Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Listamos 10 filmes que unem ativismo e cinema
Por Mari Dertoni – 04/01/2024
A pesquisadora Mari Dertoni selecionou dez filmes sobre ativismo que aprofundam temáticas sociais através de imagens sensíveis e radicais
O Cinema é uma arte que muitas vezes esteve ligada à causas sociais e militâncias, aproximando as preocupações de um determinado local ou sociedade, de seu povo, usando da imagem e do som. É através de filmes que muitas vezes acabamos conscientizados de fatos e nos atentamos para questões que passariam despercebidas. A grande mídia: a televisão, o rádio e a internet, tendem a mostrar a superfície de certos assuntos, mas existe um tipo de Cinema que está preocupado em aprofundar questões sociais com recortes mais específicos e relevantes.
Nessa lista trago uma seleção de filmes que, em sua maioria, passa longe do interesse comercial, debruçando seu foco em contar uma história genuína, destacar um ponto de vista ativista, que nos fará questionar a ordem das coisas, ou refletir sobre situações que estão distanciadas de nossos olhos, seja pelo contexto histórico ou geográfico.
No Brasil temos nomes como Jorge Bodanzky, que percorreu a Amazônia, filmando as dificuldades da região, sendo inclusive censurado na década de 70. No mundo, temos lutas das mais diversas perspectivas representadas; como a dos Panteras Negras nos Estados Unidos, os percalços da militância transsexual e a importância de se discutir as questões de gênero hoje na França, entre outros assuntos. Acompanhe as sugestões de filmes e documentários a seguir:
O Território | 2022 | dir. Alex Pritz (Brasil/Canadá /Dinamarca)
“Não vai ter mais nenhum quilômetro demarcado para comunidade indígena ou quilombolas”. Essa é a frase que aparece bem no começo do documentário, saídas da boca do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e que vão dar o tom da dor de um povo que se sente acuado e cada vez mais desapropriado de sua terra nativa. A narrativa se desenvolve a partir do olhar da luta da ambientalista ativista Neidinha Bandeira e de Bitaté, jovem indígena de 18 anos da tribo Uru-Eu-Wau-Wau, que passamos a acompanhar e que nos mostra mais do cotidiano de seu povo.
“O Território” sempre busca o contraponto político, anti-bolsonarista, expondo o dano violento que as medidas rígidas e as falas agressivas de Bolsonaro, que incentivam a exploração irresponsável das terras, provocaram. Fazendo com que a comunidade indígena seja tratada com violência, vista como invasores de suas próprias terras, através da disseminação de fake news e distorção midiática em prol do agronegócio. O documentário mostra como o registro das imagens se torna importante para a preservação ambiental e discute a disputa pelo controle dos territórios indígenas e as consequências do desmatamento descontrolado em um período onde a política brasileira favorecia tais práticas.
O filme está disponível na DISNEY Plus.
Iracema – Uma Transa Amazônica | 1975 | dir. Jorge Bodanzky, Orlando Senna (Brasil)
O longa, que traz nuances documentais, trata de trabalhar de forma narrativa a trajetória do caminhoneiro Tião e a vida da jovem Iracema, que se prostitui para conseguir ganhar a vida em terras amazonenses. “Iracema – Uma Transa Amazônica” é entrecortado por registros do processo de construção da Rodovia Transamazônica, primeira via oficial de acesso de veículos para comércio na Amazônia, facilitando as negociações do agronegócio e a exploração dos recursos naturais da região, inaugurada em setembro de 1972. A rodovia tem 4.000 km de extensão, tornando-se a terceira maior rodovia do Brasil. Percorre a floresta amazônica e os estados brasileiros da Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e Amazonas, desde as proximidades do Saboeiro até a cidade de Lábrea.
No meio das filmagens também foram registradas situações de queimadas, grilagem de terras, miséria, nichos de prostituição e abertura de estradas clandestinas e ilegais para extração de madeira. Esses registros fizeram com que o filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, produzido para a ZDF da Alemanha, fosse censurado por seis anos no Brasil na década de 70. O longa foi premiado e considerado um marco no cinema documental por ser um dos pioneiros em denunciar a questão da devastação da floresta e do modelo equivocado de ocupação.
Os Panteras Negras | 1968 | dir. Agnès Varda (França)
Agnès Varda é uma realizadora francesa, que sempre gostou de trabalhar com documentários e com um tipo de cinema-denúncia, um cinema de luta e representatividade. “Os Panteras Negras” foi filmado durante o verão de 1968, com apenas 2 anos de existência do Partido dos Panteras Negras em Oakland, Califórnia, durante as reuniões organizadas pelo Partido para libertar o então preso político Huey Newton, um de seus líderes, e transformar seu julgamento em um debate público e político. Varda escolhe conduzir seu filme em meio a um dos períodos mais críticos do Partido, ajudando seus ideais a se popularizarem.
Varda faz questão de sublinhar como o partido está à frente de seu tempo, por colocar as mulheres nas linhas de frente, em papéis que não as separam, nem as diminuem perante aos homens, que são treinadas em pé de igualdade com eles e também colocadas em posições de liderança. Através das falas e declarações dos próprios integrantes do Partido, Varda faz seu “cinema verdade”, mostrando os fatos de um ângulo de dentro pra fora, como quem diz “olha só, é isso que está acontecendo”. Passando pelo processo de julgamento de Huey, usando declarações em púlpito, a diretora aproxima cada vez mais o filme do objeto, fazendo da obra um importante documento de registros e denúncias da violência a que os Panteras Negras foram submetidos e que precisam exercer para reagir. Eles certamente conseguiram chamar a atenção dos Estados Unidos.
O documentário está disponível na MUBI Brasil
Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta | 2020 | dir. Andrei Konchalovsky (Rússia)
O longa se passa em uma realidade soviética preocupante, onde os cidadão estão aflitos com o aumento do preço dos alimentos pelo governo e a iminência de uma situação de fome na Rússia comunista em 1962. Com os alimentos básicos acima do poder aquisitivo dos trabalhadores, logo seriam organizadas greves e protestos. Filmado em um preto e branco que intensifica o peso do filme, pelo diretor Andrei Konchalovsky, que já trabalhou em colaboração com Andrei Tarkovski, o filme traz uma fotografia cuidadosa e belos planos onde vamos inicialmente acompanhar pela perspectiva da atuação de Julia Vysotskaya como Lyudmila. Ela é uma soviética stalinista devota e obstinada, executiva do Partido Comunista da União Soviética, que enfrenta duramente a atividade anti-soviética e rejeita qualquer um que expresse oposição aos ideais do Partido, mesmo que seja sua própria filha adolescente e crie um dilema familiar.
O drama histórico mostra as negociações que levaram ao massacre atroz na cidade russa de Novocherkassk, em 2 de Junho de 1962: um massacre contra manifestantes desarmados pelo exército soviético e por funcionários do KGB; que segundo registros oficiais, resultou na morte de 26 pessoas e em mais de 200 detenções. Um retrato dramático e duro da luta dos trabalhadores das fábricas locais da pequena cidade industrial, que resultou em tragédia com as represálias do governo diante das greves.
O filme está disponível no PRIME VÍDEO.
Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro | 1981 | dir. Marta Rodrigues, Jorge Silva (Colômbia)
O filme de Marta Rodrigues e Jorge Silva registra uma comunidade indígena na Colômbia que foi desapropriada de suas terras, mas diante da segurança de um documento que lhes garante as propriedades, decidem lutar pela conquista do que lhes é de direito. É absurdo pensar que a terra nativa que os foram tiradas pelos latifundiários, são depois repassadas a eles parcialmente via registro. Mesmo assim, o ato de querer retomar essas terras não veio de maneira pacífica. Nessa luta os indígenas enfrentaram resistência e represálias, resultando na morte de um de seus líderes mais ativos.
Os registros são em preto e branco, com uma montagem que flerta com o cinema experimental. O tom do filme carrega seriedade, mas também uma ironia e provocação através das imagens, mesclando filmagens documentais de depoimentos e deles em direção às fazendas a serem retomadas, planos demorados dos animais, das brumas que cobrem a mata, dando um teor denso e atmosférico ao filme. Às vezes são usadas imagens aceleradas, como por exemplo, a das enxadas cavando a terra em recuperação, como um marco de uma conquista, quando eles chegam e podem finalmente tratar a terra. É uma realidade hostil e triste, de um povo resiliente e que não está disposto a ceder, mas sim a lutar! Tudo é registrado com uma boa dose de sensibilidade pela direção. Na trilha sonora ouvimos as flautas de bambú, como um sopro sombrio de uma triste realidade contra o apagamento histórico de um povo.
O filme está disponível na MUBI Brasil
Orlando, Minha Biografia Política | 2023 | dir. Paul B. Preciado (França)
O filme é uma releitura do romance histórico “Orlando: Uma Biografia” de Virginia Woolf publicado originalmente em 1928, onde ela abria discussões sobre gênero de forma pioneira e que hoje, são cada vez mais pertinentes. No livro, Orlando, que é um ser imortal, acorda de repente num corpo de mulher, Woolf trabalha as ambiguidades do feminino e do masculino através dessa experiência. Paul Preciado é um realizador trans, filósofo e escritor, e neste, que é seu primeiro longa-metragem, cuida do tema com um olhar especialmente voltado para a questão transexual.
O longa conduz em tom teatral os “Orlandos de Virginia” trazidos para a atualidade, mostrando uma realidade trans em um mundo cis. Os personagens estão cercados por limitações frustrantes na busca por duas identidades, num embate doloroso por um reconhecimento de gênero versus sexo, tão difícil de entrar na cabeça (principalmente) da sociedade heteronormativa. Há certo experimentalismo em sua forma, ora como um documentário, coletando os depoimentos com um pouco mais de formalismo; ora encenado como esquetes de teatro, bastante lúdico e criativo, usando a junção desses dois artifícios para dar personalidade a sua obra. A inclusão da trilha sonora age quase como um fator ilustrativo das camadas de urgência mais pesadas no longa, em meio às cenas somos surpreendidos com o impacto nada silencioso da música no filme.
O filme foi exibido no Festival Varilux de Cinema Francês e premiado no 25º Festival do Rio
Feministas: O que elas estavam pensando? | 2018 | dir. Johanna Demetrakas
O filme mostra a luta de e a história de mulheres a partir do conteúdo fotográfico do livro “Emergence”, publicado pela atriz e fotógrafa americana Cynthia MacAdams nos anos 70. A obra contém retratos em preto e branco de mulheres que fizeram parte do movimento feminista nos EUA e reúne personalidades da arte e cultura, como poetisas, atrizes, artistas plásticas e escritoras que batalharam por seus direitos como mulher, por mais liberdade e voz na sociedade. O longa mostra como estão essas mulheres 40 anos depois da data das fotos.
O documentário não apresenta grandes inovações em formato, ele segue o padrão linear com depoimentos. Alguns nomes famosos fazem parte da obra, como Jane Fonda, Lily Tomlin e Michelle Phillips. Além delas, tantas outras mulheres anônimas estão presentes compartilhando suas histórias de vida e luta por direitos na maternidade, trabalho, sexualidade e casamento. Uma luta que representa a fase da chamada “segunda onda do feminismo”, nas décadas de 60 e 70. Há uma rápida citação ao movimento sufragista, que fez parte da primeira onda do feminismo, que lutou pelo direito ao voto. O longa busca fazer também um contraste geracional, ao colocar mulheres mais jovens para também darem seus relatos, usando pessoas que não estão presentes no “Emergence”, mas que vão oferecer um novo olhar e perspectiva sobre o tema.
O documentário está disponível na NETFLIX Brasil
A Hora dos Fornos: Notas e testemunhos sobre o neocolonialismo, a violência e a libertação (La Hora de los Hornos) | 1968 | Octavio Getino, Fernando Solanas (Argentina)
“A Hora dos Fornos” é um documentário dirigido por Octavio Getino e Fernando Solanas, lançado em 1968 e foi concebido como uma obra de denúncia social e política na Argentina. Dividido em três partes e com a duração de 4 horas e meia, o filme é uma análise crítica da sociedade argentina e das injustiças sociais, políticas e econômicas que ocorreram na época. O trabalho foi concebido como um ato militante, como um pretexto para dialogar, abrir a discussão, fugindo completamente de um formato convencional de documentário. O filme foi feito sob um contexto de repressão política da Argentina, de maneira independente e, obviamente, ilegal.
A primeira parte, “Notas para um Filme Sobre o Poder”, aborda a exploração econômica e social da Argentina, destacando a estrutura de poder que beneficia uma minoria privilegiada em detrimento da maioria desfavorecida. A segunda parte, “Atos para a Libertação”, concentra-se na resistência e na luta popular, destacando os movimentos sociais, greves e ações de resistência em busca de mudanças sociais e políticas. A terceira, “Violência e Libertação”, mostra a truculência da política e a repressão estatal contra aqueles que desafiavam o status quo. Examina o papel da violência na busca pela liberdade e justiça.
O documentário está disponível no YouTube, com legendas em espanhol.
Deus tem AIDS | 2021 | dir. Gustavo Vinagre, Fábio Leal
O documentário mostra de modo sensível, através de depoimentos de diversas pessoas soropositivas, aspectos de como é viver nos dias de hoje sendo portador do vírus HIV. Trazendo o prisma de uma sociedade que ainda enxerga isso com pavor, repulsa e preconceito. A obra é dirigida por Fabio Leal, que é ator e realizador queer e Gustavo Vinagre, diretor e roteirista do Rio de Janeiro.
