Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Pistas em linha – Formas de fazer processos dinâmicos de aprendizagem online
Queremos experiência reais, mas os tempos atuais insistem em nos manter na virtualidade. Confira pistas para atividades seguras e dinâmicas on-line

A vacina chegou, a pandemia amenizou, mas nem todas as atividades presenciais retomaram à normalidade. Será que estamos preparades para realizar atividades de forma segura e proveitosa? Preparamos algumas pistas para conduzir dinâmicas em linha.
Parece que o online veio para ficar. Já antes da pandemia, os conglomerados de tecnologia, a vigilância praticada por Estados e corporações e a expansão da nossa vida no universo digital já vinham redesenhando a presença humana no mundo. Agora as adequações feitas pela necessidade do isolamento indicam um caminho sem volta. Estamos cansados das telas, saudosos de presença e sedentos por experiências, mas a realidade insiste em nos manter em linha.
Em um encontro da Escola de Ativismo, um participante comentou: “Acaba a semana e a gente fica com a sensação de que falou com tanta gente mas, muitas vezes, não passamos do portão de casa”. Eu mesma sinto que fiquei mais silenciosa e sensível ao som, mesmo que tenha vivido esses dois anos com algum trabalho de campo e dinâmicas online bem interessantes — propostas pela galera do teatro-educação que teve que rebolar pra trazer para os encontros em linha a presença exigida pela atividades.
E você, já parou pra pensar em como você e as pessoas ao redor mudaram ao longo desses dois anos?

É pensando nessa presença e aproximação que acontecem no momento do café, nos intervalos ou na própria dinâmica presencial, que a Escola de Ativismo preparou dois materiais para guiar atividades online (ou em linha). Eles são resultado da experiência com grupos de ativistas na prática e trazem, inclusive, relatos e contribuições pessoais, além de um cardápio de possibilidades de ferramentas baseadas em cuidado digital.
A ideia é politizar a tecnologia. Nós a inventamos, não o contrário. Por isso, reinventaremos os modos de usá-la, reconhecendo seus limites, capacidades e vieses. Além de descolonizar as linguagens que afirmam uma certa hegemonia. Tomar as ferramentas em nossas mãos passa também por utilizar termos que possamos compreender. Queremos descolonizar, tropicalizar, tupiniquinizar, aquilombar estes termos e seus conceitos. Por isso, chamamos de atividade “em linha”, não online, e propomos uma desburocratização de métodos, através dos métodos-processo.
Veja algumas pistas para os seus processos de aprendizagem
Aquecimento
Momento para as pessoas contarem um pouco de si, uma mania, uma história da infância, um aprendizado, trazer uma receita, algo relacionado ao tema do encontro que possa depois ser resgatado durante as atividades. É diferente da checagem que se assimila ao “oi, tudo bem?” do dia a dia onde corre-se o risco da pessoa falar qualquer coisa de forma mecanizada.
Trazer sentidos fora da tela
Apesar de termos muitas atividades focadas na visão nos processos “em linha”, temos percebido a importância de criar atividades que envolvam outros sentidos, criando estímulos para que as pessoas experimentem algo com o corpo, com a audição, com as mãos fora do teclado e das telas, produzindo uma relação outra com o encontro e com o conteúdo. Que tal cantar juntos uma canção? Esculpir algo com argila?
Problematizar ferramentas e o mundo online
Muitas vezes, acreditamos que todas as ferramentas são iguais quando na verdade existem muitos mundos no espaço tecnológico. Reserve um tempo para problematizar questões politico-econômicas que envolvem a aquisição e compartilhamento das ferramentas. Busque informações complementares sobre sistemas de código aberto e fechado e a diferença entre ambas. E crie uma linha de recomendações. As pessoas precisam saber porque você escolhe uma e não outra, qual o histórico para a escolha, enfim: são diversos fatores que podem contribuir para que mais e mais pessoas descubram o potencial das ferramentas à serviço das pessoas, e não o contrário.
E por falar em problematização…. educação em linha para quem?
É importante lembrar como a conexão com a internet é racista, colonial e não inclusiva. As estruturas favorecem determinados grupos, segmentam setores e multiplicam desigualdades. Quem tem a possibilidade de estar conectada e participar de encontros online? Algumas comunidades ainda estão sem acesso à energia elétrica. Algumas pagam mais caro pela conexão que também não chega a determinados territórios. Ao promover e fomentar encontros em linha, vale a pena mapear e compreender a estrutura disponível ao público que se quer atingir e tentar garantir alguma estrutura.
Por fim, vale lembrar que não existe manual para atividades de aprendizagem. As pistas, como a própria palavra indica, são parte do caminho. É preciso refletir com elas e levar em conta as peculiaridades e características de cada território onde se propõe a atividade. Fazer com as pessoas e não para elas. Aprender fazendo é viver o método e não falar sobre.
Veja aqui o PDF completo com outras pistas para os seus processos de aprendizagem
Y hay también una versión en español
Como descobrir se sua senha foi vazada
De Jesus a Bolsonaro – Por que as histórias de jornadas funcionam e como podemos utilizá-las ao nosso favor
Resistência climática nos territórios: o que é e como fazer
Por Alicia Lobato
Em seu texto, a repórter Alicia Lobato entrevista uma série de ativistas pelo clima da região Norte e Nordeste do país, que falam um pouco de suas trajetórias e como têm feito para mobilizar suas comunidades para resistir.
Quem precisa lutar pelo seu território precisa resistir de várias formas. E isso é o que move pessoas a arriscarem suas vidas para falar sobre a proteção dos seus territórios e lutar batalhas incansáveis. Além de um ativismo, a resistência climática é sobre nascer em um contexto onde se é obrigado a ser ativista, saber usar os meios que lhe foram oferecidos e se apropriar dos que não foram.
Resistir não é apenas se fortalecer como indivíduo, é também se fortalecer coletivamente, seja por meio de organizações estruturadas, artivismo, comunicação popular. É respeitar também quem veio antes e usar esse conhecimento que foi passado para proteger os de agora e os que vem depois. Ou seja, é quando pensamos não apenas nas nossas florestas, mas nas vidas que estão nelas e no entorno, temos a compreensão do que é o meio ambiente e como resistir diante de tantas violências.
Apesar da pauta climática e ambiental estar sendo reconhecida como um problema a ser discutido, essa evolução precisa se dar junto com os territórios que já abordavam isso na sua própria história. O Brasil é o quarto país do mundo que mais mata ambientalistas, de acordo com relatório divulgado pela ONG Global Witness, em 2021. Defender os biomas e seus territórios no país costuma ter um preço muito alto, que ficou ainda mais caro nos últimos anos por conta de uma política agressiva e de não inclusão de pautas ambientais nos seus projetos.
Por isso, ouvir quem está na luta da resistência é fundamental para não apenas avançarmos nesta agenda, mas também encontrarmos uma solução.

Os Guardiões do Bem Viver atuam para proteger seu territórios das ameaças da mineração l Foto: Divulgação
Conhecimento é resistência
Diante desse cenário de medos e inseguranças, ativistas têm buscado caminhos para continuar na luta e conseguir também fortalecer os coletivos que atuam. Em Rondônia, a solução encontrada por jovens indígenas foi a construção de um coletivo, o “Juventude Indígena de Rondônia”, surgiu pela ausência de um espaço onde jovens lideranças pudessem atuar e contribuir com as pautas nas suas comunidades. Para Marciely Ayap Tupari, uma das coordenadoras da organização, a vontade surgiu depois dela ter participado do Acampamento Terra Livre, em Brasília, no ano de 2018. Ao ouvir vários relatos de participantes, ela se sentiu encorajada para participar de mobilizações.
“Até porque eu falo, principalmente, como mulher indígena, aqui dentro do estado de Rondônia é muito difícil você ver as mulheres atuando e ainda mais jovens, porque muitas vezes a gente não tem espaço”, conta.
Segundo a jovem, no primeiro encontro da organização eles conseguiram mobilizar representantes de pelo menos vinte povos indígenas. E eles têm se esforçado para alcançar mais jovens. Para resistir e poder ocupar outros espaços, Marciely precisa ir além do seu território, no entanto, esses outros lugares são repletos de violências que surgem de vários lados.
“A partir do momento que você sai de dentro do seu território e busca ocupar esses espaços você também acaba sofrendo um pouco de preconceito dos próprios parentes porque eles dizem que por ‘a gente não morar dentro do nosso território, nós não temos direito a voz’”.

“A gente sempre coloca que quando nós nascemos, principalmente povos indígenas, já somos ativistas”, diz Marciely l Foto: Arquivo Pessoal
Mesmo assim, com a crise climática, ela vê no seu dia a dia mudanças graves que precisam de soluções. De acordo com ela, o calendário tradicional de colheita já não é o mesmo, e além disso ainda tem as queimadas e o desmatamento. Esse conjunto de fatores a obriga buscar outros caminhos fora da sua comunidade, soluções para uma resistência coletiva, que, para ela, se baseia em investir no conhecimento e na comunicação.
