Por Dora, a ativista, e Cisbi

Liberta Elas é uma coletiva com diversidade de perfis e formações que atua dentro dos presídios femininos da Região Metropolitana do Recife, Pernambuco, levando atenção, cuidado e troca para as mulheres em situação de cárcere. Um processo ativista de solidariedade e cumplicidade na temática do abolicionismo penal e o direito à dignidade humana das mulheres, esse é o Liberta Elas em síntese.

Formado no segundo semestre de 2018, inicialmente atuavam através de oficinas de afeto, que contavam com a distribuição de kits de higiene. A partir de 2019, com maior aporte financeiro, articularam um número maior de ações, como oficinas de grafite (com Pixegirls), de trança, de turbantes (com Negra Dany), rodas de escuta sobre família e maternidade, oficinas jurídicas em parceria com a Defensoria Pública da União (DPU) e o Grupo Robeyoncé da Faculdade de Direito do Recife.

Na Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima realizaram oficinas de autocuidado (com Resenhas de Maria), um clube de leitura e de convite ao exercício da expressão. Para isso selecionaram textos que dialogassem com a realidade das mulheres e trabalham com elas a interpretação dos textos. A leitura é uma atividade importante para a ressocialização e está reconhecida pela Lei de Remição de Pena, à qual se vincula a Recomendação de nº 44 do Conselho Nacional de Justiça.

Acompanhe nosso papo com Juliana Trevas, uma das integrantes do Liberta Elas.

Dora: Queria que tu falasse do Liberta Elas, queria que você apresentasse o coletivo pra todo mundo.

Juliana: Pronto, tudo surgiu em uma reunião de amigas que tinham acabado de voltar do Fórum Social Mundial em Salvador, [naquela época] tinham executado a Mariele [Franco] também. Essas mulheres que se conheciam tinham uma luta, uma militância contra o cárcere de alguma maneira: eu pesquisando, outra já tinha feito uma intervenção dentro do cárcere, e a gente se juntou e pensamos em uma ação. Queríamos uma ação direta. A gente pensou em uma ação e nela conseguimos fazer 4 dias de oficinas dentro do Bom Pastor [unidade prisional na cidade de Recife]. O último dia seria uma grande arrecadação que a gente entregaria para essas mulheres que estavam no cárcere. A gente descobriu que muitas não recebiam visitas, então lançamos uma campanha online pelo Facebook e aconteceram coisas incríveis. Quando a gente fez essa semana, saímos e pensamos “e agora? O que a gente vai fazer?” Porque a gente tinha vivido algo muito forte, levou até um tempo para falar. As coisas que eu me lembro: o grande espanto das mulheres, perguntando se a gente era um grupo religioso, também era a admiração delas de olhar para as mulheres negras, com todo o estilo e a beleza da negritude exterior e o próprio conteúdo das oficinas. Cintia, uma maravilhosa, veio dar oficina, é doutora no autocuidado da mulher negra, teve essa oficina. Teve roda de escuta com as mães, teve cinema, biodança… Essas mulheres participaram e no final convidamos 15 amigas nossas. Além da gente, chamamos mais 15 para fazer essa doação. Levamos um tempo para processar, o que eu chamo de uma boa repercussão, no sentido de que a gente viu o impacto delas ao perceber a gente lá. A gente começou a pensar em formar um coletivo. Hoje o coletivo é formado por sete mulheres: eu, Nathielly, Clarissa, Fernanda, Amanda, Thaisi Bauer e Anicely. A gente continuou e conseguiu uma grana de um edital do SOS Corpo (Instituto Feminista para a Democracia). Esse [grupo] é um farol do feminismo aqui. Elas fizeram um edital de 4 mil reais e reverteu tudo para fazer as ações no ano de 2019, aí a gente podia remunerar as oficineiras e a gente também se ligou de chamar pessoas que eram parceiras – “parceria” é a palavra que sempre foi presente na nossa atuação. Quando acabou, a gente continuou, mas as oficineiras tinham que seguir porque como que a gente ia chamar? E mesmo assim teve gente que ainda embarcou, fez de graça – não que o dinheiro que a gente desse fosse muito – era um agradecimento. Daí chegou no formato do que é o Liberta hoje. A gente começou a ter três oficinas fixas e vimos que era o que podiamos fazer, que é a roda de escuta das mães (que aconteceu no Bom Pastor), o Clube do Livro (que aconteceu na Colônia Penal Feminina Abreu Lima) e a oficina de Introdução ao Direito Penal (também no Bom Pastor). O Liberta Elas hoje tá indo no cárcere, aí veio a pandemia. a gente teve que fazer essa transformação, que foi fazer essa campanha de kits de higiene. Expandimos para 15 empresas porque a gente ficou desesperada porque sabia que acabou o contato né? As famílias não iam. A família é que suporta, emocionalmente, materialmente e o negócio ia ficar pior. Estamos na nossa 5ª entrega agora. Vão ser 250 kits. Já entregamos no Presídio Bom Pastor e também na CPFAL (Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima). E a gente quer chegar até [a cidade do interior] Buíque.

