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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Como o garimpo e a mineração agravam as mudanças climáticas? Listamos 5 fatores

O aumento do garimpo no Brasil atrapalha os objetivos do país de frear o aquecimento global e cumprir acordos internacionais.

por Nayara Almeida

 

Pecuária extensiva derrubando florestas. Queimadas liberando toneladas de CO2 na atmosfera. Carros queimando gasolina. Poluição industrial. Peido de vaca. Esses são alguns dos vilões costumeiros que nos vêm à cabeça quando pensamos em mudanças climáticas.

No entanto, outras atividades, que à primeira vista podem parecer de menor impacto, estão deixando uma pegada cada vez mais crítica. Esse é o caso da mineração e do garimpo, atividades econômicas que explodiram durante o governo Bolsonaro. Só em terras indígenas, o crescimento foi de 500% nos últimos dez anos.

Abaixo, listamos alguns elementos da atividade mineira mineradora que contribuem para as mudanças climáticas. 

1 – Equipamentos poluem. E muito.

Na mineração é possível encontrar distintos métodos de lavra, isto é, exploração prática do minério, que podem variar de acordo com ferramentas e proporções de exploração. Geralmente há 2 formas de minerar, lavra a céu aberto, quando os minérios estão em uma parte mais superficial da terra ou em lavra subterrânea, quando estão em uma parte mais profunda do solo. Para a exploração da superfície, é necessário realizar a escavação e a terraplanagem para alcançar os minérios. Perfurar o solo significa destruir e mover pedras, terras compactas, raízes de um canto a outro.

Nesse processo, a atividade mineradora utiliza máquinas para acelerar esse processo. No entanto, estas máquinas possuem baixa eficiência energética e são alimentadas por combustível fóssil, uma das principais fontes de liberação de gases de efeito estufa na atmosfera. Alguns equipamentos podem consumir até 400 litros de diesel por hora, o que lança uma quantidade imensa de gás carbônico (CO2), principal gás do efeito estufa, na atmosfera.

“Poluir para destruir ou destruir para poluir?”

A ponto de comparação, cada uma dessas máquinas emite, em uma hora, CO2 de forma similar a uma viagem (ida e volta) de carro de Fortaleza (CE) até o Rio de Janeiro (RJ).

“Partiu Jeri?”, disse a máquina

2 – Eletricidade – a cadeia mineradora não toma banho curto

Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a cadeia minero-metalúrgica consumiu 320.918.220 MWh em 2020, o equivalente a 11% do total da energia elétrica consumida no Brasil naquele ano. 

Imagina se o governo te desse subsídio para tomar banho quentinho longo

Seriam necessárias mais de 675 MILHÕES de geladeiras com freezer ligadas 24h por dia durante UM ANO para consumir a mesma quantidade de energia.

A quantidade de refri e cervejinha que estamos deixando de gelar é gigantesca

 

3 –  Desmatamento – derrubar para minerar

Antes da mineração, vem a mina. Parece óbvio, mas não é: mineração gera MUITO desmatamento. Entre 2005 e 2015 a Mineração respondeu por 9% do desmatamento na Amazônia brasileira. A derrubada das árvores se dá principalmente no processo inicial de construção das minas.

Ninguém aguenta mais ver esse tipo de imagem ou morar em territórios assim

O foco no território da Amazônia não é algo de hoje, e muito menos parece que está próximo do fim. Não à toa, cerca de 22% de todos os requerimentos da Agência Nacional de Mineração (ANM) tem como principal alvo o bioma. O território amazônico possui minerais de alto valor e isso justifica o alto interesse de exploração e pressão na Amazônia. Isso significa que tem quase 2,6 milhões de hectares a serem autorizados a atividade de mineração, ou seja, uma área comparável ao território da Argentina e 60 vezes o Estado do Rio de Janeiro.

4 – Ameaça às Terras Indígenas.

Empresas de mineração entraram com incontáveis pedidos de autorização para mineração em áreas que invadem os limites de 204 terras indígenas registradas na Amazônia Legal.

Aprecie essa galeria que mostra como as terras indígenas são as maiores protetoras da floresta 👇

Toda terra indígena é uma trincheira que adia o fim do mundo

A dinâmica de ocupação da mineração é diferente da do agronegócio. Enquanto o agro “come pelas beiradas”, as empresas mineradoras se orientam pela concentração dos minérios e, por isso, acabam por instalar projetos em áreas mais remotas e preservadas.

À merce dos criminosos por um governo pró-garimpo, várias comunidades tem se organizado para expulsar invasores

5 – Barragens e destruição de ecossistemas e como isso pode ser agravado pelo clima extremo

Toda mina possui uma barragem de rejeitos ao lado. O potencial destrutivo desse tipo de barragem é bem conhecido no Brasil, e com as mudanças no regime de chuvas, o nível dessas barragens pode exceder o limite e elas podem se romper com mais facilidade.  

Crimes ambientais como Mariana e Brumadinho podem se tornar ainda mais comuns

Em resumo:

E é por isso que, independente do seu ativismo, você deve ser contra o afrouxamento e a liberação da mineração em terra indígena, ser contrário a #PL191Não. Os territórios indígenas, por exemplo, são os grandes responsáveis por deixar a floresta em pé no Brasil. Liberar a atividade mineradora nestes territórios, além de um absurdo antidemocrático, é ir contra a proteção do clima, é ir a caminho do colapso do planeta.

Em vez de liberar a mineração em terra indígena, é ideal que haja o aumento da fiscalização ambiental, que haja punição e regulação para reduzir o desmatamento e atividades que o promovem, como o próprio garimpo e mineração.

de.sa.pa.re.cer, verbo intransitivo

Luh Ferreira, da Escola de Ativismo, reflete sobre esse verbo tão ecoado dentro do meio ativista, à sombra da ausência de Dom Phillips e Bruno Pereira

de.sa.pa.re.cer

“verbo intransitivo, deixar de ser visível, sumir”

Sentimento que se repete no meio ativista, entre professores, entre trabalhadores, escuto cada dia mais gente dizendo – quero sumir daqui.

Talvez por termos vivido situações tão difíceis nos últimos anos? Talvez porque as coisas vão mal no país? Violência, crise econômica, fakenews, polarização, morte, mortes, pandemia que não passa… excessos, insônia, ansiedade…

Tudo isso fazendo parte da nossa vida.

E viver ainda é o que nos resta.

Mas e quando você não quer sumir?

E quando você quer permanecer, lutar. Quando você quer comunicar, dizer ao mundo que algo precisa ser feito por um território e isso se torna um impulso para viver.

Aqui ao contrário de sumir, de desaparecer, se quer afirmar, permanecer. Lutar.

Bruno Araújo, indigenista e Dom Phillips, jornalista. Parceiros de expedição pelo Vale do Javari, segundo maior território indígena do país, mais de 8 milhões de hectares DE.MAR.CA.DOS; maior concentração de povos isolados – isolados minha gente, é por opção! Indígenas que preferem não fazer contato com essa coisa que chamamos de civilização -; acesso extremamente restrito, pelo rio Javari ou Jutaí e pelo ar; território riquíssimo de isolados, marubos, korubos, kanamaris, matis, e tantos mais, fronteira com o Peru e Colômbia. É palco de diferentes conflitos, tráfico, desmatamento, pesca e caça ilegal, invasões de terras indígenas. Conflito armado.

Então onde estão Bruno e Phillips? É o que nos perguntamos desde domingo, quando soubemos que eles não haviam retornado de mais uma expedição para que Phillips pudesse concluir seu livro sobre ideias para salvar e proteger a Amazônia.

Governo Federal? Ministério da Justiça? Funai?

Este lugar está ou deveria estar sob a vossa proteção!

Não podem simplesmente de.sa.pa.re.cer.

Vocês são sim responsáveis por tudo o que acontece em uma região de fronteira e nos territórios indígenas.

A pergunta segue no dia de hoje:

Onde estão Bruno e Phillips?

Onde está o Governo Federal?

É guerra! Não leitoras-es, não aquela constitutiva dos povos indígenas, a guerra que forma um guerreiro, que luta pelo seu povo, pela sua cultura, por seu território, para ser indígena e assim seguir.

A Amazônia vive uma guerra armada, desigual, suja. É pelas costas, é com aliciamento, na base da ameaça, é imagem e semelhança do sujeito, que governa pelo medo, pela confusão, do banditismo.

Sabemos nesta batalha quem precisa desaparecer. Não sabemos?

Ilustração de @crisvector

Território é cultura e fé: como a intolerância religiosa anti-indígena é instrumentalizada em disputas de terra

Território é cultura e fé: como a intolerância religiosa anti-indígena é instrumentalizada em disputas de terra

Queimas de casas de reza cresceram em territórios em disputa enquanto a evangelização avança nas aldeias no Mato Grosso do Sul

Entre 2019 e 2021, sete casas de reza foram queimadas em territórios Guarani Kaiowá

Foto: Tereza Amaral/GrisLab

“Em 2020, minha avó Roberta Ximenes, de 82 anos, uma liderança religiosa do meu povo, teve sua casa de reza incendiada. Nela, minha avó protegia objetos sagrados do meu povo que tinham mais de 200 anos”, denunciou Tatiane Sanches, do Povo Guarani Kaiowá, durante a 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH 49).

Ela qualificou essas ações e a invasão de igrejas evangélicas nos territórios como parte de um extermínio cultural. “Queimar uma casa de reza representa uma violência tão profunda que atinge nosso corpo, mente e alma”, disse a indígena.

Segundo dados da Aty Guasu – Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani –, entre 2019 e 2021 foram pelo menos sete casas de rezas incendiadas. Segundo organizações, há um avanço do racismo religioso contra os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

Mas isso não é novidade.

A violência secular aos povos indígenas se efetiva de diversas formas. Desde a invasão dos colonizadores europeus, há uma luta constante por (sobre)vivência por parte dos povos indígenas. E a resistência se dá, de maneira conectada, entre a luta pelo território, por sua religião e por sua existência.

Ódio no poder

Cinzas da casa de reza de seu Getúlio e dona Alda, na reserva de Dourados

Foto: povo Guarani Kaiowá via Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aponta como uma das causas deste aumento a legitimação do atual presidente da República Jair Bolsonaro que, segundo o CIMI, atua diretamente contra os povos indígenas.

Uma das ações que impactou a situação dos conflitos no campo foi o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), gerando mais conflitos em territórios demarcados e não-demarcados. Entidades indígenas denunciam que hoje, o órgão que os deveria proteger, é um balcão de negócios que atende ao interesse de garimpeiros e empresariado ligado ao agronegócio.

O biólogo Daniel Cangassu explicou esse processo de desestruturação da Funai que ocorreu no governo de Jair Bolsonaro. Ele ficou no cargo de coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai, entre os anos de 2010 e 2019. Sua função seria a de localizar, proteger os povos indígenas isolados e de recente contato no sul do Amazonas.

No entanto, de acordo com o biólogo, entre 2018 e 2019 ele começou a ser pressionado a desenvolver expedições de missionários evangélicos em territórios indígenas.

Cangussu afirmou que as missões evangélicas com a finalidade de converter povos originários ao cristianismo aumentaram com a nomeação de Damares Alves, que esteve à frente do Ministério de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019-2022. Ele afirmou que teve conflitos com Damares, que hoje concorre ao Senado, durante anos por conta desse tipo de investida em áreas de indígenas isolados.

“Num ambiente político de desconstrução de direitos, a antipolítica mantém vínculos estreitos com as ações intransigentes e intolerantes de igrejas neopentecostais. Tornaram-se ferramentas para promover o descrédito à vacinação, a desestimular as comunidades que lutam por seus direitos fundamentais e a propagar o divisionismo interno, demonizando as religiões e crenças dos povos e comunidades originárias e tradicionais”, disse a vice-presidenta do CIMI, Irmã Lúcia Gianesin. 

Um relatório divulgado pelo CIMI em 2020 demonstrou que o aumento preocupante de violência contra os povos originários ocorreu logo no primeiro ano da gestão de Bolsonaro.

O documento aponta que em 2020 o aumento nos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” dos povos originários. De acordo com o texto, a violência foi ainda maior do que o número alarmante registrado em 2019, primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro.

Foram 263 casos registrados em 2020 e em 2019, 256, o que um acréscimo de 141% em relação a 2018, com 109 registros. Os números de 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

“O segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da Covid-19 – e pela omissão do governo federal em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas”, acrescenta o relatório.

Evangelização

Kaiowa entre instrumentos tradicionais guarani e uma cruz do cristianismo

Foto: Egon Shaden, 1949 via PIB/Socioambiental

As queimadas nas casas de rezas, que envolvem invasão, danos ao patrimônio e outros tipos de ataque, expressam a violência contra os povos originários. Desde o período colonial, as tentativas de evangelizar os povos indígenas buscam enfraquecer o modo que estes povos têm de professar suas diversas fés. Atualmente, o avanço das igrejas neopentecostais em territórios indígenas, gera um alerta da imposição do cristianismo.