“Precisamos sair do nosso território exatamente para buscar essas informações para ver que forma transmitimos para os não-indígenas entenderem qual é a nossa luta. Outra arma que usamos é a comunicação, estamos buscando formar outros comunicadores indígenas para mostrar para o mundo o que está acontecendo”. A resistência para Marciely surge naturalmente, com a luta constante nos territórios “Na verdade, a gente sempre coloca que quando nós nascemos, principalmente povos indígenas, já somos ativistas”, enfatiza.
O conhecimento, ou a educação, é um símbolo fundamental quando se fala de resistir, apesar de ser um obstáculo para alguns lugares, a migração obrigatória de sair do seu território em busca de uma formação é resistência. A educação para Emerson ‘Uýra’ Munduruku, bióloga, artista e educadora, também é resistir, principalmente, para jovens e juventudes das comunidades tradicionais.
Também conhecida como Uýra — A árvore que anda —, ela se define como “às vezes gente, às vezes árvore”, e tem atuado em pautas relativas aos territórios amazônicos. Nascida em Santarém (PA) e moradora de Manaus (AM), Emerson busca refletir suas vivências da periferia amazônida nos seus trabalhos. A árvore que anda, é uma maneira também de lembrar às pessoas o que é a natureza que encontramos hoje, como Emerson explica:
“Conta histórias dessas naturezas, das poluições, desmatamento, racismo, de opressões, mas também conta história de esperança de uma natureza das águas, das folhas, do som das nossas vozes”, diz Uýra, que também afirma ser uma pessoa indígena em diáspora, em retomada ancestral Para ela, se utilizar da arte é um modo de integrar natureza e “gente”, especialmente, quando se fala de Amazônia, com suas diversas causas e territórios.
Nesse sentido, seu trabalho artístico foi a maneira que ela encontrou para resistir como um corpo trans indígena. E, por isso, precisa ser política e um reflexo do que vivemos hoje. “A arte reconta a história, ela pode mudar rumos no futuro, fazer ver, se fazer sentir, pelo local da vida fazer sentir o outro. Quando falo de artivismo falo de fazer sentir, aproximar mundos”.

Intervenções artísticas e oficinas podem aproximar gerações e unir mundos. l Foto: Barbára Alves
A resistência vem da preservação da cultura e das tradições
Esse aproximar mundos é o que tem movido ativistas ambientais pelo país em meio aos retrocessos. Quando se nasce sendo quase que obrigado a estar na luta, a única forma encontrada de viver é procurar meios de persistir durante essa jornada. Os Guardiões do Bem Viver, de Santarém (PA), mostram que este aproximar dos mundos pode ser coletivo. Para Ronald Soares, um dos membros do coletivo, resistir é continuar um longo trabalho que começou com seus ancestrais, “para preservar hoje essas riquezas que temos aqui e combater a mineração dentro do nosso assentamento”. Resistir para os moradores do assentamento PAE Lago Grande, é evitar a chegada da mineração que tem tentado invadir suas terras.
Assim como a luta que começou com os seus antepassados, o que move também os moradores a enfrentar diversas violências é o conforto do bem viver, que Ronald resume como “costume, cultura e tradição”, que deve envolver diversas gerações e não apenas os jovens, que ele qualifica como “corajosos” e “vasos ruins de quebrar” na defesa de seu patrimônio social, natural e cultural.
“Todo assentamento tem um bem viver, pelo qual ele preza. A mineração afeta de morte o bem viver, que é tudo de bom que possuímos no nosso território, o qual não queremos que acabe”, diz.
A educação, segundo Soares, tem sido um bom começo para os ativistas espalharem e fortalecerem suas pautas. A motivação de compartilhar o que sabem e assim contribuir com perspectivas diferentes para suas famílias e amigos é uma aliada importante.
“Nós trazemos essas informações [sobre mineração] para a nossa comunidade, sempre debatendo. Isso é importante, levar esse conhecimento e transmitir ali aquela realidade do que pode causar, quais são as consequências e o que pode vim acontecer se nós como moradores não nos juntarmos”, diz Ronaldo, sobre a ação direta de ir de casa em casa falando sobre os perigos da mineração.
No assentamento não há sequer uma unidade básica de saúde, nem escolas públicas, por isso a resistência também passa por lutar por um futuro próximo em que outros jovens possam ter acesso a atendimento básicos.
“Temos criado projetos, logísticas de como debater esses temas, não só no nosso assentamento mas em qualquer lugar que vamos, o conhecimento é uma ferramenta muito importante que temos em levar essas informações, dá essa visibilidade”, diz.

“A juventude sem terra tem se colocado como sujeito importante até porque nós temos direito ao futuro e a sociobiodiversidade é um patrimônio das futuras gerações”, diz Aline. l Foto: Arquivo Pessoal
O assentamento Lameirão, em Alagoas, no bioma da Caatinga também tem buscado novas formas de resistência. Falamos com Aline Oliveira, do coletivo nacional da juventude do Movimento Sem Terra, que vive no assentamento desde sempre: seus pais se firmaram por lá ainda na década de 90. Para ela, ser ativista nunca foi uma escolha.
Ela explica que a luta pela reforma agrária tem sido uma luta pela natureza e pela conservação de práticas tradicionais. Nesse sentido, os territórios dos assentados tem potencial de preservação, além de produzirem alimentos sem veneno em um contexto em que o governo tem liberado agrotóxicos constantemente.
Aline conta que por causa de todo esse potencial destrutivo, o território vive em um estado de insegurança e sofre com ataques diários. “A juventude sem terra tem se colocado como sujeito importante até porque nós temos direito ao futuro e a sociobiodiversidade é um patrimônio das futuras gerações. Agora, isso não vai rolar se continuar nessa mesma forma de exploração”, acrescenta.
Segundo ela, a crise ambiental pela qual passamos surge de um capitalismo com falsas soluções que apenas encobrem problemas que o sistema mesmo criou. Ela diz que a luta é para que se crie resultados verdadeiros, respeitando os territórios e as pessoas que vivem nele. E isso passa principalmente por resistir ao avanço do agronegócio e das políticas anti- ambientais do governo. Mas como? Para Aline, a resistência dos assentados é continuar produzindo os alimentos saudáveis e reafirmar a identidade comunitária do espaço.
“Resistir perpassa esse processo de cultura, de identidade, mas também de reafirmação que esse território é muito mais do que um processo compensatório, como os capitalistas têm colocado”, analisa.
Olhando todos esses casos, um fio comum atravessa: a resistência é como cada um enxerga seu território, é sobre um futuro só ser possível se respeitar tradições apesar de um ambiente de luta. Para que as próximas gerações também tenham acesso ao bem viver, é sobre trabalhar o coletivo e entender que a educação e as trocas são peças fundamentais desse processo e da construção desses novos caminhos.
O que está acontecendo na Colômbia agora? A eleição de Petro e a mudança política no país
Por Sigifredo Romero Tovar
O que ocasionou a vitória da primeira chapa da esquerda na Colômbia? Em artigo, o filósofo colombiano Sigifredo Tovar analisa o evento à luz da história de nosso vizinho latino-americano.

A vice-presidenta Francia discursa no palanque da vitória. “É uma revolução moral”, aposta o filósofo. l Foto: Página de Facebook de Gustavo Petro/Reprodução
Há exatamente 20 anos, não havia nada mais incrível na Colômbia do que Álvaro Uribe Vélez (2002-2010). O salvador da pátria, a esperança de todo o país, o maior fenômeno político em 50 anos. Ele chegou para resolver o problema da guerra, por meio da morte, para sempre. Todo mundo era uribista na época. Ele era o cara.
Hoje ele deve estar se narco-lembrando amargamente disso lá na sua narco-fazenda, agora que seu tempo parece ter acabado. Uribe, narcotraficante e paramilitar como poucos, o homem mais poderoso da Colômbia em décadas, governou oito anos – coincidindo mais ou menos com os oito de Lula – e depois continuou sendo o protagonista principal da novela política nacional. Nas eleições de 2018, conseguiu obter a maioria no Congresso e colocar uma marionete sua na presidência: Iván Duque (2018-2022).
No próximo 7 de agosto, termina o governo dos narcotraficantes e assassinos e começará o governo do esquerdista, do ex-guerrilheiro Gustavo Petro e da militante negra e ex-empregada doméstica Francia Marquez. O mandato da pele escura, dos negros, dos indígenas, das feministas, da galera LGBTQIA+, das vítimas, dos defensores de direitos humanos, dos direitos dos animais e dos defensores da natureza – o termo “ambientalista” nunca é suficiente.
É como se de repente aparecessem no governo todas as pessoas que não aparecem nas novelas da Globo. É uma revolução moral. As mudanças que estão ocorrendo nas instituições políticas colombianas nunca tinham acontecido em toda a sua história. Estamos testemunhando muitas primeiras vezes. Mas é só porque a grande mídia é burra e o Estado é lerdo. Os dois são imorais e o povo sempre é, como no Brasil, superior e mais rápido.
O que é a Colômbia: em três tempos
Se sobre a Colômbia você não sabe nada de nada, vou te dar a grande enciclopédia de tudo o que você tem que saber sobre o país em três parágrafos. Se sabe, pode pulá-los. Quanto mais ao norte do Brasil você for, mais tudo se parece à Colômbia. Deixa o sul de fora, óbvio. No entanto, se você está na Colômbia, quanto mais pra cima você subir na montanha, mais diferente é do Brasil. A mestiçagem indígena, espanhola e africana lá foi intensa, migração europeia posterior, quase nula.
