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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Falta de titulação faz do Maranhão o estado mais perigoso para quilombolas

Apenas 6 dos 419 territórios foram titulados; Fazendeiros e empresários se aproveitam de situação e causam conflitos violentos

Por Letícia Queiroz – 09/05/2024

Babaçuais destruídos no Quilombo Onça, localizado em Santa Inês, no Maranhão l Foto: CPT-MA

No dia 19 de abril, um fazendeiro e seus funcionários entraram no quilombo Onça, em Santa Inês (MA) e soltaram mais de 250 cabeças de gado dentro da roça da comunidade. O ataque destruiu alimentos que sustentariam as famílias por vários meses.

João da Cruz, liderança quilombola e articulador do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM) que acompanha a situação, disse que o volume de animais acabou com as plantações no momento em que os produtos estavam no ponto de colheita.

“No espaço havia produtos deste ano e do ano passado. Tinha mandioca, milho, arroz, feijão, abóbora, maxixe, melancia, quiabo, vinagreira. Isso deixou o quilombo sem nada que garantisse sua sobrevivência. O quilombo resistiu a mais esse ataque, mas ficamos com o prejuízo. As famílias estão passando dificuldade com a destruição das suas roças. Ficaram sem nada”, disse.

Ataques como esse, assim como ameaças e assassinatos contra a população quilombola do Maranhão são uma constante nas últimas décadas e preocupam famílias, defensores de territórios e dos Direitos Humanos. Segundo o Moquibom e a Comissão Pastoral da Terra (CPT-MA), que acompanham a situação de violência, o Maranhão é o estado mais perigoso para quilombolas no país. Em grande parte, pela falta de titulação de terras. (Veja dados abaixo).

Leia mais:
+ Conflitos no campo batem recorde em 2023; CPT aponta aumento de ações de resistência territorial
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Carla Pereira, da Coordenação Colegiada da CPT-MA, explica que a situação de alerta na comunidade Onça começou quando os quilombolas decidiram retomar parte do seu território tradicional, que havia sido invadido. A decisão foi tomada quando as famílias não tinham mais onde plantar e construir.

“Com esse movimento, os fazendeiros começaram as ameaças, as intimidações, e por fim jogaram o gado dentro das roças. Grande parte do território vem sendo invadido por fazendeiros, que vão cercando tudo, espremendo o povo, o que força a comunidade a fazer resistência”, disse a coordenadora.

Quase quatro semanas após a invasão ao Quilombo Onça, ninguém foi responsabilizado pelo crime e nada foi feito pelos órgãos responsáveis. Além disso, pessoas não quilombolas e desconhecidas continuam sendo vistas entrando no território sem autorização, sempre encapuzados e com celulares nas mãos fazendo imagens. As lideranças afirmam que conflitos continuam acontecendo a todo momento em várias comunidades quilombolas do estado.

“A situação está muito tensa em todo o Maranhão. É conflito por cima de conflito e a tendência é aumentar com os grandes projetos do governo do Estado, a exemplo do MATOPIBA [região que engloba os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia”, afirmou João, do Moquibom.

Falta de titulação é sinônimo de violência

 

O episódio tem uma causa estrutural: segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra, o Maranhão é o estado com mais processos de regularização territorial quilombola junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no Brasil. Porém, o índice de titulação é mínimo. Apenas seis, dos 419 territórios com demandas territoriais no INCRA foram titulados em todo o estado.

O território do Quilombo Onça é reconhecido como comunidade quilombola pelo Governo Federal, mas ainda não é titulado. Esse é um problema de milhares de quilombos espalhados por todo o Brasil mesmo com a Constituição Federal determinando a obrigação do estado brasileiro em titular as áreas.

O quilombo Onça surgiu há mais de 120 anos e tem aproximadamente 100 famílias. Ele fica em uma área que abriga outras duas comunidades quilombolas: Quilombo Marfim e Quilombo Cuba. A área do Quilombo Onça é de 2.119 hectares.

 

Foto: Ronílson Monteiro/Moquibom

 

Carla Pereira informou à Escola de Ativismo que por causa da lentidão em analisar e resolver processos de regularização territorial, muitos quilombolas no Maranhão têm feito um movimento de autodemarcação dos territórios.

“Isso tem servido para garantir a manutenção de suas terras tradicionais, já que o Estado se omite em regularizar. Tudo que as comunidades quilombolas conseguiram avançar até hoje foi com muita luta e à medida que os quilombolas se organizam para defender seus territórios, o latifúndio avança cada vez mais violento sobre esses corpos e territórios”.

No Maranhão e em todo o Brasil a luta pela titulação quilombola é um ato de resistência, principalmente contra a mercantilização da terra ancestral. Lideranças, ativistas e defensores de territórios tradicionais cobram celeridade nas titulações de territórios quilombolas. Eles afirmam que o Estado Brasileiro age com rapidez para liberar licenças ambientais que permitem grandes desmatamentos, mas demora séculos para titular os territórios quilombolas em que vivem famílias em situação de perigo, vulnerabilidade e sem acesso a políticas públicas.

Rafael Silva, advogado e assessor jurídico da CPT-MA, informou que a grande maioria das situações de conflito de terra no Maranhão envolvem comunidades tradicionais antigas.

“São sempre espaços com uma história no local onde se vive há muitas décadas. A verdade é que os povos do campo vivem numa realidade de posse. São poucas as comunidades que possuem regularização fundiária através de diversos instrumentos que existem previstos na Legislação”, explica.

Esse fato agrava os conflitos territoriais e, consequentemente, as ameaças contra as lideranças que fazem a defesa dos seus territórios. Os dados da CPT apontam que, ao longo dos anos, há uma tendência de que os povos mais violentados sejam indígenas e quilombolas. O advogado diz que o número não é uma coincidência.

“As áreas de expansão do agronegócio desejadas são as áreas em que vivem comunidades tradicionais e toda vez que se tem uma demarcação de terra indígena ou uma titulação de território quilombola, essas áreas são definitivamente retiradas do mercado de terras. Então os interessados usam poderes político e econômico para impedir, atrasar, evitar e até para desfazer processos de regularização de territórios quilombolas e indígenas. Essas ações contrárias que chegam até mesmo a violência física, as ameaças de morte, os assassinatos. Então, as situações de conflito no Maranhão têm muito esse desenho relacionado à comunidade que estão lutando pela titulação e demarcação de seus territórios tradicionais”, disse Rafael Silva.

A CPT defende que a inserção da titulação quilombola na Constituição de 1988 foi fruto de muita luta popular e se deu após um século de silenciamento legislativo sobre os quilombos. Mas o Estado Brasileiro ainda não está cumprindo com o dever de dar dignidade a essas comunidades.

Para as comunidades quilombolas, o território significa mais que um espaço para morar. Simboliza vida e ancestralidade. É a história de um povo e de várias gerações. Ao contrário do que fazem as grandes empresas e fazendeiros, as comunidades quilombolas protegem, defendem e preservam os biomas enquanto a demora na titulação dá espaço para invasões e para a destruição da fauna e da flora.

Ao mesmo tempo em que os verdadeiros donos das terras têm vontade de viver em um território ancestral regularizado, os interesses financeiros de empresários, fazendeiros e grileiros têm tirado a paz e mais que isso: a vida.

Vista aérea da comunidade quilombola Onça l Foto: Ronílson Monteiro/Moquibom

“Zona de sacríficio”

Carla Pereira disse que há vários quilombos em perigo no estado. “O campo no MA virou uma zona de sacrifício. Os quilombos estão sendo atacados de todas as formas de leste ao sul do estado, pelo veneno, exploração de gás, construção do porto do Cajual, ferrovias, pelo desmatamento, pelo latifúndio, a expansão das fronteiras do MATOPIBA. As comunidades têm feito bastante movimentação  para dar visibilidade aos ataques e às ameaças. Porém, pouco tem sido feito para resolução dos conflitos por parte do Estado”, disse.