Cisbi: Como é que está a atuação atualmente com o COVID, como vocês tentam manter contato? É só a entrega dos kits ou tem troca de cartas, minimamente algum contato de longe, à distância? Como está sendo a recepção desses lugares frente à atuação de vocês?

Juliana: Pois é, no percurso de 2019, algumas pessoas do Liberta Elas começaram a fazer articulação política. A gente se juntou com as Juntas [codeputadas estaduais em Pernambuco, do PSOL] e formou um GT [Grupo de Trabalho], que a gente chama de “Grupo de trabalho Desencarcera Pernambuco” e chamou todo mundo que a gente já conhecia, tanto da militância quanto das instituições pra ter “músculo”, para atuar. Teve aqui em Pernambuco o Projeto de Lei (PL) da tornozeleira eletrônica e o GT se posicionou. A gente mobilizou e teve uma audiência pública chamada pelos criadores do Projeto de Lei e participamos, mobilizou pra cima do presídio, levou pra dentro do cárcere essa questão da PL… O grupo foi crescendo, e com isso quero dizer que a gente foi tendo acesso também por essa união e força do GT, também de atuação. A nossa relação é você andar e pisar numa navalha o tempo todo. Um exemplo: no Dia das Crianças a gente fez a maior arrecadação! Tanto brinquedo que a gente pensava que ia botar em um Ford Ka, só que era tanta coisa que tivemos que pedir emprestado uma Kombi! E na véspera, a diretora do presídio começou a implicar pra gente não ir. Essas coisas de micropoderes são constantes e a nós meio que fomos indo na estratégia. Hoje conseguimos entregar os kits, eu acredito, por conta do nosso trabalho, a repercussão do GT, os movimentos que trabalham aqui em Pernambuco contra a prisão… Então a gente tem esse acesso. Infelizmente, atualmente não temos acesso nenhum lá. Mas o que foi que aconteceu – como a gente ia muito no cárcere – algumas mulheres frequentavam tanto que elas nos procuraram quando saíram e estamos agora ajudando algumas do lado de cá, e também na arrecadação de kits pro lado de lá. Mas não temos contato nenhum, só com as que conseguiram sair por progressão de regime, por conta do Covid.

A nossa relação é você andar e pisar numa navalha o tempo todo. Um exemplo: no Dia das Crianças a gente fez a maior arrecadação! Tanto brinquedo que a gente pensava que ia botar em um Ford Ka, só que era tanta coisa que tivemos que pedir emprestado uma Kombi! E na véspera, a diretora do presídio começou a implicar pra gente não ir. Essas coisas de micropoderes são constantes e a nós meio que fomos indo na estratégia.

