Por Bárbara Poerner

O desenvolvimento das crianças é impactado de forma transversal pelos eventos climáticos extremos e especialistas apontam falta de politicas públicas e fundos que lidem com a questão

Para Viviana Santiago, deslocamentos forçados violam a territorialidade das crianças l Foto: UNICEF/BRZ/Raoni Libório/Reprodução do relatório

“Mudou muito, né? Porque antigamente eu podia sair, me divertia, não precisava me preocupar com fazer marmita para ele levar para o trabalho, fazer almoço, lavar roupa, cuidar de filho. E eu também tinha mais tempo para meus estudos. E agora com marido e com filho já é mais difícil, é bem diferente, eu não tenho tempo para sair”.

Esse é o relato de uma adolescente, de 16 anos, casada. O trecho faz parte do relatório Tirando o Véu, da Plan International Brasil, que discorre sobre o casamento infantil no país, uma das violências que as meninas já sofrem, mas que é — e pode ser ainda mais — agravada pela crise climática.

 “Quando a gente fala de mudança climática, levamos mais pessoas para a extrema pobreza, na qual a maioria das populações [afetadas] vive em condições de vulnerabilidade. Então estamos colocando mais motivos para para o casamento infantil acontecer”, explica Cynthia Bento, diretora executiva da Plan International no Brasil. 

No caso do casamento entre homens e meninas, o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números absolutos de casadas até a idade de 15 anos. Como a união de menores de 18 anos é ilegal no país e só pode ocorrer mediante autorização judicial ou dos responsáveis legais, o monitoramento exato de casos é desafiador. 

Casamento infantil se refere às uniões, formais ou informais, nas quais pelo menos um dos cônjuges tem menos de 18 anos, conforme determina a Convenção dos Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário.

Os motivos para a violação vão desde a desigualdade econômica até a violência de gênero. “A cada hora, quatro meninas são abusadas. O casamento torna-se uma fuga de tentar sair desse abuso. Acaba que violamos o direito dessa menina de ser menina”, continua Chyntia. 

O desenvolvimento das crianças é impactado de forma transversal pelos eventos climáticos, mas o gestor ambiental JP Amaral avalia que o controle sexual e reprodutivo, no qual as meninas já nascem inseridas, garante outra posição de vulnerabilidade. “Falta de acesso à água, inundações, secas… tudo isso ocasiona um aumento grande da miséria dentro desses contextos. E é quando surge o casamento infantil piorado. Diante da situação de instabilidade socioeconômica, [famílias podem] ver vantagem em casar uma filha para ter menos uma boca a menos”, continua ele, que é coordenador do programa Criança e Natureza do Instituto Alana.

O último Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) aponta que as crianças que vivem na América do Sul irão enfrentar, cada vez mais, a escassez ou acesso restrito à água. O relatório destaca que os jovens e adolescentes de hoje serão ainda mais impactados pelos efeitos da crise climática no futuro, que podem ser desde o aumento de doenças respiratórias, desnutrição, deslocamentos forçados, fome, questões de saúde mental e rompimento de vínculos familiares. 

Segundo Amaral, isso já acontece regularmente no Brasil, mesmo que seja uma realidade pouco visibilizada. “Aqui, a gente tem tido secas e inundações, o que faz com que as famílias percam tudo, então é um momento que o casamento passa a ser uma alternativa”, completa.

Atualmente, mais de 8,6 milhões de meninas e meninos brasileiros sofrem com o risco de falta de água e mais de 7,3 milhões estão expostos aos riscos decorrentes de enchentes de rios, conforme um relatório da UNICEF, lançado em novembro de 2022.

“Órfãs do desastre”

Quatro em cada cinco pessoas deslocadas por eventos climáticos são mulheres, fazendo com que elas sejam retiradas, à força, de suas casas e territórios. JP chama isso de “órfãs do desastre”.

Um exemplo da situação está em andamento na Amazônia Legal. Na tentativa de escapar das contaminações e violências causadas pelo avanço do garimpo e grilagem na região, muitas mulheres e crianças se tornam refugiadas ambientais em seu próprio país. Esse deslocamento forçado, somado aos desastres ambientais, dificultam o acesso desses grupos à direitos básicos, como saúde e educação, e tornam ainda mais difícil retomar às suas comunidades depois do refúgio.  

Com os sistemas de exploração na Amazônia Legal, como o garimpo e grilagem, o refúgio climático torna-se uma alternativa, explica o coordenador. Isso faz com que no deslocamento, ou em recuperação após algum desastre ambiental, as mulheres e meninas enfrentem mais dificuldades para voltar a acessar direitos básicos, como educação e saúde. 

Viviana Santiago, especialista em diversidade, gênero e direito das meninas, destaca que esses deslocamentos forçados violam a territorialidade das crianças. “Pensar nos territórios tradicionais e quilombolas traz outro elemento para além da subsistência. São povos que têm uma existência diretamente ligada à Natureza, sua cosmovisão implica essa relação”, explica ela, que também participou como pesquisadora do documentário sobre casamento infantil da Plan International Brasil.