A maioria dos 50 milhões mora nas montanhas mas a população também é numerosa no litoral. Há menos gente na região amazônica e nos Llanos orientais, as grandes savanas vaqueiras — os llaneros são os gaúchos, os cowboys – cuja cultura é compartilhada com a Venezuela. Oito milhões de desgraçados moram na capital Bogotá que, verdade seja dita, é a cidade mais feia que eu já vi. Tem bastante gente em Antioquia, uma terra intensa, cheia de contrastes e orgulhosa. Antioquia é protagonista, mais do que Bogotá, tanto da história do café quanto da história da cocaína, as duas drogas que fazem a fama do país. Já a região Caribe é deliciosa, tranquila, quente pra caramba, mais pele à mostra, García Márquez, vallenato e cumbia, mais viciantes ainda do que café e cocaína. Finalmente existe (existe!) o litoral Pacífico, africano, selvático, menosprezado e molhado todos os dias em muitas águas: o mar Pacífico, a chuva intensa, os grandes rios que vêm do sul e procuram o norte. A Colômbia com frequência tem uma vibe muito parecida com a brasileira, uma tropicalidade, uma tranquilidade, uma alegria, uma festividade, uma emocionalidade, ficar só de shorts e sem camisa.
E, finalmente, a guerra, a violência, a exploração brutal por parte das elites econômicas, o terrorismo de estado, os exércitos paramilitares, as chacinas que envolviam vilarejos inteiros e que duravam vários dias, mortes por motosserra, morte para os indígenas, os comunistas, as pessoas em situação de rua, os deficientes, os mais de 4 mil membros de um partido de esquerda chamado Unión Patriótica, tortura, desaparição forçada sistemática, desterro de milhões de camponeses, estupro de crianças, a violência intensa dos cartéis, brigas de vizinhos que terminam em bala e tripas de fora, sequestro, extorsão, minas terrestres antipessoais, o exército bombardeando vilarejos, homens jogando ácido nas mulheres que os rejeitam, empalamento, todo tipo de jogos macabros com o corpo, carros-bomba, colares-bomba, cartas-bomba, bikes-bomba, burros-bomba, pessoas-bomba, aviões-bomba, tantas cagadas que as guerrilhas de esquerda fizeram também, medo, pavor, terror da noite, da paisagem, do pai. O lugar é um manicômio e uma chacina. Colômbia. Não consigo ser mais conciso do que isso.
Sessenta anos de guerra
O Pacto Histórico, a coalizão de esquerda liderada por Gustavo Petro que ganhou a presidência nas eleições de 19 de junho deste ano, também foi o movimento político mais votado nas eleições para o congresso que ocorreram um pouco antes, no dia 13 de março. Mais uma primeira vez. O Pacto agrupa grande parte dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, incluindo o Partido Comunista e o Polo Democratico — esse último o partido de esquerda mais importante das últimas décadas. Todos eles sobreviventes do genocídio político colombiano.
A guerra e a violência na Colômbia são fenômenos muito complexos, permeiam todos os âmbitos da vida dos indivíduos, são parte constituinte das identidades, mudam de região para região e têm muitos ciclos. Problemas socioeconômicos e políticos mal resolvidos levaram a uma violência bipartidária extrema entre liberais e conservadores nas décadas de 1940 e 1950. Os problemas não foram resolvidos e nas décadas de 1960, 1970 e 1980 nasceram muitas e diversas guerrilhas. Guerrilhas marxistas, guevaristas, maoístas, nacionalistas, urbanas, camponesas, indígenas, operárias, etc. As Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, as FARC, são as mais importantes nessa profusão toda. Na década de 1980 irromperam os narcotraficantes com seu poder ilimitado. Pablo Escobar, líder do cartel de Medellín, capital da Antioquia, é só o mais famoso. Torturou, matou, estuprou, sequestrou, comprou consciências e explodiu os corpos de milhares de pessoas nos lugares mais inusitados. Naquela época surgiu e prosperou ainda o paramilitarismo. Los paracos são narcotraficantes, militares e ex-militares, latifundiários, coronéis e até mesmo ex-guerrilheiros, que cumpriram vários propósitos: eliminar o dissenso e o pensamento, matar sindicalistas para as corporações estrangeiras, apavorar camponeses e expulsá-los de suas terras para roubá-las, matar y recontramatar comunistas, gays, maconheiros, ou seja, matar a vida em si.
O auge paramilitar foi em 1997, quando os diferentes grupos conformaram um exército de alcance nacional chamado Autodefensas Unidas de Colombia, AUC. Poucos anos depois, com o paramilitar Álvaro Uribe Vélez (2002-2010) a situação foi propícia para negociarem com o governo boas condições de desmobilização. Nunca a Colômbia foi tão paraca como naquela época. Numa ocasião, o congresso nacional louvara fervorosamente os chefões paracos em patriótica homenagem. As AUC desapareceram, o paramilitarismo persiste.
Petro, Uribe e a paz
Como Garcia Márquez, Gustavo Petro nasceu no Caribe e estudou lá, em cima da montanha, em Zipaquirá. Foi um membro não muito destacado — ele era jovem — do grupo guerrilheiro M-19. O grupo tinha em sua composição uma galera mais urbana do que as outras guerrilhas e se caracterizava por sua espetacularidade. Eles fizeram marketing de expectativa antes de se assumirem publicamente e seu primeiro ataque foi — pasmem — a um museu em Bogotá. Roubaram a espada de Simón Bolívar. Bolívar, a tua espada volta à luta! A guerra é tanto que é também símbolo. O M-19 nasceu porque as elites roubaram as eleições de 1970 de um velho militar populista, um Getúlio vetusto e a destempo.
Eu vi o Petro na TV há pouco menos de 20 anos. Era senador do Polo Democrático e denunciava uma realidade vigente ainda hoje: que os paramilitares estão no congresso, no governo, nas forças armadas, nos governos departamentais, nas prefeituras, entre os ruralistas claro, na indústria da palma africana, nas empresas estrangeiras mineiras e bananeiras e nos escritórios mais altos, espaçosos e limpos dos bancos.
Isso me lembra uma cena de Narcos. Wagner Moura como Pablo Escobar sonha que é recebido como presidente na Casa de Nariño. Numa cena incomparavelmente melhor, o chefão Vito Corleone fala para o seu filho Michael que tinha uma outra expectativa para a vida dele; ele queria que seu filho não só tivesse poder, mas também respeito: “… senator Corleone, governor Corleone…”
Quando o ex-governador de Antioquia, Álvaro Uribe, chegou à presidência em 2002, a grande maioria nem sabia ou se negava a acreditar naquilo que já sabiam tanto os bandidos como os norte-americanos: que o ex-senador Uribe, das entranhas do cartel de Medellín, era na verdade a herança mais maldita, o presente mais abominável de Pablo Escobar para a Colômbia. A chegada de Álvaro à presidência em 2002 foi a realização do sonho de Pablo, nove anos depois da morte do capo em 1993.
Uribe, el patrón, narcotraficante, paramilitar e assassino em massa. Durante seu governo o aparelho de inteligência da época, o DAS, estava nas mãos dos paramilitares. Uribe vê Pinochet, vê o Medici e ri. Muitos poucos mortos para ele. Ele matou mais, muito mais. Também cometeu diversos outros crimes: ele conhece a lei como ninguém porque ninguém foge tanto dela. Uribe, o bandido mais bem-sucedido na história de um país que tem a sua história cheia de bandidos terríveis.
E depois de quatro anos na presidência ele quis seguir matando, reformou a constituição, que não permitia a reeleição, e comprou congressistas com cartórios para poder governar mais quatro. E depois de oito anos ainda queria mais — mas a lei não permitiu dessa vez. Então ele quis botar um lacaio, seu Ministro de Agricultura, na presidência. Lamentavelmente, o lacaio tinha organizado um esquema para tirar milhões dos camponeses e encher ainda mais os bolsos dos seus amigos riquinhos. O ministro virou foragido e foi extraditado à Colômbia recentemente. Supostamente ele hoje está pagando por seus crimes num resort militar.
Então, em 2010, impedido pelas circunstâncias de pôr uma marionete de presidente, Uribe teve que confiar em quem não confiava, seu ministro Juan Manuel Santos (2010-2018), um príncipe dourado da elite bogotana que antes de saber ler já sabia que seria presidente só olhando para as fotos de família. Foi ministro da morte de Álvaro Uribe e antes disso ministro de outras atrocidades em outros governos, fanático neoliberal e antissocial da pior categoria. Mas ele fez uma coisa boa: o Processo de Paz com as FARC. Recebeu o Nobel de Paz como outros grandes assassinos, Barack Obama e Henry Kissinger.
Não foi por Santos — senão porque as ruas, as selvas, os campos, e as cidades da Colômbia estão cheios de gente milagrosa que movimenta o país todos os dias e todos os dias é capaz de derrotar o Estado e seus donos – que o Processo foi muito importante para transformar o país. De um dia para outro havia muitos menos mortos e os jornais tinham menos batalhas para informar.
As elites e a mídia por elas controlada afirmaram durante anos que a Colômbia era muito boa e tinha muitas possibilidades, mas que lamentavelmente os guerrilheiros não deixavam o povo progredir para poder ser como os norteamericanos. As FARC eram a maldade absoluta em um sentido quase bíblico.