Juliana Trevas, coletiva Liberta Elas

O Projeto de Lei (PL) “da tornozeleira eletrônica” é o PL 439/2019 que estabelece o pagamento mensal de R$250,00 pelo uso da tornozeleira eletrônica para presos e presas respondendo em liberdade ou em progressão de regime. Uma mobilização coletiva da sociedade civil vem fazendo pressão e o governador de Pernambuco, Paulo Câmara, vetou. Mas ele voltou para a Assembleia Legislativa do estado. A mobilização contra a PL pode ser acompanhada aqui: https://www.liberdadenaotempreco.meurecife.org.br/

Cisbi: Que incrível saber que tem uma pressão aí, que esse abismo do poder não tá tão grande entre a atuação de vocês e essa instituição. Fui pesquisar um pouquinho de vocês e parece que afeto é uma coisa que vocês priorizam bastante e até pela forma como você fala dá pra sentir isso. Eu queria saber como que você percebe essa potência do afeto no trabalho de vocês enquanto coletivo, junto com as mulheres.

Juliana: Por sempre acabar pegando um lugar sem cerimônia, de coletivos e tudo, a gente queria ir também pelo outro lado, porque a gente acredita que afeto também é política. O direito ao afeto também. Então foi isso: afeto é uma coisa que a gente viu que tinha que ser por essa via, porque já basta a dureza. O que eu achava muito legal é que a gente acabava com uma dinâmica do beijo. A gente acabava, dava um beijo e era engraçado perceber que você dava um beijinho, faz um círculo e vai circulando o beijo pela sua esquerda, depois pela sua direita e você volta dando beijo. Todo mundo é beijado. Então a gente tinha esse cuidado de não deixar solta tanta emoção que vinha, mesmo na oficina de Direito! Uma mulher tava falando de dentro de casa, de coisas comuns como a violência policial – mas violência policial de fuder, não é violência policial de tapa de carnaval, é violência de você não acreditar. Estupro também. A saudade da família (…) Era muita coisa que aflorava nelas e em nós também. A gente levava o lanche também, que pode parecer besteira, mas uma Coca-cola gelada tinha sempre a preocupação de levar, era um momento. “Pô, quem é que não gosta de uma coquinha?”. Toda oficina tinha o lanche e quem ajudava era o Ivan Morais (vereador da cidade do Recife/PSOL), tenho que falar aqui, porque é a verdade, desde o começo sempre dava todos os lanches. Na hora em que dizemos: “e aí, uma denúncia vai rolar” e todas diziam “toca, vá em frente”, porque a gente divide: tem a parte da política, do Direito, comunicação, financeiro… Então vinha uma bomba dessa, nunca teve um “vamo não”, era sempre “bora”. Afeto traz muita coragem também pra gente.

Dora: Me lembrei de Margarida Alves, e da frase “nós tem medo, mas nós não usa”. Não é negar o sentimento, mas essa coisa do poder escolher tá muito ligado a umas dinâmicas de privilégio. Quando a gente se liga e conversa com essas mulheres que tem todas essas camadas de opressão em um espaço declaradamente de exceção de direitos, as paredes materializam isso de “você não é gente”. Tem uma coisa que me parece muito forte no trabalho de vocês que é a questão da autoestima, também o resgate, um pouco, do poder falar, aprender sobre seus direitos e o impacto da pessoa voltar a se ver como sujeita na vida, se preparando não só pra quando sair, mas pra ser sujeita enquanto está lá. Queria que comentasses sobre como essas mulheres se veem como sujeitas políticas nesse espaço.