De acordo com o relatório de “Intolerância religiosa, racismo religioso e casa de rezas queimadas em comunidades Kaiowá e Guarani”, elaborado pela Kuñangue Aty Guasu e pelo Observatório da Kuñangue Aty Guasu (O.K.A), missões de evangelização tem avançado em territórios indígenas. Igrejas como a Pentecostal Deus é Amor estão cada vez mais presentes nos territórios, causando, de acordo com o relatório, danos físicos, espirituais, psicológicos e materiais contra os guardiões da ancestralidade dos povos originários.

O documento de Kuñangue Aty Guasu também evidencia os grandes riscos que rezadores e rezadoras sofrem por conta do crescimento dessas igrejas nestes territórios. A denúncia também destaca perseguições, torturas, espancamentos contra as anciãs nhandesys — termo utilizado pelos Guarani e Kaiowá se referindo às rezadoras e curandeiras tradicionais. Segundo o relato, as violências são praticadas por homens vestidos de “crentes”. E que “as nhandesys torturadas, em sua maioria, são mulheres idosas e suas filhas têm pouco contato com o espaço urbano.”

Ex-pajés

Em 2018, o documentário “Ex-Pajé” tratou da evangelização de indígenas no Brasil. A narrativa conta a história de Perpera, um pajé que se sentiu obrigado a se converter ao cristianismo por causa do racismo religioso. “Antes as pessoas buscavam o pajé, agora elas tomam aspirina”, disse Perpera no documentário.

O historiador Diego Rogério, professor e mestrando em Ensino em História pela UNIRIO, explica que o racismo religioso teve um papel central no processo de colonização, desde o Século 16. Segundo ele, esse tipo de intolerância e prática de conversão foi usada como justificativa das ações dos colonizadores no continente americano. Nesse sentido, o cristianismo foi utilizado como meio de “civilizar” os povos originários, demonizando as práticas culturais e de fé dos indígenas.

“O racismo religioso atual possui raízes históricas trazidas por quem via povos indígenas e africanos como incivilizados, forçando-os a falarem suas línguas, vestirem suas roupas e negarem seus deuses enquanto eram exterminados e escravizados”, disse.

No livro “A Conquista da América: a Questão do Outro”, de Tzvetan Todorov, que apresenta diálogos entre Cristóvão Colombo e a Coroa Espanhola, há uma firme convicção de Colombo sobre como a colonização da América seria uma missão dada por Deus, visando o recolhimento de recursos para a “conquista” de Jerusalém.

Feridas coletivas

O rezador Cassiano Romero em frente à uma casa de reza

Foto: Funai

O relatório de Kuñangue Aty Guasu, detalha as consequências desta perseguição religiosa. Segundo a entidade, as violências atingem, coletivamente, os corpos físicos, espirituais e psicológicos dos povos. Também contribuem para o extermínio da medicina ancestral e das práticas tradicionais realizadas pelas parteiras, rezadeiras, e anciãs Kaiowá e Guarani.

As invasões nos territórios, envolvendo garimpeiros e fazendeiros ligados ao agronegócio, se beneficiam das queimas das casas de reza e da evangelização, afinal, para os povos indígenas, cultura e território são sinônimo e os rezadores e rezadoras têm ligação com as lideranças mais ativas na luta pela demarcação de terras.

Em 2019, houve uma tentativa da Procuradoria de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, de retirar igrejas evangélicas da denominação “Deus é Amor” da Terra Indígena Jaguapiré. No entanto, a Procuradora Geral da República, em Brasília, julgou que a medida poderia provocar ainda mais conflitos.

Enquanto isso, o documento de Kunãngue Aty Guasu é categórico: “É urgente a proteção, o fortalecimento e a valorização das anciãs Nhandesys, parteiras, Jarys, mulheres indígenas Kaiowá e Guarani defensoras de direitos humanos, frente aos projetos de extermínios anti-indígenas que vem sendo executado contra os nossos corpos, contra o nosso modo de ser Guarani e Kaiowá.”

Danielle Louise é jornalista de São Luís/MA. Atua diretamente como comunicadora popular em questões sociais, de direitos humanos, política e esportes. Atualmente trabalha na Agência Tambor e na Federação de Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA)

Movimentos cristãos progressistas: quando a fé é impulso na luta por justiça social

Movimentos cristãos progressistas: quando a fé é impulso na luta por justiça social

A teologia da libertação, evangélicos de esquerda e pela diversidade e feministas cristãs compõe movimentos sociais e lutam Ccontra a desigualdade

Mural de Mino Cerezo Barredo para simbolizar a teologia da libertação

Foto: Reprodução

Na tradição católica, a hóstia representa o corpo de Jesus Cristo vivo entre os homens. Quando lhe foi negada a comunhão com o alimento cristão, o estudante Jair Lima, à época com apenas 15 anos, viu que era hora de abandonar a pequena cidade de Bom Jardim, localizada no sertão de Pernambuco, com destino ao Recife.

  “Eu sofria muito preconceito na paróquia que frequentava, por ser gay e socialista. Achava que iria para o inferno até conhecer um grupo de franciscanos que atuava oferecendo apoio à pessoas LGBTQUIA+. Ser militante era tão importante quanto ser católico”, lembra Jair.

 Três anos depois, o caminho do acolhimento pela luta política conduziu o jovem à coordenação do grupo Diversidade Cristã do Recife,um dos muitos movimentos sociais brasileiros que levantam bandeiras progressistas no campo religioso cristão. 

“Nosso movimento surgiu em 2019, não apenas como um grupo de oração, mas de luta contra a exclusão e o preconceito dentro da Igreja. A Igreja de Jesus Cristo precisa ser a Igreja do acolhimento e do amor. Somos a ovelha colorida Dele”, brinca.

De acordo com Jair, ainda é comum que a Igreja perca pessoas LGBTQUIA+ para a discriminação. “Não podemos mudar a Igreja de Cristo, mas as pessoas que fazem parte dela e têm um pensamento conservador. A Igreja precisa se lembrar de seus mártires, como Padre Henrique, que morreu pelas mãos da ditadura militar por defender as minorias, e os santos Sérgio e Baco, que eram namorados e foram executados por Roma porque se converteram ao cristianismo”, completa.

 

Pastoral da Juventude do Meio Popular no Brasil em manifestação

Foto: Reprodução

Teologias da libertação

Para o secretário nacional da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Filipe Xavier, o grande referencial revolucionário dos movimentos progressistas identificados com o cristianismo segue sendo a teologia da libertação, isto é, uma corrente teológica que considera os ensinamentos cristãos como norteadores para a libertação de injustiças sociais, econômicas, políticas ou sociais. 

“A teologia da libertação nos leva a buscar o compromisso social, aprendemos a fazer uma relação entre fé e vida, entre evangelho e justiça social. Fé não é ir à Igreja e se fechar em uma bolha, evitando as ‘coisas do mundo’, como dizem alguns neopentecostais. O papel da gente é justamente o de se inserir no mundo, ocupando nossas profissões, partidos e sindicatos. Jesus se sacrificou para que o povo não passe fome”, afirma. 

Voltada para jovens de periferia com idades entre 16 anos e 28 anos, a pastoral é uma organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que não a impede de travar embates constantes com a Igreja Católica.

 “Somos uma organização das juventudes para as juventudes, que lida com os ônus e bônus de possuir uma ligação com a Igreja. Fazemos parte dela, mas brigamos muito com sua estrutura, porque temos a missão de atualizá-la”, comenta Filipe Xavier. 

De acordo com o secretário, a CNBB já chegou a interferir para que ações voltadas para o público LGBTQUIA+, por exemplo, não acontecessem. 

“Mesmo assim, a gente faz. Além disso, já defendemos a consagração de homens casados, em regiões em que não a população não conta com um padre. Também reconhecemos o papel das mulheres na Igreja, afinal, a maior parte das pastorais é liderada por elas. Por que não reconhecer essa participação com o sacramento?”, acrescenta o secretário.

Apesar de provocar tensões no campo religioso, a pastoral não costuma desfrutar do reconhecimento político de outros movimentos sociais “De forma nacional, estamos dentro da Plataforma pela Reforma Política e do Grito dos Excluídos, mas cada estado possui suas particularidades e articulações. Quando a juventude se aglutina e se mobiliza, ela tem um poder transformador gigante.”, lamenta. 

PJMP realiza apresentação teatral

Foto: Reprodução

Evangélicos antirracistas

Em seu mestrado em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), o cientista social Vítor Queiroz de Medeiros se dedicou a estudar o ativismo negro evangélico no Brasil contemporâneo. Para o pesquisador, esses grupos são duplamente minoritários.

 “São minoritários como evangélicos no meio dos progressistas e minoritários como progressistas entre os evangélicos, o que os coloca em um limbo de legitimidade. Uma das coisas que condiciona esses ativismos evangélicos progressistas é que eles precisam se orientar tanto pela aquisição de status como movimento quanto de evangélicos legítimos”, pontua. 

De acordo com o pesquisador, esses grupos se pautam por um repertório de ações que inclui a realização de ações ditas de acolhimento, a tentativa de intervenção em canais alternativos de imprensa, a participação nas redes sociais e em atos organizados pela esquerda, além da produção bibliográfica literária de teologias progressistas. 

“Eles reproduzem em grande medida boa parte das mesmas ações de movimentos sociais mais tradicionais, mas, às vezes, fazem coisas a partir da linguagem religiosa. Uma característica importante desses ativismos é uma ativação flexível dos marcadores religiosos, ou seja, fazer coisas mais para o grupo do que para fora, uma espécie de ‘ativismo para si’ diz o sociólogo.”

Segundo ele, são cultos, seminários, encontros de acolhimento, discipulados de estudos bíblicos e ações em geral “que tem como função principal a socialização deles”,Medeiros, trata-se também de um campo político de ativismo de baixa institucionalidade.” 

Em geral, os movimentos cristãos progressistas não dispõem de recursos e estrutura sólida. Através de um agenciamento de recursos relativamente precário, tais grupos costumam realizar seus encontros em espaços de igrejas progressistas, locais cedidos por movimentos de esquerda ou em praça pública. Todo esse esforço se dá em em função de um anseio de influenciar, através de uma disputa de valores, outros evangélicos a se aproximarem do campo da esquerda. 

“Eles conseguem? Pouco, porque têm dificuldade de acessar diretamente as igrejas. O acesso a elas é controlado pelos pastores e tem uma coisa da conjuntura atual que é de uma polarização política ideológica muito forte, que contribui para interditar o acesso deles às igrejas. Um momento de polarização política ideológica é um momento que oferece muito mais um monólogo do que um diálogo”, pontua. 

O esforço político de setores progressistas evangélicos, contudo, não é novo. “O que nós estamos vendo agora no caso dos ativismos evangélicos progressistas é o que coloco como uma reemergência pública. Não é que isso está surgindo agora, há momentos de irrupção de visibilidade e retração. No fim do século XIX, protestantes foram favoráveis à abolição da escravidão, à laicidade do estado e a ideias republicanas”, comenta Vítor.

Entre os anos 1950 e 1960, sob influência da teologia da libertação, o teólogo Richard Shull articulou a Conferência do Nordeste. “Ela reuniu intelectuais, teólogos e pastores para discutir como os evangélicos deveriam se portar para contribuir com a revolução brasileira. Alguns desses setores apoiaram as reformas de base de Jango [Goulart]”, completa.

Pastor Henrique Vieira prega o amor com respeito à diversidade.

Foto: Reprodução

“Ação política amorosa”

Pastor da Igreja Batista do Caminho, ator, poeta, professor, ex-vereador e militante de direitos humanos, Henrique Vieira tornou-se nacionalmente conhecido em razão de discursos contundentes em palanques políticos de esquerda, bem como da divulgação de seu trabalho religioso nas redes sociais e plataformas digitais.

Embora reconheça a existência de uma base evangélica que dá sustentação a uma política reacionária, o pastor frisa que a maior parte dos praticantes da religião no Brasil é composta por trabalhadores e trabalhadoras, pessoas pobres, periféricas e negras. 

 “O conservadorismo não é exclusivo do campo evangélico. É verdade que o cristianismo hegemônico foi parte central do projeto colonizador no Brasil. O cristianismo, enquanto religião hegemônica institucional, carrega fortes traços conservadores. Agora é preciso fazer duas observações: o Evangelho de Jesus não tem nada a ver com esse conservadorismo e existem ‘cristianismos’, no plural”, coloca.