Até que um belo dia, graças ao Processo de Paz, os colombianos acordaram num país sem FARC e repararam que continuavam ferrados do mesmo jeito. De fato, eles tiveram que prestar mais atenção aos políticos sorridentes tirando descaradamente o dinheiro da saúde, das mães, da educação, das crianças, dos deficientes, dos velhinhos, dos doentes, dos trabalhadores. É mais difícil enxergar o escândalo diário das elites roubando legalmente as pessoas do seu tempo, da sua alegria, da sua família, da comida gostosa e do ar. Assim, quando a pessoa perguntava, como dom Hélder, “Por que são pobres?” a resposta “Guerrilheiro, terrorista!” já não colava. Tiveram que começar a dizer “Venezuela!”. Só que a Venezuela não tinha estourado bombas nem sequestrado ninguém, então o efeito não foi o mesmo.
O Processo de Paz (2012-2016) foi o começo do fim do uribismo que havia chegado ao poder com a promessa de acabar com a guerra por métodos violentos depois de vários processos de paz malsucedidos nas décadas de oitenta e noventa. Uribe e os seus se opunham ferozmente ao Processo e o sabotaram. Todas as obscenidades que Uribe tinha cometido no Processo com os seus amigos paramilitares em 2002-2006, os uribistas inventaram que houve no processo de 2012-2016. Que o Santos era das FARC, falaram. Dizer que Santos é comunista é como dizer que Elon Musk é petralha ou cientista. Hoje em dia eles continuam atacando a paz e promovendo a guerra. Mesmo assim, graças à pacificação da época de Santos, o mais importante aconteceu, o povo começou a reverdejar.
Também me lembro de Petro na época do Processo quando era prefeito de Bogotá. Deram um golpe nele em 2014 mais rápido que o golpe na Dilma em 2016 só que depois de umas poucas semanas tiveram que restituí-lo. Foi bem naquela época que a petrofobia tomou a sua forma atual: Petro é um perversor de almas que fecha igrejas e abusa das freiras, um ser malvado que acende velas ao Chávez, que quer que a Colômbia vire Venezuela como um Zeus das placas tectônicas, que sequestrou o filho do Lindbergh, que matou Papai Noel e que é culpado de tudo aquilo que antes era culpa das FARC. Posso dizer que Petro governou em Bogotá para os mais oprimidos e desprezados e que graças a ele meu sobrinho de 20 anos hoje estuda numa sede da Universidade Distrital de Bogotá que fica em Bosa, um bairro de pessoas de carne e osso que nunca aparecem nos postais turísticos.
A última vez que o Petro havia se candidatado à presidência foi em 2018. Essa vez ele perdeu para Iván Duque, o pau-mandado do Uribe que, entre outras coisinhas, ganhou porque seus amigos narcotraficantes investiram uma boa grana nele, em sua vice-presidente de família narcotraficante, e em seu partido que é o partido dos narcotraficantes.
Duque, pau-mandado dócil, mas também guloso, do Uribe, é um carinha mediano, sem mérito algum. E aí Uribe se estrepou porque o Duque pode ser muito assassino, sim, mas o principal é que ele é (era, já era) um inepto de pobre intelecto e inexperiente — ainda hoje depois de quatro anos de presidência. É só escutá-lo falar para reparar na sua idiotice, e o seu foi o governo dos idiotas, dos falsificadores de títulos, dos medíocres, dos racistas, dos oportunistas, dos mentirosos, dos puxa-sacos dos norte-americanos.
Francia e o povo
E Francia, quem é? Há muitas como ela no Brasil. Negra da região do Pacífico, defensora da natureza e da comunidade, filha de parteira. A primeira vez que soube dela foi porque recebeu um prêmio muito importante. Como isso aconteceu nos Estados Unidos, a mídia colombiana foi obrigada a dar a notícia. Isso não impediu que o regime de narcos que a mídia defende tentasse ainda matá-la. E ainda assim a mídia não viu, não acreditou e não entendeu o que aconteceu quando no passado 13 de março, na consulta do Pacto Histórico, Francia recebeu quase 800 mil votos, para grande inveja dos políticos de sempre que têm todo o dinheiro, toda a atenção da mídia e todas as máquinas políticas.
A proposta política de Francia é de uma radicalidade tanto revolucionária como ancestral que é o oposto do desenvolvimento capitalista e do Estado liberal pois não vem de Paris nem de Washington nem de John fucking Locke. A proposta é vivir sabroso, viver gostoso, curtir. Isso inclui tudo aquilo que não seja vender a vida por horas aos opressores nem poluir a terra por eles. É uma filosofia que vem do povo e não se ensina em faculdade nenhuma.
E foi no povo que aconteceram as transformações profundas que culminaram na vitória eleitoral. Eu soube disso em um dia de setembro de 2020 quando um cara, não um líder, não um defensor de direitos humanos, um cara que era só um cara normal chamado Javier foi assassinado pela polícia de Bogotá. Até aí nada de novo. A novidade foi que as pessoas atearam fogo no prédio policial onde ele foi assassinado, fizeram protestos, a cidade feia foi incendiada e a polícia assassinou mais uma dúzia de pessoas no que constituiu mais uma chacina cometida pelo Estado colombiano.
No ano seguinte, quando o governo de Duque propôs uma reforma tributária para empobrecer o pobre e enriquecer o rico, a Colômbia foi para as ruas de novo. Os que saíram eram principalmente jovens, quase crianças, apenas com idade suficiente para saber que na Colômbia não tinham futuro além de uma vida de bicos, desemprego e humilhação. O chamado estallido social. Porque é isso, as pessoas estouram. Eu que cresci no medo reparei que aquilo era diferente dos outros protestos que tinha visto antes por um fator importante: a duração da luta. As pessoas foram para a rua sem pensar no regresso com uma raiva contida por décadas.
A cidade ardeu de novo, a grande mídia chorou pelos vidros quebrados e os pneus carbonizados enquanto o Estado saiu para massacrar de novo. A polícia e os paramilitares mataram dúzias, dúzias e mais dúzias, arrebentaram os olhos das crianças, torturaram transeuntes, estupraram mulheres e culparam as vítimas. Iván Duque os animava a matar. Tantos mortos no povo e tantos assassinos na força policial, começando com Duque, marcaram a morte de uma era, a era Uribe.
E no meio disso tudo, nos últimos 20 anos se popularizaram a internet e os celulares. Na minha época a internet estava ainda chegando e se usava bastante o telefone fixo. As pessoas se informavam principalmente pelos dois canais privados da TV nacional. Hoje, a grande mídia continua falando as suas mentiras, só que há jornalistas em potencial em cada esquina do país e em qualquer aparelho você pode acessar a imprensa internacional, os arquivos de qualquer coisa, tudo. Meu sobrinho de 20 anos, celular em mãos, só assiste telejornal para gargalhar das mentiras da mídia.
Por conta de muitas razões muito diversas que nem sempre tiveram a ver nem com a Francia nem com o Petro, caiu neles a oportunidade do impossível. Talvez antes deles houveram outros que mereciam mais, só que os rumos da história são moralmente inescrutáveis. Eles permaneceram de pé depois de uma longa lista de mortos. Os assassinos não conseguiram matar todo mundo.
A vitória do 19 de junho foi dada a eles pela idiotice dos seus inimigos que geraram uma oportunidade histórica para o Pacto. Francia e Petro, insubordinados de sempre, sobreviventes, militantes sem descanso, mantiveram a esperança nos tempos mais escuros. Agora parece que foram recompensados por isso. Recompensa nenhuma. O poder deveria ser um dever. Veremos se Petro e Francia estarão à altura do que virá. Daqui pra frente corresponde a eles a pior das responsabilidades.
A responsabilidade lhes foi dada pelas pessoas que votaram, as que não aguentaram a vergonha e saíram para a rua e por muitos outros que estão mortos agora. Nos últimos três anos aconteceram coisas na Colômbia que não aconteciam há décadas. Isso porque o povo em que eu cresci, cabisbaixo e assustado, o povo da era Uribe, hoje é outro povo.
Claro, seguimos sendo indígenas, negros, cholos, descamisados, nadies, camponeses, ñeros, trabalhadores, maricas, amigos incorruptíveis e mães solteiras. O que eu quero dizer é que hoje em dia tem gente que cresceu sem medo. O que mudou foi o povo. Essa é a magnitude da mudança que está acontecendo agora mesmo na Colômbia. E o povo persistirá criando coisas novas, coisas além de nós mesmos, além de Francia e Petro. Só o povo pode salvar o povo.
—
*Sigifredo Romero Tovar é filósofo ecosocialista formado em Historia pela Universidad Nacional de Colombia e em Estudos da Religião pela Florida International University. Atualmente, seu interesse acadêmico é a superação do capitalismo para que a humanidade não derreta de calor. Contato: srome039@fiu.edu
Entenda os cuidados e riscos de participar de boicotes para esvaziar eventos
Por Bibiana Maia
Inscrever-se para retirar ingressos pode ser considerado um ato de liberdade de expressão, mas existe uma zona cinza no campo jurídico sobre o uso de dados falsos
Atualmente, qualquer organizador de eventos faz um passo a passo simples: cria uma página em alguma plataforma de venda de ingressos (com informações sobre a programação e as atrações) e os interessados se cadastram e retiram suas entradas, sejam elas pagas ou gratuitas. O processo vale para shows, peças de teatro, cursos, palestras e até convenções políticas, caso do Partido Liberal (PL). O que o PL não contava era com uma estratégia de mobilização para esvaziar o evento, que envolvia adquirir um ingresso com a intenção de não comparecer.