Esclarecer como a realidade de 40 anos atrás, onde a morte era uma questão diretamente ligada ao vírus, hoje é diferente para quem convive com a doença, de fato vivendo com mais qualidade e por muito mais tempo, graças aos avanços da medicina. Esse tópico parece ser uma das missões do filme. Com título forte e mais polêmico do que a própria obra, Deus tem AIDS não chega a chocar o espectador — exceto nas performances finais, bastante viscerais, mas faz seu papel de nos alertar da urgência do assunto para as pessoas envolvidas. A abordagem foca mais na vida do que na morte, informa e esclarece, passa perspectivas importantes sobre um assunto rejeitado e negligenciado até hoje.
O documentário está disponível na MUBI Brasil
A Greve (Strike) | 1925 | Sergei Eisenstein (Rússia)
Em “A Greve”, Eisenstein usa técnicas de montagem revolucionárias para criar tensão e adrenalina, mostrando a brutalidade da repressão policial e o poder da solidariedade entre os trabalhadores russos. O filme culmina em um confronto violento entre os grevistas e as forças de segurança do governo. O massacre imposto por soldados contra a população, é comparado, por exemplo, com a morte de bovinos. Isso se dá através de um estilo de montagem pensado pelo diretor, que faz alusões à ideias que não estão exatamente encenadas, mas expostas ao intercalar imagens distintas na tela.
O longa é conhecido por sua fotografia inovadora e pela representação poderosa da luta dos trabalhadores contra a opressão, tornando-se um marco no cinema soviético e na história do cinema mundial. Completamente mudo e em preto e branco, o filme foi financiado pelo governo soviético como parte de um esforço para promover a ideologia comunista. Esse patrocínio foi crucial para que Eisenstein expressasse suas visões artísticas e ideológicas dentro do contexto da propaganda política e social do regime soviético da época.
O filme está disponível no YouTube com texto em inglês
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Mari Dertoni tem bacharelado em jornalismo, é crítica e pesquisadora de cinema. Publica suas criticas em: https://coletivocritico.com e https://criticos.com.br/ e no https://boxd.it/zXwh
Link de uma lista com 21 filmes sobre ativismo no letterboxd https://boxd.it/qjL8a
Vagas para Comunicação e Mobilização na Escola de Ativismo
Quem buscamos?
A Escola de Ativismo busca pessoas da Amazônia Legal para nossa equipe de Comunicação e Mobilização. Procuramos por pessoas com experiência de atuação em movimentos sociais, coletivos ou organizações de Direitos Humanos e socioambientais.
As vagas são destinadas preferencialmente para pessoas indígenas ou quilombolas da região amazônica. Gênero, sexualidade e raça também são critérios de escolha.
Responsabilidades de cada uma das vagas:
Vaga 1: Produção de conteúdos de comunicação para a Escola de Ativismo, seja de matérias e artigos para o site, até cards, textos e outros tipos de publicações para as redes sociais. Auxílio no planejamento e realização das tarefas de Comunicação da Escola de ativismo.
Vaga 2: Construção e implementação de planos de comunicação e mobilização, assim como coordenação de grupos ativistas. Capacidade de articular, construir e gerir redes. Produção de textos, informes e campanhas para a Escola de Ativismo. Auxílio no planejamento e realização das tarefas de Comunicação da Escola de ativismo.
Habilidades desejadas para ambas as vagas:
- Ser ativista ou possuir histórico de atuação em movimento social, coletivos, ONGs e defesa de causas
- Experiência de atuação e habilidades em produção de conteúdo e bom entendimento da lógica e funcionamento de Comunicação e Campanha.
- Boa escrita de texto
- Boa habilidade para contar histórias, storytelling e criar narrativas envolventes e emocionantes adequadas para diferentes públicos-alvo
- Boa comunicação e articulação interpessoal online e offline
- Organização, criatividade, dinamismo, iniciativa e comprometimento com prazos e entregas
- Alinhamento com as pautas pertinentes ao fazer ativista como um todo e seu universo
- Afinidade com a agenda de clima, enfrentamento ao racismo ambiental, defesa de povos tradicionais, cuidados digitais e/ou direitos humanos.
Habilidades específicas de cada vagas:
Vaga 1
- Graduação em qualquer área
- Pelo menos três anos de experiência comprovada, seja em trabalhos fixos ou em atuação com redes e movimentos.
- Capacidade de produzir reportagens e outros tipos de textos de comunicação.
- Bom entendimento da lógica de funcionamento das redes sociais, com capacidade de síntese e adaptação para conteúdos para essas redes.
- Desejável conhecimento de wordpress
- Habilidades desejáveis em edição de vídeos, som e imagens via aplicativos, programas ou sites online
- Habilidades desejáveis em edição de fotos, construção de artes e formatação de layouts pré-produzidos para as redes sociais.
Vaga 2
- Graduação em qualquer área
- Pelo menos oito anos de experiência comprovada, seja em trabalhos fixos ou em atuação com redes e movimentos.
- Experiência com gestão de grupos e comunidades. Pode ser dentro do seu coletivo, organização ou movimento.
- Experiência na construção e implementação de campanhas e outros tipos de ações de mobilização.
- Desejável conhecimento e articulação no campo ativista da Amazônia.
Demais informações
Forma de trabalho: remoto, então exige boa conexão com a Internet. É essencial disponibilidade para viagens a trabalho. Os contratos são de prestadores de serviço, através de emissão de Nota Fiscal.
O processo seletivo será realizado em etapas, sendo a primeira a seleção por meio de currículo/carta de apresentação.
A Escola de Ativismo poderá oferecer uma vaga diferente para a pessoa inscrita, caso acredite que ela se enquadre mais em outro lugar.
As remunerações variam de acordo com a experiência profissional de cada pessoa.
Prazo para envio de candidaturas: 21 de janeiro de 2024
Data prevista de início do trabalho: Vaga 1: Março de 2024; Vaga 2: 24 de fevereiro de 2024
INSCRIÇÕES ENCERRADAS
Sobre a Escola de Ativismo
A Escola de Ativismo é um coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Como ativistas lidam com as angústias e ansiedades de viver a crise do clima
Por Bárbara Poerner – 20/12/2023
Medo do futuro, apagamento de modos de vida tradicionais e sensação de impotência fazem parte da ansiedade climática; experiência soma-se às outras opressões do Sul Global
Marcha do Eco pelo Clima em novembro de 2023 em Porto Alegre l Foto: Andrea Graiz/Eco Pelo Clima
Chuva forte é um sinônimo de medo para Renata Padilha. “Para mim, sempre significou que era a minha casa, minha rua e minha comunidade que ficaria uma semana sem água e luz”, relembra ela, que cresceu em uma região periférica de Porto Alegre.
Desde que começou no ativismo socioambiental, a internacionalista e fundadora do movimento Eco Pelo Clima tem momentos de ansiedade climática. O sentimento é, compartilhado por muitas pessoas: uma pesquisa da revista científica The Lancet, realizada em 2021, revelou que 59% dos dez mil entrevistados declararam estar muito ou extremamente preocupados e 84% estavam pelo menos moderadamente preocupados com as mudanças climáticas. A mostra entrevistou jovens, de 16 a 25 anos, em dez países (Austrália, Brasil, Finlândia, França, Índia, Nigéria, Filipinas, Portugal, Reino Unido e Estados Unidos).
“Não existe estar bem, dormir ou comer bem se o nosso território está em perigo”.
Ainda na pesquisa, mais de 50% relataram sentir emoções de tristeza, ansiedade, raiva, impotência e culpa, e, no recorte brasileiro, 85% dos participantes responderam que o futuro parece muito assustador. O Brasil foi o país com maior número de entrevistados que declarou sentir-se traído em relação às respostas dos governos sobre o problema.
Tudo isso, para Luene Karipuna, “gera medo porque é algo que não afeta somente a mim, mas ao meu povo, ao meu território”. Ela, que é ativista e comunicadora indígena, defende que os modos de vida das populações tradicionais são afetados com a crise climática, já que geram desequilíbrios ambientais, sociais e culturais. E é desse deslocamento das formas de viver que se ampliam os sentimentos de angústia, incerteza e perda de identidade.
Como exemplo, ela cita o que está acontecendo em sua Terra Indígena (TI), que fica em Oiapoque (AM). “Há dois anos nós não conseguimos plantar mandioca por conta das mudanças do clima. E desde então a gente não consegue mais comer a farinha feita por nós, que é a nossa base alimentar”. Luene ainda argumenta que é impossível dissociar a ansiedade climática da vivência territorial porque “não existe estar bem, dormir ou comer bem se o nosso território está em perigo”.
Passado e futuro
Daniela Vianna soma mais de duas décadas trabalhando com meio ambiente. A jornalista, que estuda comunicação climática e pós-doutoranda no IEA-USP e bolsista do USPSusten (SGA-USP), conta que sempre foi movida por esperança. Contudo, “nesse ano, principalmente, com o que a gente está vendo, essa esperança foi misturada com revolta, porque estamos falando disso há 20 anos, há mais de 30 anos os cientistas estão alertando que isso aconteceria”, desabafa.
Em novembro, quando regiões do Brasil atingiram níveis de calor extremo, Daniela percebeu que estava sofrendo na pele algo que enfrenta há tanto tempo. “A sensação de que nada do que eu tinha feito havia adiantado, algo como, ‘estou há 20 anos trabalhando com isso e não consegui reverter nada'”.
Ela acredita que a “ansiedade climática também envolve o fato de que, mesmo conscientes do problema, não termos autonomia ou não termos a capacidade da tomada de decisão”, já que líderes globais têm agido de forma insuficiente para frear as emissões de gases de efeito estufa que causam o aquecimento global.
Mãe de um menino de nove anos, a jornalista lamenta ao pensar que os adultos do futuro terão, se o planeta ultrapassar 1.5ºC, condições de vida piores do que as atuais. “Dá dor no coração saber que ele [meu filho] não vai ter a mesma qualidade de ar, a mesma qualidade de água e a mesma condição de temperatura que eu tive quando eu tinha a idade dele”, diz.
Mesmo assim, Daniela continua mantendo a esperança – algo que o filósofo Antônio Gramsci chamou de “otimismo da vontade” – e busca espaços comunitários para equilibrar o ativismo. Ela faz parte do Famílias Pelo Clima, um desdobramento do Fridays For Future Brasil (Jovens Pelo Clima), movimento global que formou-se em meados de 2018 encabeçado por Greta Thunberg.
Mais de 40 milhões de meninas e meninos brasileiros já estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental l Foto: Agência Brasil/Arquivo
Sobreposição de opressões
“Não dá pra desconectar ansiedade climática de justiça climática e de desigualdade”, defende Daniela, ao reforçar que a questão precisa ser ponderada também sob as lentes do Sul global.
Isso porque as mudanças climáticas atingem de formas diferentes as populações. Os mais socialmente marginalizados, como mulheres, crianças e pessoas não-brancas, são estatisticamente os mais afetados. “Estamos falando que algumas pessoas têm mais privilégio e mais condições de lidar com isso”, defende Kinda Silva van Gastel, da organização Engajamundo.
Enquanto jovem ativista, Kinda diz que a angústia de pensar no futuro do planeta soma-se a outras preocupações. “Não estamos só lidando com mudanças climáticas, mas também com todo o processo de vir ao mundo, se entender, pensar o que a gente gosta, o que a gente quer fazer na vida. Como juventude preta, periférica, indígena, temos desafios que são para hoje”, diz, referindo-se a aos problemas de ordem estrutural que os brasileiros enfrentam, como a fome, o racismo, a falta de acesso à moradia, à educação e à cultura.
Em sua avaliação, mesmo que a sua geração expresse preocupações com a saúde mental, isso não é o suficiente quando abordamos essas opressões. “Tem vezes que você pode ir pra uma terapia e pode ficar meses, anos, tentando lidar com um problema que não tem resolução individual, porque o problema é estrutural”.
Por isso, Kinda ainda acredita que “não precisamos da ansiedade para agir. Eu me sentiria muito melhor se eu não tivesse que lidar com a ansiedade”.
Ativismo e comunidade
Uma das estratégias para Renata lidar com a ansiedade climática é buscar apoio e acolhimento nos movimentos dos quais faz parte. Quando questionada sobre o que a faz continuar no ativismo, a resposta é simples: “Eu não quero a extinção da humanidade no planeta”, diz ela. “O que me faz seguir é tentar fazer com que as pessoas que vão continuar aqui não sofram tanto quanto elas irão sofrer se a gente não fizer alguma coisa.”
Atualmente, mais de 40 milhões de meninas e meninos brasileiros já estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental, o que compromete a garantia de seus direitos fundamentais no futuro, conforme apontou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em um relatório recente.
Essa instabilidade de direitos “impacta em todos os planos, porque se meu povo não está seguro, se meu povo não está comendo bem, eu não consigo pensar em futuro, porque é impossível pensar em futuro se a gente não consegue frear as mudanças climáticas”, compartilha Luene. “A gente fica se perguntando qual mundo deixaremos para a comunidade, para a geração futura.”
Entretanto, sua força para seguir como ativista também vem do seu território. “Eu acredito muito na força do movimento, na luta”, pontua.