É nesse sentido que o pastor organizou e mediou a Jornada da Teologia Negra entre os dias 3 e 8 de março. Dentre os convidados para os três dias de encontro, estiveram o ator Lázaro Ramos, a filósofa Katiúscia Ribeiro, bem como os pastores Ronilso Pacheco e Ras André Guimarães

 “A teologia negra dentro do cristianismo é um esforço teórico, mas sobretudo prático de resgatar a dimensão popular libertadora da bíblia. Existe um cristianismo eurocêntrico colonizador que tira da bíblia seu potencial popular, que dela se apropria para manter estruturas de opressão e violência, dentre elas, a branquitude”, explica. Na interpretação do pastor, a bíblia apresenta um Deus comprometido com os oprimidos e que os convoca à organização e à liberdade. 

 “No Brasil marcado pela escravidão e pelo racismo estrutural, se quisermos ser fiéis à bíblia precisamos entender a centralidade da experiência negra em sua interpretação e na vivência do evangelho. Historicamente, a bíblia vem sendo lida pela lente e pelos interesses da Casa Grande. O que a teologia negra faz é ler a bíblia pela lente e pela experiência do quilombo, então a teologia negra busca descolonizar a bíblia, devolvê-la ao seu chão histórico”, acrescenta.

Assim, Vieira ressalta que fé e política são indissociáveis. “O problema é quando a fé é tomada pelo fundamentalismo e fanatismo, tenta se apropriar do estado para impor ao conjunto da sociedade uma determinada visão religiosa e comportamental. Isso é violento, desrespeita a democracia, a diversidade, a pluralidade de crenças religiosas e também desrespeita a não crença religiosa.

“Agora, quando a fé estimula a busca pelo bem comum, busca por justiça social, defesa pela causa dos pobres e dos oprimidos, quando a fé se coloca em diálogo num espírito de pluralidade e respeito isso é positivo. Então, a fé pode estimular uma ação política amorosa, generosa, comprometida com a democracia, a justiça social e a pluralidade”, conclui.

Católicas pelo Direito de Decidir defendem a autonomia da mulher sobre o próprio corpo

Foto: Reprodução

Feminismo cristão

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Datafolha em 2020, pessoas negras e mulheres representam a maior parte dos cristãos brasileiros. Enquanto o público feminino corresponde a 58% dos frequentadores de Igrejas evangélicas e a 51% dos fiéis católicos, pretos e pardos respondem por 59% e 55%, respectivamente. As demandas específicas de ambos os recortes estão associadas às lutas históricas do cristianismo e encontram representatividade em movimentos feministas de caráter cristão. 

Fundada no dia 8 de março de 1993, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) surgiu em um contexto de ampla realização de conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) na América Latina, em que eram evidenciadas questões relativas às mulheres negras, pessoas com deficiência, crianças, idosos e pessoas LGBTQUIA+. 

“Venho de uma família totalmente católica e tive uma ligação direta com a Igreja através das pastorais de juventude e das Comunidades Eclesiais de Base. Descobri sobre as Católicas na universidade, onde pesquisava sobre mulheres no catolicismo. Me chamaram muita atenção os discursos subversivos desse grupo, que iam de encontro ao que eu questionava na Igreja, como a submissão das mulheres na instituição”, comenta Letícia Rocha, graduada e mestra em Ciências da Religião e integrante da equipe das Católicas há cerca de três anos. 

Voltada para a luta antirracista com uma abordagem interseccional, a CDD é reconhecida por instigar o debate da justiça reprodutiva dentro da Igreja. Dentre as principais bandeiras encampadas pelo movimento social estão tanto a luta pelo direito à maternidade desejada e segura para a mulher quanto pela possibilidade de escolha da não-maternidade.

 De acordo com Rocha, certos fundamentos da tradição católica cedem espaço para uma reflexão aberta sobre o direito ao aborto. “Não houve um único pensamento sobre o aborto na história dessa Igreja milenar, que nunca teve clareza em confirmar essa questão do aborto como algo inadmissível e pecaminoso. É importante dizer que o aborto não é uma questão de dogma, mas uma matéria disciplinar que a Igreja assume como discussão”, prossegue. 

Ela lembra que o aborto só passa a ser deliberadamente repudiado pela Igreja no século XIX, durante o papado de Pio IX. “Isso é relativamente novo e coincidentemente acontece em um período em que a igreja clama o dogma da Imaculada Conceição e no qual ocorre a revolução industrial. Nele, as mulheres começam, em certa medida, a sair de casa e trabalhar. Então, esse dogma vem para dizer qual é o lugar da mulher, que a maternidade, a procriação, estar em casa e cuidar dos filhos é importante”, explica.

Em 2012, a CNBB chegou a publicar uma nota desaprovando as posturas adotadas pela CDD. No posicionamento, a organização diz que “o grupo tem defendido publicamente o aborto e distorcido o ensinamento católico sobre o respeito e a proteção devidos à vida do nascituro indefeso; é contrário a muitos ensinamentos do Magistério da Igreja; não é uma organização católica e não fala pela Igreja Católica”. 

A cientista da religião frisa que a Igreja sempre teve uma tendência de rechaçar o feminismo. “A gente recebe esse tipo de coisa, estamos cientes da nossa luta, do nosso papel na sociedade e nós seguimos. Esse tipo de repúdio já aconteceu e pode acontecer, no entanto, estamos firmes naquilo que acreditamos e do que podemos fazer na sociedade. Nota de repúdio não muda nossa luta”, acrescenta. 

Rede de Mulheres Negras Evangélicas é outro movimento social que incorpora a agenda feminista em seu cotidiano. O movimento surgiu em 2018, durante o Primeiro Encontro de Negras Cristãs, realizado pelo Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, no Recife, em torno do tema “Resistência, Espiritualidade e Incidência Pública”. 

“Hoje a organização tem repercussão nacional, com representação nas cinco regiões do Brasil e mais de 110 mulheres inscritas. Temos esse propósito de ser um espaço da sociedade civil, em defesa dos direitos humanos e das mulheres, com esse olhar especial para as mulheres negras”, contextualiza Vanessa Barboza, coordenadora executiva da Rede e integrante do Movimento Negro Evangélico.

Vanessa considera que a atuação política da Rede é um desafio narrativo e historicamente posto, que encontra resistência mesmo quando tenta penetrar espaços políticos ditos progressistas. “As pautas racial, das mulheres e da diversidade acabam encontrando um lugar de ‘desprioridade’ de urgência de suas respostas a demandas, que são históricas. São reflexos das relações sociais de maneira geral, que acabam se refletindo no meio evangélico mais fundamentalista, com um discurso de ódio mais marcado, e também entre nossos ditos pares, no sentido de existir uma indiferença ou não reconhecimento da prioridade do que está sendo colocado”, crítica. 

A coordenadora da Rede lembra que o racismo e o machismo são estruturais na sociedade brasileira e, portanto, presentes em todos os espaços políticos que nela estão inseridos. “A gente pode pensar que em alguns espaços temos rigidez e refreamento dessas estruturas mais ou menos possíveis para cada grupo. A mudança social é possível porque os seres humanos são capazes de mudar e acho que é nessa esperança de mudança e igualdade que a Rede de Mulheres Negras e o Movimento Negro Evangélico caminham. São movimentos progressistas que têm esse intuito de dizer o que parece óbvio: todas as pessoas merecem viver plenamente sua dignidade humana”, conclui.

Meu perfil nas redes foi invadido. E agora?

Meu perfil nas redes foi invadido. E agora?

Ataques e roubo de perfis nas redes sociais têm se tornado cada vez mais comuns. Para evitar que você ou sua organização caiam nesse tipo de fraude, preparamos uma série de conteúdos sobre cuidados digitais e integrais.

Imagine que um certo dia você acorda e suas contas nas redes sociais foram invadidas. As pessoas que invadiram têm acesso a todas as suas mensagens privadas, à lista de amigos, aos conteúdos arquivados e, claro, à sua senha. Aquela que você não liga muito e usa em vários outros sites e serviços rede afora pra economizar tempo e cabeça.

Você tenta logar e a senha já foi alterada. Você tenta recuperar a conta, mas a plataforma leva dias pra responder. Enquanto isso, as suas informações pessoais estão sendo usadas sabe-se lá como.

Qual é a sua sensação?

Não sei vocês, mas por aqui o sentimento é de impotência e falta de ar. A ansiedade grita quando pensamos na possibilidade de ter o nosso corpo digital violado dessa forma e informações tão privadas na mão de gente que não fazemos ideia de quem seja. 

Mas não precisa fritar (aliás, se a ansiedade não passar e perdurar por um período, vale procurar ajuda de profissionais da saúde mental para lidar com isso!). Casos de invasões e fraudes em redes sociais são mais comuns do que se imagina. 

O Brasil é um dos países com mais fraudes virtuais do mundo. Em 2021, o país registrou quatro tentativas de fraude por minuto. O Instagram tem sido a rede preferida para ataques. O Ministério Público de Minas Gerais reportou que o número de denúncias de invasões de perfis nas redes sociais foi quatro vezes maior em janeiro de 2022 do que a média do segundo semestre de 2021. A bruxa tá solta!

Para ativistas e organizações de direitos humanos, o risco de ter sua conta invadida é ainda maior. Por estarem na linha de frente das lutas sociais, o acesso indevido a informações confidenciais pode colocar em risco a vida de ativistas e o funcionamento da organização, bem como impactar eventuais parceires da sua rede.

Mas você pode ser uma bruxona das tecnologias e se proteger de situações como essa!

Para evitar que você ou sua organização caiam nesse tipo de ataque, preparamos uma série de conteúdos sobre cuidados digitais e integrais. Nesta primeira parte, vamos falar sobre as principais formas de invasão de perfis e algumas medidas importantes que você pode tomar para protegê-los.

Engenharia social: a arte da fraude

Os principais ataques na internet se utilizam de um conjunto de práticas chamado “engenharia social”. Essas práticas consistem no uso da persuasão e da influência para enganar pessoas. Os atacantes apelam à solidariedade, à ansiedade e outros afetos para manipular e conseguir o que desejam. A engenharia social pode ser executada por meio da tecnologia ou não.

 

Uma boa referência pra saber como a engenharia social é empregada em ataques virtuais é o livro “A arte de enganar”, de Kevin Mitnick, programador que foi perseguido pelo FBI durante anos por conta de invasões a sistemas e furto de documentos. Ele cumpriu pena de cinco anos na prisão e hoje atua como consultor de segurança na internet.

No seu livro, Mitnick aponta que, em um ataque, o elemento humano é o fator mais importante exatamente porque é o mais vulnerável. Se uma pessoa for “conquistada” por agentes maliciosos, ela pode facilmente comprometer a sua própria segurança ou da sua organização, ainda que sem a intenção.

Relatos de ativistas, coletivos, movimentos e organizações da sociedade civil que têm seus perfis nas redes sociais invadidos, suas senhas roubadas e sua segurança comprometida têm pipocado nos últimos anos. Em um ano eleitoral, como este em que estamos, o risco de ter sua conta invadida por motivos políticos aumenta consideravelmente.

 

“Mãe, me ajuda!”

Sabe aquele golpe clássico da ligação que anuncia um falso sequestro de um parente? Apesar de bastante conhecido, ainda hoje esse tipo de golpe faz vítimas e é um exemplo de como a engenharia social é usada. Neste caso, para ganhos financeiros. Mas nem sempre é esse objetivo. 

Caiu na rede é peixe!

Uma das técnicas mais conhecidas para roubo de dados é o “phishing”, neologismo derivado de “fishing” (pescaria em inglês). O phishing se apresenta por meio de emails, ligações telefônicas, SMS e mensagens de origem duvidosa.

Essas mensagens têm algumas características em comum. Entre elas, o senso de urgência (“atualize agora o aplicativo” ou “não perca essa promoção”) e o chamado para ação, seja clicar em um link, confirmar um código recebido ou mesmo fornecer dados pessoais para executar determinada operação.

Um exemplo clássico de smishing, mistura de SMS com phishing. É possível perceber que o site informado na mensagem não tem nada a ver com o endereço do site do banco. Esse é um dos indícios de fraude.

Ao clicar no link, você pode ser enviado para um site falso e acabar fornecendo login e senha para os atacantes. Outra ação comum é pedirem para baixar um “malware”, que é um programa de computador malicioso, um vírus, que vai executar tarefas prejudiciais. Ele pode roubar e criptografar seus arquivos ou mesmo controlar o seu dispositivo remotamente. 

Se você olhar na caixa de spam do seu email neste momento, é capaz de encontrar uma série de exemplos. 

As redes sociais são um prato cheio para os invasores. Isso porque muitas informações pessoais ficam expostas, como fotos, pessoas com as quais você se relaciona, rotina diária, dados pessoais, lugares que frequenta, lugar de trabalho, familiares, etc. Não é difícil descobrir datas de aniversário, nomes de ~conjes~, filhes, pais, pets. A combinação desses dados fornece um retrato fiel de cada usuárie, que podem facilitar os ataques.

“Mãe, me ajuda!”