Em uma estratégia de boicote, diversos usuários nas redes sociais encorajaram seus seguidores a retirar os ingressos, na plataforma Sympla, para o encontro que acontece neste domingo (24/07), no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. A convenção vai anunciar a candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro e do vice General Braga Netto. Com a viralização das postagens, surgiram dúvidas sobre a legalidade deste tipo de mobilização e a segurança dos dados. Algumas publicações sugeriram o uso de informações falsas, como CPF e e-mail, na ação.
Das 50 mil inscrições, o PL decidiu cancelar 40 mil com uma triagem feita “com o uso de ferramentas próprias, por meio de inteligência artificial”, como informou o partido ao Correio Braziliense. Além disso, declarou que os IPs foram armazenados para eventuais medidas legais. A organização também disse ao site Poder360 que apresentaria uma uma representação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a investigação sobre a mobilização. O partido defendeu que “foram descobertas fraudes e tentativa de hackeamento”. O evento, inclusive, aconteceu sem a necessidade ingresso para comparecimento.
A Sympla informou à Escola de Ativismo que pode “realizar a suspensão de contas identificadas como falsas ou que contenham informações inverídicas”. Sobre o IP, a plataforma declarou que não disponibiliza este tipo de informação aos organizadores de eventos cadastrados.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do TSE respondeu que, até sexta-feira (22/07), não houve nenhuma representação do partido sobre o caso e que a mobilização de retirada de ingresso com o intuito de não comparecer não tem tipificação de crime eleitoral, mas pode haver alguma implicação criminal no uso de documentos falsos, como o CPF.

Boicote gerou dificuldades para a extrema-direita, mas pode colocar em risco segurança de ativistas l Créditos: Pixabay
Que tipos de dados o usuário fornece
Assim que uma pessoa decide adquirir um ingresso na plataforma Sympla, segundo o documento sobre Políticas de Privacidade nos Termos e Políticas, é preciso que forneça informações divididas em três blocos: Informações do Participante, Informações para o recebimento do ingresso e Informação de pagamento.
Na primeira, são coletados dados de identificação sobre a pessoa que usará o ingresso para acessar o evento, como o nome e o e-mail. Em alguns casos, o organizador pode pedir informações adicionais, como o CPF. A segunda refere-se aos dados de identificação do consumidor, ou seja, a pessoa que receberá o ingresso, e se resumem ao nome e e-mail. O último bloco é sobre dados financeiros e de identificação, como informações do cartão de crédito, nome, telefone, CPF e endereço.
A plataforma ainda diz que o usuário poderá fornecer outros tipos de dados, como geolocalização, comportamento de uso do aplicativo e informações referentes ao dispositivo usado para visitar o site, como celular ou computador. Entre esses dados estão o número de telefone, endereços IP, tipo de navegador e idioma, redes Wifi, provedor de serviços de Internet, operadora, sistema operacional, fabricante do dispositivo, modelo, informações sobre data e horário, páginas de consulta e saída, e dados sobre a sequência de cliques.
O documento também indica como funciona a segurança desses dados, mas alerta que o sistema não é infalível. Segundo a Sympla, são usadas técnicas de criptografia, monitoramento e testes de segurança periódicos, Firewall, entre outros. “Contudo, não é possível garantir completamente a não ocorrência de interceptações e violações dos sistemas e bases de dados, uma vez que a internet possui sua estrutura de segurança em permanente aperfeiçoamento.”
Cuidados ao decidir participar de boicotes
O Brasil tem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que dá diretrizes sobre como essas informações devem ser geridas. Segundo Christian Perrone, head de Direito, Tecnologia e Govtech do Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS), não há nada que impeça a plataforma de compartilhar dados com os organizadores, mas é preciso haver transparência e não quebrar as expectativas do usuário sobre sua privacidade. Eles precisam saber quais dados serão utilizados, quais serão tratados e para quais finalidades.
Sobre informações que as pessoas fornecem indiretamente, como o IP, existe uma obrigação legal, em alguns casos, de as empresas precisarem guardá-los porque há uma lógica na legislação brasileira de que não se pode ser completamente anônimo na internet. A Sympla precisa mantê-los por um período de tempo e pode entregá-los com o conhecimento do titular ou em caso de requisição legal, como uma ordem judicial. Desta forma, o PL só poderia ter acesso aos IPs com requerimento legal, já que a plataforma informou que não fornece aos organizadores.
A LGPD considera dados sensíveis aqueles que podem ser discriminatórios, como religião, raça, cor, estado civil, diagnósticos de saúde, ou por serem únicos, como os biométricos, por exemplo, digitais, íris e formato do rosto. Informações como e-mail e CPF são dados pessoais relevantes, mas não são considerados sensíveis.
Ainda assim, devemos ter cuidado com eles. “Quando você tem o CPF, ele é uma espécie de chave para encontrar outros cadastros porque normalmente os cadastros indexam nossas informações ao CPF”, explicou Perrone. Já o e-mail é relevante pois usamos para dar acesso a uma série de contas por serem parte do login, desde redes sociais e streaming a banco. É por isso que o especialista indica usar um outro e-mail para compras e plataformas de eventos, como a Sympla.

PL teve que autorizar a entrada de pessoas sem ingresso no evento que aconteceu no Maracanãzinho l Créditos: Agência Brasil
Uso de dados falsos e VPN
Este tipo de mobilização é encarada como legal e democrática. Uma das defesas para o ato de se registrar sem a intenção de participar é a liberdade de expressão, enquanto um protesto. Mas existe uma zona cinzenta quanto ao uso de dados falsos como CPF e e-mail e até de divulgar essa tática nas redes sociais. Perrone explicou que o usuário pode ter que arcar com os danos dessa falsidade e entrar na categoria de fraude, mas não é tão simples definir esta ação como um crime. Demanda interpretação.
“Usualmente, preencher um dado incorretamente e ‘falso’, não é crime, mas é crime em algumas circunstâncias. É por isso que algumas pessoas estão dizendo que pode ter causado um crime eleitoral, por estarem fornecendo dados eleitorais, mas isso pressupõe um contexto oficial e eleitoral. Preencher um cadastro para ganhar um ticket, ainda que esteja ligado a uma questão eleitoral, é difícil que exista uma interpretação que visualize como um crime.”
Outra questão levantada nesse caso foi o uso de VPN para mascarar o IP e assim evitar que as pessoas que participassem deste tipo de boicote sejam identificadas. O IP mostra onde está o dispositivo que está acessando aquele site. É um endereço que é fornecido automaticamente pelo sistema, pois é a forma como a rede funciona. Mas existem técnicas para driblar esse rastreamento. O VPN funciona como se indicasse um endereço intermediário ou espelhasse outro número de IP que não é o seu.
É comum o uso em países não democráticos ou ainda em situações que o usuário não queira indicar sua localização, como em investigações jornalísticas. Na China, por exemplo, é utilizado para acessar sites que não são permitidos no país, como o Google. No Brasil, esse recurso não é ilegal.
Contudo, Perrone defendeu o uso dos dados verdadeiros para este tipo de estratégia. “Há uma lógica de que, se você quer participar do processo democrático, deve participar como você. Participar sem entregar os dados é complexo porque começa a beirar os limites do que é considerado politicamente correto e legítimo. Por exemplo, entra nessa fronteira de estar em fraude por não entregar o CPF quando lhe é pedido e entregar o que não é seu. Não é automaticamente ilegal, você estaria na zona de discussão da liberdade de expressão, mas é possível de não ser visto como correto e, em algumas circustâncias, como ilegal. Beira a antijuridicialidade”.
Mobilização foi inspirada nos fãs de Kpop
Este tipo de boicote não é exatamente uma novidade. A estratégia de organizar uma retirada massiva de ingressos para não comparecer a um determinado evento foi inspirada em uma mobilização que aconteceu nos Estados Unidos. Em junho de 2020, o então presidente Donald Trump fez um comício em Tulsa, Oklahoma, cujas entradas deveriam ser retiradas com um cadastro usando o número do celular.
Quando os organizadores pediram ao público para inscrever-se, fãs de Kpop (música popular coreana) e usuários do TikTok encorajaram as pessoas a se registrarem sem a intenção de ir. Segundo o “The New York Times”, muitos usuários apagaram as publicações com a orientação como parte do plano. A organização chegou a divulgar que mais de 1 milhão de pessoas se inscreveram, mas o público foi bem abaixo do esperado. Dos 19 mil lugares disponíveis, apenas 6.200 foram ocupados, segundo os bombeiros da cidade. Trump havia planejado um discurso para o público quem não conseguisse entrar no local, mas acabou cancelando.
