Por Marília Parente

Burocracias envolvendo o procedimento costumam desestimular ativistas a constituir personalidade jurídica para representar interesses comunitários 

A Defensoria Pública pode ajudar na fundação de uma associação l Foto: Associação Três Carneiros/cortesia

No Brasil, o surgimento do associativismo comunitário costuma ser atrelado ao final dos anos 1920, embora sua nacionalização por meio de uma entidade central só tenha se dado em janeiro de 1982, quando mais de 5 mil delegados de diversas regiões se reuniram no 1º Congresso Nacional da Associação de Moradores (Conam), no Ginásio do Pacaembu, em São Paulo. Fundamentais para garantia de direitos e o exercício da cidadania dos mais pobres, as associações comunitárias são o principal canal entre as demandas populares e o poder público. Apesar disso, muita gente ainda desiste de criar uma organização desta natureza em razão de seu processo de constituição jurídica, tido como caro e moroso. 

“Sem o CNPJ, você é um movimento social, que vai ser respeitado e terá um trabalho efetivo, porém com uma associação você passa a, por exemplo, poder concorrer a editais de financiamento com maior aporte financeiro. A formalização é importante e menos burocrática do que se imagina”, garante Anna Paula Salles, diretora e fundadora da Associação de Mulheres de Itaguaí – Guerreiras e Articuladoras Sociais (Amigas), na Baixada Fluminense.

De acordo com Anna Paula, a organização surgiu depois que ela venceu cinco anos de violências física, moral e psicológica praticadas por seu ex-marido. “Ele me ameaçava. E  eu morava num território instável onde a polícia não chegava por causa do tráfico, então me virava sozinha com meus filhos. Em junho de 2015, ele foi preso e em setembro do mesmo ano, a gente começou a associação para amparar outras mulheres vítimas de violência. O que eu passei sozinha, não admito que nenhuma de nós passe”, conta. 

Apesar da rápida articulação na formalização da organização, Anna Paula reconhece que o procedimento pode se prolongar em razão da escassez de informações que ainda envolve o associativismo. Por esta razão, a ativista passou a oferecer orientações e consultoria para outras lideranças comunitárias interessadas em constituir personalidade jurídica.

 “Muita gente desiste de fundar uma associação por achar que vai gastar rios de dinheiro com uma assessoria jurídica, o que não é necessário. O primeiro passo é procurar a Defensoria Pública mais próxima da sede de sua futura associação. A instituição oferece, através de seu núcleo de Direitos Humanos, toda a assessoria para os grupos comunitários, bem como para ONG’s e cooperativas. A Defensoria Pública pode orientar a abertura do CNPJ, bem como ajudar na elaboração do estatuto”, aconselha Anna Paula.   

Um bom time é essencial

O Código Civil, que rege as organizações da sociedade civil formalizadas, não delimita quantidade mínima de pessoas necessária para a constituição de uma associação. A legislação, contudo, define-lhes como instituições necessariamente coletivas, organizadas “para fins não econômicos”.

“Somos seis mulheres na direção, mas temos 200 associadas em Itaguaí e uma rede de atendimento que chega a mais de 2 mil pessoas. Hoje, sei que, se a gente receber um chamado de uma mulher em situação de risco, alguém da nossa direção vai parar o que estiver fazendo para atender. Uma equipe de uma associação precisa passar confiança e se concentrar em torno de um objetivo comum, que é o trabalho voluntário”, pontua. 

O Ministério Público é o órgão responsável pelo controle social das associações comunitárias, atuando para garantir o cumprimento da lei e do estatuto social, podendo solicitar a dissolução em caso de inatividade ou mesmo desvio de finalidade. Segundo a representação da instituição em Minas Gerais, ela “atua, portanto, para assegurar o direito de livre associativismo para fins lícitos, sem interferir na gestão ordinária, e sempre de forma subsidiária, quando os órgãos de controle interno (p. ex., Assembleia Geral e Conselho Fiscal) não apresentarem solução adequada para as irregularidades apuradas”. 

Para Levi de Oliveira, presidente da Associação de Moradores de Três Carneiros, no Recife, uma das grandes barreiras encontradas pelo movimento comunitário é justamente a cooptação política de lideranças. “Entre nossas maiores dificuldades está o aparelhamento político de espaços que eram para atender aos interesses da nossa comunidade. Embora muitos transformem as associações currais eleitorais, essa não é nossa índole. Assumimos a associação para fazer a diferença”, afirma. 