Sabe aquele golpe clássico da ligação que anuncia um falso sequestro de um parente? Apesar de bastante conhecido, ainda hoje esse tipo de golpe faz vítimas e é um exemplo de como a engenharia social é usada. Neste caso, para ganhos financeiros. Mas nem sempre é esse objetivo. 

Como alguém pode descobrir a minha senha?

Além do phishing, as suas senhas podem ser comprometidas de muitas maneiras. Os ataques de força bruta são os mais comuns e consistem em um processo de tentativa e erro intensivo utilizando ferramentas de descriptografia. Como são infinitas as possibilidades de combinação de senhas, a eficácia da ação vai depender da capacidade de processamento da máquina e dos recursos que serão empregados.

É muito comum esse tipo de ataque utilizar dicionários e listas de palavras como fonte. Para aumentar a segurança da sua senha, use palavras não dicionarizadas, como gírias, dialetos, línguas indígenas, Iorubá, Pajubá, entre outras. E nada de usar uma só palavra como senha! Ela pode ser descoberta em poucos segundos por meio de ataques simples.

Vale olhar para a tabela feita pela Hives Systems que mostra em quanto tempo a sua senha pode ser descoberta por meio de ataques de força bruta:

 

Outra forma de ter sua senha violada é por meio dos vazamentos de bancos de dados de empresas e órgãos públicos. Os invasores adquirem essas listas por meio de fóruns especializados. Com as credenciais em mãos, eles podem tentar logar com o mesmo usuário e senha em diferentes sites e serviços. É o chamado “stuffing” de credenciais.

Por isso, é muito importante que você não use a mesma senha para diferentes sites e serviços! Senhas devem ser únicas. Também vale fazer uma boa limpa nos sites que você tem cadastro. Provavelmente, você vai encontrar sites que se cadastrou há anos, que não fazem mais sentido, mas os seus dados estão armazenados ali e podem cair nas mãos erradas.

Pois bem. Agora já sabemos um pouco sobre como podemos ser atacades na internet e ter nossa privacidade violada. Mas não precisa se assustar! Existem formas eficazes de proteção contra os ataques. Ao longo do texto já mencionamos algumas, mas tem mais.

Prevenir é o melhor remédio!

Minha conta nas redes foi invadida. E agora?

Respire fundo. Agir sob estresse e ansiedade pode ser ainda mais danoso pra você. Se estiver difícil enfrentar sozinhe, peça ajuda a alguém de sua confiança.

Em primeiro lugar, verifique se recebeu um e-mail da rede social avisando que suas informações pessoais foram alteradas (e-mail ou telefone). Se tiver recebido, reverta a alteração clicando no link informado no próprio e-mail (antes, verifique se o conteúdo e o remetente são verdadeiros!). Depois de reverter, troque imediatamente suas senhas (instruções abaixo!).

Confira os caminhos para trocar as senhas:

Facebook
Vá em “Configurações e privacidade” -> “Configurações” -> “Segurança e login” -> “Alterar senha”.

Instagram
Clique nos três tracinhos no canto superior direito da sua tela e vá em “Configurações” -> “Segurança” -> “Senha”.

Twitter
Clique em “Configurações e privacidade” -> “Sua conta” -> “Alterar sua senha”.

Facebook
Vá em “Configurações e privacidade” -> “Configurações” -> “Segurança e login” -> Onde você fez login”. Clique nos três pontinhos do login desconhecido e vá em “Sair”.

Instagram
“Configurações” -> “Segurança” -> “Atividade de login”. Clique nos três pontinhos dos dispositivos desconhecidos e vá em “Sair”.

Twitter
“Configurações e privacidade” -> “Segurança e acesso à conta” -> “Aplicativos e sessões” -> “Sessões” -> “Sair de todas as outras sessões”.

Facebook
“Configurações e privacidade” -> “Configurações” -> “Aplicativos e sites” e remova os acessos.

Instagram
“Configurações” -> “Segurança” -> “Aplicativos e sites” e remova os acessos.

Twitter
“Configurações e privacidade” -> “Segurança e acesso à conta” -> “Aplicativos e sessões” -> “Aplicativos conectados” e revogue os acessos.

Agora, vamos configurar a autenticação de dois fatores e criar mais uma camada de proteção pra sua conta. Assim, sempre que alguém tentar acessá-la, você receberá uma notificação para autorizar o login. A forma de autenticação mais segura é por meio de uma chave de segurança física ou aplicativo de autenticação (falaremos mais sobre isso no próximo conteúdo!), mas você pode utilizar a opção “SMS” e cadastrar o seu número de telefone.

Facebook
Vá em “Configurações e privacidade” -> “Configurações” -> “Segurança e login” -> deslize a tela até “Autenticação de dois fatores” e siga o passo a passo para configurar.

Instagram
Clique nos três tracinhos no canto superior direito da sua tela e vá em “Configurações” -> “Segurança” -> “Autenticação de dois fatores” -> ativar “SMS” e siga o passo a passo.

Twitter
Acesse “Configurações e privacidade” -> “Segurança e acesso à conta” -> “Segurança” -> “Autenticação em duas etapas” -> “Mensagem de texto” e siga o passo a passo.

Facebook
Acesse este link para informar à rede que sua conta foi invadida e tentar recuperá-la. Clique em “Minha conta está comprometida” -> Informe o número do celular ou e-mail cadastrado -> Selecione a opção que mais se aproxima do seu caso.

A plataforma iniciará o processo de recuperação da conta e analisará se as últimas ações foram feitas por você ou por um invasor. Siga o passo a passo.

Instagram
Na página de login, informe o e-mail cadastrado ou o nome de usuário. Clique em “Esqueceu a senha?” -> “Precisa de mais ajuda?” -> Verifique o email ou telefone informado -> Se forem seus, clique em “Enviar código de segurança” e recupere sua conta com o código recebido.

Se você não reconhecer o email ou telefone informado, clique em “Não consigo acessar este email ou número de telefone” -> “Minha conta foi invadida” -> “Avançar” e siga as instruções.

Twitter
Acesse o formulário para redefinição de senha -> Insira o nome de usuário -> Verifique se o email informado é seu -> Se sim, clique em “Próximo ”.

Se não reconhecer o email informado, clique em “Não tenho acesso a isso” -> Selecione a opção “Acho que minha conta foi invadida ou está comprometida” -> Preencha as informações solicitadas.

Eles podem ajudar denunciando a conta e printando eventuais conteúdos publicados pelo invasor. Veja como denunciar em cada rede:

Facebook
Abra o perfil que será denunciado. Clique nos três pontinhos e selecione “Obter apoio ou denunciar perfil” -> “Quero ajudar” -> “Conta invadida”

Instagram
Abra o perfil que será denunciado e clique nos três pontinhos no canto direito. Selecione a opção “Denunciar” -> “Denunciar conta” -> “Está fingindo ser outra pessoa” -> “Alguém que eu conheço” -> “Enviar denúncia”

Twitter
Abra o perfil que será denunciado. Clique nos três pontinhos no canto superior direito e escolha a opção “Denunciar” -> “Parece que a conta foi invadida” 

Tire um tempo do seu dia para trocar as senhas das suas contas nas redes, e-mails e serviços de mensageria, principalmente se o login e senha roubados estiverem registrados em outro site/serviço. E lembre-se de criar senhas fortes e únicas! Pra não esquecê-las, é só usar o KeePass.

Se você faz parte de alguma organização/coletivo/movimento, informe-os para que medidas de segurança também sejam acionadas, como a troca de senhas e o desvinculamento do perfil.

No caso do Facebook, por exemplo, se o seu perfil for invadido e você for editor/administrador/a da página da organização, isso pode trazer sérios problemas.

Tire prints de tudo: mensagens que tenham sido enviadas em seu nome, conteúdos publicados e alertas que você recebeu no celular.

 

Caso os danos causados pela invasão se perpetuem ou você não consiga recuperar a sua conta junto à plataforma, pode ser importante ter esse documento em mãos para tomar outras medidas.

Você pode buscar ajuda de organizações e coletivos para denunciar e receber orientações. A Safernet, a Rede de Proteção a Jornalistas e Comunicadores e a Frontline Defenders são algumas dessas organizações.

Torcidas antifascistas organizam lado popular do futebol para combater opressões e a extrema-direita

Devolvendo o futebol ao povo e articulando a luta à celebração nas arquibancadas e ruas, as torcidas antifascistas vêm ganhando espaço em todo o país.

Por Coletivo Baru

Protestos antifascistas e antirracistas tomaram às ruas de São Paulo em 2020 e foram puxados, em grande medida, por torcidas organizadas l Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Ponte Jornalismo e Pavio

Já faz algum tempo que as bandeiras de time, com a palavra antifascista, estão presentes nas manifestações de esquerda do país, ao lado de movimentos sociais, partidos e sindicatos nos lembrando que o futebol é, antes de qualquer coisa, do povo. E que a união de futebol e política não só é possível, como faz parte de sua própria história.

Das arquibancadas para as ruas e redes sociais, as torcidas antifascistas surgiram e se consolidaram principalmente nos últimos anos, acompanhando a ascensão da extrema-direita no Brasil. São um fenômeno recente, portanto, podendo ser rastreado principalmente a partir de 2014 – apesar de a mais antiga delas ter sido criada em 2005: a Ultras Resistência Coral, torcida anticapitalista do Ferroviário Atlético Clube. “Essa centelha que nós lançamos ganhou corpo, essa chama se espalhou por vários locais do Brasil”, conta Carlos Marques*, da Resistência Coral. Hoje as torcidas antifa encontram-se em todas as regiões brasileiras, e se articulam também em movimentos unificados nacionais e regionais.  

“A escalada autoritária e populista de Bolsonaro, usando todas as camisas de time de futebol, foi um divisor de águas: se a direita brasileira está avançando e usando o futebol de palanque fascista, alguém precisa agir”, diz Ot*, torcedor da Resistência Alvinegra, uma das torcidas antifascistas do Clube Atlético Mineiro, surgida em 2019. 

E uma coisa puxa a outra: Carlos Marques conta que, uma vez criada a torcida, juntaram-se ao movimento tanto torcedores de esquerda quanto militantes que passaram a se interessar pelo futebol “justamente por esse viés politizado, de esquerda, anticapitalista e classista que a torcida tinha enquanto proposta”. Assim, as torcidas antifascistas vêm se mostrando um importante espaço de encontro e formação política, de luta por direitos e de trabalho de base.

Torcidas abandonam a rivalidade para se unir por uma causa em comum em 2020 l Foto: Pedro Ribeiro Nogueira l Ponte Jornalismo e Pavio

O ativismo das torcidas organizadas antifascistas

 

“São totalmente compatíveis a luta por direitos e a luta por um futebol mais justo, democrático e popular. Porque entre os direitos da classe trabalhadora está incluso o direito ao lazer e nós sabemos que no Brasil o futebol é um dos principais lazeres de grande parte da população, de  parte da classe trabalhadora”, argumenta Carlos Marques. Ot completa: “O futebol é o ambiente perfeito para se discutir as lutas populares. As torcidas, organizadas ou não, são compostas em sua imensa maioria por ‘gente como a gente’: homens e mulheres com poder aquisitivo baixo, que trabalham duro diariamente. O esporte é uma válvula de escape, uma diversão em meio aos problemas do dia a dia”.  

Nisso está um dos pontos de partida mais importantes de seu ativismo: a construção conjunta em torno de um ideal comum, aliada à defesa irrestrita de um direito fundamental de toda a classe trabalhadora – o direito ao lazer, à festa, à diversão, ao espetáculo alegre e coletivo que pode ser encontrado em um jogo de futebol. “O futebol é um dos espetáculos mais políticos que existem”, resume Ot.

 Daí que uma das frentes de atuação dessas torcidas é a defesa do acesso da população ao estádios, como explica Marques: “Quando nós lutamos contra a mercantilização do futebol, contra a elitização desse esporte, estamos lutando também por esse direito da classe trabalhadora, para que ela tenha esse lazer. Que o futebol volte a ser, ou permaneça, onde é possível, acessível à maioria das pessoas”.  

Originalmente um esporte das elites, o futebol tornou-se, ao longo de sua história no Brasil, mais e mais parte da cultura popular. Hoje, parte da luta das torcidas organizadas é para que ele se mantenha de fato acessível ao trabalhador e não volte a ser um privilégio das elites. Carlos explica como o aumento dos preços dos ingressos e a padronização imposta às arquibancadas têm restringido não só quem pode frequentar os jogos, mas também a forma com que pode fazer isso. 