Entender a ansiedade climática como uma questão coletiva é fundamental para atravessá-la, afirma Kinda. A jovem pontua a necessidade de entender seus próprios limites de engajamento socioambiental, mas finaliza: “é como uma carga coletiva, uma coisa que estamos carregando juntos; quanto mais pessoas partilhando, mais leve ficará para todo mundo e vamos conseguir, enfim, carregar por mais tempo e mais longe.”
3 ideias-chave essenciais para construir um movimento forte e solidário contra a opressão na Palestina
Por Rae Abileah and Nadine Bloch* – 30/11/2023
Algumas estratégias e táticas comprovadas para orientar ações eficazes pelo fim da ocupação ilegal e o imediato cessar-fogo na Palestina
Crédito: Reprodução
Se você está lendo isso, é provável que os seus olhos estejam exaustos de scrollar interminavelmente pelas notícias ruins ou de derramar lágrimas pelas incontáveis vítimas no pesadelo atual. A gente entende. Te convidamos humildemente a respirar fundo e pausar um pouco. Para qualquer leitor que precise desse lembrete: quando as emoções estão à flor da pele, é especialmente importante cuidar muito bem do seu corpo, espírito e uns dos outros. Nossa equipe no Beautiful Trouble tem um compromisso com a reflexão e oferece um conjunto de ferramentas para a resiliência comunitária.
Como uma rede internacional de artistas, ativistas e formadores que criaram uma caixa de ferramentas documentando as principais estratégias e táticas que inspiraram séculos de vitórias conduzidas pelo povo, oferecemos essas três percepções que podem proporcionar estabilidade neste momento de desequilíbrio, e podem guiar ações eficazes e significativas.
1. A importância do enquadramento
Da mesma forma que o enquadramento ao redor de uma foto, um enquadre conceitual destaca eventos e fatos específicos, tornando outros elementos invisíveis. Inserir um enquadramento efetivo na sua mensagem pode fazer a diferença entre ganhar ou perder.
Atualmente, grande parte dos veículos de mídia ocidentais conta uma história curta e terrivelmente incompleta: que o Hamas coordenou ataques surpresa contra Israel, resultando na morte de mais de 1.300 pessoas e no sequestro de reféns, e que Israel está se defendendo ao bombardear a Faixa de Gaza e coordenar uma invasão terrestre brutal. Mais de 16.000 palestinos [eram 3 mil quando esse texto foi escrito] já foram mortos, incluindo milhares de crianças. A mídia convencional nos diz que é uma situação horrível, absurda, sem aviso prévio. Para uma compreensão mais aprofundada, é preciso afastar a câmera para ver a imagem completa eo contexto histórico mais amplo.
Por mais de 75 anos, o povo palestino tem resistido à ocupação, desumanização, limpeza étnica, deslocamento forçado, aprisionamento, negação de direitos humanos básicos e outras injustiças cometidas pelo estado de Israel. Esses danos foram classificados, por observadores confiáveis, como crimes de apartheid, relembrando o brutal domínio da minoria branca sobre os sul-africanos negros (veja o relatório da Anistia Internacional).
Três anos atrás, a ONU considerou “inabitável” a área de 40km chamada de Gaza, um dos lugares mais densamente povoados da Terra, devido ao bloqueio ilegal por terra e mar imposto por Israel. Mais de dois milhões de pessoas, metade das quais são crianças, vivem em Gaza. Desde 10 de outubro, os residentes de Gaza foram privados de água, eletricidade e alimentos pelo exército israelense. Isso configura um crime de guerra, endossado pelo estado de Israel e tolerado pelos Estados Unidos e seus aliados.
A terrível realidade de hoje não começou em 1948 com a criação do estado de Israel, evento também conhecido como a Nakba (grande catástrofe), que deslocou milhares de palestinos. Ela se baseia em uma herança do colonialismo que dividiu o Oriente Médio, assim como em uma história de opressão antissemita violenta na Europa, desde Pogroms até o Holocausto. Israel foi fundado, em parte, com base na necessidade de um refúgio para o povo judeu. Muitos judeus agora se veem em um dilema duplo, desejando tanto a segurança de seu povo quanto se opondo à contínua segregação e opressão dos palestinos.
No entanto, esse enquadramento da questão leva a um impasse. A única maneira de alcançar uma paz genuína, duradoura e justa — como os palestinos insistem com todo o direito, e muitas vozes judias têm afirmado — é abordar as causas fundamentais da luta palestina, encerrando a opressão de Israel sobre o povo palestino. Os palestinos merecem estar seguros; os judeus merecem estar seguros; no entanto, a segurança não pode, e não virá, à custa dos direitos humanos dos palestinos.
Conforme ampliamos nosso campo de visão, notamos que a luta palestina está conectada às lutas históricas dos povos indígenas e oprimidos em todo o mundo, resistindo ao colonialismo. A suposta “terra sem povo para um povo sem terra” foi estabelecida em terras roubadas, habitadas por gerações de povos árabes. A luta pela libertação coletiva tornou-se interseccional, ligada aos movimentos impulsionados pelo povo ao redor do mundo que clamam por descolonização e justiça.
Podemos também perceber como, em uma área menor que o estado de Sergipe, a segurança dos palestinos e israelenses está interligada. Como escreve o autor judeu-americano Peter Beinart: “Este é um argumento que Martin Luther King tentou comunicar à América branca seguidamente quando houve tumultos em cidades americanas ao longo dos anos 60. (…) Em última análise, não há outra maneira senão reconhecer a interconexão moral, o que significa que você tem que reconhecer que a segurança, dignidade e liberdade de uma família [israelense] dependem de você se importar com a segurança, dignidade e liberdade dos palestinos e vice-versa.”
Outra abordagem pode nos mostrar os legados intergeracionais de trauma que estão em jogo. A neurociência explica que quando estamos em uma resposta traumática hiperativada, tornamo-nos incapazes de pensar a partir do córtex pré-frontal, nosso cérebro lógico. Entramos em modo de luta/fuga/congelamento/apego, independentemente do que nossas mentes racionais nos dizem sobre as circunstâncias. Até que ponto a intimidação com ataques a Gaza está impregnada de trauma, sendo instrumentalizada como uma vontade de mais violência, que causa mais trauma? Para os judeus, que foram perseguidos ao longo dos séculos, essa ferida traumática pode ser profunda, assim como o desejo de “vingança”, frequentemente impregnado de racismo anti-árabe. O slogan das mobilizações em massa lideradas por judeus em Washington, D.C. pedindo um cessar-fogo aborda bem isso: “Minha dor não é sua arma.”
Além disso, o trauma ancestral, somado ao aumento real do antissemitismo, pode fazer com que notícias falsas pareçam terrivelmente reais, como a alegação em 13 de outubro de que o Hamas havia convocado o assassinato de judeus em todo o mundo. (Essa informação falsa levou ao reforço da segurança em sinagogas e ao fechamento de um campus universitário que havia agendado uma manifestação por um cessar-fogo.) A alegação foi comprovadamente falsa e até desacreditada pelo Departamento de Estado dos EUA.
Reservar um espaço para reconhecer o trauma pode nos ajudar a evitar os campos de batalha dos debates com pessoas que não conseguem ouvir os fatos, oferecer um abraço em vez de bombardear com dados, e criar ambientes para lidar com o luto de maneira adequada, para que talvez possamos lamentar juntos e nos reorganizar.
Lembrar de frases como “Luto é verbo” ou “Do luto à luta”” é necessário aqui! Devemos expressar nosso profundo sentimento de luto pelas vidas que foram perdidas, para que possamos trabalhar a partir de uma posição de resolução fundamentada em interromper novos casos de violência.
Ignorar esta etapa — e recusar-se a reconhecer o luto que tantos estão sentindo agora — limita nossa capacidade de curar e alcançar uma paz política justa. Isso também fornece munição adicional para a liderança sionista de direita, assim como para seus apoiadores americanos de direita. A contribuição de Naomi Klein é simples e direta. Ela twittou: “Escolha sempre a criança em vez da arma, não importa de quem é a arma e não importa de quem é a criança.”
Uma das táticas de um regime opressor é obscurecer ou confundir uma questão, fazendo com que pessoas que teriam uma crítica clara e coerente, sintam-se enfraquecidas, não suficientemente informadas para participar ou sintam que, sem um “envolvimento direto”, não podem protestar contra a injustiça. A maioria das pessoas nos Estados Unidos (e ao redor do mundo) que se opuseram à invasão dos EUA no Iraque há 20 anos não conhecia ninguém do Iraque. Ainda assim, sabiam o suficiente para entender que guerras por petróleo e arrogância imperial prejudicariam crianças, matariam soldados de todos os lados, agravariam a crise climática e encheriam os bolsos dos fabricantes de armas às custas da população.
A construção de um enquadre narrativo pode nos ajudar a garantir que “criemos muitos pontos de entrada“, para que novas pessoas possam se juntar ao movimento e se sintam capacitadas a se manifestar. Utilizar a ferramenta do espectro de aliados pode nos ajudar a tornar os nossos públicos mais nítidos e discernir mensagens e ferramentas para envolver melhor aliados passivos e pessoas que eram anteriormente neutras, mas foram ativadas por esta crise.
Para os recém-chegados a esta crise, podemos ajudar a explicar essa história complexa compartilhando ferramentas úteis, como este desenho animado de seis minutos. Enquadramentos curtos e concisos, como esta lista de “5 coisas que você precisa saber sobre o que está acontecendo em Israel e Gaza”, ajudam a simplificar a questão em informações práticas. À medida que são organizadas mobilizações de emergência para se opor ao genocídio em Gaza, podemos lembrar também de criar eventos educativos (como este, destacando vozes palestinas, que ocorreu em 19 de outubro) para aqueles que se perguntam “Como chegamos aqui?”
Um enfoque que extrapole o binário também pode ser útil quando feito intencionalmente. Ou até reformular o binário: Sim, existem dois lados. O lado da vida e o lado da morte. Como escreveu a poetisa palestina Suheir Hammad: “Ou você está a favor da vida, ou está contra ela. Defenda a vida.” No final das contas, como compartilhou recentemente a ativista e autora judaico-americana Anna Baltzer em seu artigo de opinião: “Todas as pessoas merecem viver em segurança e paz. A única maneira de alcançar isso é liberdade e justiça para todos. Na Palestina, isso significa o fim da ocupação colonial e do regime de apartheid de Israel – algo que nenhuma pessoa aceitaria para o seu próprio povo.”
Centenas de pessoas se reuniram para uma vigília à luz de velas em São Francisco com grupos palestinos e árabes em 17 de outubro. Crédito: Twitter/JVP
2. Estudar a bela história da resistência não violenta e criativa palestina pode inspirar as nossas ações de solidariedade.
Outra maneira de reformular os contornos deste momento é explorar e celebrar o longo legado do ativismo criativo palestino. Conhecer mais sobre esta resistência — que tantas vezes é deixada de fora das narrativas dominantes — humaniza a luta palestina e aumenta o senso de alteridade. Lembrar da desobediência civil generalizada e dos boicotes em massa durante a Primeira Intifada (1987-1993), pode nos ajudar a entender como chegamos aqui hoje.le
Em resposta à ocupação israelense na Cisjordânia em 1988, os residentes de Beit Sahour decidiram comprar 18 vacas e produzir o seu próprio leite como uma cooperativa, para não precisarem comprar leite israelense. Essas vacas tornaram-se celebridades locais, um símbolo de auto-suficiência e resistência. Elas foram então cruelmente colocadas na lista de mais procurados pelo exército israelense, declaradas “uma ameaça à segurança nacional do Estado de Israel”. Histórias como esta, conhecida como “The Wanted 18” — “As 18 Procuradas” —, ilustram o absurdo da ocupação.
Mais recentemente, a resistência criativa palestina abrangeu as artes, desde o palco até as ruas, de marchas a murais (em frente ao muro da Cisjordânia). A Grande Marcha do Retorno, em 2018, utilizou uma consagrada tática não violenta ao fazer uma ”romaria”. Longas caminhadas e travessias são táticas ativistas que foram praticadas desde a Marcha do Sal de Gandhi até caminhadas transcontinentais pelo desarmamento nuclear. As imagens que circularam pelo mundo de avós abraçando suas oliveiras enquanto eram derrubadas contaram a história sem precisar de palavras, ilustrando a lógica das ações. Prisioneiros detidos sem acusação ou julgamento organizaram greves de fome, incluindo mais de 1.800 prisioneiros em jejum em 2012. Táticas criativas têm contribuído para despertar a atenção global e tornar a ilegalidade da invasão algo compreensível num nível próximo e pessoal..
Crianças em Gaza estabeleceram um recorde mundial do maior número de pipas voando simultaneamente. Elas empinaram 12.350 pipas ao mesmo tempo nas margens do Mar Mediterrâneo em Gaza. “Trouxemos felicidade ao nosso país quebrando o recorde mundial”, disse Nadia el Haddad, de 13 anos, que quebrou o recorde. “[E hoje] sinto que tenho direitos e que sou como qualquer outra pessoa no mundo.”
O uso de tantas pipas ilustra brilhantemente o princípio de que princípios simples podem ter efeitos grandiosos. Organizações como o Jenin Freedom Theater e Alrowwad, um centro de cultura e artes sediado no Campo de Refugiados de Aida, Belém, cujo lema é “Beautiful Resistance” — Bela Resistência —, têm educado as próximas gerações de jovens palestinos na expressão criativa.