Nascido e criado em Três Carneiros, Levi passou a ser bem quisto pela comunidade em razão de seu envolvimento com os jovens. Produtor cultural e arte educador, ele também atua como B-boy, conforme são conhecidos os praticantes de breakdance, dança que acompanha o hip-hop. “Nossa associação foi fundada em 1980, mas passou um tempo fechada. Nossa gestão existe desde 2015, quando a comunidade pediu que a gente ficasse à frente do processo. A gente presta todo tipo de serviço, como abertura de contas, emissão de declaração de residência e apoio junto aos CRAS [Centros de Referência da Assistência Social]”, explica. 

A atuação do grupo, composto por uma diretoria de sete pessoas e um total de 12 voluntários, inclui ainda a distribuição de alimentos e material de higiene, bem como a promoção de cursos profissionalizantes, aulas de inglês, caratê, capoeira e hip-hop. Embora as atividades funcionem a todo vapor, Levi comenta que o grupo luta para tirar o CNPJ da situação de inatividade, que, segundo ele, se deu em razão de descuidos financeiros de gestões anteriores.

 “A gente tem uma dificuldade muito grande para saber quais são nossas pendências e não temos um setor financeiro fixo. Estamos buscando que nosso CNPJ não seja excluído, para que a gente garanta parcerias, participações em editais públicos, dentre outras coisas”, comenta. 

De acordo com o MPMG, é obrigatório que as associações comunitárias prestem contas tanto do objeto da relação jurídica quanto dos recursos oferecidos pelo Poder Público. “Para evitar prejuízos possivelmente irreparáveis, procede-se ao acompanhamento periódico do cronograma preestabelecido, exigindo-se, ainda, prestação de contas, na forma contábil”, diz a instituição. 

O descumprimento da prestação de contas pode acarretar na suspensão do CNPJ da instituição. Quando uma entidade de tal natureza permanece inativa por muito tempo, “a retomada de suas atividades possivelmente dependerá da regularização de seus atos registrais perante o Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, diante da vacância dos órgãos de direção”, explica o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

Levi Carneiro, presidente da Associação de Moradores de Três Carneiros, alerta contra o aparelhamento político das associações. Foto: Associação de Moradores de Três Carneiros/Cortesia

Sustentabilidade financeira 

De acordo com Rafael Urbano, representante da associação comunitária de Dois Unidos, no Recife, a principal dificuldade enfrentada pelo movimento comunitário é a sustentabilidade financeira. “Somos um bairro multicultural, com gente de maracatu, de afoxés, blocos carnavalescos e forró, mas com grandes desigualdades sociais. Nosso bairro fica em uma região bem carente, em que as pessoas não tem muitas condições de contribuir financeiramente com a associação”, ressalta. 

Urbano conta que a organização coletiva, fundada em 1985, foi responsável por diversas melhorias na qualidade de vida da comunidade, a exemplo da conquista da iluminação pública, uma luta histórica dos moradores. Agora, a associação concentra parte de seus esforços na reivindicação de melhorias de infraestrutura, que garantam, dentre outras coisas, segurança para a população, que vive em uma área caracterizada pela presença de morros. 

“Estamos em defesa de melhorias para o bairro e para as pessoas, como barreiras, encostas e transporte público, mas encontramos uma grande dificuldade em reformar e reestruturar nossa própria sede. É antiga e ainda está no tempo do barro e da taipa”, lamenta. 

Além do poder público, diversas instituições e fundações oferecem editais de incentivo para projetos desenvolvidos pela sociedade. É possível localizar tais oportunidades em plataformas digitais gratuitas, a exemplo do site Prosas, que funciona como uma central de editais de investimento social. “Ali, você encontra uma série de oportunidades para captação de recursos focada em projetos sociais, o que inclui as associações, mas não apenas elas. Dentro do prosas, é possível filtrar as oportunidades por local de atuação, área de interesse, público-alvo e fontes de financiamento. Então, por exemplo, se sua organização é voltada para cultura, você já pode fazer um filtro para entender quais as oportunidades abertas para projetos culturais”, explica a gerente de desenvolvimento territorial da plataforma, Adriana Mitre. 