 Um exemplo é a extinção das “gerais”, que, segundo lembra Carlos, “era aquele espaço que havia nos estádios em que o trabalhador podia pagar um preço mais baixo para assistir a partida do seu time. Se extinguiu o momento que acontecia em alguns estádios, em que, faltando 15 min pra acabar o jogo, os portões eram abertos para que as pessoas pudessem assistir pelo menos aquela parte final. Muita gente que não tinha condição de pagar pelo ingresso entrava nesse momento”. Outra mudança que aponta para a crescente gentrificação do esporte é a alteração do próprio espaço dos estádios, que, a partir da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, passaram a seguir um modelo europeu – o “padrão Fifa”. A forma das torcidas ocuparem as arquibancadas foi alterada e “higienizada”, o que afeta diretamente a própria atuação das organizadas antifascistas, que muitas vezes têm seus materiais barrados de entrar nos estádios devido a seu conteúdo político, por exemplo.

 “Nós não vamos aceitar que o trabalhador seja retirado do futebol, nem pelo Atlético e muito menos por presidentes e governantes que estejam no poder. Se precisar brigar, nós iremos”, afirma Ot. Carlos Marques explica qual é essa briga: “É basicamente a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, e isso se reflete também no futebol – mais democrático e mais acessível. Que esse lazer possa ser um direito de todos e todas pertencentes à classe trabalhadora”.

 Essa luta não se restringe apenas à presença dos torcedores nos estádios, como completa Carlos: “E, quando se fala de todas e todos, isso implica também lutar no sentido não só do acesso em termos de ter condições de entrar no estádio e pagar o preço do ingresso, mas para que sejam respeitadas as diversidades, para que mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros e negras, possam se sentir bem nesse espaço, sem serem alvos de preconceitos, de machismo, de racismo, de homofobia. Que o espaço do futebol seja de fato acessível também no acolhimento, sem opressões”. 

 As torcidas antifascistas têm bastante clara a noção de que sua luta nos estádios é indissociável da luta das esquerdas no país, pois entendem que, sendo do povo, o futebol também é o espaço de construção, propagação de ideias, diálogo e trabalho político de tudo aquilo que diz respeito ao povo. Assim, as bandeiras dos times tremulam ao lado das bandeiras das lutas populares.  

“O esporte sempre esteve em paralelo aos grandes acontecimentos políticos do país, e é impossível uma luta popular da esquerda ‘eliminar’ o futebol das pautas. É um tiro no pé, visto que uma imensa parte da população brasileira é apaixonada por ele. O papel da esquerda em relação ao futebol é bem simples: o diálogo e propagação de ideias. Conversar com o torcedor é literalmente conversar com o povo”, resume Ot.

 O diálogo e a propagação de ideias tornam-se parte da maneira das torcidas antifascistas estarem nos estádios, e variam desde manifestações públicas e ações solidárias a negociações com as diretorias dos times e outras torcidas organizadas. 

 Exposição de faixas nos estádios, distribuição de panfletos, comunicação virtual, convocação de reuniões entre o clube e os torcedores, apresentação em rádio, presença em manifestações de rua, como em atos de 1º de maio ou contra o governo federal: essas são algumas das formas com que as torcidas antifascistas se comunicam e marcam presença politicamente. 

 “Um exemplo disso foi a ação que fizemos no dia de aniversário do golpe militar, em 2021, quando torcidas do Brasil todo esticaram faixas pelas cidades e nas portas dos estádios com a frase ‘Ditadura nunca mais’”, lembra Eme.

 Eme, integrante do Movimento Unificado das torcidas antifascistas brasileiras, explica que existem diferentes tipos de organização das torcidas no país: aquelas que são perfis e páginas em redes sociais, movimentando-se apenas no ambiente virtual e sem presença nos estádios; outras que são pequenos agrupamentos de militantes, sem vínculo com as organizadas e, portanto, com menor adesão popular; as torcidas que têm interação com as organizadas, seja por possuírem membros delas, seja por trabalharem conjuntamente em algumas frentes; e, por fim, os núcleos antifascistas que se formam dentro das próprias torcidas organizadas. 

 

A Ultras Resistência Coral, do Ferroviário do Ceará, foi pioneira em aliar antifascismo com futebol no país no séc. XXI l Foto: Divulgação

“Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes”

Essa frase, um dos lemas carregados nas faixas da Resistência Coral, descreve um aspecto central da organização dessas torcidas: a união dos torcedores como classe trabalhadora. É o que explica Carlos Marques: “Nós identificamos que o inimigo do torcedor não está do outro lado da arquibancada, vestindo a blusa de um outro clube ou de uma outra torcida organizada. Os verdadeiros inimigos estão ocupando cargos de poder – poder político, econômico… estão, esses sim, trazendo prejuízos e ferindo direitos dos torcedores, sejam eles de torcida organizada ou não”. 

É claro que uma coisa não exclui a outra. A luta pelos direitos da classe trabalhadora, contra o neoliberalismo e por um futebol mais democrático não se sobrepõe à torcida apaixonada por um time – na verdade, as duas coisas acontecem lado a lado, como duas faces da mesma moeda. “O que é mais relevante: o fulano de tal estar do meu lado (ideologicamente) ou ele ser de uma torcida rival à minha? E é aí que eu acho super importante a organização: quando falamos sobre pautas antifas, nós ‘esquecemos’ um pouco a cor da camisa do outro, e levamos em consideração que a nossa luta é conjunta, com total respeito ao amor pelo time, é claro”, reforça Ot. 

 Apesar dessa união sob uma grande bandeira, os conflitos com o meio mais tradicional do futebol e a resistência encontrada por parte de diversos torcedores tornam necessária uma constante negociação e compreensão das formas com que os afetos se organizam nas arquibancadas. 

Sobre as relações entre as torcidas organizadas, por exemplo, Eme aponta a importância de dar atenção às rivalidades pré-existentes, sem passar por cima delas em prol do “antifascismo”. “As rivalidades entre torcidas organizadas são muito mais antigas que esse novo movimento antifa nas arquibancadas daqui, muitas delas com histórico de mortes em confrontos, então não é algo que se pode ignorar”, pontua. Quando há ações que não levam em conta essa lógica, mantendo-se alheias ao mundo das torcidas, “sem nenhum trabalho político antes”, o efeito é apenas o de afastamento das organizadas, como explica Eme. Sem haver trabalho de base não há construção política, não há adesão popular e nem um movimento antifascista de fato, capaz de mobilizar e transformar o ambiente do futebol a partir de seus agentes.  

O que está no cerne das torcidas antifascistas, afinal, é a união de torcedoras e torcedores como classe trabalhadora e como povo apaixonado pelo futebol, com tudo o que isso implica: os conflitos de classe, a luta por direitos e o anticapitalismo, por um lado; e as rivalidades entre clubes e a paixão pelo time, por outro. A partir do diálogo, da militância que vai do boca-a-boca à luta institucional, e da presença ativa em manifestações e estádios, os torcedores organizados sob a bandeira antifascista atuam para que o futebol (e a política, de forma geral), seja de fato do povo.

Quanto às divergências entre as torcidas ou entre as diferentes posturas partidárias, o trabalho é para que elas não se sobreponham a esse interesse maior. “Cada um no seu canto, mas todos falando a mesma língua: somos antifascistas”, resume Eme, que também coloca ênfase na importância do trabalho de base como princípio de luta: “Acreditamos que a união e paz entre a classe trabalhadora e seus torcedores não virá do dia pra noite com frases feitas ou tentativas forçadas, mas naturalmente conforme esse trabalho político for ganhando cada vez mais adesão entre as massas.”

 

Torcidas antifascistas no Brasil

Sudeste

Cruzeiro Antifa e RAP – Resistência Azul Popular (Cruzeiro, MG), Galo Ultras Antifa e Resistência Alvinegra (Atlético, MG); Gaviões da Fiel e Coringão Antifa (Corinthians, SP); Mancha Verde, Palmeiras Antifascista e Porcomunas (Palmeiras, SP); Resistência Tricolor Antifascista e Frente Democracia Tricolor (São Paulo, SP); Santos Antifascista (Santos, SP); Flamengo Antifascista e Flamengo da Gente (Flamengo, RJ), Botafogo Antifascista (Botafogo, RJ), Bangu Antifascista (Bangu, RJ), Vascomunistas e Esquerda Vascaína (Vasco, RJ), Fluminense Antifascista (Fluminense, RJ).

Nordeste

TAU Nordeste (união das torcidas antifascistas da região), Antifascista Sport (Sport, PE), Timbu Antifa (Náutico, PE), Azulão Antifa (CSA, AL), Ultras Resistência Coral (Ferroviário, CE), Movimento 3 de fevereiro e Democracia SCFC (Santa Cruz, RE), Vozão Antifa (Ceará, CE), Resistência Tricolor (Fortaleza, CE), Bahia Antifascista e Frente Esquadrão Popular (Bahia, BA), Vitória Antifascista (Vitória, BA), América-NT Antifascista (América, RN), ABC-NT Antifascista (ABC, RN).

Sul

Frente Popular Alviverde e Coxacomunas (Coritiba, PR), Grêmio Antifascista, Antifascistas do Grêmio, Coletivo Elis Vive e Tribuna 77 (Tricolor Gaúcho, RS), Inter Antifascista (Internacional, RS), Londrina Esporte Clube Antifascista (Londrina, PR), Antifascista do Furacão (Atlético, PR).

Norte

Remo Antifascista (Remo, PA), Frente 1914 (Paysandu, PA).

Torcidas Unificadas

Torcidas Antifas Unidas – Nordeste, Torcidas Antifas Unidas – Brasil (TAU-BR).

História: o Ferroviário Atlético Clube (CE) e a Ultras Resistência Coral

“Nada diminui nossa paixão incendiária. Ferroviário, orgulho da classe operária”, grita a torcida Ultras Resistência Coral. A atuação de esquerda da organizada, aliada às causas da classe trabalhadora, opera também um resgate da própria história do time, que “foi forjado na classe operária”, como conta Carlos Marques.  

O time cearense foi criado por operários da estrada de ferro que se organizavam em dois times amadores para realizar partidas de futebol nos intervalos de descanso do trabalho, entre um turno e outro. Hoje, relembrar essas raízes é motivo de orgulho e de luta para os torcedores da Ultras Resistência Coral, que têm os interesses da classe trabalhadora como centro de sua atuação anticapitalista. Formada, em sua origem, majoritariamente por estudantes secundaristas e jovens universitários, a Resistência Coral mantém em sua composição o mesmo laço com a classe trabalhadora que o Ferroviário carrega em sua história: atualmente é composta por trabalhadores das mais diversas áreas, contando com um grande número de professores da rede pública de ensino. 

De origem anarco-comunista, a Ultras Resistência Coral foi criada, no meio da torcida organizada tradicional, a partir do incômodo gerado pelos comportamentos de incitação ao ódio muitas vezes percebidos nas arquibancadas. Transformando incômodo em imaginação e luta, os torcedores se propuseram a levar uma outra lógica para os estádios, inspirados no modelo de torcidas organizadas europeias, as ultras. Assim nasce a torcida anticapitalista do Ferroviário: como explica Carlos Marques, “uma torcida abertamente de esquerda, politizada, anticapitalista e que tivesse essa postura diferenciada nos estádios de futebol para combater esses tipos de preconceito, a homofobia, o machismo, o racismo. E também outros aspectos que envolvem o sistema capitalista, como a própria mercantilização e a elitização do futebol”.

Para a torcida organizada, contar a história do time faz parte tanto da paixão pelo Ferroviário quanto da construção política de conscientização e identificação de classe. “Nosso clube está diretamente ligado à classe operária e a Resistência Coral buscou fazer um trabalho de resgate dessa história e dessa identidade classista, que durante um bom tempo ficou relegada a segundo plano. Através desse trabalho a torcida do Ferroviário passou a conhecer mais a sua origem operária e reivindicar essa origem e esse caráter diferenciado do nosso clube. Isso contribuiu para que pudéssemos levantar essas questões que envolvem a classe trabalhadora, dos direitos de classe. Foi um diferencial que nos ajudou a fazer com que a luta pela classe trabalhadora fosse incorporada de maneira mais aceitável pela torcida do Ferroviário”, explica Carlos Marques. “É algo que nos mobiliza bastante. Nos orgulha muito ter essa origem, essa caracterização que a gente reivindica e dissemina nos estádios com muito orgulho”, completa.

*Os nomes que aparecem nessa matéria são fictícios, à pedido das fontes.

A saúde mental é coletiva: como o movimento antimanicomial ajudou a criar uma rede de cuidado público

Com a forte mobilização do movimento antimanicomial foi possível obter ganhos como a criação das CAPS e das RAPS; o movimento busca agora a ampliação e a manutenção de políticas públicas

Por Alicia Lobato*

No dia 18 de abril, movimentos sociais tomam as ruas para visibilizar a questão da saúde mental e demandar atendimento humanizado e de qualidade l Foto: Governo da Paraíba

“Por uma sociedade sem manicômios”: foi essa frase que o movimento antimanicomial escolheu em 1987 para levar adiante suas reivindicações pelo fim do uso do eletrochoque e de práticas de torturas em instituições de saúde mental, então conhecidas como hospícios ou manicômios. E foi sob essa frase que o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental deu início a uma greve que durou oito meses e ajudou a avançar no questionamento das instituições de internação de pessoas em sofrimento psíquico e advogando por seus direitos.