Ativistas afirmam que o Maranhão enfrenta um dos piores cenários do Brasil quando o assunto é conflito no campo e o índice de violências e assassinatos chama atenção no estado. O levantamento anual da CPT informou que o Maranhão está entre os estados mais perigosos para quem mora no campo e o mais violento de todos para quilombolas. Os dados informam que, entre janeiro de 2005 e a primeira quinzena de novembro de 2023, foram assassinados 54 quilombolas no Brasil, dos quais 20 no Maranhão e 20 na Bahia, estados que concentram 74% dos assassinatos de quilombolas no país (40 dos 54).

O Maranhão não tem a maior população quilombola do país, mas é o que proporcionalmente, mais mata quilombolas no em todo o Brasil. O ano de 2021 foi o mais sangrento, registrando cinco assassinatos. Em 2020 foram dois assassinatos de quilombolas, outros dois em 2022 e um até novembro de 2023.

Mas as mortes não estão concentradas apenas nos quilombos. A violência no campo bateu recorde histórico em 2023 no Brasil. Um levantamento da Comissão Pastoral da Terra contabilizou 2.203 conflitos no campo no ano passado, uma média de seis por dia – o maior número registrado desde o início da pesquisa. O aumento foi de mais de 7% se comparado com 2022.

Veja aqui os dados de conflitos no campo em todo o Brasil

Durante a entrevista, Carla Pereira pediu Justiça aos quilombos e disse que “o Estado  precisa se responsabilizar pela violência no campo”. Ela ainda cantou parte de uma cantiga entoada pelo MOQUIBOM. A letra traz reflexões para além das palavras: “Já chega de tanto sofrer, já chega de tanto esperar, a luta vai ser tão difícil, na lei ou na marra nós vamos ganhar”. 

“O tempo está difícil, mais ele nunca foi fácil para o povo do campo, que sempre teve que lutar para garantir a morada dos encantados e encantarias, a memórias dos seus ancestrais, o direito de viver,  cantar e dançar ao som dos  tambores que marcam o compasso da vida nesses territórios sagrados”, finaliza Carla.

Conflitos no campo batem recorde em 2023; CPT aponta aumento de ações de resistência territorial

Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) informa que o número de ocorrências foi o maior desde 2014; veja os dados

Por Letícia Queiroz – 09/05/2024

A CPT explica que entre os principais motivos de tanta violência está o desmonte das políticas públicas para o campo e a demora para demarcar e titular territórios l Foto: MST/Reprodução

A violência no campo bateu recorde em 2023. Um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 2.203 conflitos no ano passado, uma média de seis por dia – o maior número registrado em uma década, desde o início da pesquisa. O aumento foi de mais de 7% se comparado com 2022. As ocorrências envolvem povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, assentados e outras comunidades tradicionais. 31 pessoas foram mortas no período.

A CPT destaca em seu relatório que, no ano com o maior número de ocorrências, o país já estava sob comando do Governo Lula III. O documento também aponta que houve aumento das ações de ocupação e retomada de terras, práticas respaldadas pela ampliação do diálogo do presidente com as comunidades rurais e organizações populares do campo.

“Há que se olhar, porém, que o último dado indica também o fortalecimento dos movimentos sociais no campo, tendo as ações de resistência territorial e luta por reforma agrária quase dobrado de 2022 para 2023, alcançando 136 ações. Tais valores são bem acima das ações durante o governo Bolsonaro (maior número de ações foi 79, em 2022), mas ainda bem abaixo das 264 ações de 2014, durante o governo Dilma”, informa o texto do documento da CPT.

O movimento de resistência ocorre em função da lentidão em resolver processos de regularização territorial, além da morosidade na realização da reforma agrária. Em alguns casos as famílias retomam áreas invadidas e se tornam alvo de ameaças e intimidações, como o que aconteceu no Quilombo Onça, em Santa Inês, no interior do Maranhão. O estado enfrenta uma crise e é considerado o mais perigoso para quilombolas.

O relatório apresenta mapeamento dos agentes e das vítimas dos conflitos. Do total, 14 indígenas morreram vítimas da violência por conflito no campo. O segundo grupo mais afetado foram os sem terra, um total de 9 mortes. As outras vítimas são posseiros (4), quilombolas (3) e um funcionário público.

A CPT explica também que entre os principais motivos de tanta violência está o desmonte das políticas públicas para o campo e a demora para demarcar e titular territórios onde vivem comunidades tradicionais.

Leia mais:
+Falta de titulação faz do Maranhão o estado mais perigoso para quilombolas
+Violência contra comunicadores na Amazônia atinge 230 casos em dez anos; leia relatório

A violência tem crescido em regiões como a da tríplice divisa dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia (chamada de Amacro ou Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira). Segundo a CPT, dos 31 assassinatos no país registrados no ano passado, 8 foram nesta região. A denúncia de crimes ambientais na região também desperta preocupação com a segurança de jornalistas, que tem sofrido ameaças e perseguições por dar visibilidade às invasões de territórios indígenas, garimpo ilegal, exploração de madeira e outras irregularidades que afetam comunidades tradicionais.

Mais de 59,4 milhões de hectares de terra estiveram envolvidas em disputas no ano passado. Conforme o levantamento, 1.724 ocorrências foram registradas. Do total, 1.588 registros têm relação com a ocupação e a posse e/ou contra a pessoa, com destaque para:

  • Ações de invasão: 359
  • Pistolagem: 264
  • Grilagem:152
  • Destruição de pertences: 101
  • Destruição de casas: 73
  • Despejo judicial:50
  • Expulsão: 37

    Acesse aqui todos os dados de Conflitos no Campo – Brasil 2023

O levantamento da CPT afirma que no “eixo terra” os fazendeiros, empresários, grileiros, governos federais e estaduais são os agressores. Entre as áreas de interesse desses grupos estão os territórios quilombolas que estão aguardando a finalização do processo de regularização.

Em todo o Brasil, as ocorrências englobam conflitos relacionados à posse de terras, questões trabalhistas e acesso a recursos hídricos. A maioria dos conflitos registrados é pela terra (1.724, sendo também o maior número registrado pela CPT), seguidos de ocorrências de trabalho escravo rural (251) e conflitos pela água (225). Dentre os estados, o maior número foi registrado na Bahia, com 249, seguido do Pará (227), Maranhão (206), Rondônia (186) e Goiás (167). Dentre as regiões, a região Norte foi a que mais registrou conflitos (810), seguida da região Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207), e por fim, a região Sul, com 168 ocorrências.

Veja os números dos conflitos contabilizados pela CPT ano a ano:

VPN: como navegar mais protegido e com menos rastreamento no celular e computador

VPN: como navegar mais protegido e com menos rastreamento no celular e computador

Tecnologia VPN aumenta proteção e privacidade online e é recomendada para ativistas de diferentes áreas de atuação

Montagem do aplicativo RiseUP VPN em funcionamento

Foto: Divulgação

Já ouviu falar sobre VPN? Significa Rede Virtual Privada (em inglês, Virtual Private Network). Basicamente é um software que protege sua privacidade online através de uma conexão criptografada entre seu dispositivo e uma rede de internet. A VPN torna seu tráfego e localização anônimos e reduz a possibilidade do acesso de terceiros às suas pegadas digitais. O uso da tecnologia é altamente recomendado para a segurança de ativistas e defensores de direitos humanos que trabalham com informações sensíveis e confidenciais.

Ou seja, seus principais objetivos são: privacidade, segurança e anonimato.