Juliana: O nosso trabalho sempre teve essa preocupação de tratar com respeito e ouvir. É claro que levamos conteúdo, por exemplo, na oficina de Direito ia uma defensora, a gente levava conteúdo mas ao mesmo tempo, as oficinas passaram a ser um espaço seguro. Um espaço de acolhimento onde poderiam dizer alguma coisa que sabiam e nós fomos construindo, isso não foi logo de cara, não: elas foram vendo que ia ficar ali entre nós e que não ia ter julgamento. Justamente porque quem é que tá no cárcere ali? Ou as pessoas que trabalham no cárcere – a violência – ou as religiões. [Igreja] Evangélica tá lá direto, tem sala, tem tudo. A gente ficava como as “diferentonas do rolê” e trazia também muito conteúdo diferente. A gente tinha isso, de tentar essa escuta ativa, de querer o lance “direito”, mas também passar carinho, afeto, escutar elas falarem… Acho que foi no começo que eu mais aprendi, logo na primeira ação: a vontade e o desejo daquelas mulheres de falar, de serem ouvidas, de contar a sua história e também não contar se não quiserem. Nós sempre dizíamos que não era obrigatório falar, que não tem remissão (que ajuda a diminuir a pena), mas elas sempre voltavam nessa troca. Tem esse lado do sujeito de direito e esse outro lado do próprio ser, do ser mulher e a gente levava muitos textos voltados a isso. Nosso Clube do Livro é formado por mulheres negras e me lembro dos dois primeiros contos de Conceição Evaristo. Nunca vou me esquecer, porque foi uma potência muito grande, elas querendo terminar o texto “peraí, não vamos falar, não, vamos terminar logo”. Nós queríamos dividir pra ficar debatendo e elas queriam terminar, sabe? Levamos um texto sobre amor da bell hooks, levamos poesia de Amanda que tinha um mote e elas riram que só, a zine era “buceta ingovernável” … e depois toda a tristeza que saiu desse tema também, da vida sexual, do aborto e tudo… Era um

momento que a gente ouvia muito. Me emociona muito quando a gente passava no Bom Pastor, no pavilhão, e sempre tinha alguém que gritava “Liberta Elas”, e aquilo me dava uma força pra voltar, porque não era fácil. E aquelas opressões, fazendo de tudo pra você não entrar, mas quando a gente entrava tinha alguém que gritava “Liberta Elas”, tinha alguém que dizia “aquele povo, olha” e dava força pra gente fazer aquele papel. [A coletiva] ficava de olhar o processo de todo mundo, era muita coisa e a gente não dava conta, quando chegou lá, a galera tratando na maior gentileza, sem nenhuma cobrança.

Dora: Você trouxe essa questão do público de mulheres negras. Queria que falasse um pouco mais sobre o perfil dessas mulheres. Quem são essas mulheres que tão no cárcere? O que elas pensam sobre isso tudo o que tá acontecendo?

Juliana: Vou começar pelo perfil, que é numérico e importante de saber, da mulher que tá no cárcere e que é muito parecido em todo o Brasil – no caso de Pernambuco, 88% das mulheres são negras, 75% tem menos de 30 anos, a maioria são mães solo, frequentaram a educação formal por pouco tempo, geralmente vinham do trabalho informal e a maioria dos crimes que fazem com que elas sejam presas são tráfico de drogas, furto e roubo. Esse é o perfil que se aplica pro Brasil todo, infelizmente. Como estamos lá dentro, a gente confirma tudo isso. Realmente são mulheres negras mesmo, as pessoas brancas ali são as pessoas da autoridade. Um Estado de seletividade racial, a prisão desde os 1500 foi usada nesse sentido e a população negra sempre foi explorada, morta e presa, sem cerimônia. São mulheres com a preocupação imensa com seus filhos – é nítido que são força pra continuar e preocupação eterna, com muita culpa. Na roda de escuta com as mães, meu Deus do céu, faltava coragem pra mim, eu fui em duas, era você ver as grávidas, as mães vulneráveis emocionalmente na prisão, é de lascar. É essa a mulher que tá lá. As mulheres que sempre foram as mais vulnerabilizadas. As mulheres negras, as mulheres sapatonas, bichas, que também se fodem, tem esse recorte… A gente não pode romantizar e nem ser cruel demais, são mulheres. Poderia ser qualquer uma de nós, se a gente estivesse no local social que elas vivem. Essa parte de território é muito importante saber quais são, como o [bairro] Ibura…  Mas são mulheres inteligentíssimas, sagazes, que sacam muito de Direito Penal, mulheres que tem esperança, que querem uma vida, mulheres que não aceitam o lar, que são sobreviventes, que estão sobrevivendo no cárcere.