Dessa mobilização surgiu a “Articulação Nacional da Luta Antimanicomial”, que tinha como o objetivo pôr fim às instituições manicomiais e lutar pela criação de políticas públicas de saúde para pessoas que precisavam de apoio psicológico.

Após 14 anos de luta, o movimento conseguiu uma vitória significativa: em 2001 foi sancionada a lei nº 10.216/2.001, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e assegura um melhor tratamento de saúde, segundo suas necessidades, além de pôr como direito, respeito e proteção contra qualquer forma de abuso.

Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mantidos pelo SUS e criados em 1992, foram atualizados pela lei e ampliaram um entendimento da saúde mental que foi encarada a partir daquele momento de maneira intersetorial e multidisciplinar, buscando entender a integralidade do sujeito em sofrimento psíquico.

“Tivemos um cenário de ganhos no sentido de não só trazer a pauta antimanicomial para a sociedade, algo que parecia tão naturalizada a pessoa ter algum tipo de transtorno e ir para o manicômio”, afirma Vanessa Furtado, militante da luta antimanicomial e doutoranda em Psicologia na Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN). “Com a lei de 2001, foi-se criando a possibilidade de demonstrar outras formas de cuidados que não o encarceramento e a hospitalização.”

A pressão dos movimentos sociais, também ajudou na criação das redes de atenção psicossocial (RAPS), em 2011, dentro do sistema público de saúde, que contribuíram para a qualidade de vida e o fim do isolamento de pessoas neurodiversas. 

“As pessoas hoje conhecem e sabem o que são os CAPS, não só pessoas que estão com casos de transtornos graves, mas outros quadros acabam sendo atendidos”, aponta Furtado, ressaltando a capilarização da rede de atenção à saúde mental.

Ativistas da luta antimanicomial participam de atividade em Macapá (AP) l Foto: Divulgação

Desigualdade regional e resistência ao conservadorismo

Com a ascensão do conservadorismo no país e o regime de austeridade do governo Bolsonaro, os equipamentos de atendimento à população sofreram duros ataques. Para manter os serviços funcionando, os movimentos têm se mobilizado em todos os estados contra o retrocesso e também pela ampliação do atendimento. 

Tânia Leal, atuante no movimento antimanicomial do Amapá, conta que o estado é o que menos possui CAPS no país, com cinco unidades. Apenas a capital, no entanto, tem uma população grande o suficiente para demandar cinco unidades.

Para Leal, a luta tem sido árdua, “visto a força do conservadorismo cristão no estado – desde a sociedade até em espaços de tomada de decisão. Além disso, Macapá é a única capital brasileira que não tem uma Unidade de Acolhimento e um CAPS 24h – o que o CAPS Gentileza deveria ser, mas não é”.

Em Macapá, ainda neste mês de maio, está sendo realizada a campanha “Trancar não é Tratar”, em defesa do cuidado em liberdade, focando principalmente na defesa do SUS, que torna possível a existência de espaços como o CAPS. O lançamento da iniciativa aconteceu no dia 10 de Maio, e a programação terá oficinas de lambe, cine debate e rodas de conversa. 

A militante analisa que apesar dos avanços que o movimento antimanicomial tem conquistado, no governo atual o debate sobre saúde mental e saúde pública ficou cada vez mais escanteado e, com a pandemia, o próprio movimento teve dificuldade em saber como agir contra a reforma proposta pelo governo federal. 

O governo Bolsonaro também aumentou o financiamento para as comunidades terapêuticas de cunho religioso, um movimento que ganha força desde 2016, com Michel Temer. Para a pesquisadora Vanessa, esse redirecionamento exemplifica o desmantelamento das políticas públicas de atenção psicossocial.

Em 2020, a Agência Pública noticiou que apenas no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro foram investidos em comunidades terapêuticas de orientação cristã quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades, cerca de R$ 41 milhões foram para comunidades terapêuticas evangélicas e R$ 44 milhões para católicas.

“Os hospitais psiquiátricos, as casas terapêuticas estão recebendo recursos do governo em detrimento dos CAPS isso é um problema, tem muito município que não tem condições sozinho de manter o CAPS e a ajuda do governo federal vinha diretamente para essa política. Precisamos garantir que as unidades sejam centralizadoras da atenção do usuário, essa política precisa voltar”, afirma Vanessa.

Por conta desse novo cenário, o movimento tem buscado se inserir em outros espaços para seguir atento aos passos do governo federal. A campanha realizada pelo movimento da luta antimanicomial no Amapá, por exemplo, tem  feito críticas abertas às comunidades terapêuticas. De acordo com o material da campanha divulgado pelo movimento, já foi registrada pelo Ministério Público a existência de tortura, trabalho escravo e intolerância religiosa nesses espaços.

Tânia afirma que eles têm lutado por inspeções constantes nas comunidades terapêuticas e em clínicas de reabilitação no Amapá, e acrescenta, “temos denunciado incansavelmente esses espaços, mesmo com episódios de censura e retaliação”. 

Em todo o país, manifestantes que defendem os direitos das pessoas em sofrimento psiquíco tomam as ruas no dia 18 de maio l Foto: Luta Antimanicomial RJ via Brasil de Fato

Daqui em diante

Hoje, falar sobre saúde mental é assunto costumeiro na vida das pessoas e nas redes sociais. Mas, a história do movimento antimanicomial mostra que, acima de tudo, essa questão é coletiva e social. E, sendo assim, questões como classe social, gênero e raça não podem ser deixadas de lado ao pensar o cuidado, a luta e a formulação de políticas públicas.

A pesquisadora Vanessa Furtado lembra que grande parte da população residente e hospitalizada nos hospitais psiquiatricos no Brasil são declarados como negros ou pardos, e complementa, “isso ainda é reflexo desse processo de racismo instituido no Brasil é que vai gerar formas de expressão de sofrimento diferente”.

Para Tânia Leal, o cenário de desigualdade também é percebido no Amapá, onde houve um aumento visível de pessoas em situação de rua, sendo “grande parte delas usuárias dos CAPS”. Além disso, ela continua “é grande o número de pessoas em sofrimento psíquico internadas nas alas psiquiátricas dos hospitais da cidade. Apesar do contexto nocivo, o movimento da luta antimanicomial continua resistindo dia após dia”, conclui.

*Alicia Lobato é jornalista e faz parte da equipe da Escola de Ativismo.

O surgimento, a resistência e as fabulações quilombolas no livro “Narrativas do Interior”

Livro foi escrito em conjunto com a comunidade e conta a história do território, sua cultura e seus habitantes

Pedro Silva e sua mãe, Lindalva,  durante as celebrações do Dia do Rio Jauquara

Pedro costumava anotar e transcrever as cantigas que seu avô, seu Francisco, cururueio, cantador e tocador de viola de cocho, entoava. Mais do que seu avô, seu Francisco é memória viva da cultura do Vão Grande, uma região quilombola que reúne cinco comunidades, localizada entre duas morrarias perto de Barra do Bugre, no estado do Mato Grosso. Foram dessas anotações, num caderninho, que surgiram os primeiros rascunhos do que seria o livro “Narrativas do Interior”, lançado no dia 28 de abril.

“Pessoas especiais deixam histórias especiais”, disse emocionado Pedro Silva, ao lado de sua mãe, Lindalva, que citou como sua grande inspiração. O lançamento aconteceu pisando no chão do território durante a celebração do Dia do Rio Jauquara, que corta e alimenta a comunidade.

“O livro conta o que vocês do Vão Grande já sabem. Vamos contando as coisas bonitas mas também as dificuldades que a gente passa”, disse o autor em referência às ameaças do agronegócio e da construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) que ameaça o rio. “É uma história de respeito e de cuidado com a nossa cultura”.

Editado e publicado sem fins lucrativos pela Escola de Ativismo e a Sociedade Fé e Vida, o livro fala do território, de suas pessoas e cultura, do mutirão ou muchirum, da construção das casas, lendas, mitos, contos e causas, sabedorias e ervas medicinais. Também grava em páginas a hospitalidade das pessoas, a religiosidade e a vida do rio.

Sem mais delongas, quem quiser ler o “Narrativas do Interior” pode baixá-lo aqui.

O dia do rio

“Rio Jauquara, Rio Jauquara,

Eis aqui minha homenagem pra essas águas que não para

Rio Jauquara, Rio Jauquara, 

Com suas águas cor de anil, eis aqui minha homenagem, 28 de abril”

– Dito Baiano

Como se marca um aniversário de rio que existe desde sempre? A comunidade de Vão Grande ensina que se celebra a partir da luta e do compromisso dos moradores com suas águas, de modo que, a data de fundação do Comitê Popular do Rio Jauquara, que integra o Comitê Popular do Rio Paraguai, é o aniversário do rio, em 28 de abril.

O primeiro aniversário foi em 2019, enquanto a comunidade se organizava para lutar contra a ameaça de uma PCH — uma das 135 que podem surgir no estado e colapsar o Pantanal, a principal área alagada do planeta, e atingir mais de 120 milhões de pessoas em quatro países.

Ali do sítio do Seu Antônio, que recebeu as comemorações depois de dois anos de pausa por conta da pandemia, contou-se como aquela “festa de aniversário” foi importante para a luta.

Ao articular os quilombolas e trazer para perto a comunidade, foi possível organizar um abaixo assinado contra a construção da PCH. E também mostrar, com fotos e vídeos, aos promotores e juízes quanta vida vive ali. Quanta cultura. Quanto peixe. E, claro, quanta gente.

Entre rezas antigas em palavras que o próprio Pedro Silva diz que ainda está desvendando, tocadas de viola-de-cocho, instrumento símbolo do Mato Grosso, apresentações de Cururu e Siriri, e fartas porções de vaca atolada, lambari e jaú frito, o senso de união de cinco comunidades ia se fortalecendo, em bancos de tora e tábua embaixo da sombra de uma árvore.

E, também, depois na beira do rio. Foi lá que cada comunidade do Vão Grande trouxe um pouquinho da sua água, assim como o Comitê do Rio Paraguai, e as misturaram com as águas que cruzam a frente do sítio Santo Antônio, mostrando que a luta irá continuar fluindo nas margens do Jauquara e seus quilombos, querendo os empresários e governos ou não.

Ah, e claro: toda festa tem que ter bolo.

Entenda o caso

Ao receber menos atenção que suas irmãs maiores, as chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) representam um projeto que, por sua escala, pode ser ainda mais danoso à natureza. Somente no Mato Grosso, estão previstas 135 barragens desse tipo, que podem levar ao colapso do Pantanal, maior área alagada do planeta. 

Essas barragens representam um choque incalculável em uma bacia hidrográfica pertencente a 4 países – Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina –, atingindo diretamente mais de 120 milhões de pessoas.

Os quilombos que dependem diretamente do Jauquara estão nos municípios de Barra dos Bugres e Porto Estrela. São gerações de uma cultura estruturada a partir da relação direta com a natureza, tendo no rio uma centralidade. Atualmente, o projeto para a hidrelétrica tem o nome de PCH Araras. 

A empresa responsável pelo empreendimento é a Prospecto Participações e Negócios, e o projeto básico já foi aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Os rios do Pantanal são conhecidos por seu período de cheia e de baixa. Esse equilíbrio delicado pode ser completamente alterado com o controle humano sobre o volume de água. Como forma de garantir que haverá sempre reserva de água para a geração de energia, os controladores das barragens determinam essa vazão.

Para a natureza e as plantações que dependem desses ciclos para manter sua vida, isso significa o fim de colheitas e de vegetações nativas. No caso dos peixes, a situação é ainda mais grave, pois sem conseguir subir ou descer o rio para se reproduzir, diversas espécies entrarão em extinção nesses rios, levando a uma sequências de mortes em cadeia. Se até mesmo grandes cidades são impactadas por essa interferência, a situação é ainda mais grave em comunidades tradicionais que dependem dos rios para seu sustento e modo de vida, como os quilombolas do Vão Grande.

Como o fim da fome passa pela luta por terra e território?

Por Bárbara Poerner*

Concentração de terras, domínio do agronegócio e avanço do garimpo ilegal impedem a consolidação da soberania alimentar, mas populações indígenas e campesinas resistem e propõem alternativas 

Ação do MST relembra e pede justiça por Massacre de Eldorado dos Carajás no Rio de Janeiro em 2021 l Foto: Reprodução/MST 

Vinte e um sem-terra assassinados, 69 feridos. Esse foi um dos saldos do Massacre de Eldorado de Carajás, que marcou para sempre o 17 de abril de 1996. Na ocasião, tropas da Polícia Militar do Pará forçaram violentamente a dispersão dos mais de 1500 manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que marchavam até Belém para cobrar a desapropriação de fazendas e o assentamento de famílias. A data foi carimbada como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária e é um convite para rememorar os movimentos sociais campesinos e indígenas que atuam contra a espoliação de seus territórios, pela soberania alimentar e proteção dos bens comuns da natureza.  