Sem uma rede privada virtual, seus dados pessoais e histórico de navegação podem ser acessados por terceiros. Quando você está conectado a uma VPN, as informações enviadas pela internet são criptografadas e enviadas para um servidor remoto. Ou seja, você está se conectando do Brasil através de um servidor, digamos, na Europa. Isso dificulta que invasores, empresas e governos visualizem dados, inclusive senhas inseridas na sua navegação, e te protege de interceptações. O lado negativo é que a velocidade diminui um pouco e certos apps (como de bancos) podem apresentar erros. Isso também permite que você acesse conteúdos bloqueados em seu país. 

O normal das configurações de uma máquina mostram seu endereço IP para terceiros. Nele contém informações sobre sua localização e atividade de navegação. Mas uma conexão VPN oculta seu endereço IP para que você permaneça anônimo na internet. Os dados ficam ilegíveis para qualquer pessoa não autorizada a recebê-los.

O Tecnorgânico (Rafael Ramires), educador popular em Letramento Digital, Segurança da Informação e Computação no coletivo InfoCria e pesquisador em Humanidades Digitais, explicou que a VPN funciona como um espaço dentro de um outro espaço.

“Imagine a internet como um lote de terra e você precisa passar por esse lote de terra para chegar a um outro lugar. Com a VPN,  você cria um caminho que só você e o serviço de VPN são capazes de saber de onde vem e para onde vai”, disse.

Segurança na prática

Destacamos aqui que a conexão a um servidor VPN pode ser feita de maneira simples no celular e computador. O uso da tecnologia deveria ser regra quando a conexão é feita a uma rede Wi-Fi pública. Vamos à um exemplo:

Imagine que você vai se conectar a um Wi-Fi de uma prefeitura municipal com seu computador e precisará enviar um e-mail contendo uma denúncia de uma situação que afeta uma comunidade tradicional em conflito na mesma cidade. Na mensagem há um texto com detalhes de uma violação de direitos humanos e fotos que exponham vítimas e/ou suspeitos. Todo cuidado é pouco, não?

Neste caso, é imprescindível uma forma mais segura de estabelecer essa conexão. A VPN aí atuaria na criptografia do tráfego na rede de seu computador, tornaria a localização anônima e protegeria de espionagem ou perseguição por outros dispositivos conectados no mesmo Wi-Fi. Resumindo, a VPN impediria que sua conversa fosse rastreada. Assim, a sua informação estaria protegida e sem chance de vazar e acabar possibilitando uma situação violenta contra a comunidade envolvida.

Defensores dos direitos humanos e ativistas socioambientais são alvos de inúmeros golpes e tentativas de ataques que podem ser facilitados com uma segurança digital baixa.

“Pessoas em exposição constante são alvos mais visíveis, tanto para seus inimigos diretos, quanto para golpistas no geral. Ao mesmo tempo que ativistas do interior que lutam por demarcação de território, enfrentam latifundiários, empresários, garimpeiros, também colocam seu rosto e sua identidade na internet ou viram alvo para tentativas de extorsões a partir do sequestro de dados de organizações que estes ativistas participam ou são aliados. Não somente a pessoa ativista é alvo, mas sua comunidade e seus principais companheiros e companheiras de luta. A proteção no meio digital precisa ser comunitária, para que faça sentido e de fato proteja. Esses mecanismos são pequenos passos para garantir uma caminhada de cuidado e segurança digital coletiva, e que podem ser passadas individualmente de pessoa a pessoa conforme o conhecimento for sendo adquirido e compreendido, e também aplicado na prática, nas configurações dos celulares e computadores”, afirma o Tecnorgânico.

Em outro caso, vamos supor que seu celular esteja conectado à rede de Wi-Fi de um aeroporto e você precise fazer um pagamento ou transação no aplicativo do seu banco. Com a VPN, mesmo que um hacker consiga ler dados interceptados (o que é quase impossível) o dispositivo dessa pessoa precisaria fazer uma sucessão de tentativas de acesso por longos anos para decifrar a chave de criptografia.

Como escolher e utilizar uma VPN?

Há muitos serviços VPN disponíveis para diferentes dispositivos e até opções gratuitas. Antes de escolher, analise as características de cada um e selecione um provedor confiável. É essencial considerar sua demanda pessoal ou profissional de uso, avaliar as políticas de privacidade e segurança e os tipos de serviço VPN oferecidos.

A conexão VPN é simples, sendo realizada por meio de um aplicativo disponibilizado pelo provedor VPN. Basta instalar o aplicativo no seu celular e computador e entrar com seus dados pessoais de acesso (usuário e senha), selecionando o servidor VPN desejado. A partir daí a conexão VPN poderá ser ativada em seu dispositivo.

Essa conexão pode ser desativada a qualquer momento pelo usuário. Só precisa desabilitar no aplicativo do provedor.

Apesar da recomendação, a segurança da VPN dependerá da qualidade do serviço prestado pelas empresas ou coletivos que fornecem o recurso. Tenha consciência de que não é recomendado utilizar plataformas de origem duvidosa, sejam gratuitas ou pagas. É muito importante pesquisar se a VPN que você pensa em contratar não foi flagrada coletando informações e se há o compromisso de destruição total de dados de navegação dos usuários. Pesquise antes na internet. Deixamos abaixo também algumas opções.

Como instalar e usar uma VPN no computador e celular?

Escola de Ativismo recomenda o uso do Riseup – serviço VPN fácil, rápido, seguro e gratuito para computadores e celulares android. Abaixamos ensinamos com instalá-lo em seu computador e celular Android. Para quem tem iOS, recomendamos o Proton, que tem um tutorial abaixo também.

Como instalar VPN no computador

1- Acesse https://riseup.net/pt/vpn

2- Escolha o local de instalação (GNU/Linux, MacOS, Windows ou Android)

3- Baixe a VPN

4- Confirme as informações

5- Abra o programa no seu dispositivo

6- Ligue/conecte a VPN.

Como instalar VPN no Android

1 – Entre na Play Store/GooglePlay e digite Riseup VPN. Clique em instalar.

2 – Aperte em “Next” conforme as telas aparecem para prosseguir.

3 – Na segunda tela ele irá perguntar se você precisa evitar censura. Se você estiver num contexto de ameaça extrema, é o mais recomendado. Se não a opção padrão “Use standard Riseup VPN” já serve. A opção de evitar censura é muito mais lenta, então vale pensar nisso.

4 – Essa tela também pedirá a atualização de certificado. Pode clicar em atualizar certificado.

5 – Na próxima tela, “Upcoming Connection Request” clique “Next”. Irá aparecer uma mensagem escrito “Solicitação de conexão”. Clique em “Ok”.

6- Depois disso, uma tela irá mostrar a mensagem “Upcoming Notifications Request”. Clique em “Next” também. E depois em “Permitir” que o Riseup VPN envie notificações.

7- Pronto! Apenas clique no botão azul e o VPN estará funcionando. Você pode ligar e desligar quando quiser.

Opção para iPhone

Não há opção de Riseup para Iphone, mas uma boa é utilizar o Próton para IOS.

1-  No App Store, digite Proton VPN 

2 – Baixe o aplicativo

3- Insira seu e-mail e aguarde chegar um código de verificação 

5- Na próxima tela, crie uma senha forte com ao menos 8 caracteres. Confirme a senha.

6- O aplicativo vai te mostrar que está criando sua conta, protegendo sua conta e configurando seu acesso VPN

7- Agora é só clicar em “Começar” 

8- Clique na engrenagem e confira se a VPN está conectada. 

Quer aumentar o cuidado com seu telefone e computador e com sua presença nas redes sociais? Acesse o site da Escola de Ativismo e acesse vários conteúdos sobre segurança digital. Na aba educação > cuidados digitais você vai aprender várias técnicas para uma navegação segura, desde dicas de aplicativos até métodos para proteger pastas no seu computador para criar senhas fortes.