Em terras indígenas, por exemplo, rituais correm o risco de serem inviabilizados por conta da não-demarcação de terras e do avanço do desmatamento. “A passagem de sabedorias ancestrais, para as crianças, acaba se rompendo. Até mesmo quando pode se ter um deslocamento para um ambiente urbano”, complementa JP, destacando a a nuance imaterial dos eventos climáticos  e das políticas anti-ambientais para as crianças.

Para a diretora executiva do Engajamundo, Ana Rosa, tudo isso faz parte do sistema patriarcal, que rege quais ambientes podem ser vivenciados ou não, avalia a mestra em geografia.

“Quando falamos sobre meninas e mulheres, isso fica latente. Quais são os ambientes e os direitos que elas possuem em um espaço que não pensa um lugar para sua existência, individualidade e futuro?”, questiona ela.

“Falar sobre território é falar sobre saberes, resistências, práticas e cosmologias que existem nesse espaço. Quando esse espaço lhes é retirado, com isso tudo se vai um conhecimento ancestral e um diálogo geracional com sua existência”, aponta Ana Rosa. “É um processo de extrema violência com o presente e futuro dessas crianças, pois é coibir que exista um debate e conhecimento sobre suas origens”. 

Panorama global 

A UNICEF relata que, em 2021, um bilhão de crianças e adolescentes foram expostos a pelo menos um risco climático, sejam secas, inundações, poluição do ar e ondas de calor. No mundo inteiro, isso gera fome, desnutrição, doenças respiratórias, perda de patrimônios socioculturais, rompimento de vínculos familiares e até mesmo mortes. 

A Índia é a região com maior número de casamentos infantis todos os anos. Só em 2017, foram estimados 4,1 milhões de casos. Embora no território a prática se relacione com o fundamentalismo religioso, o país sofre com a crise climática: neste ano, Nova Delhi chegou a registrar 49 graus em uma onda de calor intensificada pelos eventos do clima. 

Mesmo diante da magnitude do impacto direto nas crianças, o grupo continua excluído de agendas globais que buscam remediar o problema. “O Acordo de Paris não deixa explícito o olhar para crianças e adolescentes”, pontua Chyntia Bento, da Plan International. No documento, atualizado na última COP-26, não existe uma especificidade para as meninas e meninos. Segundo ela, no próprio cronograma da Conferência, o tema é insuficientemente debatido, mesmo na atual edição. 

Contudo, isso não impede a mobilização de meninas e meninos para discutir e propor soluções para o tema internacionalmente. Um nome conhecido é Greta Thumberg, que tinha apenas 15 anos quando começou a protestar em frente ao parlamento sueco. Mas décadas antes, em 1992, foi Severn Cullis-Suzuki que fez história ao discursar na ECO-92, sediada no Rio de Janeiro. 

Pensando caminhos

Ana reforça que a infância é plural. “A gente não pode [lê-la] na Europa e fazer a mesma leitura no Sul global. São contextos e realidades diferentes que geram esses impactos”, destaca a diretora. Ela acredita que medidas de mitigação e adaptação vem a partir da educação socioambiental, com a ênfase em criar conhecimentos que permitam a autonomia da criança. 

Colocar as meninas no centro do debate, para que elas ajudem na solução, é o que Cynthia vê como necessário. Embora a diretora sinalize que “nossos ambientes sociais e políticos são muito machistas, e excluem e discriminam as meninas e mulheres por conta masculinidade hegemônica”, é preciso que elas participem da luta pela justiça climática. E isso, para ela, significa trabalhar com fatos, estudos e relatórios que viabilizem essa garantia de direitos. 

Para que isso aconteça, investimentos devem ser feitos, acrescenta JP. “Países e regiões que já estão sendo modificados pelas mudanças climáticas, hoje, precisam de fundos específicos para isso”. Para ele, é preciso olhar para a crise climática por meio da lente social e econômica. “Temos que combater a crise socioeconômica para combater o impacto na [vida das] meninas”. 

Conforme o coordenador, meninos e meninas têm o direito fundamental à Natureza e a viver em um ambiente saudável. “O acesso [ao meio ambiente] em si traz uma série de benefícios como não só em relação à saúde, mas também a sociabilidade, pensando nas crianças urbanas. É uma ferramenta de educação climática. O vínculo da criança com a natureza gera o encantamento do ambiente natural e próspera para ser um agente de transformação no futuro”, conclui.

Durante a 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, o Instituto Alana lançou a algumas campanhas inéditas: a #KidsFirst, parceria com a Our Kids’ Climate, o Children Action Plan (CAP) e ainda o Children First Climate Movement, junto de outras entidades. O cerne de todas as movimentações é garantir e incluir os direitos das crianças no centro das negociações sobre o clima e soluções para a crise climática.

Para Viviana Santiago, é urgente  a criação de  políticas públicas específicas para a infância. “Precisamos entender que todas as políticas têm um rebatimento na infância, porque rebate na capacidade da pessoa adulta garantir o acesso a esses direitos”, finaliza. 

Bárbara Poerner é jornalista e repórter de direitos humanos, justiça climática e gênero.

 

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