O mesmo tipo de tática teria sido usada com o evento “Minha cor é o Brasil”. Com teor conservador e negando o racismo, o encontro aconteceria este mês em Alphaville, em São Paulo, mas havia intenções de levá-lo para outros lugares, como o Rio. Sérgio Camargo, ex-presidente exonerado da Fundação Palmares, divulgou em seu perfil no Twitter que o evento seria remarcado “por motivos de força maior”.
Alguém se levantou — e expulsou o presidente da Funai
O ex-funcionário da Funai, Ricardo Rao, se levantou e expulsou Marcelo Xavier de um evento; a ação direta do ex-colega de Bruno Pereira é, segundo Luh Ferreira, um exemplo para ativistas no Brasil de 2022
Amanheceu chovendo esta manhã.
Fiquei com preguiça de levantar, de ir pro treino, de fazer café…
Achei que poderia esperar um tempo na cama até o tempo abrir.
Abri o celular, no instagram, fui passando o feed, me entristeci profundamente por saber que o governador do Mato Grosso havia assinado o PL 561/2022, a lei anti-Pantanal, que pode mudar para sempre como as águas do bioma são protegidas. Já não bastasse o 22 x 02 na assembleia – isso mesmo 7×1 é pouca vergonha, foram 22 deputados estaduais votando contra a proteção do Pantanal — tive hoje nesta manhã a certeza de que tudo vai mal. E que não conseguimos fazer nada para mudar.
Segui em desânimo, segui passando o feed.
Quando vi uma cena:
Um homem se levanta em um auditório. E começa a dizer em alto e bom som, de maneira dirigida, algo que a gente vêm gritando na internet, nos metrôs, nas feiras, nos almoços de família, na academia, no bar, no mercado, entre nós, claro… temendo a violência, sem querer arrumar confusão com gente que anda doida para atirar.
Desta vez alguém disse o que precisava ser dito para quem está há tempos, precisando ouvir:
“Este homem não pertence aqui, não é digno de estar entre os senhores. O Itamaraty é uma vergonha. O Itamaraty está sendo babá de miliciano. Marcelo Xavier é um miliciano. É responsável pela morte de Bruno Pereira e Dom Phillips!
Miliciano! Vai embora! Vai pra fora!”

Ricardo Rao está exilado desde 2019 na Noruega e saiu da Funai durante o governo Bolsonaro por conta de perseguição política l Foto: Arquivo Pessoal
Ahhh, como eu ando querendo mandar gente embora dos lugares! Sobretudo do Brasélllllll!!!!
O homem que me refiro é o indigenista e ex-funcionário da Funai, Renato Rao. O levante aconteceu durante o evento da Assembleia Geral do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac) em Madri, na Espanha. Rao corajosamente, dirigiu-se ao atual presidente da Funai (cujo nome não vamos mencionar pois dá azar), e fez com que ele se retirasse da reunião.
Oras, mas depois dessa eu me levantei na hora da cama!
Depois dessa ação direta, me animei a seguir o dia, mas também em escrever, em falar com as pessoas e saber mais sobre o caso Brasil, vai que um levante estava rolando e eu estava ainda na cama cansada?
Sim, me refiro ao caso Brasil, pois todos os dias acontece algo que muda, mas na real não muda nada. né?
É fucking meeting with diplomatas para anunciar que vai dar golpe — até porque não tem prova de nada. É convocação de irmão de petista assassinado para expôr ao mundo a sua estratégia de divisão familiar. É cada uma pior do que a outra.
Tudo isso rolando e a gente aqui com esse maldito clima de ESTÁ TUDO NORMAL como diria nosso querido André Dahmer:

Chega de normalizar as imbecilidades!
Basta de normalizar a violência – Toda solidariedade às famílias do Complexo do Alemão!
Isso tudo não é normal, levantemos como fez Rao e expulsemos de nossa casa, de nosso convívio e principalmente desta presidência aquele que vocês sabem muito bem quem.
Salve o Ceará do Dragão Nuclear: A luta contra a mineração de urânio e fosfato em Santa Quitéria
Por Sarah Lima, do Jovens Pelo Clima Ceará
Movimentos sociais e comunidades tradicionais do sertão do Ceará estão lutando há quase 20 anos contra projeto de morte em seus lares

Manifestantes protestam em frente à mesa diretora da audiência pública que discutiu a exploração de jazida em Santa Quitéria (CE) l Foto: Antônio Rodrigues
“Salve o Ceará do Dragão Nuclear”, dizia uma faixa pairando sob a cabeça da mesa da audiência pública. Os movimentos sociais se fizeram presentes com indignação, faixas e gritos até a alta madrugada nas audiências realizadas nos dias 7, 8 e 9 de junho em Santa Quitéria, Itatira e Canindé, promovidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Nelas, o Consórcio Santa Quitéria, formado pelas Indústrias Nucleares do Brasil e Galvani Fertilizantes, apresentou a proposta de mineração de urânio e fosfato para as populações das regiões afetadas.
As intensas manifestações refletem a preocupação sobre o que pode vir a ser uma das maiores tragédias socioambientais do Ceará. A mina de Itataia está prevista para ser a maior mina de urânio e fosfato do Brasil. Caso estes materiais sejam explorados, poderão deixar para trás um rastro de contaminação e doenças para as comunidades tradicionais, além de poluir o ar, o solo e a água com radioatividade e poeira tóxica.
Contexto
O Projeto Santa Quitéria prevê a exploração e o enriquecimento do urânio para formar uma pasta chamada de yellowcake, que será transportada pelas rodovias do Ceará até o Porto do Pecém (CE) e, de lá, até a usina nuclear de Angra III no Rio de Janeiro. Já o fosfato será usado para a fabricação de ração animal e de fertilizantes fosfatados, que serão utilizados pelo setor do agronegócio nas regiões Norte e Nordeste do país. Os rejeitos radioativos e os efluentes líquidos contaminados serão depositados em cinco lagoas, aumentando os riscos de vazamento dos rejeitos tóxicos e de contaminação do lençol freático.
Além dos impactos socioambientais provenientes da extração de urânio e fosfato, o Projeto Santa Quitéria vai na contramão do debate de mudanças climáticas. São previstas a queima de 195 mil toneladas de coque de petróleo – resíduo proveniente do processo de refino do petróleo – para suprir a demanda energética da mineração. A queima do coque de petróleo pode elevar as emissões de gases de efeito estufa do Ceará de 2 a 3%, contribuindo com os efeitos catastróficos da crise climática previstos para o Nordeste, como secas mais frequentes, ondas de calor, escassez hídrica e insegurança alimentar.
O Projeto Santa Quitéria também prevê a utilização de 855 mil litros de água por hora, ou seja, serão cerca de 20 milhões de litros destinados todos os dias para um empreendimento que está localizado no sertão do Ceará, cerca de 89 carros-pipa por hora. Para efeitos de comparação, as comunidades tradicionais da região de Santa Quitéria recebem, no melhor dos cenários, 6 carros-pipa por mês.
Ilegalidades
Apesar dos graves e nítidos impactos da mineração de urânio e fosfato sobre as populações e os ecossistemas, o EIA/RIMA do Projeto Santa Quitéria apresenta um diagnóstico social e ambiental falho e insuficiente, que não aborda a dimensão da contaminação por radioatividade proveniente da exploração do urânio, apontam os movimentos sociais e comunidades. Um outro erro grave presente no documento é o apagamento da existência das mais de 160 comunidades tradicionais que existem na área de impacto direto do empreendimento — como se os territórios fossem inabitados e improdutivos.
Uma outra ilegalidade presente é a ausência das consultas prévias, livres, informadas e de boa-fé aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais afetados, impactados ou atingidos. As consultas prévias são asseguradas pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujo Brasil é signatário, e devem ser realizadas bem antes da ocorrência das audiências públicas. No caso de Santa Quitéria, nenhuma foi realizada e, como consequência, no dia 2 de junho, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos emitiu uma recomendação ao Ibama para que o processo de licenciamento ambiental seja suspenso.

Protesto diz que INB mente e pede a suspensão do licenciamento. l Foto: Antônio Rodrigues
Protesto
Nos três dias de audiência pública, o debate sobre a saúde das comunidades tradicionais, a contaminação do ar, do solo e da água, além da precariedade dos empregos gerados por atividades de mineração foram centrais.
Nas apresentações do Consórcio Santa Quitéria, muitas informações foram omitidas e outras colocadas de forma desonesta e mentirosa. Em vários momentos foi dito às populações que não é possível relacionar radiação com câncer, que o lençol freático não seria contaminado e que nenhum tipo de poeira radioativa chegaria às comunidades que moram nos arredores da mina de Itataia. E reforçaram que a mineração traria riqueza e empregos às pessoas da região, apesar de gerar apenas cerca de 500 empregos durante 20 anos de vida útil da jazida.
Durante todo o tempo das audiências públicas, os movimentos socioambientais, representados por Jovens pelo Clima Ceará, Greenpeace Fortaleza, Instituto Verdeluz, MAM – Movimento pela Soberania Popular na Mineração e MST – Movimento Sem Terra, bem como lideranças dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e das comunidades camponesas, manifestaram-se com faixas, cartazes e gritos de “Xô, Nuclear” e “Salve o Ceará do Dragão Nuclear”.