Ayala Ferreira, da direção nacional do MST, compartilha que abril é um mês de intensas movimentações na organização, em “defesa do teto, da terra e do pão”. Ela explica que o movimento surgiu no bojo da emersão das lutas de massa no Brasil, durante e após a ditadura militar, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O momento de ebulição popular também forjou outros movimentos além dos campesinos, como é o caso do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), que hoje se consolida como uma entidade que busca construir uma matriz energética popular. 

Em 1981, o acampamento Encruzilhada Natalino se tornou uma referência para a fundação do MST, que em 1984 realizou o seu 1° Encontro Nacional, na cidade de Cascavel, Paraná. Já o MAB, por conta das grandes obras de infraestrutura da ditadura, como usinas hidrelétricas, articulava ações desde 1970 a partir das reivindicações de atingidos por barragens. Seu primeiro encontro oficial foi em 1987, em Chapecó, Santa Catarina.

Essa luta, porém, começou bem antes da década de 1970. Isso porque “lamentavelmente somos um país que se instituiu legitimando a grande propriedade de terras”, analisa Ayala, ao citar a histórica Lei de Terras

Sancionada em 1850 por Dom Pedro II, a medida dividiu ainda mais o Brasil em latifúndios ao estabelecer que só poderia adquirir terra quem a comprasse ou recebesse do Estado. O resultado foi um agravamento da concentração fundiária, que se desenrola até os dias atuais: 45% das terras no Brasil estão nas mãos de 1% das propriedades rurais,  segundo dados da Oxfam

A militante, contudo, destaca que mobilizações pela reforma agrária e democratização do acesso à terra sempre foram puxadas pela articulação popular de indígenas, quilombolas, campesinos e outros trabalhadores que vivem além da lógica do capital. “Tudo aquilo que nós tivemos de avanço e conquista, não veio sem termos instituído um mecanismo de pressão e reivindicação em torno da reforma agrária, reconhecimento de terras tradicionais e proteção de bens da natureza”, afirma. 

Ayala acrescenta que nesse processo, foi possível contar com figuras mais abertas à negociação. “Na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), foi um período fecundo para o processo de implementação de políticas públicas nos nossos territórios. Mas da perspectiva da massiva distribuição de terras para trabalhadores e trabalhadoras rurais, a política foi tímida. Houve um tensionamento permanente entre os interesses do capital e agronegócio versus os interesses dos trabalhadores do campo em suas vertentes”, diz ela, ao fazer uma distinção entre os períodos históricos em que há maior diálogo, e períodos totalmente fechados, como agora com a gestão de Jair Bolsonaro. 

“É o sucesso do agronegócio, e não o fracasso, que produz a fome”

s3° Congresso Nacional do MST, em Brasília. 1995 l Foto: Arquivo e Memória do MST.

Diversos projetos de lei que têm caráter anti-ambiental tramitam no Congresso Nacional com o apoio do presidente. Eles discorrem sobre a permissão da exploração em terras indígenas, como no PL 191/2020. Ou ainda são antigas sugestões que foram retomadas, como o PL 6299/2002, que sugere a flexibilização do uso de agrotóxicos. São manobras legislativas que beneficiam os setores da mineração e do agronegócio. 

“O agronegócio é responsável pela manutenção da concentração da terra e pelos limites no processo de diversificação da produção agrícola”, continua a militante. “A prioridade do agro é produzir commodities, não alimentos. De modo que o agro também é responsável pela fome no Brasil – e ainda causa diversos problemas ambientais”.

 A análise converge com a do pesquisador José Ribeiro Junior. “O sucesso do agronegócio convive bem com a fome, que é um problema político”, diz o geógrafo, que é um dos autores do Atlas das Situações Alimentares no Brasil. “Precisamos reconhecer os antagonismos que caracterizam nossa sociedade: não é o fracasso, e sim o sucesso do sistema agroexportador, que produz a fome”, completa.

Ele cita o professor, nutrólogo e ativista Josué de Castro, autor da obra Geografia da Fome, que discorre sobre a relação da mazela com o sistema de agroexportação. “O autor identificou que o fato da existência de grandes latifúndios e a monocultura impedia uma produção de alimentos de subsistência para os próprios trabalhadores. Ele chamou essa área de fome endêmica. Para ele, a fome era um fenômeno polimorfo”, explica Ribeiro Jr.. 

“Castro começou a falar da necessidade da reforma agrária. Porém, isso não viria de um estado comandado por essas oligarquias. Por isso a importância dos movimentos sociais: eles não enxergam o faminto como um beneficiário de políticas públicas, e sim como um sujeito político”, completa.

Durante o desenvolvimento do agronegócio, no Brasil e no mundo, uma das justificativas mais usadas é a da modernização do campo e consequente aumento da produtividade, que poderia cessar ou mitigar a fome. O pesquisador vê com ceticismo essa racionalização: “Há, de fato, maior produtividade, com o uso de maquinário, mas isso não significa a diminuição da fome”.

Segundo o geógrafo, isso acontece porque o agronegócio não é o único a produzi-la, mas sim um dos elementos inerentes ao capitalismo, sistema que poupa trabalho e, nesse caso, expulsa os trabalhadores do campo e de suas terras. “Quem absorve esses trabalhadores? Não há absorção, então uma categoria que produz subemprego vai produzir a fome”, explica.  Ribeiro Jr. cita um sintoma relacionado: entregadores de aplicativos de delivery, que ao mesmo tempo em que entregam comida, relatam fome e fazem refeições incompletas.

Apesar da intensa produtividade, grande parte dos itens produzidos pelo agronegócio não vão parar, necessariamente, na mesa dos cidadãos. “Uma parte do que o agro produz não é pra virar alimento, e eles não estão tão preocupados em quem vai comer; se é um brasileiro ou se vai alimentar gado na China, tanto faz”, diz José Ribeiro Jr.. É por isso que, mesmo com grandes safras de soja e milho, por exemplo, milhões de brasileiros passam fome neste momento. Conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mais de 19 milhões de pessoas convivem com a mazela e outras 112 milhões – metade da população – sofrem com insegurança alimentar

Camponeses e povos tradicionais: aliados na luta contra a fome

Alimentação orgânica dos mais de 8 mil indígenas do Acampamento Terra Livre foi garantida pelo MST l Foto: Juliana Pesqueira (@jupesqueira) | Coletivo Proteja (@protejaamazonia)

O agronegócio, no entanto, não é o único produtor da fome e do problema de acesso às terras. A mineração e o garimpo também são. Ao citar a pesquisadora indiana Amrita Rangasami, que analisou crises na Índia e no Pacifico, o geógrafo explica que “em uma crise de fome, é importante olhar para quem sofre mas também para quem se beneficia dela”. Isso acontece, continua ele, por conta da extrema vulnerabilidade a qual os famintos são submetidos. O peso das mazelas sociais se distribui de forma diferente. De acordo com ele, são as mulheres e pessoas não-brancas quem mais sofrem com “os processos de expropriação, perda de terras”.

Um exemplo nacional são as situações de estupro e abuso sexual em terras indígenas. O mais recente foi revelado, nesta semana, no relatório Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. No documento, constam relatos de mulheres e meninas que foram exploradas sexualmente, por garimpeiros ilegais, em troca de alimentos:

  “Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. ‘Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!’, assim os [garimpeiros] falam muito para os Yanomami”. 

Ainda, com o avanço da dinâmica garimpeira, várias famílias não conseguem manter seu cultivo de subsistência e ficam dependentes de trocas desiguais com os garimpeiros. “Alguns trabalham como carregadores em troca de pagamento em dinheiro ou ouro para depois comprar nas cantinas dos acampamentos, onde um quilo de arroz ou um frango congelado custam uma grama de ouro ou 400 reais”, revela o relatório. 

 A prática do garimpo é apoiada pelo atual governo, que empurra pela aprovação de projetos de lei que permitem a exploração de terras indígenas e são discutidos como emergenciais no Congresso. Dessa forma, a luta de povos originários em proteção de seus territórios alia-se à luta dos campesinos. Essa intersecção, para Ayala, é latente.

 “Precisamos nos articular para fazer pautas em comum, seja na lutas por territórios, defesa das florestas, rios e águas. Essa mobilização dialoga com a experiência de defesa que os povos indígenas têm. E são pautas muito comuns”. A militante conta que durante o Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que reuniu mais de oito mil indígenas em Brasília na última semana, foi o MST quem assumiu a preparação e fornecimento dos alimentos para os participantes.

Caminhos possíveis

Encontro Nacional das Mulheres Atingidas em Defesa da Vida. Brasília, junho de 2019 l Foto: Marcelo Aguilar/Reprodução MAB

Observando o histórico de luta dos movimentos sociais, é possível projetar e construir caminhos para efetivar a reforma agrária e a soberania alimentar. Isso significa, também, estar em constante disputa, onde até os conceitos e terminologias devem ser observados. José diz que “existe um tabu em torno da fome. As pessoas não falam “fome”. Essa ideia de segurança alimentar vem de quem tem dinheiro, é um jeito específico de olhar pro fenômeno, na melhor das hipóteses, de quem administra ou faz a gestão da miséria”, analisa. 

A soberania alimentar, pauta colocada pelos movimentos sociais populares, afirma que o povo deve ter autonomia para decidir como, quando e de que forma vai produzir e consumir os alimentos. “Não é só ser orgânico, mas quais as relações sociais por trás da produção. Há toda uma construção de soberania popular”, continua o geógrafo. Uma possível alternativa, para José, encontra-se no sistema agroecológico, que invés de excluir os trabalhadores da produção, os trás para perto. Contudo, ele não deixa de destacar que as soluções não são instantâneas ou individuais, mas sim iniciadas em um processo de luta coletiva e popular. 

Para Ayala, um dos objetivos é derrotar o neoliberalismo e o conservadorismo que regem o país atualmente, e com isso concentrar as forças na democratização do acesso às terras. “A gente só vai avançar na conquista de território e na reforma agrária se formos capazes de mudar a relação das forças que se negociam”, afirma Ayala, que vê as pautas do MST como paralelas a todo contexto brasileiro, do campo às cidades.  

“Há uma poesia que fala que a liberdade da terra e a reforma agrária são assuntos de todos que se alimentam dos frutos do trabalho e da terra. A poesia é nosso manifesto pra dizer que se nós quisermos ter alimentos saudáveis, de custo justo, superar as desigualdades sociais no Brasil, construir um país soberano, nós precisamos assumir a bandeira da democratização, do acesso a terra e da reforma agrária, assim como precisamos assumir a bandeira da democracia, educação, saúde e cultura”, finaliza Ayala.  

*Bárbara Poerner é jornalista e repórter. Cofundadora do pré-vestibular popular Cursinho do Zinga.

As águas são do povo: 5 episódios da luta pelos recursos hídricos na América Latina

As águas são do povo: 5 episódios da luta pelos recursos hídricos na América Latina

Doze anos após ser oficializado como direito humano, acesso à água na região mais rica do mundo em termos hídricos ainda sofre percalços

Continente é marcado por luta dos povos por acesso digno aos recursos hídricos

Foto: Reprodução/Fundación April

O nascimento de um curso d’água é um dos mais potentes fenômenos da natureza. A água subterrânea, quando atinge a superfície, cria condições para o despertar de um riacho, que ganha volume e vazão para se transformar em rio, curso d’água que cumpre papel fundamental para a evolução da vida humana até finalmente desaguar no oceano. Mas o que acontece quando, ao invés de aflorar, essa água vai gradualmente desaparecendo?

O secamento de rios é um evento cada vez mais comum: recentemente, o Sambingo, desapareceu na Colômbia vitimado por mudanças climáticas e mineraçãoEm Goiás, cinco rios sumiram em meio à expansão do agronegócio. A secagem acontece por razões diversas como ocupação irregular do solo, intensidade dos períodos de estiagem, aquecimento global, poluição e uso de água para abastecimento de indústrias e do agronegócio. 

Na América Latina, para tornar a situação ainda mais complexa, os processos de privatização têm dificultado o acesso universal ao recurso natural. É no subcontinente que está concentrada a maior porcentagem de reservas de água doce do mundo, impulsionada por inúmeros rios caudalosos e pelos maiores aquíferos do planeta: o Guarani (que engloba Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Alter do Chão (localizado na Amazônia).

Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu que o acesso à água potável e ao saneamento “é um direito humano essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos”. Hoje, 12 anos depois, esse direito está longe de ser concretizado na América Latina, com o abastecimento de grandes e médias cidades sendo repassado para empresas privadas e a transformação da água em mercadoria e, sobretudo, em ativo financeiro em busca de rentabilidade.

