquanto a comunidade se organizava para lutar contra a ameaça de uma PCH — uma das 135 que podem surgir no estado e colapsar o Pantanal, a principal área alagada do planeta, e atingir mais de 120 milhões de pessoas em quatro países.
Ali do sítio do Seu Antônio, que recebeu as comemorações depois de dois anos de pausa por conta da pandemia, contou-se como aquela “festa de aniversário” foi importante para a luta.
Ao articular os quilombolas e trazer para perto a comunidade, foi possível organizar um abaixo assinado contra a construção da PCH. E também mostrar, com fotos e vídeos, aos promotores e juízes quanta vida vive ali. Quanta cultura. Quanto peixe. E, claro, quanta gente.
Entre rezas antigas em palavras que o próprio Pedro Silva diz que ainda está desvendando, tocadas de viola-de-cocho, instrumento símbolo do Mato Grosso, apresentações de Cururu e Siriri, e fartas porções de vaca atolada, lambari e jaú frito, o senso de união de cinco comunidades ia se fortalecendo, em bancos de tora e tábua embaixo da sombra de uma árvore.
E, também, depois na beira do rio. Foi lá que cada comunidade do Vão Grande trouxe um pouquinho da sua água, assim como o Comitê do Rio Paraguai, e as misturaram com as águas que cruzam a frente do sítio Santo Antônio, mostrando que a luta irá continuar fluindo nas margens do Jauquara e seus quilombos, querendo os empresários e governos ou não.
Ah, e claro: toda festa tem que ter bolo.
Entenda o caso
Ao receber menos atenção que suas irmãs maiores, as chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) representam um projeto que, por sua escala, pode ser ainda mais danoso à natureza. Somente no Mato Grosso, estão previstas 135 barragens desse tipo, que podem levar ao colapso do Pantanal, maior área alagada do planeta.
Essas barragens representam um choque incalculável em uma bacia hidrográfica pertencente a 4 países – Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina –, atingindo diretamente mais de 120 milhões de pessoas.
Os quilombos que dependem diretamente do Jauquara estão nos municípios de Barra dos Bugres e Porto Estrela. São gerações de uma cultura estruturada a partir da relação direta com a natureza, tendo no rio uma centralidade. Atualmente, o projeto para a hidrelétrica tem o nome de PCH Araras.
A empresa responsável pelo empreendimento é a Prospecto Participações e Negócios, e o projeto básico já foi aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Os rios do Pantanal são conhecidos por seu período de cheia e de baixa. Esse equilíbrio delicado pode ser completamente alterado com o controle humano sobre o volume de água. Como forma de garantir que haverá sempre reserva de água para a geração de energia, os controladores das barragens determinam essa vazão.
Para a natureza e as plantações que dependem desses ciclos para manter sua vida, isso significa o fim de colheitas e de vegetações nativas. No caso dos peixes, a situação é ainda mais grave, pois sem conseguir subir ou descer o rio para se reproduzir, diversas espécies entrarão em extinção nesses rios, levando a uma sequências de mortes em cadeia. Se até mesmo grandes cidades são impactadas por essa interferência, a situação é ainda mais grave em comunidades tradicionais que dependem dos rios para seu sustento e modo de vida, como os quilombolas do Vão Grande.
Como o fim da fome passa pela luta por terra e território?
Por Bárbara Poerner*
Concentração de terras, domínio do agronegócio e avanço do garimpo ilegal impedem a consolidação da soberania alimentar, mas populações indígenas e campesinas resistem e propõem alternativas
Ação do MST relembra e pede justiça por Massacre de Eldorado dos Carajás no Rio de Janeiro em 2021 l Foto: Reprodução/MST
Vinte e um sem-terra assassinados, 69 feridos. Esse foi um dos saldos do Massacre de Eldorado de Carajás, que marcou para sempre o 17 de abril de 1996. Na ocasião, tropas da Polícia Militar do Pará forçaram violentamente a dispersão dos mais de 1500 manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que marchavam até Belém para cobrar a desapropriação de fazendas e o assentamento de famílias. A data foi carimbada como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária e é um convite para rememorar os movimentos sociais campesinos e indígenas que atuam contra a espoliação de seus territórios, pela soberania alimentar e proteção dos bens comuns da natureza.
Ayala Ferreira, da direção nacional do MST, compartilha que abril é um mês de intensas movimentações na organização, em “defesa do teto, da terra e do pão”. Ela explica que o movimento surgiu no bojo da emersão das lutas de massa no Brasil, durante e após a ditadura militar, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O momento de ebulição popular também forjou outros movimentos além dos campesinos, como é o caso do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), que hoje se consolida como uma entidade que busca construir uma matriz energética popular.
Em 1981, o acampamento Encruzilhada Natalino se tornou uma referência para a fundação do MST, que em 1984 realizou o seu 1° Encontro Nacional, na cidade de Cascavel, Paraná. Já o MAB, por conta das grandes obras de infraestrutura da ditadura, como usinas hidrelétricas, articulava ações desde 1970 a partir das reivindicações de atingidos por barragens. Seu primeiro encontro oficial foi em 1987, em Chapecó, Santa Catarina.