Você conhece Lenira? Projeto retrata luta da ativista em defesa das trabalhadoras domésticas

O material pedagógico multimídia “Caminhos para pensar o Brasil com Lenira Carvalho” é lançado neste sábado (27), durante o Dia das Trabalhadoras Domésticas

 

Por Letícia Queiroz – 27/04/2024

Lenira Carvalho foi uma importante liderança das trabalhadoras domésticas no Brasil. Nascida em 1932 em Porto Calvo, interior de Alagoas, aos 14 anos começou a trabalhar como empregada doméstica e quase 30 anos depois se engajou na luta por direitos trabalhistas. Ela fundou, com outras trabalhadoras, a Associação das Trabalhadoras Domésticas do Recife, que se tornaria o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Recife. Lenira foi também uma das fundadoras do Fórum de Mulheres de Pernambuco, movimento feminista ainda atuante. Até agosto de 2021, quando morreu, a ativista construiu um legado muito importante para a luta das trabalhadoras domésticas.

Lenira não foi só uma líder, mas uma pensadora que trouxe ao mundo um olhar original e profundo sobre uma série de temas que atravessam a sociedade.Afinal, o trabalho doméstico remunerado atravessa a sociedade brasileira, mas a população conhece muito pouco sobre o cotidiano e o significado dessa tarefa a partir do ponto de vista das próprias trabalhadoras. São muitos os desafios enfrentados pela categoria que há poucos anos, graças ao ativismo de mulheres como Lenira Carvalho, começou a ter acesso a direitos trabalhistas básicos e fundamentais. 

Neste sábado – 27 de abril, Dia das Trabalhadoras Domésticas – quatro institutos lançam o projeto “Caminhos para pensar o Brasil com Lenira Carvalho”. Trata-se de uma publicação que reúne roteiros pedagógicos para discutir vários temas a partir do trabalho doméstico e do legado de Lenira.  

A ideia então é disponibilizar conteúdos para educadores, lideranças e ativistas pensarem e promoverem as discussões em diferentes espaços. Seja em sala de aula, na educação formal, ou em espaços de formação política e em movimentos populares.

O projeto nos lembra que é necessário debater dentro dos nossos coletivos e fora deles, sobre as desigualdades estruturais e experiências diárias de opressões cotidianas naturalizadas no trabalho doméstico. Discutir o tema nos leva a abordar questões relacionadas aos elos com a escravização, classe social, questões trabalhistas, organização da categoria e movimentos feministas ao longo do processo de luta e conquista pelos seus direitos das trabalhadoras.  

O livro “A luta que me fez crescer e outras reflexões” e o documentário “Digo às companheiras que aqui estão”, disponibilizados no site do projeto, mergulham na história e no pensamento de Lenira Carvalho e promovem discussões profundas e necessárias sobre as trabalhadoras domésticas.

Clique aqui para acessar a publicação “Caminhos para pensar o Brasil com Lenira Carvalho”. A iniciativa é fruto de um projeto de pesquisa realizado pelo SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, a Parabelo Filmes, o Centro de Cultura, Linguaguens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CECULT-UFRB) e o Instituto Federal do Sertão Pernambucano – Campus Floresta. O projeto contou com apoio da Fundação Friedrich Ebert Brasil e da Fundação Open Society.

Eu vou plantar a Caatinga no teu coração

“Isso parece uma coluna, mas é uma carta de amor e cartas de amor são feitiços poderosos, elas carregam palavras vivas, daquelas que nos desacostumamos a sentir.”

Por Raquel Kariri – 28/04/2024

No dia 28 de abril celebra-se o dia da Caatinga l Crédito: Codevasf via Flickr/Creative Commons

Eu sei. Você deve ter ouvido e visto coisas horríveis sobre a Caatinga. Imagens de solo rachado, gado morto e ressecado e mulheres esfarrapadas com latas de água na cabeça. Imagino que você tenha ouvido histórias sobre como aqui não temos água, há pouca comida e somos destinados à fome. 

Claro que você pode se esquivar, afinal, porque alguém quereria um roçado de ausências no coração? Mas se você me der uma chance, além de plantar eu vou fazer chover em tua alma. Eu não, a Caatinga. 

Como? Bem, isso parece uma coluna, mas é uma carta de amor e cartas de amor são feitiços poderosos, elas carregam palavras vivas, daquelas que nos desacostumamos a sentir. E quando as palavras estão vivas, elas fazem coisas conosco, cutucam, nos tiram do eixo. Elas comunicam paixão e eu confio nessa força encantada. Eu confio que do meu coração, consigo soprar meu amor pela Caatinga bem no centro do teu. 

Não pense que somos tão diferentes assim. Sim, eu sou uma mulher caatingueira e isso significa que eu possuo um duplo na minha alma, a Caatinga. Mas olha, não é sobre região geográfica, é sobre dança de espíritos. E talvez, até o fim dessa carta, você sinta também. 

Um duplo é uma força que se irmana com nosso espírito, se movem juntos, se comunicam e dali retiram forças e pesares. Mas há algo que preciso dizer sobre duplos: eles são, antes de tudo, selvagens. 

Sabe aquela frase de Guimarães Rosa: “perto de muita água tudo é feliz”?, uma frase nunca representou tanto um bioma. Você já viu a Caatinga em tempos de muita água? Ela não se poupa! Ela transborda! Suas cores ficam vivas, vivíssimas! Uma infinidade de tons de verde colorem tudo! Que bonito, precisa ver! São tantos que nem a IA é capaz de criar. E os frutos? Pequi, Umbu, Cajá, Pitanga, Pitomba, Seriguela.. Puxa, ela não se poupa!

Entende? É isso que ela nos ensina: quando houver muita água, quando houver muita alegria, muito amor, não se poupe! Não há porque não dividir com todes. Se há vida, exploda! É um grande ensinamento que coloca em xeque a mesquinhez que se espalhou pela antivida chamada capitalismo. Essa antivida que drena mundos de encantaria, forças de celebração e não permite que tomemos ensinamentos com os espíritos das florestas.

Essa mesma antivida que interrompeu nossa conexão com a encantidade, como ensina Cacique Chiquinho Pankaxuri, e nos deixa apáticas, adoecidas, gananciosas, tristes, mergulhadas apenas em um mundo de humanos. Mas sabe o que é bonito? A Caatinga é uma exterminadora de antivida. No meu tempo sobre a Terra, presenciei muitas tentativas de deixá-la dócil, obediente, domesticada para o bel prazer dos homens que a querem outra, mas ela não se dobra. 

E todas que não se dobram pagam um preço. O corpo da Caatinga não se parece com o corpo das florestas desejadas pelos homens brancos. Sua autenticidade não se reflete no espelho de Narciso. Te parece com alguém? Será que com você? A tua beleza, a tua autenticidade, tua maneira única de estar no mundo também já foi menosprezada? 

Mais: você já foi menosprezada por simplesmente ser você?

Então, temos algo em comum. Então, temos algo em comum com a Caatinga. Talvez, o que você julgava distante, sempre esteve junto a ti. Afinal, se mesmo sendo apontada como inadequada, tendo tuas capacidades e potências menosprezadas, tua vida invizibilizada, se mesmo retirada as melhores condições você ainda floresce, você ainda explode em vida… Deixa eu te contar: Sim, você também é uma filha da Caatinga. Bem-vinda, a gente tava te aguardando. 

Raquel Kariri é jornalista, co-fundadora Escola Livre de Ancestralidades Kariri e colunista da Afoitas.