Para celebrar o Dia Mundial da Água, neste 22 de Março, a Escola de Ativismo reúne histórias de mobilização popular pelo direito à água na América Latina, desde acontecimentos que deixaram legados importantes, conflitos que ainda seguem em curso e personagens que simbolizam avanços naquele que é um dos direitos mais fundamentais para toda a humanidade: o acesso à água limpa.

Correntina: em defesa da água como fonte de vida

Manifestantes tomam as ruas de Correntina em defesa da água para o povo

Foto: Thomas Bauer/ Divulgação CPT-BA

De toda a água propícia para consumo disponível no mundo, aproximadamente 12% se encontra no Brasil. E, no país, a região oeste da Bahia é especialmente rica em recursos hídricos. Porém, em um mundo onde a lógica mercantilista se expande a qualquer custo, onde há água em abundância, há conflito.

Cercada por vários rios, a cidade de Correntina é alvo de disputas em torno de suas riquezas naturais, que remontam aos anos 1970, quando pistoleiros e grileiros chegaram ameaçando a população e cercando terras. O acirramento, contudo, veio com a crescente captação de água feita por empresas transnacionais de agronegócio, diretamente responsável pela morte de ao menos 29 corpos d’água da região, de acordo com levantamento feito pelo pesquisador Tássio Cunha.

Enquanto os pouco mais de 30 mil correntinenses enfrentam dificuldades de acesso à água, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) do estado cedeu a uma fazenda do agronegócio, em 2015, o direito de retirar do rio Arrojado uma vazão equivalente a 106 milhões de litros de água por dia, quantidade que seria suficiente para abastecer a pequena cidade durante um mês.

O setor do agronegócio consome 78,3% das águas brasileiras, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Em levantamento inédito, divulgado em dezembro de 2021, a Agência Pública revelou que o estado baiano concedeu gratuitamente ao setor 1,8 bilhões de litros de água por dia em outorgas hídricas. O montante poderia abastecer diariamente a cidade de Pequim, na China, uma das maiores metrópoles do mundo.

Nesse cenário, a mobilização de um grupo de camponeses e trabalhadores locais ocupou duas fazendas do agronegócio, em novembro de 2017, e chegou a levar 10 mil pessoas às ruas em defesa da água como fonte de vida, e não de lucro. “Ninguém vai morrer de sede nas margens do rio Arrojado. E ninguém também pode morrer de sede nas margens de rio nenhum. A sociedade tem que lutar pela vida. E a luta pela água é essa”, afirmou Jamilton Magalhães, da Associação de Fundo e Fecho de Pasto de Correntina, à Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). 

A mobilização reuniu comunidades da região, além de organizações da sociedade civil e sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais para denunciar a crescente devastação do bioma causada pelo agronegócio, incluindo a depredação de rios e do aquífero Urucuia. O movimento, contudo, foi criminalizado e há diversos relatos de abusos da polícia.

Durante a última década, o número de conflitos pela água no território brasileiro cresceu mais de sete vezes. Em 2011 foram 69 ocorrências, ao passo que em 2019 a quantidade chegou a 502, indicando como a disputa pela água ganhou força no país. São cerca de 80 mil famílias envolvidas nesses conflitos, em dados do relatório Conflitos do Campo Brasil, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2020. 

Pantanal: vidas e rios ameaçados por barragens

Rio Paraguai em período de seca: Pantanal sofre com diminuição de água nas superfícies

Foto: Reprodução/Expressão

Outra disputa ocorre hoje no Pantanal, a maior área alagada do mundo, que engloba os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. As 57 hidrelétricas em operação na bacia do rio Paraguai – e a possível construção de mais 80 – ameaçam ainda mais os recursos hídricos do bioma, que desde 1985 já perdeu 74% da superfície de água, conforme dados do MapBiomas

O fluxo natural de água na bacia dos rios, característica eliminada pelas barragens, é fundamental para a segurança alimentar e a subsistência de várias pessoas, ao mesmo tempo que sustenta uma enorme diversidade de espécies dentro e fora da água. No Brasil, os grupos mais afetados em conflitos pela água foram pescadores e ribeirinhos, envolvidos em mais da metade das ocorrências

Na bacia do rio Jairu (MT), que já conta com seis barragens, houve uma queda significativa no ecossistema de peixes, impactando diretamente as condições de subsistência de populações ribeirinhas e pescadores. 

“Nós vivemos desse rio. Meu pai criou nós tudinho, nascemos aqui e vivíamos da pesca. Hoje em dia meus filhos, meus netos, não estão comendo o peixe como nós comia [sic]”, declarou Maria José Pires da Veiga, ribeirinha da comunidade do Limão, banhada pelo Jairu, em vídeo realizado pelo Comitê Popular do Rio Paraguai/Pantanal. “Falei pra eles lutar, né? Pra não acontecer o que está acontecendo com nós [sic].”

Ameaças de hidrovia: “Se acabar a manifestação, acabam os peixes”

Na escalada de agressões às águas pantaneiras, em janeiro, foi autorizado pelo Conselho de Meio Ambiente (Consema) de Mato Grosso a construção do Porto de Barranco Vermelho, em Cáceres, município próximo à nascente do rio Paraguai. A obra faz parte de um projeto de intervenção de impacto na natureza em prol do transporte de mercadorias ainda mais amplo: a Hidrovia Paraguai-Paraná, concebida nos anos 1980, e considerada a principal rota aquática da região sul do Brasil, essencial para a exportação de matérias primas como a soja.

Para o porto sair do papel, contudo, será necessário alagar diversos trechos do rio Paraguai para que ele suporte o fluxo de embarcações, segundo o Observatório do Pantanal. Ainda será preciso retificar as margens do rio e realizar a dragagem do leito em diversos pontos, inclusive em refúgios da biodiversidade pantaneira, como a Reserva Ecológica Taiamã.

A autorização dada pelo Consema passou por cima de mais de 100 inconsistências no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apontadas pela Associação Cultural e Socioambiental Fé e Vida. Também não foram escutadas as opiniões de comunidades tradicionais como ribeirinhos, pescadores e indígenas que vivem às margens do rio, em descumprimento à Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Ação contra a instalação do porto e da hidrovia reúne dezenas de barcos no rio Paraguai.

Foto: Reprodução/RD News

Diversas organizações sociais e populares têm se unido para combater o projeto, com um ato em defesa do rio e do Pantanal marcado inclusive para este Dia Mundial da Água. Uma carta pública foi assinada por 168 entidades locais, nacionais e internacionais para questionar a autorização ao porto. Reforçando a importância dessa mobilização, como bem lembrou um pescador entrevistado em pesquisa da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), “se acabar a manifestação, acabam os peixes”.

A advogada Mariana Lacerda é coordenadora executiva do Grupo Pesquisação, uma das organizações que participa da mobilização para barrar o porto e a possibilidade de navegação industrial no rio Paraguai. Em conversa com a Escola de Ativismo, ela cita a necessidade de aperfeiçoamento da legislação referente à gestão da água, principalmente no que tange ao uso coletivo deste recurso. “É importante a comunidade estar nos espaços de decisão, como conselhos estaduais e federais sobre recursos hídricos, nos quais infelizmente as cadeiras direcionadas à sociedade civil sofreram cortes nos últimos anos. Os comitês de bacias, no entanto, já são espaços em que é possível fazer a diferença em relação à gestão da água.”

Lacerda afirma que um dos trunfos da mobilização popular em defesa da água no Pantanal é o envio de informações e denúncias a órgãos como os Ministérios Públicos Estadual (MPE) e Federal (MPF). “Temos no setor judiciário uma possibilidade de garantir o direito à água. Afinal, temos Constituição e leis que precisam ser respeitadas, e quando entramos no campo jurídico é justamente para denunciar que elas estão sendo ignoradas.”

O legado da Guerra da Água na Bolívia

Guerra da Água na Bolívia foi marco importante na luta pelo direito ao recurso natural na América Latina. 

Crédito: Reproducion/Arquivo Opinión

Um dos principais marcos da luta pela água na América Latina aconteceu na virada do milênio, quando o então presidente boliviano Hugo Banzer vendeu a companhia municipal de água de Cochabamba para um consórcio transnacional. Habitantes da cidade, trabalhadores, camponeses e indígenas se levantaram contra a venda, que de tão absurda passou a cobrar pela água que os moradores retiravam dos rios e até mesmo de seus próprios poços artesianos. A intensa mobilização popular barrou a privatização ao transformar a cidade em uma imensa trincheira popular auto-organizada. Eles conseguiram expulsar o consórcio e revogar a então nova Lei de Águas, marcando fortemente na memória coletiva do país que a água é do povo.

Naqueles dias, a resistência venceu, mas seguem até hoje os desafios sociais frente à privatização de recursos naturais, como observa Silvia Molina, pesquisadora do Centro de Estudios para el Desarrollo Laboral y Agrario (CEDLA), instituição que dissemina conhecimento crítico sobre questões trabalhistas com impacto no debate público e na ação dos trabalhadores bolivianos. “Podemos dizer que a mobilização pelo bem comum, naquele momento, derrotou uma transnacional, mas não avançou diante da privatização”, afirmou.

Muito antes do episódio, que ficou conhecido como Guerra da Água, os cochabambinos sofriam com escassez do recurso natural. Durante anos não houve investimento público adequado para ampliar a infraestrutura hídrica ou para captação alternativa de água. Assim, a população buscou autonomamente soluções para a falta de água, como sistemas de irrigação comunitários. Apenas na zona sul de Cochabamba, cerca de 100 sistemas comunitários atendem aproximadamente 200 mil pessoas.

“Cochabamba tem problemas de água há muitos anos”, relata Molina, “e há projetos de grande escala para abastecer a região que até hoje não avançaram. Atualmente vemos em bairros pobres e de classe média soluções como tanques de água e cisternas, ambos operados por agentes privados, que cobram um valor ao menos cinco vezes maior do que é cobrado pelo governo.” 

A companhia municipal de água, no entanto, sofre com ineficiência e problemas relacionados à corrupção. “A mobilização pela água trouxe muitos avanços, mas ela precisa continuar forte e organizada para seguir evoluindo no direito à água, investindo em processos de formação e politização e entendendo que, após atingido o objetivo inicial, é preciso enxergar os desafios que vêm adiante – como participação em tomada de decisões, fiscalização e controle – como partes essenciais desse processo em busca de um bem comum e coletivo.” 

Berta Cáceres e o despertar da humanidade

Berta Cáceres: defensora da água e da vida. 

Foto: Prachatai/Flickr

Este texto não poderia terminar sem lembrar de uma das mais importantes defensoras das águas que a América Latina já teve. Principal liderança do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), Berta Cáceres foi uma das maiores vozes contrárias à instalação da hidroelétrica de Agua Zarca, no rio Gualcarque, localizado no departamento de Santa Bárbara. Liderada pela empresa hondurenha DESA, a obra impactaria o fluxo natural de uma fonte de água e alimentos para comunidades indígenas de Honduras, que em nenhum momento foram consultadas sobre a intervenção. Ademais, o rio Gualcarque é sagrado ao povo indígena Lenca, do qual Berta fazia parte.

Ao resistirem ao projeto, Berta e outras lideranças foram alvos constantes de perseguições e ameaças. Em 2009, quando um golpe militar depôs o então presidente Manuel Zelaya, uma série de práticas autoritárias e antidemocráticas ganharam espaço em Honduras. Já naquele ano, inclusive, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos incluiu a ativista em uma lista de pessoas que corriam risco de vida.

O cenário de perseguição política em Honduras era tão grave que, entre 2010 e 2014, 101 ativistas ambientais foram assassinados no país, segundo relatório da Global Witness. E não demorou para Berta ser o próximo alvo, brutalmente assassinada por defender os rios de seu país, em 2016, aos 44 anos. As investigações confirmaram que o crime foi ordenado pelos diretores da DESA, em aliança com forças de segurança hondurenhas. Seis anos depois, o COPINH segue em busca de justiça para o caso.

Reconhecida internacionalmente com o Prêmio Goldman em 2015, distinção dada para ativistas ambientais, Berta Cáceres definiu sua luta em um discurso curto e potente, em palavras que fluem como as correntezas de um rio livre e vivo: 

“Despertemos, humanidade! Já não há tempo. Nossas consciências serão abaladas pelo fato de estarmos apenas contemplando a autodestruição baseada na predação capitalista, racista e patriarcal. O rio Gualcarque nos chamou, assim como os outros rios que estão seriamente ameaçados. Devemos acudi-los. A Mãe Terra militarizada, cercada, envenenada, onde os direitos elementares são sistematicamente violados, exige que atuemos. Construamos então sociedades capazes de conviver de forma justa, digna e para a vida.”

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