Esse ativismo artístico e estratégico tem inspirado inúmeras ações de solidariedade ao redor do mundo, motivando ativistas solidários a viajar para a Palestina para se envolver em acompanhamento, co-resistência e flotilhas, ou “barqueatas”, na tentativa de romper o cerco de Gaza e fornecer ajuda urgentemente necessária. Israelenses — que compreendem que seu destino está vinculado ao bem-estar de seus vizinhos — também se uniram à luta. Desde 1988, Mulheres de Preto realizam vigílias pacíficas para se opor à opressão israelense. Jovens israelenses que se recusam a obedecer ordens de convocação para as Forças Armadas têm cumprido pena na prisão, e veteranos das Forças de Defesa de Israel (IDF) têm denunciado os crimes cometidos enquanto serviam nos Territórios Ocupados. Ativistas israelenses contra a ocupação também se juntaram à desobediência civil para ajudar a proteger bairros palestinos ameaçados de demolição. No último mês, israelenses assinaram uma petição pedindo um cessar-fogo imediato nos ataques a Gaza.
Recorrendo à tática não violenta de acionar mecanismos internacionais, a liderança palestina trabalhou incansavelmente para aprovar medidas da ONU que visam parar a construção de assentamentos israelenses, algo que Israel não acatou. A Resolução 194 da ONU tem como objetivo garantir o direito de retorno dos palestinos, o que também não foi efetivado. Desde 1997, os Estados Unidos vetaram mais de uma dúzia de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que criticavam as ações de Israel na Cisjordânia e Gaza.
E finalmente, há 18 anos, na sequência dos tumultos violentos da Segunda Intifada, a sociedade civil palestina emitiu o chamado internacional não violento para Boicote, Desinvestimento e Sanções, ou BDS, remetendo ao movimento anti-apartheid na África do Sul e à longa tradição de ativismo econômico não violento que ajudou a conquistar vitórias, desde o boicote às uvas de Delano pelos direitos dos trabalhadores rurais até o boicote aos ônibus de Montgomery durante a era dos direitos civis. Campanhas de BDS surgiram em todo o mundo e alcançaram muitas vitórias, desde o Boicote à Veolia até a Campanha “Stolen Beauty” — “Beleza Roubada”. Enquanto isso, campanhas de desinvestimento em universidades, igrejas e grandes fundos de pensão pressionaram instituições respeitáveis a se desvincularem de crimes de guerra.
As principais organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, constataram que “Israel impõe um sistema de opressão e dominação contra os palestinos em todas as áreas sob seu controle: em Israel e nos Territórios Ocupados, e contra os refugiados palestinos, visando beneficiar os israelenses judeus. Isso configura apartheid, proibido pelo direito internacional.”
Pode-se dizer que a resistência palestina à ocupação esgotou a famosa lista de métodos não violentos de Gene Sharp. No entanto, embora essa história tremenda de resistência não violenta tenha sido bem documentada, ela não recebeu ampla cobertura na mídia mainstream e certamente não está em destaque agora. Precisamos enfrentar a magnitude da ocupação contínua e da limpeza étnica que persiste, apesar dessas ações criativas e ousadas. Também devemos compreender a repressão severa à resistência não violenta palestina e as discrepâncias do Ocidente em relação a essa violência.
Como Peter Beinart destacou em sua coluna no New York Times, “Israel, com a ajuda dos Estados Unidos, tem (…) repetidamente minado os palestinos que buscaram encerrar a ocupação de Israel por meio de negociações ou pressão não violenta.” O movimento BDS tem sido particularmente obstaculizado, observou ele, “inclusive por muitos dos mesmos políticos americanos que celebraram o movimento de boicote, desinvestimento e sanções contra a África do Sul do apartheid. (…) Cerca de 35 estados — alguns dos quais retiraram anteriormente fundos estaduais de empresas que faziam negócios na África do Sul do apartheid — aprovaram leis ou emitiram ordens executivas punindo empresas que boicotam Israel.”
Atualmente, observamos a aparente inevitabilidade da resistência armada diante do agravamento severo do cerco a Gaza. À medida que lamentamos a perda de vidas em todos os lados e nos opomos à violência, também devemos reconhecer os fios do racismo que privilegiam a condenação de uma forma de violência sobre outra. A professora e advogada de direitos humanos palestino-americana Noura Erakat escreve sobre como os esforços pacíficos para se opor à ocupação foram silenciados, demonizados e difamados. “A mensagem para os palestinos”, conclui ela, “não é que eles devem resistir de maneira mais pacífica, mas que não podem resistir à ocupação e à agressão israelenses de forma alguma”.
3. Compreender a Doutrina do Choque é o primeiro passo para resistir ao capitalismo de desastre.
O caos que acompanha as guerras, desastres naturais e crises econômicas é seguido por neoliberais corporativos e militares que tentam agressivamente promover a privatização, desregulamentação e cortes nos serviços sociais como parte da “Doutrina do Choque”. Este é um momento crítico para resistir a esses capitalistas de desastres e defender nossos direitos humanos, ambientais e econômicos, bem como nossos recursos. Você se lembra como depois do 11 de setembro o Presidente Bush aproveitou a oportunidade do luto e medo nacional para pedir um ataque total ao Afeganistão? Em breve ainda iria ocorrer a invasão e ocupação do Iraque.
O que é menos lembrado é que antes do 11 de setembro havia um movimento anti-globalização crescente e eficaz nos Estados Unidos. Esse movimento efetivamente paralisou a Rodada de Doha de negociações da Organização Mundial do Comércio na Batalha em Seattle. Ativistas estavam se preparando para fechar o Fundo Monetário Internacional em Washington, D.C., em 12 de setembro, para exigir mudanças sistêmicas anti-pobreza, mas os protestos foram cancelados quando o país mergulhou em luto generalizado e pânico após os ataques de 11 de setembro. Os manifestantes foram atacados como sendo anti patrióticos, já que os Estados Unidos estavam “sob ataque”.
Muitos ativistas da sociedade civil estavam temerosos e seguiram as chamadas do governo e de ONGs para combater terroristas externos. Grande parte dos ativistas que permaneceram nas ruas mudaram seu foco para trabalhos de paz ou contra a guerra em uma tentativa vã de evitar retaliações violentas pelo 11 de setembro. O trabalho anti-globalização nos EUA praticamente parou.
Antes do ataque liderado pelo Hamas a civis em Israel, havia um movimento forte e crescente de oposição ao regime cada vez mais autoritário do primeiro-ministro Netanyahu, resultando em movimentos pró-democracia historicamente grandes dentro de Israel e em indignação pública e governamental ao redor do mundo. Embora Israel nunca tenha sido uma plena democracia participativa dada a ampla privação de direitos e deslocamento massivo de palestinos, esses protestos criaram uma ruptura marcante em um tópico geralmente impenetrável: questionar Israel.
Apenas quatro dias após o Hamas violar a fronteira, Netanyahu conseguiu reunir o apoio necessário no país para formar um governo de união no Knesset (pela primeira vez em meses de tumulto). Israel obteve amplo apoio das principais potências militares do Ocidente. E em apenas uma semana, as cores da bandeira do regime de apartheid estavam iluminando as principais capitais ao redor do mundo. O aumento do apoio ao governo linha-dura de Israel deu sinal verde e legitimou uma verdadeira e horrível escalada na punição coletiva da população civil em Gaza, enquanto os bilionários do complexo militar-industrial mundial enriquecem ainda mais.
Sabemos que se não fizermos nada, a situação piora. Se reconhecermos que temos poder , poderemos ter a força para construir um futuro melhor. Pessoas ao redor do mundo estão protestando com mobilizações em larga escala, resultando em uma ação de choque popular. Esperamos te ver superando a agitação das batalhas no Facebook. Encontraremos você nas ruas, nos corredores do Congresso, em vigílias artísticas lamentando a perda de vidas e em diálogos significativos com sua família, colegas, amigos e líderes locais. Em meio às manchetes horríveis, à cobertura tendenciosa da mídia mainstream e à hipocrisia institucional do ocidente, estamos testemunhando exemplos tocantes de belas badernas brotando ao redor do globo.
Centenas de pessoas se reuniram para uma vigília à luz de velas em São Francisco com grupos palestinos e árabes em 17 de outubro. (Twitter/JVP)
Provavelmente, quando isso for publicado, estará desatualizado. Mas as táticas e princípios mencionados aqui não estarão. Enquanto observamos o presente se desdobrar com pesar, estamos segurando uma gota de esperança por esse mundo melhor que é possível. Nossa esperança vem do poder do Sumud, da persistência firme — fazendo o que podemos hoje para que, como Paulo Freire coloca, amanhã possamos fazer o que não podemos fazer hoje.
Para mais ideias/informações, visite também o conjunto de estratégias de solidariedade à Palestina do Beautiful Trouble.
Escrito por:
Rae Abileah é uma líder religiosa judaica, estrategista de mudança social, autora e editora em prol da libertação coletiva. Ela é treinadora no Beautiful Trouble e co-criadora do ritual artístico global Climate Ribbon. Foi co-diretora da CODEPINK, consultora de estratégia digital para justiça social na ThoughtWorks e atualmente dirige sua própria consultoria, CreateWell, além de facilitar oficinas de design para The Nature Conservancy. Rae é autora contribuinte de livros, incluindo “Beyond Tribal Loyalties: Personal Stories of Jewish Peace Activists.” Rae formou-se no Barnard College da Columbia University e foi ordenada pelo Kohenet Hebrew Priestess Institute.
Nadine Bloch é uma artista ativista, organizadora estratégica não violenta e Diretora de Treinamento do Beautiful Trouble, Nadine Bloch que explora a potente interseção entre arte e poder popular. Encontre mais de seus escritos em “Beautiful Trouble“, “SNAP: An Action Guide to Synergizing Nonviolent Action and Peacebuilding” e “From Airtable to Zoom: An A-to-Z Guide to Digital Tech and Activism 2021.“
Brasil, que concentra 20% dos assassinatos de ambientalistas do mundo, luta para ratificar acordo de Escazú
Por Luiza Ferreira – 30/11/2023
Ativistas brasileiros irão pautar a ratificação do acordo que versa sobre proteção de defensores socioambientais na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28)
Crédito: Escazu Ahora/Reprodução
Você já ouviu falar do acordo de Escazú? É provável que não. Mas sem dúvida você já se deparou com notícias de ativistas ambientais e lideranças, guerreiros e guerreiras dos povos tradicionais sendo assassinados e ameaçados. Afinal, o Brasil, segundo levantamento de 2022 da Witness, é o país que mais matou ambientalistas na última década. Do total de 1733 mortes no mundo, 342, ou 20%, aconteceram no país. Soma-se a isso a realidade brutal da América Latina, que concentra três quartos dos assassinatos globais.
Mas algo poderia ter sido feito.
O Acordo de Escazú (Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe), assinado em 4 de março de 2018 na cidade de Escazú, na Costa Rica, ainda aguarda aprovação no Congresso Nacional do Brasil. Ele é o primeiro tratado ambiental da América Latina e do Caribe a estabelecer mecanismos concretos de proteção para os defensores ambientais, reconhecendo sua importância crucial na preservação do meio ambiente e na promoção da sustentabilidade.
Seu objetivo principal é fomentar e garantir os direitos fundamentais de acesso à informação, participação pública e justiça em assuntos relacionados ao meio ambiente, e, neste ano, é um dos temas pautados por ativistas latino-americanos na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28).
Até o momento, o Acordo, que entrou em vigor em 2021, foi assinado por 24 países e ratificado por 15: Antígua e Barbuda, Argentina, Belize, Bolívia, Chile, Equador, Granada, Guiana, México, Nicarágua, Panamá, São Vicente e Granadinas, Saint Kitts e Nevis, Santa Lúcia e Uruguai. No Brasil, o Acordo de Escazú foi assinado em 2018 mas ficou paralisado pela política anti ambientalista do ex-presidente Jair Bolsonaro, e, agora, quase cinco anos depois, a nova gestão enviou o Acordo de Escazú para o Congresso.
Histórico
Desde a Rio+20, conferência realizada no Rio de Janeiro em 2012, países da América Latina e do Caribe debatiam a criação de um acordo regional que se comprometesse com a implementação de um dos princípios da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Eco-92), assinada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento do mesmo ano no Rio de Janeiro.
Diz o príncipio 10:
“A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios”
A negociação do texto perdurou por seis anos e foi secretariada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e em 04 de março de 2018 o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe foi concluído em uma nova conferência da ONU, em Escazú, na Costa Rica. No mesmo ano, o Brasil assinou o acordo, mas até hoje não o ratificou.
Movimento Escazú Brasil
Para a ambientalista Joara Marchezini, coordenadora de Projetos do Instituto Nupef, organização social brasileira de referência na promoção do uso seguro das tecnologias de informação e comunicação e representante eleita para compor as mesas de negociações do acordo, um dos principais obstáculos para a ratificação é a falta de conhecimento sobre o acordo. O idioma também se coloca como um segundo entrave, já que a maioria das informações sobre o tratado atualmente estão em inglês e espanhol.
“A gente acredita que o acordo tem muito potencial para ser aprovado no Congresso, principalmente porque tem elementos positivos não apenas para proteção de defensores, mas também elementos que promovem a transparência ambiental. Esse acordo ainda pode ajudar a implementação de outras leis internacionais, como o próprio acordo de Paris”, diz a ativista.