 

“Reforma agrária popular é justiça histórica”: os movimentos e as aprendizagens da luta pela terra

Por Bárbara Poerner – 17/04/2024

 

 

Movimentos sociais mostram na prática como a reforma agrária significa defesa da democracia, reparação social e resistência climática

O MST completou 40 anos em janeiro de 2024 l Foto: Greiciane Souza

Não há história mais antiga no Brasil que o roubo e a concentração de terras: é a base do projeto colonial e da invasão europeia. E seus efeitos são bastante sentidos até hoje na falta de soberania alimentar e desigualdade, assim como no modelo agroexportador e latifundista. E não à toa também que os movimentos populares de luta pela terra que reivindicam a reforma agrária – e também urbana – assumiram um papel de protagonismo tão significativo no país.

Desse modo, a agenda da reforma agrária é uma disputa, mas passa, explica Darci Frigo, integrante da Coordenação Nacional do Terra de Direitos, por condições institucionais, vinculadas às políticas públicas de redistribuição de terras. O conceito é diferente daquele debatido na década de 1980, continua ele. Com a mudança de modelo de desenvolvimento no campo, a luta reforma agrária passou a significar também luta ambiental, preservação das águas, produção de alimentos saudáveis não dominados pelas tecnologias transgênicas ou pelo agrotóxico.

O coordenador defende, então, a terminologia “reforma agrária popular”, que é capaz de unir aquilo que deveria ser a política institucional, mas que só acontece quando há a luta pela terra. “A luta pela terra e luta pela reforma agrária convergiram no discurso e no imaginário popular com a possibilidade de acesso à terra, seja pela via pública, seja pela luta social. Hoje, elas reúnem todos esses povos diferentes (indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais etc.) que estão no campo e que querem manter viva a biodiversidade, a floresta, a água e produzir alimentos saudáveis”.

Pensar nisso é revisitar e reparar a história do Brasil, argumenta, Ceres Hadich, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Trata-se de “fazer uma justiça histórica, ainda que tardia, a todos os povos do campo que historicamente foram expropriados do direito do acesso à terra”.

Embora a Constituição Federal de 1988 defenda o conceito de uso social da terra, dados mostram que 45% da área rural está nas mãos de menos de 1% das propriedades privadas no Brasil, conforme a análise dos Censos Agropecuários, realizada pela OXFAM. Isso é um problema grave, diz Darci, porque “sempre entendemos que a concentração da terra significava também concentração de poder”.

Ele acredita que o Brasil “não consegue superar o paradigma da concentração da terra, que dá muito poder ao latifúndio, e hoje isso está traduzido no poder do agronegócio tanto no Congresso Brasileiro como na sociedade”. Apesar de existir um superávit do ponto de vista da balança comercial, é possível ver, ao lado de um grande latifúndio, pessoas passando fome, continua Darci, que destaca a falta de soberania alimentar do país.

Isso impede o êxito da justiça social, sendo uma das grandes ameaças destacadas pelo coordenador “é que o fortalecimento do agronegócio e desse grande e velho latifúndio não permite que a sociedade, de fato, seja democrática”.

A fome, por exemplo, está diretamente relacionada com isso. São 90,4 milhões de brasileiros que passam fome ou têm dificuldade para se alimentar, segundo dados compilados em 2022 pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Por isso movimentos sociais, como o MST, defendem uma agenda de reforma agrária que “reveja e reverta essa estrutura concentrada de terras e permita a construção de um projeto popular e soberano para a agricultura e para a sociedade brasileira”, diz Ceres. É uma forma de pensar, a partir do direito à terra, formas de acessar o direito à natureza, ao trabalho digno, à alimentação agroecológica etc. “A reforma agrária, na sua integralidade, é um conjunto de políticas públicas que olham para a questão econômica e acesso do direito à terra, mas mais do que isso, que é capaz de incidir sobre as diferentes dimensões da nossa vida”.

É, continua ela, uma nova proposta de experiência humana. “Pensar em processos que permitam às pessoas se humanizar, se educar, se transformar, se libertar. A educação, a cultura e outras formas de expressar a vida são fundamentais para a gente também construir e reconstruir relações entre seres humanos mais humanizados. Por aí que passa o nosso conceito de reforma agrária”.

Uma marcha do MST na Bahia l Foto: Arquivo/Reprodução

Luta pela terra é resistência climática

As referências de reforma agrária popular e luta pela terra no Brasil são inúmeras. Ceres destaca o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, que consiste em plantar 100 milhões de árvores em dez anos nas escolas do campo, cooperativas, centros de formação técnica, praças, avenidas e nas cidades, fortalecer a produção de alimentos saudáveis nas áreas de assentamentos e acampamentos do MST, denunciar o modelo destrutivo do agronegócio e seus impactos ao meio ambiente, e foi lançado em 2020 pelo movimento em todo Brasil.

Essa é uma vitória que só acontece por conta da organização popular. “Nosso movimento se coloca como mais uma organização que usa dessas ferramentas de luta como uma forma de colocar o debate da reforma agrária para a sociedade, e de, concretamente, organizar o povo para fazer a pressão social. Fomos entendendo, ao longo dos anos, que a gente só alcança conquistas com o povo organizado e mobilizado – independente de governo, de período histórico”, acredita Ceres.

Em sua visão, estamos “estamos diante de uma possibilidade histórica de avançar nessa perspectiva e é papel efetivo do Estado brasileiro prover essas políticas para estabelecer a justiça social, o que passa pela reforma agrária no Brasil. Atualmente, duas das três grandes prioridades do governo Lula passam diretamente pela causa da reforma agrária, que é o combate à fome e que é o cuidado com o meio ambiente.”

Ceres acredita que se não existissem esses movimentos, hoje haveriam ainda menos áreas com cobertura florestal preservada no país e teríamos cada vez mais dependência da produção de alimentos com variedades cada vez mais reduzidas. “Então, o papel desses movimentos é apresentar outro projeto popular soberano de agricultura agroecológica, com a produção de alimentos saudáveis”, defende Darci.

A reforma agrária, nesse sentido, “se juntou à luta de toda a sociedade por melhorias nas condições ambientais porque onde tem o latifúndio, tem destruição, tem o fim da floresta, tem a ameaça gravíssima do fim da biodiversidade. Tudo isso é importante para o futuro da humanidade e são esses movimentos que levantam quotidianamente as bandeiras para continuar essas lutas, seja no campo ou seja, às vezes se somando às lutas de setores urbano”, finaliza o coordenador.

reunião em cooperativa

Velório do Massacre Eldorado do Carajás, 1996. l Foto: Arquivo MST

17 de abril: dia de luta

O Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, instituído oficialmente em 2022, é uma referência ao massacre de Eldorado do Carajás, que aconteceu no dia 17 de abril de 1996, no Pará. Na ocasião, 21 trabalhadores rurais foram mortos pela Polícia Militar enquanto protestavam pela reforma agrária.

“O episódio foi muito marcante na história do movimento de luta pela terra, e também pelo ponto de vista da violência e impunidade. Até hoje, lutamos para que haja o reconhecimento da violência do Estado e da milícia contra os camponeses”, explica Ceres Hadich. Ela explica que, por causa disso, o mês referenciado como Abril Vermelho é mais do que uma simbologia, mas demonstra um exemplo concreto da organização entre os trabalhadores sem terra.

Darci Frigo pensa semelhante. Segundo ele, dia 17 de abril é uma memória da violência que, historicamente, marca a disputa por terra no país. Contudo, ele destaca a importância de relembrar o episódio como uma forma de “dizer que esses movimentos sociais, que surgiram no processo da redemocratização do nosso país vieram pra ficar e pra ter longa vida”. 

Anualmente, o MST prepara uma série de atividades, marchas e mobilizações para o Abril Vermelho. Neste ano, o destaque é a campanha “Ocupar, Para O Brasil Alimentar”. Ceres ainda cita o lançamento do Programa Terra da Gente, a marcha que está ocorrendo há alguns dias na Bahia com assentados do estado, e a mobilização na Curva do S, em Carajás, que ocorre hoje. Até agora, o movimento já realizou 24 ocupações em 11 estados brasileiros, mobilizando mais de 20 mil famílias assentadas.

Comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto denunciam ataque em territórios na Bahia

Nota por Escola de Ativismo, Comissão Pastoral da Terra e Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais

01/04/2024

 

 

A escalada violenta contra as comunidades e povos tradicionais no Oeste da Bahia parece não ter fim. Nesta quinta-feira, 04 de abril de 2024, os territórios de uso coletivo das comunidades de Fecho de Pasto de Morrinhos, Entre Morros e Gado Bravo, localizados nos municípios de Jaborandi e Correntina, tiveram seus territórios violados por prepostos de fazendeiros do agronegócio.

Neste ato violento destruíram mais de 120m de cerca, arrancaram cancelas e derrubaram os ranchos usados como alojamento pelos fecheiros, deixando-os aterrorizados.

Relatam eles que seus gados podem se perder, com grandes prejuízos e riscos para a sobrevivência de suas famílias. E, mais que isso, podem se deslocar em direção à rodovia, com risco de provocar acidentes e outros transtornos. Na tentativa de evitar estas situações, as famílias se reuniram no dia 06 de abril de 2024, para recolocar a cancela que havia sido retirada e evitar que os animais fugissem, enquanto recolhem o gado solto na área do fecho. 

Mais uma vez, os fecheiros foram surpreendidos por decisão judicial que tenta criminalizá-los e impedi-los de exercer o seu direito ancestral de viver em seus territórios tradicionais, cuidando do que resta do Cerrado em pé, em benefício de todos.

Questões jurídicas

A ação que destruiu as benfeitorias das comunidades foi realizada pela Polícia Militar de Coribe em cumprimento a um mandado judicial de reintegração de posse. No entanto, a ação da polícia extrapolou a área em questão, atingindo também território de outra comunidade. A atuação da polícia parece não ter seguido o rito necessário ao cumprimento do mandado, tendo sido realizado de maneira arbitrária, uma vez que a Casa Militar foi consultada e informou não ter recebido o mandado.

O processo judicial que ensejou a decisão foi proposto pela Associação do Fecho de Pasto de Entre Morros para proteger a posse histórica e tradicional da sua área de fecho diante da invasão de uma empresa do agronegócio. Frisa-se que esta área já foi reconhecida e delimitada como Área de Fecho de Pasto pela SDA – Superintendência de Desenvolvimento Agrário, órgão gestor das terras públicas do Estado da Bahia.

Após 19 anos do início da ação judicial e 15 anos depois da sentença, o atual Juiz da Comarca de Coribe, em tutela antecipada, decidiu pelo adiantamento dos efeitos da sentença, determinando que fosse cumprida a reintegração de posse da área utilizada tradicionalmente pelos fecheiros, mas em favor da parte ré – a empresa. 

Não se pode falar em posse a ser reintegrada à empresa, já que as terras sempre estiveram em posse das comunidades até ser ameaçada pela empresa. O processo também incorreu em uma série de irregularidades e com a violação do direito à defesa da comunidade, que foi impedida de produzir provas orais, testemunhais e periciais. A empresa foi, portanto, favorecida no curso do processo, sem ter apresentado nenhuma prova da posse alegada. 

Essas irregularidades foram apontadas pela Associação de Fundo de Pasto, sem que fossem consideradas. Ao contrário, o recurso de apelação contra a decisão de reintegração, interposto em 2010, não foi, até a data de expedição do mandado de reintegração, enviado ao Tribunal, que é o órgão competente para julgar o recurso. Ato processual que deveria ter sido realizado de imediato.

Somado a esses absurdos processuais, o magistrado que sentenciou na época contra a comunidade tradicional, de maneira infundamentada e com cerceamento de defesa, foi posteriormente afastado e aposentado compulsoriamente no ano de 2015. Isso porque infringiu deveres funcionais da magistratura no período em que esteve à frente da Comarca de Coribe relacionados à questões agrárias, como abertura e trancamento de matrículas de imóveis sem observar as devidas formalidades.

Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) no Oeste da Bahia

Os territórios sob ataque receberam a visita da Comitiva da Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), entre os dias 17 e 22 de março, quando foram identificadas violações sistemáticas de direitos de povos e comunidades tradicionais. A Comitiva cumpriu diversas agendas com comunidades e órgãos públicos em Barreiras e Correntina. O objetivo da missão foi ouvir os relatos das comunidades sobre as violações de direitos ocorridas nos territórios a fim de denunciá-las aos órgãos competentes e propor recomendações que possam ajudar a frear os ataques e a garantir aos povos seu acesso à terra e aos territórios.

Omissão do Estado da Bahia

As comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto do Oeste da Bahia, lutam para que se cumpra a Constituição da Bahia, reconhecendo o direito à posse das terras pelos moradores da região, que as utilizam de forma comunal há centenas de anos. A ausência da regularização fundiária dos territórios por parte do Governo do Estado tem deixado as comunidades expostas à violência e violações de seus direitos. É urgentíssimo que o governo não mais se omita, ou mesmo deixe de ser conivente, e passe a frear a grilagem das terras nessa região, acelerando as ações discriminatórias, além do bloqueio das matrículas de fazendas que incidem irregularmente sobre as comunidades.

Fotos e divulgação: CPT, AATR e Escola de Ativismo

Do regime militar à democracia das chacinas, é preciso dizer a verdade no dia da mentira

Por Gustavo Assano – 01/04/2024

 

 

Da experiência militante do Cordão da Mentira, que há 12 anos desfila no dia do golpe militar, uma reflexão sobre a disputa histórica narrativa sobre o que foi a ditadura e o que é a democracia brasileira

Desfile de 2023 do Cordão da Mentira à frente do “Monumento às Bandeiras”, em São Paulo (SP), denuncia massacre colonial l Foto: Arquivo/Reprodução

É muito significativa a história do nascimento do Cordão da Mentira, bloco carnavalesco organizado por diferentes movimentos sociais e artistas engajados da cidade de São Paulo. Todo primeiro de abril, desde 2012, o Cordão percorre as ruas do centro de São Paulo e apresenta-se como um “desfilescracho” para “descomemorar” a realização do golpe empresarial-militar. O desfile não nasceu de uma provocação acadêmica ou vocação institucional. Surge de uma reflexão gerada por um conflito entre sambistas que frequentavam a roda do celebrado “Samba da Vela”. Numa noite de segunda-feira, no começo da década de 2010, uma ex-presa militante torturada, frequentadora do espaço, reconheceu entre os músicos da roda de samba um de seus torturadores, que respondia pelo apelido Pachequinho, ex-agente do DOPS e discípulo do abominável delegado Sérgio Fleury Paranhos. Em estado de choque e abalada, não pôde engolir a presença da face de seu passado traumático sorrindo, cantando e saboreando da fruição e descontração festiva e dignificante de canções populares de ampla tradição. Refiro-me à tradição da roda de samba brasileira, transmitida por gerações de ex-escravizados, imigrantes esbulhados e tantos agrupamentos que originaram a gente de mãos calejadas que forjaram a coragem da alegria mesmo selando caminhadas de vida marcadas por catástrofes sociais e individuais. A velha militante passou mal, e, ao ser socorrida, narrou os motivos de sua reação. Estava ali, na suposta era da “página virada”, dos balanços de superação da “ditabranda”, seu carrasco a celebrar a vida com as vozes e tradições herdadas dos degredados da terra.

O caso despertou a indignação de uma parte dos frequentadores da roda e um racha se formou no movimento. Para alguns dos sambistas que faziam parte da prestigiada roda, um impasse incontornável estava colocado. O que significa para um sambista que honra a história dos antepassados de seu ofício tomar como aceitável o convívio com um agente dos porões da ditadura? Houve um esforço de politização, de construir um debate real que apresentasse o que havia de escandaloso da situação apresentada. No entanto, tais esforços foram abafados. Pachequinho recebeu apoio dos principais integrantes da roda do Samba da Vela e seguiu até sua morte gozando do prestígio do movimento e com direito a homenagens póstumas. Gozou da ausência de incômodo compartilhada entre os facínoras da história sangrenta do Estado brasileiro. 