Essa luta, porém, começou bem antes da década de 1970. Isso porque “lamentavelmente somos um país que se instituiu legitimando a grande propriedade de terras”, analisa Ayala, ao citar a histórica Lei de Terras.
Sancionada em 1850 por Dom Pedro II, a medida dividiu ainda mais o Brasil em latifúndios ao estabelecer que só poderia adquirir terra quem a comprasse ou recebesse do Estado. O resultado foi um agravamento da concentração fundiária, que se desenrola até os dias atuais: 45% das terras no Brasil estão nas mãos de 1% das propriedades rurais, segundo dados da Oxfam.
A militante, contudo, destaca que mobilizações pela reforma agrária e democratização do acesso à terra sempre foram puxadas pela articulação popular de indígenas, quilombolas, campesinos e outros trabalhadores que vivem além da lógica do capital. “Tudo aquilo que nós tivemos de avanço e conquista, não veio sem termos instituído um mecanismo de pressão e reivindicação em torno da reforma agrária, reconhecimento de terras tradicionais e proteção de bens da natureza”, afirma.
Ayala acrescenta que nesse processo, foi possível contar com figuras mais abertas à negociação. “Na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), foi um período fecundo para o processo de implementação de políticas públicas nos nossos territórios. Mas da perspectiva da massiva distribuição de terras para trabalhadores e trabalhadoras rurais, a política foi tímida. Houve um tensionamento permanente entre os interesses do capital e agronegócio versus os interesses dos trabalhadores do campo em suas vertentes”, diz ela, ao fazer uma distinção entre os períodos históricos em que há maior diálogo, e períodos totalmente fechados, como agora com a gestão de Jair Bolsonaro.
“É o sucesso do agronegócio, e não o fracasso, que produz a fome”
s3° Congresso Nacional do MST, em Brasília. 1995 l Foto: Arquivo e Memória do MST.
Diversos projetos de lei que têm caráter anti-ambiental tramitam no Congresso Nacional com o apoio do presidente. Eles discorrem sobre a permissão da exploração em terras indígenas, como no PL 191/2020. Ou ainda são antigas sugestões que foram retomadas, como o PL 6299/2002, que sugere a flexibilização do uso de agrotóxicos. São manobras legislativas que beneficiam os setores da mineração e do agronegócio.
“O agronegócio é responsável pela manutenção da concentração da terra e pelos limites no processo de diversificação da produção agrícola”, continua a militante. “A prioridade do agro é produzir commodities, não alimentos. De modo que o agro também é responsável pela fome no Brasil – e ainda causa diversos problemas ambientais”.
A análise converge com a do pesquisador José Ribeiro Junior. “O sucesso do agronegócio convive bem com a fome, que é um problema político”, diz o geógrafo, que é um dos autores do Atlas das Situações Alimentares no Brasil. “Precisamos reconhecer os antagonismos que caracterizam nossa sociedade: não é o fracasso, e sim o sucesso do sistema agroexportador, que produz a fome”, completa.
Ele cita o professor, nutrólogo e ativista Josué de Castro, autor da obra Geografia da Fome, que discorre sobre a relação da mazela com o sistema de agroexportação. “O autor identificou que o fato da existência de grandes latifúndios e a monocultura impedia uma produção de alimentos de subsistência para os próprios trabalhadores. Ele chamou essa área de fome endêmica. Para ele, a fome era um fenômeno polimorfo”, explica Ribeiro Jr..
“Castro começou a falar da necessidade da reforma agrária. Porém, isso não viria de um estado comandado por essas oligarquias. Por isso a importância dos movimentos sociais: eles não enxergam o faminto como um beneficiário de políticas públicas, e sim como um sujeito político”, completa.
Durante o desenvolvimento do agronegócio, no Brasil e no mundo, uma das justificativas mais usadas é a da modernização do campo e consequente aumento da produtividade, que poderia cessar ou mitigar a fome. O pesquisador vê com ceticismo essa racionalização: “Há, de fato, maior produtividade, com o uso de maquinário, mas isso não significa a diminuição da fome”.
Segundo o geógrafo, isso acontece porque o agronegócio não é o único a produzi-la, mas sim um dos elementos inerentes ao capitalismo, sistema que poupa trabalho e, nesse caso, expulsa os trabalhadores do campo e de suas terras. “Quem absorve esses trabalhadores? Não há absorção, então uma categoria que produz subemprego vai produzir a fome”, explica. Ribeiro Jr. cita um sintoma relacionado: entregadores de aplicativos de delivery, que ao mesmo tempo em que entregam comida, relatam fome e fazem refeições incompletas.