E a sociedade civil já vem se articulando para amplificar a popularidade do Acordo de Escazú e pressionar por sua ratificação. Um dos movimentos organizados pelos ativistas brasileiros é o Movimento Escazú Brasil, do qual Marchezini faz parte, formalizada em 2023 e que nasceu das organizações envolvidas com o acordo. Também neste ano, o Movimento Escazú Brasil, por meio da Fundação Esquel, foi selecionado para levar um painel para o Pavilhão Brasil na COP28,
Marchezini ressalta que as vozes da sociedade civil têm sido constantemente incorporadas no processo de criação do acordo, resultado de um diálogo entre representantes do poder público, do setor acadêmico e da sociedade civil organizada. Antes mesmo do texto do acordo se consolidar, os ativistas já se organizavam para a inclusão de elementos que viriam a constituir o escopo do texto final.
Crédito: Escazu Ahora/Reprodução
Um exemplo que chama atenção é o fato de que o artigo que menciona os defensores não existia na primeira versão do texto de negociação do Acordo de Escazú. Como revela Joara:
“O artigo de defensores não existia, ele era um um elemento dentro de acesso à justiça, ele era um parágrafo dentro de acesso à justiça, mas até por conta da mobilização do público, por conta das das reuniões, dos eventos paralelos, dos casos, isso foi ganhando corpo e a gente tem o acordo como ele existe atualmente”.
Para Joara, a pressão popular é fundamental, e um dos pontos importantes nesse processo é entender que a aprovação virá a partir da votação dos deputados, que, por sua vez, responderão às suas bases eleitorais. Um dos elementos centrais e característicos do acordo é essa estrutura de participação na qual ele foi construído e vem se desenvolvendo, sendo um dos únicos acordos que contam com a participação do público, seja de forma remota ou presencial.
“Todos aqueles e aquelas que queiram se envolver podem contribuir com sugestões e recomendações para implementação do Acordo de Escazú, a natureza dele é participativa e a gente acredita que a sociedade civil tem esse papel fundamental para garantir a ratificação e quanto mais pessoas souberem e ajudarem nesse processo mais fácil vai ser também a implementação do acordo. Eu acho que esse é um elemento de conhecimento para acionar essas leis, isso é a base”, diz a representante.
Os padrões regionais e a criação de ações conjuntas Sul-Sul
Segundo as Nações Unidas, a Cooperação Sul-Sul é um processo de cooperação técnica, em que países em desenvolvimento no Sul Global buscam atingir objetivos comuns ou individuais através do intercâmbio de experiências, conhecimentos, habilidades e recursos. Uma das características principais do Acordo de Escazú é a sua ênfase em padrões regionais e a criação de ações conjuntas Sul-Sul onde América Latina e Caribe se unem pela primeira vez em prol de um acordo ambiental regional.
E isso ilustra a forte visão de cooperação e fortalecimento das capacidades dos Estados latino-americanos, onde, além de tratar dos problemas ambientais transfronteiriços, eles podem aprender com os problemas em comum que são característicos da região, como a desigualdade social.
“A emergência climática está aí para mostrar o quanto é necessário essa atuação em conjunto. O Acordo de Escazú é uma plataforma que impulsiona a melhor implementação possível de soluções em comum, onde há uma premissa de fortalecimentos da capacidade, um dos princípios previstos dentro do acordo”, diz a ativista.
A história da América Latina é marcada por lutas e resistências dos povos defensores do meio ambiente, e se configura como uma região perigosa para essa população. Por isso, outro elemento fundamental que o acordo traz é o entendimento da necessidade de apoio ao trabalho dos defensores e das defensoras do meio ambiente, para que, mais do que soluções imediatas de reversão de conflitos, como a retirada de defensores ameaçados dos locais onde eles atuam, existam condições concretas de atuação, permanecimento e defesa dessas pessoas na região.
“Se você tira um defensor dessa região, não necessariamente você está solucionando um problema, você pode estar garantindo a vida dele no primeiro momento, isso é válido, é a forma de atuação. Mas você tá dando um sinal pra própria comunidade que fica ali de que é difícil lutar, é difícil proteger o meio ambiente, é difícil resistir”, afirma Joara.
A representante pontua o olhar de coletividade que o tratado propõe, e isso pode ser visto até mesmo na definição dos defensores, que não trata apenas de uma definição individual, mas de pessoas, grupos ou coletivos.
“A gente tem os líderes e as lideranças históricas, e todo o processo de renovação da juventude, mas o acordo olha pra região, olha pro contexto e tenta trazer um olhar de fortalecimento e um olhar de entorno propício, que é o que a gente chama de ambiente adequado para esse trabalho. Sem ameaça, com liberdade de expressão, com liberdade de associação, com todos os direitos garantidos”, comenta a ativista.
O Sul Global está em ascensão, e os debates de fortalecimento regional e garantia de acessos à população dos países da região têm ganhado mais força a cada ano. Mesmo com todo esse potencial, o Sul Global ainda é negligenciado em muitos aspectos pela política internacional. E isso afeta toda a produção de informação e divulgação de conhecimento latino-americana. Por isso, outro ponto importante que o Acordo de Escazú traz é o fortalecimento da produção de informação através da elaboração de relatórios e diagnósticos no Sul Global.
“Muitas vezes a gente não consegue acesso à informação, mas em muitos casos essa informação não existe. A gestão da memória, a gestão documental não é fortalecida”, lembra Joara.
E agora, quais os próximos passos?
Segundo Marchezini, atualmente existem dois processos paralelos que dizem respeito à tramitação do Acordo de Escazú no Congresso Nacional: no primeiro ele passaria por quatro comissões avaliadoras para depois seguir para o plenário, entre elas a Comissão de Relações Exteriores, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a Comissão de Finanças e Tributação e a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, até que o acordo siga para o plenário.
Outro possível rito de tramitação é se houver a aprovação de um regime de urgência, onde o acordo iria direto para análise plenária. Tal pedido já existe, é o requerimento 2108/2023, proposto pelo deputado Zeca Dirceu (PT – PR).
Parlamentares também têm levantado a bandeira do Acordo de Escazú, entre eles as deputadas Duda Salabert (PDT-MG) e Célia Xakriabá (PSOL-MG) e os deputados Nilto Tatto (PT-SP) e Amom Mandel (CIDADANIA-AM).
“Eu acho que tem bastante parlamentar interessado no tema na verdade, ou pelo menos querendo conhecer, querendo se engajar e isso é muito benéfico para o processo, não só para Proteção Ambiental, mas como para questão de transparência, para a questão de emergência climática, para questão de desastres. A gente está torcendo para que ele seja bem recebido dentro do Congresso nessas comissões”, diz Marchezini.
A representante também aponta que com a aprovação, a sociedade civil tem um papel importante na efetivação do acordo: “como qualquer outra lei, ele vai necessitar de monitoramento, de apoio, de divulgação, de promoção de conhecimento, de troca de experiências”. Para ela, o Brasil tem muito a contribuir no plano de ação, e, diante disso, é importante olhar não só para a implementação nacional, mas também para as discussões internacionais.
Segundo a ambientalista, a forma como tem sido construído o Acordo de Escazú é um exemplo de que é possível e preciso existir um diálogo e um consenso entre sociedade e Estado, e que ele possa olhar para a sociedade civil também como um mecanismo repleto de contribuições a oferecer e de que essa relação é produtiva.
“A gente não precisa esperar a ratificação para utilizar aquilo que está escrito no acordo como uma referência para elaboração de leis e para decisões judiciais. Também não precisamos esperar a ratificação para se envolver na construção do plano”, argumenta.
Amazônia Negra: histórias de existências quilombolas e indígenas
Um território, múltiplas histórias: paulista se muda para Rondônia e encontra famílias tradicionais negras de Barbados; acreana atua com ‘ afrobetização’; e paraense luta por regularização fundiária de quilombos.
Por Elvis Marques, em parceria com a Revista Casa Comum*
Jaycelene Maria, Marcela Bonfim e Iraci Santos l Foto: Arquivo pessoal/Reprodução
Antes de ser autora do projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta, Marcela Bonfim, nascida no interior de São Paulo, deu seus primeiros passos em um solo marcado pela exploração da população negra nas plantações de café. Uma realidade escravagista diferente nos tempos atuais, mas que é revivida há gerações. “Venho de uma família que sofreu muita pressão quanto à questão racial. É uma região onde o racismo permanece latente”, conta.
Em 2010, Marcela migrou da região Sudeste rumo a Porto Velho, em Rondônia, em busca do primeiro emprego como economista. “A gente chega cheio de estereótipos, ideias e pretensões em relação à Amazônia”, afirma a fotógrafa e ativista pelas causas negras.
Mas o que Marcela não esperava é que, ao chegar na capital de Rondônia, seria confundida como conterrânea de Rihanna, uma das cantoras mais famosas do mundo. Ao desembarcar em Porto Velho, as pessoas questionaram se Marcela era barbadiana, ou seja, de origem de Barbados, país caribenho onde a artista nasceu.
A explicação é a seguinte: no início do século passado, imigrantes de Barbados – e de outros países do Caribe – contribuíram com a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré e, consequentemente, com a criação do país. Colônia britânica até 1966, a ilha do Caribe, assim como o Brasil, sofreu com os períodos de colonização europeia e de escravidão de indígenas e africanos. A sua mistura de povos também não difere da nação brasileira, tendo uma população de maioria negra.
“Ao me perguntarem se eu era barbadiana, me veio uma curiosidade sobre esse povo. Então uma amiga me contou sobre as famílias tradicionais negras de descendência de Barbados que aqui viviam. “Eu levei um susto porque, nos livros de história, ‘família tradicional’ no Brasil eram aquelas que tinham poder desde o início da colonização. Começo, então, a descobrir o quanto de diversidade que existia nesse estado amazônico, algo que até então não passava pela minha cabeça, uma população negra na Amazônia”, contextualiza Marcela.
Registros sobre a Amazônia negra
O fascínio por essa população e por suas origens gerou uma identificação histórica em Marcela, que, em um primeiro momento, decidiu comprar uma câmera fotográfica para fazer imagens dessas pessoas e mostrá-las para a sua família. Os registros em foto e texto eram depositados nas mídias sociais, o que logo começou a gerar um burburinho.
“Chegou ao ponto de eu pensar que isso poderia ser pedagógico também para outras pessoas, e que traria uma força a elas como trouxe a mim. Vim buscar um emprego e acabo reconhecendo a fotografia em mim, entendendo que eu poderia encontrar a minha negritude a partir dessa oralidade, e isso passou a ser uma forma de existir: fotografar, contar histórias e me reconhecer nessa terra”, relembra Marcela.
Suas fotografias mostram rostos, olhos, mãos, danças e religiosidades. São olhares de esperança, que refletem as águas profundas e as frondosas árvores da Floresta Amazônica. De forma poética e ao encontro com a sua própria história, Marcela inaugura o projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta.
Home do site Amazônia Negra l Foto: Reprodução
A ativista conta que as pessoas fotografadas têm recebido muito bem os seus retratos e histórias contadas. O projeto ganhou, também, um público famoso: a atriz Giovanna Ewbank e a filha Titi Gagliasso ficaram encantadas com a exposição “Um defeito de cor”, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, na Bahia.
“Rondônia traz um percurso histórico, como muitas migrações e imigrações, não só dos países do Caribe, mas também do Amazonas, Pará, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro. São muitas formações negras nessa terra. Eu pensava muito o negro no singular, e hoje eu consigo pluralizar essa ideia de negritude por conta dessa vivência na Amazônia”, enfatiza.
Raio-x > Na região Norte do país, 73,4% da população se declara parda (é o maior percentual do país) e 7,5% se diz preta; > Entre 2012 e 2021, a população que se declarava branca nesta região reduziu em 3,6%; > O Norte concentra o maior número de jovens do país: cerca de 30,7% da população tem menos de 18 anos; > A Amazônia Legal corresponde a 59% do território brasileiro e engloba totalmente oito estados (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e parte do Maranhão; > 56% da população indígena brasileira vive na Amazônia Legal; > Segundo o Censo de 2022, o Brasil tem 1,3 milhão de pessoas que se identificam como quilombolas. Desse total, quase 427 mil estão nos estados que compõem a Amazônia Legal.
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Luta quilombola paraense
O Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que a maioria dos quilombolas – pessoas remanescentes de quilombos dos tempos da escravidão – da Amazônia Legal está nos estados do Maranhão* (248.661 habitantes) e do Pará (135.033), totalizando 90% da população desse grupo apenas nesses dois estados. Conforme a pesquisa, dos 426,5 mil quilombolas da região, 80,9 mil estão em territórios oficialmente delimitados, o que representa 18,9% do total.
Um desses territórios listados pelo IBGE é a comunidade Santa Rita de Barreira, onde vive Iraci Santos, membro da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, a Malungu, que teve início em 1999 na região de Santarém. Dentre as cerca de 600 comunidades quilombolas existentes em terras paraenses, a organização acompanha pelo menos a metade.
A principal fonte de renda das comunidades quilombolas do Pará é proveniente da agricultura familiar, inclusive de um produto que é ancestral no Brasil, a mandioca, e seus derivados, como a farinha e o polvilho. Os povos tradicionais cultivam, ainda, banana, hortaliças e frutas. Diversos territórios atuam para a subsistência, com a pesca e o extrativismo na Floresta Amazônica.