Cisbi: Queria que você conversasse um pouco mais sobre essa relação entre o gênero e cárcere, como se estabelece. Como é a penalidade a partir disso?

Juliana: Gênero é isso, é uma forma a mais de botarem pra fuder com a mulherada! Gênero é usado contra a mulher no sistema carcerário, parece que é a última fronteira antes da morte da mulher que tá naquele padrão e tá na cabeça de algumas pessoas, acho que é isso. E também a punição vem com tudo na mulher que foge desse estereótipo de “boa mãe”. Na verdade, o processo é todo construído pra deslegitimar toda a mulher, então não importa o que ela diz, que é “boa mãe”, não importa, já tá perdendo nesse jogo. Têm vários estereótipos, “mulher de bandido”, mulher “sei lá o quê”, mas a gente sabe que é uma questão complexa e a punição é certa, não importa o que ela diz: ela tá fazendo isso e tome pena alta. É um sistema pra produzir e demonstrar pras outras mulheres o que acontece se não se “endireitar”, não andar na linha, não seguir um padrão. Se for mulher negra, bicha, masculinizada, se for uma mãe que tá lutando, não tem muito não [como escapar]! É um padrão: as mulheres negras tão aí, clientela do Direito Penal há muito séculos, não tem como você não ver gênero, raça e sexualidade e outras coisas no cárcere, como mulheres mais velhas. Não é atoa que a Ordem Religiosa Católica das Irmãs do Bom Pastor foi uma grande empresa transnacional na América Latina toda, de vez em quando eu recebo que tem Bom Pastor no Chile, na Bolívia, é uma empresa que vinha expandindo suas filiais em cada país. Então veio a religião, a escravidão também, serviu de muito modelo para o cárcere. Então as prisões são construídas pra homens – não tem creche a maioria, apenas 33% e o berçário é um lugar que separam as mulheres. Quantas e quantas vezes a gente teve que brigar para que as mulheres que estavam no berçário do Bom Pastor irem para a atividade coletiva? Então é uma segregação que visa a separação, cada uma vai adicionando mais nuances nessa operação de opressão.

 

Gênero é usado contra a mulher no sistema carcerário, parece que é a última fronteira antes da morte da mulher que tá naquele padrão e tá na cabeça de algumas pessoas, acho que é isso. (…) É um sistema pra produzir e demonstrar pras outras mulheres o que acontece se não se “endireitar”, não andar na linha, não seguir um padrão. (…) Não é atoa que a Ordem Religiosa Católica das Irmãs do Bom Pastor foi uma grande empresa transnacional na América Latina toda, de vez em quando eu recebo que tem Bom Pastor no Chile, na Bolívia, é uma empresa que vinha expandindo suas filiais em cada país.

Juliana Trevas, coletiva Liberta Elas

Dora: Queria saber o que você percebe dentro do presidio de dinâmicas políticas. O que você percebe de jogos políticos? Tem pessoas filiadas? Essas mulheres, eu sei que sobreviver já é o bastante, mas como é a política na vida dessas mulheres?

Juliana: Pois é, a gente tentava puxar. Teve um Clube do Livro que fizemos sobre o Projeto de Lei, a gente explicou tudinho e foi a revolta: “o quê?!”, quando elas se ligaram que quem pagaria a tornozeleira era a família, foi indignação. A gente até saiu, “então escreva no cartaz pra levarmos pra audiência” e não foi nada nem pensado! Vimos que elas estavam tão [indignadas] que queríamos levar o que elas escrevessem. Então tem informação: falavam de Bolsonaro, religião, tinha aquela Clarissa [Tércio] deputada estadual, porque tinha programa de rádio – eram coisas populares… Aquele espaço era pra trazer coisas do privado e a política a gente falava de uma forma ou de outra.  Lá é uma política diferente, é uma política do medo, uma jogando contra a outra. É muita coisa que o sistema usa pra separar essas mulheres: dividir em pavilhões, dividir em crimes… Questões raciais, também. Política vinha mais nesse esquema tradicional, pontual em algumas coisas, mas o local era pra falar da vida. Embora a gente tentasse o tempo todo fazer conexões, nós tentamos muito estar sempre partindo do particular pro mais geral.