No espaço destinado às manifestações orais e perguntas da sociedade civil, movimentos socioambientais, comunidades tradicionais e professores universitários se inscreveram para desmentir cada informação equivocada, exigir mais transparência sobre os dados apresentados, solicitar responsabilidade do Ibama no processo de licenciamento ambiental e reivindicar um Ceará livre de mineração de urânio e fosfato.
Apesar do direito às manifestações da sociedade civil, em todos os dias foi necessário que o público reivindicasse tempo igual de fala, já que cada pessoa tinha somente 3 minutos para falar, com risco de ter o microfone cortado, enquanto o Consórcio Santa Quitéria teve mais de 4 horas somente apresentando o empreendimento, além do tempo de respostas às manifestações orais. A ordem das falas organizada pelo Ibama, que deveria ser aleatória, apresentava um certo viés em alguns momentos, como na audiência pública em Canindé, cujo primeiro bloco de manifestações foi composto apenas por políticos da região favoráveis à mineração.
A duração das audiências públicas também afetou a participação popular, já que os trabalhadores e os povos tradicionais não tinham condições de ficar até 3 horas da manhã participando dos debates, como foi o caso da audiência pública em Santa Quitéria.
Abaixo, o relato de uma moradora do assentamento Riacho das Pedras, localizado em Santa Quitéria, seguido do comentário do presidente nacional do Ibama, Régis Fontana. As audiências públicas estão disponíveis no YouTube e podem ser assistidas na íntegra por meio do canal Consórcio Santa Quitéria.
Outro ponto abordado em todas as audiências públicas foi a situação do município de Caetité, na Bahia. Atualmente, é a única região do Brasil que tem atividade de mineração de urânio, também conduzida pelas Indústrias Nucleares do Brasil. No lugar de riqueza e geração de emprego, os resultados são mais de 10 crimes ambientais de vazamento de licor de urânio, ácido sulfúrico e óleo combustível; poços artesianos com concentrações de urânio 7 vezes maior que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde; taxas de câncer exponencialmente maiores nas populações da região; e inúmeros processos trabalhistas por acidentes e condições precárias de proteção dos trabalhadores à radiação.
Durante as audiências públicas, um grupo de pesquisadores e professores universitários, que também compõe a Articulação Antinuclear do Ceará juntamente com os movimentos sociais e comunidades tradicionais citados, protocolou ao Ibama um parecer técnico apresentando todas as irregularidades presentes no EIA/RIMA do Projeto Santa Quitéria, além das ilegalidades citadas anteriormente decorrentes do processo de licenciamento ambiental.
Com o fim do período das audiências públicas, a expectativa é a de que o Ibama considere todos os documentos protocolados, escute a voz das populações cearenses e não licencie o Projeto Santa Quitéria. Os movimentos sociais e as comunidades tradicionais vão continuar resistindo e lutando até que o Ceará fique livre de vez do Dragão Nuclear.
Para saber mais: PAINEL ACADÊMICO SOBRE OS RISCOS DA MINERAÇÃO DE URÂNIO E FOSFATO. Análise das omissões e das insuficiências do Estudo e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) referentes ao Projeto Santa Quitéria de mineração e fosfato. 2022. Disponível em: <https://www.renatoroseno.com.br/files/5/8/3/5830124-Parecer-T%C3%A9cnico,-Painel-Acad%C3%AAmico-2022.pdf>.
Brasileiros estudados
Por Luh Ferreira*
A inventividade e resiliência do brasileiro sempre mereceu as vistas que nem a filosofia explica. Mas à beira da ameaça de golpe, Luh Ferreira se pergunta: quem precisa ser estudado?

Bolsonaro mostra um remédio não efetivo contra a Covid-19 para uma ema. Foto: Reprodução
Sempre achei engraçada a frase “o brasileiro precisa ser estudado”, como se ela falasse de situações que nos colocam como um povo de feitos inéditos e que exige, portanto, algum tipo de estudo para entender o porquê de alguns comportamentos e atitudes nossas se dão.
De fato, nosso povo merece estudo e aplausos, merece carinho, pois toda semana quando a gente abre as redes sociais a gente se depara com uma coisa mais graciosa, criativa, e até mais doida que outra!
As pessoas por meio do Tiktok, por exemplo, nos trazem um dia a dia cheio de invenções, que vão desde a ensinar dancinhas da moda à inserir palavras desconhecidas em nosso vocabulário – aqueles que fazem um glossário de expressões locais são os meus preferidos! – mas também gente que mostra jeitos múltiplos de fazer coisas – receitas, arrumações, explicações de fórmulas, desvelamento de segredos cosméticos – antes a gente ia pro Google perguntar como faz? Como é? Agora o Tiktok mostra. E com performance!
Até aqui estou tentando crer que o brasileiro precisa ser estudado pela sua capacidade inventiva, pela sua expressão singular, por uma certa engenharia de ações que não se vê por aí, que a ciência desconhece, a filosofia nem tenta explicar — e o santo ajuda por amar esse povo!
Mas, ando desconfiada de algumas coisas que a gente anda fazendo. Me coloco a repensar esta expressão.
Por exemplo, assisti um vídeo esta manhã em que um senhor aparece num posto de gasolina. Ele está abastecendo o seu carro e diz algo do tipo “a gasolina abaixou graças ao Bolsonaro! Pode encher tudo! Pode colocar!” e aí retira a mangueira de abastecimento das mãos do frentista e começa a jorrar gasolina pra todo lado, lavando a roda, lavando o para-choque do veículo.
Ô gente?
Mas o que é isso?
Eu me perguntava…
E comecei a me lembrar de diversos casos em que brasileiros foram à frente das câmeras exacerbar o seu fanatismo por esse sujeito que organiza orçamentos secretos e todo tipo de conchavos, inclusive decretar a exposição dos valores de ICMS sobre os combustiveis pelos postos de gasolina até o mês de DEZEMBRO, furar pela milésima vez o teto de gastos para aumentar o auxilio às famílias de baixa renda, apenas para reverter seu péssimo desempenho nas pesquisas eleitorais.
É… esse tipo de brasileiro, pra mim, precisa ser estudado!
Outro exemplo e este está me deixando mais encafifada, é uma falta de percepção dos riscos, do perigo, que certamente nós brasileiros temos em nosso DNA.
Se de um lado temos aí uma espécie de cegueira dominando brasileiros que não enxergam o quão nocivo é o governo bozó. Temos de outro lado, brasileiros que não enxergam os movimentos golpistas que assolam o nosso país. Brasileiros que dizem que “as coisas vão se resolver nas urnas”.
Oras, e quem disse que está tudo garantido?
Que vai ter resolução de urna?
Nós imaginávamos que as coisas seriam difíceis, não?
Mas, imaginávamos que a capacidade de destruição seria tão grave e tão profunda em apenas quatro anos de mandato?
Não. Nós não imaginávamos o quão destrutivo ele seria.
Não prevemos por exemplo que aumentaria em 300% o número de registros de arma de fogo, num país com uma política de desarmamento presente. Hoje temos mais armas nas ruas nas mãos de civis do que nas mãos das forças armadas.
Temos visto na TV, nas redes sociais, nas entrevistas, diferentes declarações de insatisfação tanto do bozó quanto dos milicos, com o processo eleitoral do país. Obviamente sem nenhum precedente — algo típico deste governo. Mas não é isso que preocupa e sim a maneira como esse descontentamento se apresenta — com um tipo de ameaça, com um tom de quem pode sim repetir o que já foi feito no passado.
Ah, mas o bozó não tem apoio da mídia, e o golpe de 1964 tinha mídia e a população com eles.
Ok, brasileiros!
Record e SBT estão com o governo desde o início. E vimos aumentar as verbas para a Rede Globo de televisão em 75% neste ano.
Uai? Mas a globo não é lixo?
Sim! A globo é golpista. E se é golpista bozó quer por perto…
E aí tem duas coisas que poderão nos ajudar ainda mais nessas análises.
Veremos se depois disso nosso povo que não liga muito pra esse negócio de “sinais” se mantém na mesma. Aí sim, o brasileiro definitivamente precisa ser estudado!
Atenção ao dia 07 de setembro de 2022.
Quem esteve nas ruas de Brasília ano passado viu a força (e a tragédia estética) e fanatismo do soldados bozónaristas, dispostos a qualquer coisa, foram às ruas como se estivessem indo a uma guerra, para defender os interesses de uma elite e do próprio poder concentrado na imagem do que ocupa a presidência.
Este ano a convocatória a pretexto de comemorar os 200 anos da independência do Brasil vem com uma proposta de defesa de liberdade que nas palavras de bozó em entrevista ao SBT significa defender o voto em sua reeleição e a audição das urnas. “Eles querem aproveitar a data, do 7 de setembro, pra ter uma grande concentração, por exemplo em São Paulo, nas capitais, aqui em Brasília, que vai ser um 7 de setembro e também um apoio a um possível candidato que esteja disputando”. Na mesma entrevista defendeu que existe uma “sala-cofre” onde o processo eleitoral é definido.
Inacreditável a confusão que esse sujeito faz com as coisas.
Esse brasileiro precisa sim, ser estudado!
Então querides leitores.
Por favor parem com esse negócio de “ele não é nem louco de me atropelar! Ele está me vendo!”
Sim, o carro vai te atropelar.
Pare de desconfiar dos sinais, das ameaças.