“Hoje, uma das maiores demandas dos territórios quilombolas no Pará é a regularização fundiária, uma das principais bandeiras de luta da Malungu. E é a falta de regularização que mais traz problemas para os nossos territórios, porque a maioria não está delimitado e titulado. Poucas áreas têm documentação. O governo estadual é o que mais titula terra quilombola, mas a maioria das que são tituladas não são reconhecidas em sua totalidade. Por exemplo, geralmente falta indenizar pessoas, como empresários e fazendeiros, que residem em áreas dentro dos nossos territórios, e essas pessoas causam muitos problemas ao nosso povo”, contextualiza Iraci.
A liderança quilombola afirma, ainda, que, além da regularização fundiária, as comunidades pleiteiam diversas políticas públicas nas áreas de educação, saúde e saneamento básico. “Muitas vezes, para essas políticas chegarem, nós precisamos ter a documentação das terras, então uma coisa trava a outra. São essas as principais demandas das populações que acompanhamos no estado”, explica.
São necessidades básicas reivindicadas pelas comunidades descendentes de pessoas escravizadas no Brasil que, quando não atendidas, fazem vítimas. “Os processos de regularização são muito demorados, e são eles que mais causam conflitos dentro do estado do Pará. A gente se preocupa muito, porque várias de nossas lideranças já tombaram [morreram] em decorrência desses conflitos”, aponta Iraci.
> Saiba mais: no portal da Fundação Palmares é possível acompanhar o andamento dos processos de regularização de áreas quilombolas de responsabilidade do governo federal.
>> A nível estadual, a responsabilidade pela regularização fundiária é do Instituto de Terras do Pará (Iterpa).
O ser amazônida negra
Jaycelene Maria da Silva Brasil, ou Jayce Brasil, é uma socióloga acreana formada pela Universidade Federal do Acre (UFAC), pós-graduada em gestão estratégica de políticas públicas pela Universidade de Campinas (Unicamp) e militante de direitos humanos formada pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular do Acre, o CDDHEP.
Em depoimento enviado à Revista Casa Comum, Jaycelene conta que atuou como professora de sociologia no ensino público em 2015 e 2019, e que, atualmente, trabalha com educação popular e é entusiasta dos processos de ‘afrobetização’, nos quais procura demarcar, em suas falas, a importância da valorização do “ser amazônida” na Amazônia acreana que ainda não se percebe negra. Confira a seguir:
“Eu me descobri uma pessoa de pele preta com consciência política há cerca de 20 anos. Nasci uma pessoa que, aos olhos de parte da sociedade e para mim, naquele momento, eu era morena. E a partir de uma bolsa que ganhei da Conectas, organização de direitos humanos, começo a politicamente ler e a fazer formação para mergulhar no tema da promoção da igualdade racial. Esse período de letramento racial é uma caminhada, às vezes solitária, dolorosa.
Atualmente, trabalho com projetos de ‘afrobetização’ em escolas e instituições, porque acho muito importante pautar a importância das Leis 10.639 e 11.645. Sou entusiasta dessas formações que abordam o que é ser uma pessoa preta, da desumanização que acontece conosco por conta do racismo, e a escola é uma importante porta de entrada. E a gente vê que as pessoas amazônidas têm muita dificuldade em se verem pretas, porque, no imaginário social, não há pessoas pretas nesse território, apenas indígenas.
Vejo que esse último Censo do IBGE traz um crescimento da população preta do Acre e de outros estados, e isso mostra o resultado do trabalho de movimentos negros e de políticas públicas iniciadas em 2003.
No Acre, precisamos fortalecer esse trabalho ainda mais. Não temos mais uma Secretaria Municipal de Igualdade Racial há quase quatro anos em Rio Branco; dentro do governo estadual, não temos um departamento que pulverize com seriedade e qualidade essas políticas públicas; não temos um acompanhamento contínuo das leis que citei acima, o que quebra o processo de fortalecimento de política pública.
Temos pequenos grupos atuando sobre ser negro na Amazônia e a partir dessas políticas públicas. E eu me considero uma dessas pessoas. Penso que quando a gente entende o que é ser negro, a gente cria forças, lembra da trajetória de quem veio antes e pauta o nosso trabalho com esperança, apesar de ser uma luta longa e árdua.”
Reconhecimento Facial: o inimigo agora é rosto
Por Luiza F. Martins – 30/11/2023
Conheça os sombrios impactos do reconhecimento facial, as complexidades desse sistema intrusivo e suas implicações para as liberdades civis
O filme Coded Bias investiga o viés racista no algoritmo de reconhecimento de face l Crédito: Reprodução/Netflix
No dia 24 de setembro, a TV Globo divulgou imagens onde pessoas recrutadas pelo tráfico aparecem fazendo treinamento militar no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em meio a espaços públicos da comunidade como escolas e creches. Em resposta, o governador Cláudio Castro iniciou uma megaoperação na favela da Maré, zona norte do Rio, sem prazo definido para acabar e em parceria com a Força Nacional. Um dos principais objetivos da operação, além de bloqueios de entrada pela Força Nacional por tempo indeterminado, é o uso de drone e a instalação de câmeras de reconhecimento facial em toda a comunidade.
Você provavelmente já ouviu falar de reconhecimento facial, já que essa tecnologia tem se tornado cada dia mais comum no dia a dia das pessoas ao redor mundo e mais recentemente aqui no Brasil. Mas você sabe de fato o que isso representa e por que ela tem sido largamente utilizada na segurança pública?
Quem nos ajuda a entender o que são essas tecnologias e para que elas são usadas é Horrara Moreira, educadora popular, pesquisadora, advogada e atual coordenadora da campanha Tire meu Rosto da Sua Mira, um dos principais movimentos da sociedade civil pelo banimento das tecnologias de reconhecimento social das forças de segurança pública do Brasil.
“As tecnologias de reconhecimento facial funcionam através de algoritmos. Algoritmos são regras matemáticas para processamento de dados e informações. Mas tem um propósito definido. São criadas por seres humanos. Então esses algoritmos vão identificar pontos no nosso rosto como o espaço entre os olhos, o tamanho do nariz, da boca, do seio face, isso tudo vai ser convertido em número e à essa medida da nossa face é dado o nome de biometria facial”, diz.
Segundo Horrara, existem alguns tipos de aplicações mais usuais para esse tipo de tecnologia: a comparação humano/objeto, que vai definir o que é uma pessoa e o que é um objeto, leitura de emoções, utilizada geralmente em contextos de pesquisa de mercado relacionada a publicidade e propaganda e a satisfação dos usuários, a leitura biométrica para confirmação de dados como visto nos aparelhos telefônicos para acesso à aplicativos e o uso comparativo na segurança pública.
“O reconhecimento facial vai coletar a biometria e com outro banco de dados de referência, ele vai pegar essa biometria e dizer o quanto uma pessoa se parece com alguém naquele banco de dados onde está sendo procurado, e aí mora o perigo: é onde nossos direitos começam a ser violados”, aponta.
A pesquisadora afirma que tecnologias como esta são capazes de nos identificar, nos classificar, classificar o nosso comportamento, e dizer se o que estamos fazendo é algo suspeito ou não. Além disso, elas também são programadas para coletar dados de vigilância e identificar onde estivemos, onde passamos e o que estivemos fazendo, tornando-se capaz de criminalizar nossos corpos e nossas práticas.
Sabemos que os sistemas de reconhecimento facial são alimentados por imagens. E quem alimenta esse banco de imagens? Bem, se você pensou que só o Estado é capaz disso, está apenas na metade do caminho do problema. Essas imagens podem ser cedidas por particulares, empresas, condomínios, entre outros.
“Toda a cidade, todo esse aparato de vigilância vai compor esse sistema de reconhecimento facial em prol da segurança pública. E aí a gente vai sempre questionar: segurança pra quem? Pra que? Quem é o inimigo? De quem que a gente tem que se defender?”, questiona Horrara.
Quais direitos estão sendo violados através do uso reconhecimento facial?
Para Moreira, a nossa liberdade de expressão e associação é facilmente comprometida com o uso da tecnologia. No Brasil, não são raros os casos de criminalização do ativismo e da atividade política de oposição minoritária, como o que aconteceu em Alter do Chão. Até o protesto, enquanto exercício da própria democracia, está sujeito a violações com o uso de sistemas de reconhecimento facial.
“Como que você vai fazer um protesto? Como é que você vai reunir um grupo de pessoas mesmo que seja em praça pública? Se toda a sua atividade política, a sua identidade está exposta ali”, contesta.
Ela ainda aponta a discriminação de gênero e de raça como pontos urgência na discussão, como investiga o pesquisador Tarzício Silva em seu livro que cunha o racismo algorítimico presente em mecanismos como o reconhecimento facial, filtros para selfies, moderação de conteúdo, chatbots, policiamento preditivo, escore de crédito, entre outros.
Um estudo realizado pela Rede de Observatórios de Segurança em 2019 corrobora com o apontamento: 90,5% dos presos por monitoramento facial no Brasil são pessoas negras.
Para além das consequências dos algoritmos que reforçam o preconceito e a discriminação, o próprio mercado se encaminha da aprimoração e da precisão das tecnologias a todo o tempo, inclusive para que “não tenhamos mais argumentos para dizer que essas tecnologias são danosas para diversos grupos de pessoas”. Ainda segundo Moreira, é o aumento dessa precisão que vai expandir o superencarceramento da população jovem, da população negra e periférica no Brasil.
“Uma vez que o seu rosto e sua biometria facial são capturados, eles também podem ser combinados com outros dados e outras informações que o governo já tem sobre você através de outros cadastros: onde você mora, o que você faz, o quanto você ganha, qual é a sua cor, dados de saúde, dados de mobilidade, tudo isso pode ser combinado gerando um painel de controle muito sofisticado que vai ser utilizado pelo estado”, alerta.
Toda a combinação dessas potenciais violações lançam luz sobre a necessidade de banimento das tecnologias de reconhecimento facial.
Sistema de reconhecimento facial na Serrinha l Crédito: Divulgação/Goiás
Histórico tecnoautoristarista brasileiro
No Brasil, o autoritarismo é atemporal, e embora marcado pelo período ditatorial, persegue movimentos sociais muito antes da ditadura militar, utilizando das tecnologias para vigiar e desarticular organizações de esquerda e outros movimentos, bem como para criminalizá-los.
Tecnoautoritarismo é um termo cunhado pelo projeto “Defendendo o Brasil do Tecnoautoritarismo”, do DataPrivacy Brasil, e ilustra esse cenário de ampliação do poder estatal para o fortalecimento das capacidades de vigilância e supervisão da população, muitas vezes à custa da violação de direitos fundamentais. Para Horrara, as tecnologias de reconhecimento facial seguem a mesma lógica, apenas potencializando práticas de governos autoritários.
“Tem uma capacidade, uma habilidade dessas tecnologias que chamam de trekking, que é justamente conseguir traçar um perfil de onde você passou. Uma linha do tempo de onde você esteve, com quem você esteve, o que você disse”, diz.
Por isso mesmo, ativistas de direitos humanos integram os grupos mais vulneráveis às essas tecnologias, suas falhas e seus algoritmos racistas, seja ao realizar protestos, encontros, reuniões “ou até mesmo criticar um governo que tenha a mão uma tecnologia como esta”.
O dossiê antifascista, produzido pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça do governo Bolsonaro, é um exemplo dessa perseguição em curso, e que utilizou das bases de dados que são cruzadas dentro do reconhecimento facial através de osintes, tecnologias que buscam informações de fontes abertas disponíveis na internet, onde pelo menos 579 servidores que se alinhavam ao movimento antifascista e contra o governo à época, tiveram os seus nomes, seus endereços e dados pessoais organizados em um grande dossiê, implementando-se a partir disso uma perseguição à esses servidores, lembra Moreira.
Posteriormente o dossiê foi barrado pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal de que ali se conformava um claro desvio de finalidade da máquina pública para a produção e o compartilhamento de informações pessoais de servidores, afrontando o direito fundamental da livre manifestação de pensamento e de associação.
Reconhecimento facial nas escolas: tecnologia educacional ou boicote à juventude e educadores?
“Eu desafio um professor a dizer no que o reconhecimento facial auxilia na prática pedagógica ou melhora na vida da comunidade escolar”, questiona a educadora.
Em março deste ano, o Internetlab identificou em um relatório pelo menos 15 escolas públicas que utilizam a tecnologia de reconhecimento facial em todo o Brasil. Grande parte das inovações em tecnologia digital aplicadas à segurança surgem aliadas ao discurso da inovação, em respostas aos acontecimentos que são vivenciados em espaços públicos. Recentemente, as escolas brasileiras têm enfrentado uma onda de violência sem igual, com um aumento aterrorizante de ataques armados promovidos contras essas instituições – prática de grupos de extrema-direita que circulam sem muito controle na Internet – e a aplicação do reconhecimento facial se dá nesse contexto. No entanto, “o reconhecimento facial é uma tecnologia que vai ser utilizada posteriormente para fins de identificação”, como alegam argumentos favoráveis à sua aplicação, “o que é possível ser feito através de outros meios”, afirma Moreira.
Outro argumento é a validação da entrada de pessoas dentro das escolas, sendo utilizado inclusive para controle de frequência dos alunos.
“É uma tecnologia extremamente cara, que erra muito e que tem todos esses vieses de coleta de dados que vão estar sob guarda do poder público, sendo usada para controlar frequência. Não existe ainda uma pesquisa sobre a destinação desses dados de crianças e adolescentes ”, diz.