No entanto, uma parte dos sambistas da Vela romperam com o espaço, julgando ser insuportável conviver com tão ensurdecedor silêncio sobre o que se decidiu tomar como aceitável e natural: o apagamento de uma injustiça sem nome. Se o Estado, o STF e parte da classe política de esquerda tomava como aceitável a anistia, que acabou sendo apenas para militares, ali havia a chance de fazer diferente, de mostrar que no samba justiça não era um ritual vazio. Num primeiro momento se cogitou organizar um ato, mas logo surgiu a ideia da criação de um experimento artístico, inicialmente sugerido como uma peça de teatro, para então evoluir nas discussões para um híbrido entre procissão, teatro de rua e bloco carnavalesco. 

Assim surge a ideia do Cordão da Mentira: um ato político que jogaria todo o esforço organizativo não apenas no elenco de pautas urgentes declamadas em microfones de carro de som, mas principalmente na consistência do tratamento expressivo de uma obra de arte de intervenção no espaço público.

Ainda estávamos nos primórdios do processo da criação da Comissão Nacional da Verdade, ainda não havia se propagado a paranoia conservadora sobre o trabalho de apuração e reparação institucional sobre os crimes da ditadura, processo que, apesar dos seus limites e sabotagens limitadoras de seu alcance executivo, despertou a radicalização de extrema direita na politização das casernas. A rememoração dos crimes da ditadura ganhou aspectos de convenção de evento oficial para as primeiras gerações nascidas após o término da promulgação da constituição de 1988 e os consensos de pacificação neoliberal da democracia de presidencialismo de coalização. Era como se não houvesse urgência no ato rememorativo, como se não houvesse frescor nas consequências geradas, como se não fosse possível sentir o cheiro infecto dos porões de tortura em nossa era e como se os rastros de mutilações psíquica e em carne viva no processo de brutalização social herdados não compusessem os contornos da ordem democrática – o novo parâmetro de normalidade de médio termo que supostamente enterrou tão sombrio período da nossa história.

Assim, nos primeiros anos do Cordão, os cortejos eram pensados nos termos da tarefa de despertar as ruas de um falso senso de normalidade e superação, como se o cotidiano automatizado das ruas de São Paulo fosse em verdade um cenário de peça de teatro, uma casca de superfície desbotada que esconde uma estrutura que tem como fundamento uma máquina de moer e um sistema de iniquidades tida como face do progresso, inclusive por parte da esquerda. Era preciso dizer com todas as letras, alto e em bom som: a normalidade é uma mentira. Os números e falas eram pensados com deboche direcionado aos consensos liberais, com irreverência a uma esquerda no poder que se manteve tímida e omissa sobre os consensos coagidos da “transição para a democracia” e com forte ímpeto paródico direcionado aos resquícios da extrema-direita de outrora. Costurando uma miríade de pontos de vista que seriam divergentes em outros contextos de atuação em espaços de esquerda, todos envolvidos mergulhavam nas reuniões em debates sobre a geografia crítica da cidade, alternando homenagens em lugares em que militantes tombaram lutando por liberdade e escrachos cênicos a espaços que apoiavam ou eram centrais para fundamentar a violência institucional. Sua estética engajada inicialmente ambicionava denunciar crimes esquecidos para uma conjuntura dessensibilizada sobre este passado, tido como remoto, revelando o índice de um passado que não passa. O desafio era convencer as pessoas da atualidade deste período nefasto, a proximidade contemporânea do que a miopia despolitizante induziu a tratar como distante.

As Mães de Maio e Mães de Manguinho à frente do cortejo do Cordão da Mentira l Foto: Twitter/@RobertoSungi/Reprodução

A mentira vira “mito”

Em poucos anos, no entanto, a tomada das ruas com deboche à mentira da normalidade democrática encontrou seu limite quando a extrema-direita radicalizada tomou o poder e impôs ao país um novo patamar de autoritarismo e mentiras. De um período de apatia sobre a ditadura, vivemos agora uma disputa por hegemonia na narrativa histórica sobre o presente, em que a reconstituição mítica do golpe de 64 e a heroicização dos seus torturadores não é um caso isolado escandaloso, mas plataforma de poder com base social de massa e formulação corrente feita com paixão de militância engajada. 

Com a revelação bombástica da tentativa frustrada de instauração de uma nova ditadura militar sob o golpismo bolsonarista, esta sensação de distância fria perdeu sua razão de ser. Mesmo os mais empedernidos defensores de outrora de uma perspectiva liberal de “página virada” sobre o regime ditatorial não podem deixar de sentir no cangote os suspiros arrepiantes de um velho fantasma, recolocado em cena com nova roupagem de legitimidade social. 

No entanto, para terror dos desavisados por cegueira consentida e calafrio dos que não guardaram ilusões sobre as consequências de conciliações extorquidas, há certa dificuldade em lidar com o movimento contraditório que a nova politização conservadora coloca sobre o debate. Além do desejo por restauração de uma era de ouro defendida com mentiras, há o monopólio sobre a elocução pelo desejo por ruptura, representado pelo bolsonarismo que sobreviverá sem Bolsonaro. 

A resposta de Lula, pregando um quietismo de ocasião para reiterar a “página virada” já não responde aos anseios de períodos em que a politização de direita era de baixa voltagem, como no contexto das conciliações costuradas nos primeiros mandatos lulistas. Contra as mentiras do verde-amarelismo do novo conservadorismo radical brasileiro, a aposta deve ser a mentira de uma normalidade nunca conquistada? O combate às velhas mentiras será travado com a lapidação de novas? Não é possível acreditar que será um restauracionismo de um progressismo republicano desenvolvimentista que prega não haver vestígios da ditadura na democracia de chacinas que instaurará algum novo regime de verdade. Contra a atualização de símbolos da ditadura em comícios com dezenas de milhares de pessoas com camisas da CBF, a omissão como solução soa como um atestado de morte política.

Uma nova forma de politização também traz desafios para as formas de conceber o sentido combativo da memória do golpe de 64. O tema escolhido para o desfile do Cordão da Mentira deste ano foi “De golpe em golpe: tá lá um corpo estendido no chão”. O título articula o duplo movimento de duro trabalho de reflexão que a situação exige que atravessemos: por um lado, pensar sobre o mesmo fenômeno enquanto sucessão reiterada, repetitiva, de continuidade de uma tendência histórica que desdobra os massacres contínuos iniciados quando caravelas europeias primeiro atracaram em praias do “Novo Mundo”; por outro lado, trata-se de um evento excepcional, um marco inaugural que deve ser pensado nos termos de sua singularidade, os termos de situação nova inaugurando um novo patamar de modernização conservadora. O desafio está em entender que uma dimensão não desmente a outra.

reunião em cooperativa

Cortejos do Cordão da Mentira denunciam violência policial l Foto: Sato do Brasil/Cordão da Mentira/Divulgação

O dever de dizer a verdade

Por um lado, há a tendência de apagamento do sentido de continuidade de campos sociais já esbulhados e oprimidos, de tal forma que a ditadura representou a agudização e radicalização de uma vocação exterminista e desagregadora do Estado brasileiro já existente muito antes do golpe de 64. Como se os vestígios de terror ideológico e centralização do poder de dominação social fosse um ponto fora da curva nas condições normais de temperatura e pressão institucionais, como se o autoritarismo não estivesse incrustado na legalidade institucional brasileira desde o berço. O que cria a miopia, que perdurou por anos, de que em 64 o regime era brando e apenas após o AI-5 teria começado a violência aterrorizante, ignorando o trucidamento da organização sindical em meio urbano ou rural, os inquéritos sobre universidades, os expurgos entre dissidências nos meios militares de baixa patente, e tomando como fatos de menor relevância a censura, a invasão de igrejas com cúrias progressistas, suspensões de habeas corpus, etc.