Nós brasileiras e brasileiros precisamos ser estudados, precisamos de um pouco de respiro, de vida. E isso não virá sem luta!
A guerra já começou e os alertas estão aí. Bora ver?
—
Nota da autora: Escrevi este texto antes dos eventos da última semana, pois estava aqui matutando sobre a ideia de sinais, de alertas, de intuições, ou apenas de leitura de mundo, de cenários. Muitas vezes quando a gente fala sobre isso, as pessoas nos chamam de paranóicos, de teses conspiratórias. Coisa do nosso povo, são falas do nosso povo, que nós todes já escutamos certamente.
Ocorre que diante deste empasse – ver não ver. Sentir ou não. Crer ou não crer. Posicionar-se pra lá ou pra cá… eis que, uma hora a coisa escancara, chega-se a uma situação limite!
Situações limites como a morte e omissão do Governo diante da morte de Bruno e Dom, onde todo o desleixo com as políticas públicas de proteção à Amazônia aparecem na cara, em forma de assassinato.
O lamentável e escandaloso assassinato do petista Marcelo Aloizio de Arruda em sua festa de aniversário por um bolsonarista fanático não deixa dúvidas de que não se trata de polarização, discórdia na política ou bebedeira de final de semana como afirmam autoridades do próprio governo brasileiro, não são mais sinais.
É ódio.
Política de ódio.
É sim estimulo à sociedade de guerra, e não adianta mais uma vez dizer “o que eu tenho a ver” como na situação do descontrole da pandemia, desta vez, sim, você puxou o pino da granada, bozó!
Os tiros que foram disparados contra a caravana de Lula há quatro anos atrás também no Paraná, podem agora começar a esboçar alguma explicação, são sinais companheirada, e precisamos além de lamentar, estudar tudo isso para que sirva de instrumento pedagógico aos ativismos e a toda militância.
marcelovive!
Sim, eu assisto pantanal
Na verdade não só assisto, vivo o Pantanal desde 2017 quando nos somamos à um projeto de defesa dos rios junto aos Comitês Populares da Águas na região do Alto Paraguai.
É uma luta pelas águas, pela existência dos rios como força de vida.
É uma luta por permanência, a mesma que orienta as chuvas, a seca, que localiza os ninhais para os milhares de pássaros se reproduzirem.
É uma luta para afirmar um modo de existência humano e não humano.
Neste final de semana assisti a uma live organizada pelos Comitês Populares que formam a Escola de Militância Pantaneira e o Fórum de Mudanças Climáticas chamada “Direitos da Natureza”.
Professores, pesquisadores, gente com formação em direito apresentaram uma diversidade de declarações, leis, minutas, políticas públicas que colocam o rio, a natureza como um “sujeito de direitos”.
No meio da live comecei a pensar, se a turma dos comitês estava captando a mensagem como eu, e como penso em verso, a coisa saiu assim:
Direito companheirada
não é coisa simples, mas aqui tá dando pra compreender:
É instrumento pra transformar, pra regular a sociedade
pra garantia de um bem-viver!
É jurídico é político
pra gente usar junto com a luta
Tem um montão de textos e declarações
tem letra que não acaba mais nessas minuta…
Mas tudo isso,
todas essas letra do direito à natureza
vale mesmo pra reconhecer
coisas que a gente aqui já sabe, e já põe na mesa!
Que ela, a natureza é soberana
que ela não é objeto e deve ser respeitada
Fica esperto sujeito homem
Capitalismo e agronegócio, tá na hora da virada!
Nós dos comitês populares
reunidos aqui para estudar
para com ações
ao Rio Paraguai nos somar
Nós fazemos isso porque
compreendemos o rio e a natureza
como se fossem um de nós
Um ambiente vivo
e se é vivo tem direito!
Chega de usar
o Rio Paraguai para ganhar, para explorar!
O Rio Paraguai e todos os rios têm direito
estão aqui para reivindicar
Atenção Comitês Populares, convoco todos vocês
a partir deste encontro pensar:
Rio Paraguai é nosso companheiro de luta!
Direitos à vida ele têm.
E assim temos que chamar
Viva o companheiro Rio Paraguai!
Minha intuição primeira é de que o rio nessa perspectiva humanizadora, quando transformado em “sujeito de direitos” precisa ser chamado de companheiro! Pois luta, resiste, insiste em seguir correndo, fazendo curvas diante da imposição, ultrapassando barreiras, quando tentam lhe impor. O rio doa sentido à militância! Dele advêm o alimento e o sustento, nele nos inspiramos, e junto dele, lutamos!
Longe de querer transformar o rio em um humano para ter direitos, logo me vêm a cabeça o modo como as sociedades indígenas e os povos mais ligados à terra, à floresta nos ensina. Que as fronteiras entre natureza e cultura não existem, todos os seres vivos independentemente de sua forma física compõe e participam da vida social estabelecendo alianças, mas também relações de competição ou hostilidade.
Não foram poucas as vezes em que ouvi nas aldeias e comunidades ribeirinhas, rurais conversa sobre um ganso que gostava mais de uns do que de outros, um sapo que expressava sentimentos por certa moça… um boi que se abaixava para receber afago de um amigo…
Li recentemente, em um livro do Phillipe Descola, uma história incrível contada por um missionário do Vietnã, de uma senhora que pilava o arroz no quintal de sua casa quando ouviu os rugidos de um tigre se aproximando. O pobre estava com um pedaço de osso entalado em sua garganta e aos pulos tentava se livrar, indo parar na porta da senhora. Ela assustada, largou o pilão que caiu bem na cabeça do tigre, fazendo com que o mesmo num sobressalto, se livrasse do osso que o estrangulava.
Na noite seguinte a senhora reviu o tigre em sonho, que disse a ela “nós teremos uma amizade de pai para filha” ao que a mulher exitou dizendo que não seria digna de tal relação. O tigre insistiu e disse que “não aceitaria um não como resposta!”, trocaram cortesias.
Alguns dias depois, caminhando pela floresta a mulher deu de cara com o tigre carregando um javali. Na mesma hora em que o tigre bateu os olhos na senhora, largou a presa, rasgou-a em dois, lançou-lhe uma metade e seguiu seu caminho. E assim à senhora nunca mais lhe faltou caça, pois o tigre mantinha vivo seu contrato de parentesco com aquela que salvou sua vida.
Também já ouvi de um senhor que mora muito próximo de uma enorme montanha que nos dias em que ela amanhece coberta de neblina, significa que ela não está muito feliz, e por isso melhor evitar subi-la.
Existem pescadores que conhecem muito bem o humor dos rios e do mar e não se arriscam a medir força quando está brabo!
Sem contar as diferentes maneiras de cumprimentar florestas, igarapés, rios, montanhas, arvores, peixes que encontramos Brasil afora!
Mas tá parecendo conversa de velho do rio?
E é!
A novela remake dos anos 1990 (se não assistiu, assista!) está nos conduzindo à este espaço.
Ao invés de carregarmos a natureza pra dentro do campo dos “sujeitos de direitos” os personagens nos apontam o caminho inverso: à experiência de sermos natureza.
Curvando-se à sagacidade de um boi alongado, conhecer seus desejos, entender seus anseios, pressentir com eles a necessidade de liberdade. De uma onça arrodeando uma tapera afim de protegê-la, avançar sobre os agressores instintivamente para defender sua vida e a vida dos seus. De experimentar virar uma sucuri de olhos justiceiros, capaz de engolir alguém e não deixar rastros.
Constituir alianças com o tempo, com o vento, com as águas que sobem e descem.
“A coisa não é de explicar, é de se entender!” Disse o Zé Leôncio, encantado no Guimarães Rosa em uma certa cena, porque o povo da cidade quer explicação pra tudo!
Tem ali os encantados e tem o crambulhão, que no ouvido do Trindade sopra coisa boa… orienta o rumo.
O paradoxo de desenvolver e envolver.
O velho do rio que vira sucuri, a cobra grande daquelas bandas pantaneiras, é didático em sua abordagem: “Somos filhos de uma mãe gentil e generosa, a quem tentamos há muito tempo escravizar.” “Liberdade é entender que se não tem vento, não tem semente, e se não tem terra ela não finca.”
O velho é um encantado? Ou seria o pedaço de natureza que habita cada um de nós?
Nas palavras do poeta português Fernando Pessoa, vemos com nitidez as montanhas, vales, planícies, florestas, flores, riachos, mato, pedras, mas temos dificuldade em perceber que há um todo a qual tudo isso pertence, afinal conhecemos o mundo por partes, jamais como um todo. Mas a partir do momento que nos habituamos a enxergar a natureza como um todo, ela se torna por assim dizer um grande relógio, como qual podemos compreender sua engrenagem, montar, desmontar, acompanhar, aprender e nos somarmos à sua luta por existência.
E sendo assim…
A Juma Marruá que habita em mim, saúda a Juma Marruá que habita em ti!
Quem nunca sente réiva, só quer ir pra casa, é de poucas palavras e poucos amigos?
Juma é simbolo da autodefesa.
Sente cheiro de gente boa e ruim. Não confia nos homens.
Aponta a espingarda para a devastação.
Dica
O livro: Outras naturezas, outras culturas. Phillipe Descola, 2016. Editora 34