Carecem ainda pesquisas sobre a destinação dos dados de crianças e adolescentes no contexto escolar. Para a pesquisadora, existem muitas perguntas a serem feitas sobre o tratamento de dados nesse cenário, e todas apontam para uma criminalização da juventude.
Para ela, os argumentos que o poder público traz não se sustentam:
“Já tem dados também que mostram que só as públicas implementam, as escolas particulares não entendem isso como uma alternativa boa ou como um ganho pro ambiente escolar”, lança outro alerta.
Enquanto faltam pesquisas, os relatos de perseguição aos professores através da biometria facial é que tendem a se tornar mais comuns com o avanço das tecnologias nas escolas.
“No sul existem relatos de professores que estão sendo vigiados, está sendo feito um controle ideológico daquilo que o professor pode ou não apresentar dentro de sala de aula. Existem louças mágicas, quadros digitais interativos equipados com câmeras de reconhecimento facial, que fazem a leitura das emoções dos alunos a partir do conteúdo que o professor apresenta, e que criam um score de como a criança reage àquilo ali que foi apresentado”, diz.
Para Horrara, a extensão do problema é a perseguição ao professor que ousar ensinar sobre gênero e sexualidade dentro das escolas, inevitável nesse contexto de utilização do reconhecimento facial como uma tecnologia educacional.
Banir de vez o reconhecimento facial é possível?
No mundo inteiro, o movimento contra a utilização de sistemas de reconhecimento facial tem lutado pelo banimento da tecnologia na segurança pública. Nos Estados Unidos, a Câmara Municipal de Minneapolis, no estado norte-americano de Minnesota, epicentro dos protestos contra o racismo no país depois que George Floyd foi assassinado brutalmente por um policial em 2020, baniu por unanimidade o uso de software de reconhecimento facial pela polícia no ano seguinte.
“Existem também relatórios da Inteligência norte-americana, que declarou utilizar o reconhecimento social contra manifestantes do movimento Black Lives Matter”, comenta.
Cinco anos antes, a tecnologia já tinha sido utilizada para rastrear e prender os manifestantes de outro estado norte-americano, que reagiram ao assassinato de Freddie Gray, sob custódia policial.
Para Horrara, é importante destacar não só o banimento da tecnologia como resultado da luta em muitos lugares, mas também como no próprio processo de luta, ela foi utilizada contra ativistas.
“Também em Buenos Aires, na Argentina, a Corte julgou que o sistema era anticonstitucional e a polícia foi obrigada também a destruir todos os bancos de dados dessa vigilância massiva. Então a argumentação do controle da cidade não se sustentou diante das violações que foram identificadas”, diz.
No Brasil a questão é um pouco mais complexa já que a matéria de segurança pública, de acordo com a Constituição Federal, é separada por competências sobre aquilo que pode ser legislado e executado pela União e pelos Estados. A responsabilidade pela segurança pública é dos Estados, consequentemente estão no controle das polícias: “a gente tem vinte e seis estados e o Distrito Federal, esse é o tamanho do nosso desafio”.
“Pra além disso, as tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública também têm sido utilizadas pelas prefeituras, pelas guardas municipais, pelos grandes centros de comando e controle. Aí temos um debate também sobre a técnica legislativa, sobre até onde vai a competência de um ente. E aí, quem vai comprar essa briga?”, questiona.
No último ano, a proteção de dados pessoais se tornou um direito fundamental, previsto pelo artigo 5° da Constituição Federal como um direito de todo cidadão brasileiro.
Para Moreira e outros ativistas defendem firmemente a federalização do debate da proteção de dados a partir de uma visão estratégica de banimento, pois levar a discussão e a regulação para dentro da Câmara dos Deputados e do Senado Federal acende outros alertas.
“A gente tem ali a construção do Senado e da Câmara cada vez mais reacionária, cada vez mais fascista, e cada vez mais complicado pra pautas de direitos humanos avançarem, então não pode ser um tiro no pé do movimento, porque se a gente legaliza os usos, que tipo de argumento a gente vai ter pra combater as prisões? Se está tudo dentro do verniz da legalidade?”, diz.
Há quem acredite que o movimento pelo banimento do reconhecimento facial está radicalizando o debate, mas a ativista rebate:
“Não tem um meio termo, é necessário ser radical, não existe um uso possível ou um uso seguro desta tecnologia. A gente está falando sobre dados pessoais de milhões de pessoas. É um ideal radical à nossa liberdade também, como a abolição da escravatura já foi algo radical e a gente não deixou de optar por ele”, finaliza.
Movimento Amplia mostra como gerar mobilização por uma universidade mais inclusiva
Por Luana Reis Pinto Matsumoto* e Luísa Guimarães Tarzia* – 30/10/2023
O Movimento Amplia recebe doações durante todo o ano e já apoiou mais de 4 mil estudantes | Foto: Nego Junior
No mês de junho de 2020, em meio à pandemia de Covid-19 e as manifestações contra a violência racial no Brasil e no mundo, foi veiculada uma triste notícia para a educação: mais de 300 mil estudantes não tinham pago sua inscrição do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio.
O Enem é hoje a principal porta de entrada para as universidades públicas, federais e estaduais em todo o país. Além disso, a nota da prova também pode ser usada para bolsas de estudo parciais e integrais em universidades particulares. Embora algumas universidades ainda adotem exames próprios, como a USP com o vestibular da FUVEST, também adotam o Enem de forma paralela.
Naquele momento, muitas famílias haviam perdido entes queridos, emprego e renda, somando a pandemia à crise econômica que se agravava. Estudantes do Ensino Médio, se preparando para o vestibular ou para encerrar aquele ciclo, foram especialmente prejudicados(as) no ensino remoto. Muitos(as) jovens não tinham condições de acompanhar as aulas, sem computador ou acesso à internet, além da falta de políticas coordenadas para a docência, também sem ou com poucas condições de ministrar aulas remotas. Muitas pessoas perderam conteúdo essencial para a preparação para o vestibular e Enem, bem como o vínculo escolar, aumentando a evasão em uma etapa da formação que já tem altos índices de abandono: jovens de 15 a 17 anos fora da escola, sem ter concluído a Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio), são cerca de 680 mil, ou seja, 7,1% desta faixa etária, de acordo com a Pnad Contínua 2019.
Nesse contexto, realizar a prova do Enem havia se tornado uma realidade distante, quando não impossível, para muitas pessoas. Somado ao cenário de desesperança geral e falta de perspectivas quanto ao futuro, a taxa de 85 reais da inscrição era impeditiva para muitas pessoas.
Um grupo que se conheceu na Universidade de São Paulo (USP), participando de um coletivo de extensão universitária de Direitos Humanos e Educação Popular, decidiu se mobilizar para apoiar jovens com a inscrição do Enem em 2020. Assim, arrecadaram doações para pagar as inscrições para as juventudes pretas, pardas e indígenas de baixa renda. O recorte racial, desde o início, foi um mote essencial para o grupo, mobilizado também pelos protestos antirracistas ocorrendo no Brasil e no mundo. Muitos(as) estudantes relataram situações precárias, em que tinham que escolher entre pagar o gás ou fazer o Enem ou que já tinham desistido de fazer a prova pela perda de conteúdos e falta de aulas durante a pandemia.
Desistir de uma prova anual significa para muitos não fazer mais o vestibular, encerrando o ciclo educacional de jovens de baixa renda no Ensino Médio. Além disso, diminui a probabilidade de ascensão social, pois a chance de uma(a) filho(a) de famílias pretas e pardas de baixa escolaridade também ter pouco estudo é de 64%, dado que aumenta se considerarmos o recorte de classe: mais de 80% entre famílias pobres. Esses percentuais são mais que o dobro dos EUA (29,2%) e dos países da OCDE (33,4%), que engloba países chamados desenvolvidos.
A partir da primeira campanha, chamada AMPLIA Enem 2020, nos organizamos para realizar mais ações incidindo em vestibulares regionais, como da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), o vestibular indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Universidade de São Paulo (USP), uma das taxas de inscrição mais caras do país: 191 reais.
Dificuldades dos estudantes
Nesse processo, pesquisamos sobre as políticas de isenção das taxas de inscrição disponibilizadas pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pelo Enem, e da FUVEST (Fundação para o Vestibular), responsável pela prova da USP.
O processo é burocrático e o prazo de solicitação é muito anterior ao período de inscrições: para prestar a USP, por exemplo, em 2023 o pedido deve ser feito entre 1º de junho e 15 de julho, enquanto as inscrições para a prova são abertas em 15 de agosto, 1 mês depois do encerramento dos pedidos. Em escolas onde jovens não recebem informações sobre o vestibular ou recebem poucos estímulos para seguir estudando e prosseguir para o Ensino Superior, muitos(as) estudantes descobrem o direito à isenção da taxa próximo à data da inscrição da prova, efetivamente sendo excluídos(as) do processo.
O desmonte das universidades públicas, com cortes de financiamento e atacadas publicamente no último governo, contribuem para o tamanho das políticas de auxílio e permanência de que podem dispor, incluindo as políticas de isenção da taxa do vestibular.
Na gestão do governo Bolsonaro (2018-2021), muitos(as) estudantes que não fizeram o Enem 2020, devido à Covid-19, tiveram seu pedido de isenção da taxa de inscrição negado, devido à ausência no comparecimento da prova no ano anterior. Mesmo em circunstâncias graves e atenuantes, não foi considerado o contexto desses(as) estudantes, prejudicando jovens de baixa renda de forma desproporcional. Sabendo que a maioria da população de baixa renda é preta, parda e indígena, agravam-se as desigualdades entre esses grupos e pessoas brancas de alta renda, contribuindo para a sub-representação nas universidades: as juventudes pretas, pardas e indígenas (PPI) são metade das juventudes brancas nas universidades.
O quadro abaixo ilustra como as juventudes PPI foram prejudicadas em relação às inscrições do Enem nesse período: o número global de inscrições sofreu queda vertiginosa de mais de 5 milhões para pouco acima de 3 milhões, aproximadamente 40%; e o número de pessoas PPI saiu de 3.530.090 em 2020 para 1.887.931 no ano seguinte, uma diminuição de 46,5%. Também se vê queda no número de isenções garantidas: de 4.794.390 para 2.013.103, cerca de 40% a menos em relação ao ano anterior.
Quadro comparativo de inscrições por raça entre 2020 e 2021
cor/raça | ||||||||
Ano |
Número de pessoas que conseguiram a isenção |
Número de Inscrições no Enem |
Não Declarada |
Branca | Preta | Parda | Amarela | Indígena |
2020 | 4.794.390 | 5.783.133 | 116.883 | 2.007.637 | 771.744 | 2.720.500 | 128.523 | 37.846 |
2021 | 2.013.103 | 3.389.832 | 71.149 | 1.362.256 | 411.302 | 1.457.454 | 68.491 | 19.175 |
Fonte: Enem Sinopses Estatísticas do Exame Nacional do Ensino Médio. Acesso em 20/04/2023
Realizando as campanhas de pagamento de inscrições, coletamos dados socioeconômicos sobre os(as) estudantes que pediram nosso apoio. Por que não conseguiram a isenção?
Primeiro, é preciso saber os critérios definidos pelo Inep para isenção da taxa do Enem:
- Participantes que estão no último ano do ensino médio de escolas públicas;
- Alunos que estudaram durante todo o ensino médio na rede pública ou como bolsistas integrais da rede privada, desde que tenham renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (R$ 1.980);
- Cidadãos em vulnerabilidade social, com inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).
Assim, estudantes de baixa renda que estão acima do valor per capita estabelecido, por vezes apenas 10 ou 20 reais acima, conforme relatos, seguem sem os meios necessários para o pagamento da taxa são algumas das pessoas excluídas dos critérios.
Com dados de 975 estudantes coletados na Campanha AMPLIA Enem 2022, vemos que a ampla maioria (59,7%) desses estudantes perdeu o prazo para o pedido. Em segundo lugar, 246 estudantes (25,2%) tiveram seu pedido de isenção negado, em especial, pelo envio incompleto da documentação. Chama atenção, ainda, que quase 10% dos estudantes respondentes não sabiam nem que existia isenção da taxa. A minoria – apenas 2,4% – não preenchia os requisitos necessários.
É importante notar o perfil desses 975 estudantes: 62,3% de mulheres cis e 32,1% de homens cis, 83% se autodeclaram como pretos(as) ou pardos(as), 40% recebiam Auxílio Brasil em 2022 e, entre aqueles que concluíram o Ensino Médio, 72,5% estudaram integralmente em Escola Pública.
Vemos que a perda do prazo de inscrição é, ainda, a maior dificuldade desses estudantes, demonstrando como o descompasso entre as datas de pedidos de isenção e datas de inscrição nas provas impactam esses jovens, especialmente dada a falta de informação em suas escolas – a falta de divulgação faz com que percam o período para solicitar a isenção. Se soma a esse quadro a questão que muitas vezes esses(as) estudantes são desestimulados(as) a fazerem o Enem e outros vestibulares, como nos relatam os jovens que atendemos.
Experiência do Movimento Amplia
Considerando que as políticas públicas desenhadas pelas universidades não alcançam o universo das juventudes de baixa renda em sua totalidade, o Movimento AMPLIA, como organização da sociedade civil, faz campanhas de vestibular para o Enem, anualmente, e atua com projeto AMPLIA Vestibulares para apoiar inscrições de todo o país em universidades públicas e filantrópicas.