Dora: Nossa conversa vem girando em torno da questão “quem é que tem direito ao afeto”. Quem é que tem direito ao cuidado afinal? A violação de direitos atende a todos/as, desde que você não seja uma pessoa rica e com sobrenome X ou Y, então tem muito estado de negação de direitos. Queria que tu comentasses um pouco a questão desse cuidado como esse elemento de mudança.

Juliana: As nossas ações eram todas cuidadas, já começa daí. Queríamos que as poucas horas que tínhamos fossem boas, então tinha planejamento, um cuidado de pensar e refletir. Tinha o cuidado de pensar, “pô, seria massa uma oficina de pipoca” e pensar os textos, o lanche… Da pessoa que ia sempre se preocupar com o transporte pra chegar em Abreu e Lima. Isso estava entre nós e era o que queríamos passar, destoar desse lugar que é só violência. A gente falava: “tenham cuidado entre vocês, isso é feito pra separar”, quando tinha alguma desavença. Uma falar muito e não deixar a outra falar, a gente sempre puxando pra que elas se ouvissem… o respeito quando cada uma falava também, então acho que o cuidado foi isso. O caso de Sara [Rodrigues] pra gente do Liberta Elas, assim como pra todas as mulheres, foi muito dolorido, porque a gente a conhecia. Ela tava entre as 15 que estavam na primeira ação de 2018, ficamos muito aperreadas e tentando dar suporte às outras que já estavam. É triste, mas o caso dela não é incomum: operações em flagrante. Entraram na casa dela sem mandado, mesmo com todos os argumentos legais pra estar fora – emprego fixo, era réu primária, mãe – e mesmo assim ela ficou um tempo e só saiu pela mobilização que houve, sem dúvidas. Mas muitas ficam. Agora mesmo tem mulheres grávidas – cerca de 11 – no sistema penal, tem bebê dentro do cárcere, é inacreditável que isso continue [no sistema judiciário de Pernambuco]! A total falta de cuidado. É falta de reconhecimento da outra pessoa como ser humano. Então é isso: fazemos as coisas com muito carinho, não em ver a outra pessoa como menor e que precisa de você, mas como uma troca, escuta, um diálogo. A gente debatia, aprendia e vibrava juntas. De tomar uma Coca-cola gelada até a dinâmica do beijo, é isso.

Dora: Trazendo pra um lado mais formal desse processo que é essa grande reação moralista contra esse ativismo pelo desencarceramento. Queria que comentasses porque para algumas pessoas eu acho que ainda é novo [o tema]. É forte o estigma do “ah, você é ativista dos direitos humanos, se fosse com a sua família…” você já deve ter ouvido isso demais “quero ver se você ia defender assim”. Aí queria que comentasses um pouco, como é estar nessa luta por esse tipo de ativismo nesse contexto que a gente tá vivendo hoje no Brasil? 