De acordo com Mitre, é indispensável que os interessados analisem os editais atentamente. “Ler quais são as diretrizes, para quem é aquele edital. Então, embora a gente tenha oportunidades diversas, de perfis diferenciados, a gente tem editais que são focados em um tipo de perfil. Principalmente na parte de elegibilidade, para entender quem é elegível e quais são os objetivos daquele edital: quem ele quer aprovar? O que ele quer financiar? Eu Você tendo esse cuidado, o seu tempo é melhor direcionado para as oportunidades que fazem sentido”, aconselha. 

Saiba como abrir uma associação de moradores:

 

Passo 1: Abrindo a associação

O Código Civil não estipula uma quantidade mínima de pessoas necessárias para abertura de uma associação, mas preconiza que elas são instituições necessariamente coletivas. Assim, é importante ter uma boa equipe, com o interesse alinhado em torno do trabalho voluntário. 

Vale lembrar que o procedimento de abertura de um associação é considerado relativamente simples pelos juristas e funciona da mesma maneira para associações temáticas, como aquelas centradas na pauta feminista, quanto para aquelas que representam bairros. 

Passo 2: Consultas prévias

Verifique se os futuros associados possuem impedimentos legais para participar do Conselho de Administração ou Conselho Fiscal da Associação na Receita Federal. Um exemplo de impedimento é o cometimento de irregularidades ou crimes administrativos, que pode dificultar a participação da futura associação em editais públicos ou privados os quais levem em conta o histórico dos associados em seu processo de escolha das instituições beneficiadas. 

Além disso, é importante lembrar que uma associação, obrigatoriamente, precisa estar vinculada a uma sede física. Assim, antes de comprar ou alugar um espaço, pesquise se ele possui alguma pendência junto à prefeitura de sua cidade. Também é importante consultar, junto ao cartório de Registro Civil de Pessoa Jurídica, se há alguma instituição com o mesmo nome que sua associação terá.

Passo 3: Registro em cartório

Apresentar em cartório a seguinte documentação:

Estatuto (original e cópias; confira modelo aqui), assinado e datado pelo representante legal da entidade e visados por advogado, contendo nome e número da inscrição na respectiva seccional da OAB. O estatuto é obrigatório para criação de uma associação e seu conteúdo é regulamentado pelo Código Civil, segundo o qual o documento precisa conter informações como a denominação da associação, os objetivos e o local de sua sede, os requisitos para admissão e exclusão de associados, bem como seus direitos e deveres;

-Livro contendo ata (confira modelo aqui), ou atas separadamente, de fundação, aprovação do estatuto, eleição e posse da primeira diretoria e respectivas vias digitadas (original e cópias). No final do documento, é preciso que o presidente ou secretário responsável pela entidade faça e assine uma declaração, que precisa estar datada, informando que as vias conferem com o original lavrado em livro próprio.

-Declaração de desimpedimento dos sócios diretores, caso não conste no Estatuto Social. O documento precisa ser assinado e pode possuir o seguinte texto: “Eu, (nome), declaro sob as penas da Lei, que não estou impedido de exercer a administração da da (denominação da associação), por Lei especial ou em virtude de condenação criminal”; 

-Cópia autenticada do CPF e dos Documentos de Identidade dos sócios.

Passo 4: Registro na Receita Federal

Após registro da associação em cartório, é preciso registrar o CNPJ. Para isto, é necessário, primeiro, gerar um Documento Básico de Entrada no CNPJ (DBE), por meio do site da Receita Federal (https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/redesim/abra-sua-pessoa-juridica/passo-2-informacoes-para-registro-e-inscricoes-tributarias). Duas vias dele precisam ser assinadas pela pessoa física responsável, seu representante legal anteriormente indicado ou procurador constituído por instrumento público (registrado em cartório) ou particular (firma reconhecida).

Uma das vias deverá ter firma reconhecida, mas ambas devem ser entregues à Receita Federal (do município sede da associação), junto com a DBE e o ato registrado em cartório. Com a documentação toda correta, é possível retirar o CNPJ via internet. 

Oficialmente regularizada a associação, fica mais fácil abrir contas institucionais, participar de editais e prestar serviços. As prerrogativas da prestação de contas de uma associação são definidas por seu estatuto e precisam ser obedecidas pelas administrações eleitas. 

É preciso que tais entidades, periodicamente, apresentem seu balanço patrimonial. Como não possuem fins lucrativos, caso as associações apresentem superávit, é preciso indicar de que forma o recurso extra foi direcionado para cumprir as finalidades estabelecidas em seu ato de fundação. 

plugins premium WordPress