Atualmente, ações do tipo são realizadas comumente por mobilização interna de cursinhos pré-vestibular, para seu próprio corpo discente. Nacionalmente, desconhecemos outras organizações que apoiam jovens de qualquer estado do país com a inscrição do vestibular, em especial com recorte racial claro como o estabelecido pelo AMPLIA. Dessa forma, conseguimos apoiar jovens que estão fora dos critérios de isenção mas que ainda não têm condições de pagar taxas que podem variar entre 85 e 192 reais.
A organização recebe doações que custeiam o pagamento dessas inscrições, avaliadas caso a caso antes de serem pagas pelo AMPLIA. Cada estudante precisa comprovar renda, enviar documentação e indicar o vestibular e curso pretendido, além de informar a razão de não ter conseguido a isenção da taxa. Essa pergunta, além de orientar o trabalho do Movimento AMPLIA, abre as portas para que estudantes saibam que o benefício da isenção existe e pode ser acessado por jovens de todo o país.
O trabalho é realizado de forma online com o apoio de pessoas voluntárias para a verificação das inscrições e documentação, além da equipe da organização. Cada estudante recebe a confirmação do processo em todas as etapas e, por fim, o comprovante do pagamento da taxa.
O AMPLIA acompanha durante o próximo ciclo as aprovações em cada vestibular apoiado, por meio de pesquisa nos sites das instituições e comunicação direta com os(as) estudantes atendidos(as), considerando que o Sisu (Sistema de seleção unificado) não divulga lista única das aprovações e que a nota do Enem é utilizada para conceder bolsas de estudo em universidades filantrópicas e privadas.
Resultados
O Movimento AMPLIA já apoiou mais de 4 mil estudantes com o pagamento de suas inscrições de vestibular, com a contribuição de pessoas apoiadoras do Brasil e do exterior que doam para a organização: é com a força dessa rede, que acredita na equidade racial e social e no poder transformador da educação, que nossa atuação é possível.
Das mais de 3400 inscrições, temos mais de 80 aprovações confirmadas em universidades públicas e em universidades privadas (com bolsa integral) desde 2020.
Muitos(as) estudantes disseram que esse apoio foi fundamental e que, sem ele, não teriam feito nenhum vestibular. “Eu sou uma das 24 [estudantes aprovadas], e sem algum apoiador não estaria aqui hoje, obrigada!”, disse a estudante de Enfermagem, Jhenyfer, umas das 24 aprovadas na USP em 2023, que recebeu apoio do AMPLIA para pagar a taxa de inscrição.
Mesmo que não tenham sido aprovados, o pagamento da inscrição possibilitou que muitos(as) estudantes fizessem a prova e acreditassem que poderiam seguir tentando, efetivamente contribuindo com sua experiência e autoestima.
A atuação da sociedade civil, por meio de organizações sociais que propõem projetos de apoio a pessoas em situação de vulnerabilidade só é possível pela articulação de diversos atores nesse processo. A escuta de nossos estudantes é prioritária e essencial para uma atuação assertiva e pertinente a essas juventudes, pretas, pardas e indígenas que sonham em estudar na universidade e construir um futuro profissional, investir em crescimento pessoal, além de alcançar a mobilidade social. A parceria com organizações de atuação local em diferentes estados, com destaque para o trabalho fenomenal realizado por cursinhos populares de todo o país, é um pilar de nosso trabalho. Por fim, sem pessoas voluntárias e apoiadoras que veem o valor das juventudes para a construção do futuro, atuando no presente, o trabalho do Movimento AMPLIA não seria possível.
Para participar
O Movimento Amplia recebe doações durante todo o ano e já apoiou mais de 4 mil estudantes.
É possível participar da campanha de financialmento com valores mensais por meio do Apoia-se.
Para doações pontuais, a chave PIX é: contato@movimentoamplia.org.br
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REFERÊNCIAS
AÇÃO AFIRMATIVA E POPULAÇÃO NEGRA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: ACESSO E PERFIL DISCENTE. Tatiana Dias Silva. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Rio de Janeiro, junho de 2020.
*Luana Reis Pinto Matsumoto é bacharela em Turismo pela Universidade de São Paulo e pós graduanda em Gestão de Projetos pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” Esalq/USP. Co-fundadora do Movimento AMPLIA.
**Luísa Guimarães Tarzia é bacharela em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e Atriz pelo Teatro Escola Macunaíma. Co-fundadora do Movimento AMPLIA.
Entenda como o povo do Equador deu um basta à exploração petrolífera na Amazônia
Por Bárbara Poerner – 27/10/2023
Em agosto, cidadãos equatorianos votaram contra a continuidade da exploração do combustível fóssil no Parque Yasuní, mas esse resultado é fruto de anos de mobilizações e campanhas
“Pelo Yasuní, nunca cansamos”, diz cartaz de manifestante l Foto: Reprodução
“Você concorda que o governo equatoriano mantenha o petróleo do ITT, conhecido como Bloco 43, indefinidamente no subsolo?”
Essa foi a pergunta que a população do Equador respondeu formalmente no dia 20 de agosto de 2023. Na ocasião, eles foram votar em suas eleições presidenciais e em duas consultas populares – uma delas, a do enunciado. A maioria dos equatorianos disse não à continuidade da exploração de petróleo: foram 58,98% de pessoas que concordaram em manter os fósseis no chão, conforme dados do Conselho Nacional Eleitoral, garantindo ao país o título de primeiro do mundo a banir, por voto popular, a exploração do hidrocarboneto em áreas ambientalmente sensíveis.
ITT refere-se aos campos petrolíferos de Ishpingo, Tiputini e Tambococha, localizados no Parque Yasuní, que são explorados desde 2016. O parque, criado no ano em que o Equador voltou a ser uma democracia – 1979 -, compõe uma região de aproximadamente um milhão de hectares na Amazônia equatoriana, reconhecida como reserva da biosfera pela Unesco e que abriga centenas de espécies de árvores, plantas e animais, sendo um dos ecossistemas mais biodiversos do planeta. Lá também vivem povos indígenas isolados, chamados de Tagaeri e Taromenane.
O “não ao petróleo” foi fruto de longas e intensas campanhas, mobilizações e articulações de ativistas, pesquisadores, movimentos sociais, entidades e sociedade civil do Equador. “Era uma campanha que falava sim à vida, sim à manutenção do Yasuní, sim à conservação”, conta Esperanza Martínez, bióloga e fundadora da ONG ambiental Acción Ecológica, com sede em Quito.
“A mobilização não só foi midiática e nas redes sociais, mas sobretudo nas ruas, com panfletos, alto falantes e em eventos públicos, para deter uma campanha de medo nunca antes vista no Equador, que tentava dizer que se os Yasuní não fossem explorados, ficaríamos sem dinheiro para a saúde, para a educação, ou que a dolarização simplesmente iria cair”, relata.
Uma luta antiga
No ano de 2008, o Equador aprovou uma Constituição, por meio de um referendo popular, que até hoje é uma das mais avançadas em questões socioambientais. Ela reconheceu os Direitos da Natureza, incorporou o conceito tradicional do “bem viver” e criou mecanismos de participação cidadã, como as consultas populares.
À época, o governo equatoriano lançou a Iniciativa Yasuní ITT, que pretendia não explorar petróleo no Parque Yasuní desde que os países do Norte Global pagassem uma compensação pelas suas emissões de gases de efeito estufa (GEE), já que a maioria deles são os principais poluidores globais. Segundo Esperanza, esse foi o primeiro estágio das campanhas de preservação do Parque.
Mas as compensações não chegaram e a meta de arrecadação não foi cumprida. Isso fez com que o governo equatoriano, em 2013, suspendesse formalmente a proposta Yasuní ITT, dando início, em 2016, à exploração de petróleo no Bloco ITT.
Esperanza relembra que quando o apoio do governo caiu, “o tipo de mobilização mudou e começamos a recolher assinaturas em todo o país para convocar uma consulta popular, que é um mecanismo de participação muito forte e reconhecido constitucionalmente no Equador no artigo 104 da Constituição”.
Para efetivar o plebiscito, eram necessárias 500 mil assinaturas. Ativistas, movimentos e entidades percorreram todo o país e conseguiram mais do que esse número – em torno de 700 mil. Mesmo assim, o governo foi relutante em reconhecer o processo e por anos recusou-se a conceder a votação.
Apenas em 2023, após 10 anos e vários processos judiciais, o Tribunal Constitucional aprovou a consulta popular para o caso do Parque Yasuní. Nesta terceira etapa, Esperanza explica que “o tipo de mobilização mudou para uma campanha massiva com o objetivo de ganhar o apoio da sociedade, para votarem por não explorar o Yasuní”.
Agora, com a maioria dos equatorianos dizendo sim ao petróleo no chão, o Estado tem um ano para retirar as instalações já realizadas e não poderá iniciar novas áreas de exploração ou relações contratuais no bloco.
Esperanza falando na Cúpula da Amazônia, em agosto deste ano. l Foto: Naiara Jinkins
“A maldição dos recursos”
Existe a preocupação de como tudo isso é recebido pelos equatorianos, já que o país tem sua história e economia atrelada ao petróleo. A exportação do combustível fóssil bruto é a receita majoritária de exportação do Equador, conforme o Observatório de Complexidade Econômica. Por outro lado, o país é refém da importação devido à falta de industrialização do hidrocarboneto; em 2009, os derivados do petróleo foram 98% das importações de energia equatorianas.
A realidade mostra como fontes de energia fóssil ainda são uma commodity que engrena o capitalismo global e descortina os efeitos dos séculos de exploração da América Latina. Esperanza chama isso de “a maldição dos recursos”, tese que diz que os países com maior abundância de recursos naturais tendem a ter um crescimento econômico menor.
“Se você perguntar qual é nossa característica central, muitas pessoas lhe dirão que somos trabalhadores do petróleo. Construiu-se uma identidade de país como a de um país petrolífero e sempre utilizaram o discurso que as novas descobertas de petróleo irão nos tirar da pobreza”, explica Esperanza.
Isso significa que contrapor o discurso petroleiro não é algo atual, mas sim cumulativo, já que soma as décadas do setor no Equador. A bióloga destaca que o Equador está vivendo seu “julgamento do século”, o que lhes deu muitos argumentos sobre os impactos da atividade petrolífera na Amazônia equatoriana. O caso referenciado por ela é o da Chevron-Texaco, que durante suas atividades no país na década de 1970 contaminou milhões de litros de água e hectares de terra, causando a morte de centenas de pessoas e destruindo parte da biodiversidade local. O caso foi à corte do país, na qual a petroleira perdeu duas vezes, mas até hoje recusa-se a reparar os danos causados, estendendo a briga judicial há décadas.
O petróleo trouxe para o Equador mazelas impossíveis de esconder: as áreas que apresentam os maiores níveis de câncer são justamente as áreas petrolíferas; as regiões mais empobrecidas, que apresentam os piores indicadores de desenvolvimento humano, são as extrativistas; os diversos vazamentos de petróleo ao longo dos anos causam impactos até hoje; e a queima de combustíveis fósseis só agrava a crise climática.
Ou seja, Esperanza afirma que “a recepção da mensagem tem isso acumulado e embora haja uma forte reação por parte dos sectores estatais e dos sectores empresariais, já não se acredita nelas”, devido aos altos indícios de corrupção e violência onde encontram-se essas atividades.
“Já se sabe que a atividade petrolífera causa grandes impactos ambientais, já se sabe que dizer que desta vez haverá rendimento financeiro contradiz a realidade do final de cada década, o que mostra que o país está cada vez mais pobre”, explica.
“Nossa Amazônia não está à venda”, dizem manifestantes l Foto: Jerónimo Zuñiga/Amazon Frontline
Estratégias de mobilização
De acordo com Esperanza, foram articulados diferentes níveis de mobilização. “Em geral, eles têm se caracterizado por muita presença nas ruas e por tentar atingir a população jovem, que tende a ser mais empática com as questões da biodiversidade e as alterações climáticas”. Contudo, ela reforça que as ações são de caráter nacional e descentralizadas para evidenciar que não há vínculo com campanhas eleitorais.
O triunfo, para a bióloga, é reconhecer a própria diversidade do Equador e a partir disso criar estratégias. “Somos um Estado Plurinacional, onde existem muitos povos indígenas, com muitas diferenças entre regiões, e por isso é muito difícil estabelecer mensagens únicas. Então, a diversificação de mensagens e a empatia com essa diversidade é como um dos grandes pontos chave”, destaca.
Quanto aos desafios durante a campanha em Yasuní, ela elenca dois. Primeiro, a dificuldade de chegar em diferentes territórios e pulverizar as campanhas por meio de ações que ultrapassam o alcance digital das redes sociais; segundo, a carência de recursos, humanos ou financeiros, para impulsionar as campanhas.
Esperanza acredita que evidenciar os impactos nocivos da indústria petroleira é eficaz, pois sensibiliza as pessoas, “mas fizemos muito melhor chamando a atenção para as maravilhas que perdemos, mostrando a importância da natureza e de manter a biodiversidade”. Segundo ela, a estratégia de ser mais propositivo vem alterando o tom das campanhas no país, migrando de “um ‘não ao petróleo’ para para um ‘sim à vida’, sim à conservação de nossas florestas, sim aos modos de vida dos povos indígenas. Acredito que a afirmação da vida é algo que conquista e mobiliza mais do que apenas críticas”, finaliza.