Juliana: É assustador. Eu sou abolicionista, foi uma construção/desconstrução e é um tema que é elitista né? Você precisa se debruçar, não acho difícil de ser percebido, mas é difícil para todos nós, porque vivemos numa sociedade onde a lógica punitivista está nas nossas relações pessoais. A direita é punitivista, mas a esquerda também é. Os movimentos sociais são, relações de amizade… A gente aprendeu isso né? De cobrar e punir, crime e castigo, desde o colégio, tá tudo entrelaçado nesse sistema capitalista de dominação. É muito difícil falar nisso, porque a violência é isso: te traz alguma segurança saber que alguém tá sendo punido – que não seja você. É uma sensação de falsa paz. Mas é uma coisa que tá posta aí, né? O encarceramento em massa não é uma coisa só do Brasil: é do sistema capitalista. Está mais presente do que a gente imagina, em nós, em ser abolicionista, ser anti proibicionista, é você lidar com as suas próprias correntes internas, suas próprias maneiras de punir ao outro e a si mesma. Ser abolicionista penal é isso: é você sonhar e se propor a pensar uma outra forma de organização social, porque acreditamos que a prisão nasceu nessa tentativa de ressocialização, mas nós vimos que não ressocializa em nada e que piora em tudo – dá muito lucro! Muitíssimo lucro! A própria proibição das drogas, o sistema penal, tudo isso dá lucro pra algumas pessoas e é interessante pra elas que permaneça assim. Temos que encarar o tráfico de drogas como uma indústria capitalista e a proibição faz as pessoas se sujeitarem a um trabalho informal que dá muito lucro pra pessoas que estão nos grandes escalões. Ser abolicionista é se atentar como a prisão é a união de tantas opressões e você realmente desvelar e ver a sociedade como ela é – porque é um monstro. Eu digo que é um grande monstro e ele tem muitos tentáculos no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e também entre nós. Mas está aí crescendo né? Nunca se falou tanto em fundo pra polícia, muita coisa tá acontecendo que tá fazendo todo mundo repensar esse sistema aí que de justo não tem nada.

Dora: Queria que tu comentasses um pouco sobre o que é ser ativista mulher nesse momento e fazer um paralelo, porque somos ativistas, somos três mulheres brancas e estamos falando de um outro ponto de vista e como naquele ambiente do Bom Pastor você se vê, se você vê espelhos lá dentro.

Juliana: Não, não vejo meu corpo lá dentro. Mas também fui muito acolhida por essas mulheres que estão lá. Eu aprendi muito e senti muito carinho. Senti que minha luta, mesmo sendo mulher branca, com privilégios, na universidade, é importante também. Então esse é o segredo: a luta é na coletividade. É difícil? Muito! Nós somos muito complexas, mas é cada uma chegando com a sua arma: no Liberta Elas, cada uma tem a sua grandeza, o seu “superpoder” (não queria dizer isso, mas é isso), sua peça que vai encaixar. É troca, é escuta, é realmente você estar pela outra e entender o seu lugar… O tempo todo essa movimentação e isso é ser ativista: é você estar em movimento. O ativista é isso: a gente erra pra caralho, mas estamos tentando, estamos em movimento e é muito fácil criticar quem não está. Então, com certeza, meu corpo branco classe média com alta escolaridade fala muita merda e fez muita coisa errada, mas é isso. Estamos aqui pra continuar a luta, porque não tem tempo de ficar punindo a nós, não.  Tem que tentar se ouvir, se conectar e seguir, porque é muito difícil isso que estamos vivendo. Então é isso, eu amo ser mulher, eu amo ser ativista, eu sou ativista porque eu acredito na nossa potência, porque tem muita lágrima, muita dor, muito sangue, muito luto, mas também tem muita energia, muita mão, muito beijo trocado, muita mão apertada, muita instigação, vamos pra cima, vamo simbora.

Dora: Queria dizer que depois disso tudo, tem algo que faltou, ou alguma pergunta que você quer lançar pras pessoas?

Juliana: Queria dizer que o Liberta não sou só eu – eu sou a mais falante – a gente é coletiva mesmo, tudo decidido, e é essa potência mesmo que eu acho. Eu sempre acreditei que o caminho é coletivo. Mas nos últimos tempos, vejo isso de forma mais palpável e que nossa saída é se unir, sem precisar ser igual, mas que temos que estar fortes, ouvir e falar também, que é importante, e seguir também se perdoando, a nós mesmas e aos outros também. Ser menos punitivista mesmo. E não estou dizendo isso pra ser gratiluz, mas é isso: por uma sociedade menos punitivista e isso não quer dizer que a gente não seja firme.

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