Apesar da intensa produtividade, grande parte dos itens produzidos pelo agronegócio não vão parar, necessariamente, na mesa dos cidadãos. “Uma parte do que o agro produz não é pra virar alimento, e eles não estão tão preocupados em quem vai comer; se é um brasileiro ou se vai alimentar gado na China, tanto faz”, diz José Ribeiro Jr.. É por isso que, mesmo com grandes safras de soja e milho, por exemplo, milhões de brasileiros passam fome neste momento. Conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mais de 19 milhões de pessoas convivem com a mazela e outras 112 milhões – metade da população – sofrem com insegurança alimentar.
Camponeses e povos tradicionais: aliados na luta contra a fome
O agronegócio, no entanto, não é o único produtor da fome e do problema de acesso às terras. A mineração e o garimpo também são. Ao citar a pesquisadora indiana Amrita Rangasami, que analisou crises na Índia e no Pacifico, o geógrafo explica que “em uma crise de fome, é importante olhar para quem sofre mas também para quem se beneficia dela”. Isso acontece, continua ele, por conta da extrema vulnerabilidade a qual os famintos são submetidos. O peso das mazelas sociais se distribui de forma diferente. De acordo com ele, são as mulheres e pessoas não-brancas quem mais sofrem com “os processos de expropriação, perda de terras”.
Um exemplo nacional são as situações de estupro e abuso sexual em terras indígenas. O mais recente foi revelado, nesta semana, no relatório Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. No documento, constam relatos de mulheres e meninas que foram exploradas sexualmente, por garimpeiros ilegais, em troca de alimentos:
“Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. ‘Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!’, assim os [garimpeiros] falam muito para os Yanomami”.
Ainda, com o avanço da dinâmica garimpeira, várias famílias não conseguem manter seu cultivo de subsistência e ficam dependentes de trocas desiguais com os garimpeiros. “Alguns trabalham como carregadores em troca de pagamento em dinheiro ou ouro para depois comprar nas cantinas dos acampamentos, onde um quilo de arroz ou um frango congelado custam uma grama de ouro ou 400 reais”, revela o relatório.
A prática do garimpo é apoiada pelo atual governo, que empurra pela aprovação de projetos de lei que permitem a exploração de terras indígenas e são discutidos como emergenciais no Congresso. Dessa forma, a luta de povos originários em proteção de seus territórios alia-se à luta dos campesinos. Essa intersecção, para Ayala, é latente.
“Precisamos nos articular para fazer pautas em comum, seja na lutas por territórios, defesa das florestas, rios e águas. Essa mobilização dialoga com a experiência de defesa que os povos indígenas têm. E são pautas muito comuns”. A militante conta que durante o Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que reuniu mais de oito mil indígenas em Brasília na última semana, foi o MST quem assumiu a preparação e fornecimento dos alimentos para os participantes.
Caminhos possíveis
Encontro Nacional das Mulheres Atingidas em Defesa da Vida. Brasília, junho de 2019 l Foto: Marcelo Aguilar/Reprodução MAB
Observando o histórico de luta dos movimentos sociais, é possível projetar e construir caminhos para efetivar a reforma agrária e a soberania alimentar. Isso significa, também, estar em constante disputa, onde até os conceitos e terminologias devem ser observados. José diz que “existe um tabu em torno da fome. As pessoas não falam “fome”. Essa ideia de segurança alimentar vem de quem tem dinheiro, é um jeito específico de olhar pro fenômeno, na melhor das hipóteses, de quem administra ou faz a gestão da miséria”, analisa.
A soberania alimentar, pauta colocada pelos movimentos sociais populares, afirma que o povo deve ter autonomia para decidir como, quando e de que forma vai produzir e consumir os alimentos. “Não é só ser orgânico, mas quais as relações sociais por trás da produção. Há toda uma construção de soberania popular”, continua o geógrafo. Uma possível alternativa, para José, encontra-se no sistema agroecológico, que invés de excluir os trabalhadores da produção, os trás para perto. Contudo, ele não deixa de destacar que as soluções não são instantâneas ou individuais, mas sim iniciadas em um processo de luta coletiva e popular.
Para Ayala, um dos objetivos é derrotar o neoliberalismo e o conservadorismo que regem o país atualmente, e com isso concentrar as forças na democratização do acesso às terras. “A gente só vai avançar na conquista de território e na reforma agrária se formos capazes de mudar a relação das forças que se negociam”, afirma Ayala, que vê as pautas do MST como paralelas a todo contexto brasileiro, do campo às cidades.
“Há uma poesia que fala que a liberdade da terra e a reforma agrária são assuntos de todos que se alimentam dos frutos do trabalho e da terra. A poesia é nosso manifesto pra dizer que se nós quisermos ter alimentos saudáveis, de custo justo, superar as desigualdades sociais no Brasil, construir um país soberano, nós precisamos assumir a bandeira da democratização, do acesso a terra e da reforma agrária, assim como precisamos assumir a bandeira da democracia, educação, saúde e cultura”, finaliza Ayala.
*Bárbara Poerner é jornalista e repórter. Cofundadora do pré-vestibular popular Cursinho do Zinga.