Por outro lado, há o equívoco de tratar a era inaugurada pelo golpe de 64 no Brasil como mais um grão de areia no grande deserto de genocídios encadeados na história da subjugação dos povos degredados em holocaustos coloniais. Sem a devido cuidado, corre-se o risco de ignorar o salto organizativo nas formas de extirpar do território nacional toda e qualquer forma de dissidência e inconformismo – este o real propósito do golpe, e não uma reação “por incômodo com a democracia” como prega certa narrativa romântica e rósea que tenta fingir ser efetiva a conquista da liberdade democrática. É tal formulação que impede de ver, por exemplo, a ampliação do sistema carcerário como uma continuidade tendencial de forma de controle de populações pobres, afinal oprimidas desde sempre, em que a política de contra-insurgência militar contra a “ameaça comunista” passa a se voltar contra o tráfico de drogas, a justificação política e jurídica para o massacre de pobres, pretos e periféricos. Também não seria tomado como tema de reflexão a modernização do mundo do crime com o entrelaçamento entre esquadrões da morte (como o capitaneado por Fleury) e inteligência militar de polícia política, passando o know-how de perícia militar para agentes que faziam bicos de segurança ilegal para a contravenção (bicho e tráfico de drogas) enquanto trabalhavam nos porões, gerando a modernização do crime, o surgimento das disputas territoriais da era das facções, e as condições de expansão do mercado ilegal de segurança ilustrado com os serviços contratados para assassinar Marielle Franco em 2018. Ou seja, ficaria sem reflexão a especificidade da aurora do poder miliciano e sua disseminação.

Não encarar a singularidade da era inaugurada é tratar com indiferença estes temas, como se fossem indistintos a tantos outros temas da pilha secular de cadáveres empilhados em nossa história. Tal postura significaria deixar sem menção um novo patamar quantitativo e qualitativo no aprofundamento do extermínio sistemático dos povos indígenas durante a tutela militar, como comprova a quase extinção do povo kinja, autodenominação dos Waimiri Atroari, nas obras da rodovia BR 174 Manaus-Boa Vista, assim como o genocídio da população negra durante a era da democracia de chacinas, deixando sem crítica a criação da Polícia Militar nos moldes hoje naturalizados. Pior, ficaria sem debate o equívoco triunfalismo de certa esquerda que comemorou uma suposta derrota das forças militares, como se fossem uma força despolitizada e coadjuvante por mero desprestígio circunstancial, certeza que permitiu que todos ficassem de queixos caídos com a ascensão de Bolsonaro. Não haveria balanços sobre o que significa a sobrevivência de serviços de inteligência e arapongagem que continuaram em funcionamento durante o período democrático, com a manutenção de órgãos como o SNI comandados por militares. Um amontoado sem fim de injustiças que permanece sem confronto.

Não apontar a face mutilada de uma sociedade colapsada e tutelada por uma polícia, um poder militar, um sistema político, um código civil e paradigmas de desenvolvimento econômico todos legados da ditadura militar e preservados nas aspirações governativas inclusive da esquerda no poder significa uma recusa a olhar-se no espelho e, ao não ter coragem de confrontar a própria face, os próprios auto-enganos e ilusões perdidas, condena-se a viver sem perceber o real tamanho das armadilhas e batalhas do tempo presente. No dia da mentira, dia dos 60 anos do triunfo da infâmia e covardia, o dever de dizer a verdade se impõe com maior força. Muito apropriado quando o imperativo de lidar com contradições e impasses se torna um dever. Na omissão, não há confronto com a verdade, e se a verdade não é encarada, a justiça é uma mentira e as páginas viradas, meras mordaças auto-impostas, novas formas de conformismo para tornar aceitável o convívio com derrotas que calam fundo. Mas tá lá mais um corpo estendido no chão, nos lembrando de que nossos mortos têm voz, e só podem falar através de nós.

Gustavo Assano é professor e coordenador do núcleo ArtEmancipa, mestre em filosofia e doutorando em teoria literária e literatura comparada e pesquisa teatro da cidade de São Paulo há 20 anos.

Cursinhos populares estão pintando as universidades brasileiras de povo

Por Bárbara Poerner – 27/03/2024

 

 

Conheça projetos de pré-vestibulares gratuitos e voluntários que ensinam como transformar realidades por meio da educação popular

Uma turma do cursinho Afirmação, no Rio Grande do Sul l Foto: Arquivo/Reprodução

“Tenho que dizer que se pinte de preto, que se pinte de pardo”, disse o revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara em um discurso na universidade de Las Villas, em Cuba, no ano de 1959. “Não só entre os alunos, mas também entre professores. Que se pinte de operário e camponês, que se pinte de povo, porque a Universidade não é patrimônio de ninguém e pertence ao povo de Cuba”, anunciou, propondo uma revisão radical da forma como o ensino superior era visto até aquele momento na América Latina.

Mais de sessenta anos depois das palavras de Che, o acesso à educação superior ainda é muito desigual no Brasil. Embora o perfil de discentes das faculdades e universidades esteja mudando ao longo das duas últimas décadas devido às políticas de cotas e articulações de movimentos sociais, o cenário ainda é pouco diverso e, para muitos, inacessível. Isso se reflete nos dados: o número de brasileiros com 25 anos de idade que têm o ensino superior completo é de apenas 19,2%, diz o IBGE.

Os cursinhos populares são um modo de desafiar esse modus operandi. Eles são pré-vestibulares gratuitos onde, normalmente, todos os docentes e colaboradores são voluntários. O objetivo é auxiliar os estudantes a ingressarem na universidade, mas não só.  

Ao proporem uma nova lógica de acesso à educação, tais projetos impulsionam uma práxis de comunidade, solidariedade e redução das desigualdades. “Além [do Afirmação] me possibilitar ingressar na faculdade, também me possibilitou o convívio com colegas mais jovens e a formar novas opiniões em questões de gênero, raça e política. Vai muito além do cursinho, eles acolhem o aluno”, exemplifica Daiane da Silva Rosa, uma universitária que reencontrou o caminho do estudo após 20 anos sem entrar em uma sala de aula. 

Daiane foi aluna do Afirmação, cursinho popular localizado no centro de Porto Alegre (RS) e fruto de uma parceria da Escola Estadual Júlio de Castilhos com militantes do Levante Popular da Juventude. Hoje, ela estuda Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Para mim, ter passado no vestibular significa que nunca é tarde para recomeçar e poder mostrar para os meus filhos que a educação vale a pena, e que mesmo que não tenhamos condições financeiras de pagar um [cursinho] particular, eles podem conseguir também, como eu consegui”, conta a estudante. “É para que o jovem veja que pode ocupar lugar nas faculdades, que não é só quem tem dinheiro que consegue.” 

Nicoly Donati, que foi professora de química da estudante e é uma das coordenadoras do projeto, acredita que isso torna os cursinhos populares uma experiência diferente dos ambientes escolares convencionais. Para ela, “o primeiro impacto dos cursinhos populares é fazer as pessoas entenderem que a realidade delas pode ser diferente, que o lugar delas é dentro do ensino superior e esse é um direito que elas têm”.  

Para o +Nós, cursinho popular que atua em algumas cidades e bairros do estado do Rio de Janeiro, ir além das quatro paredes da sala de aula é essencial. O projeto “não tem só a intenção de ser um curso comunitário, mas sim um movimento de educação popular”, conta Ana Carolina, co-coordenadora e docente de redação, gramática e literatura na unidade do Complexo do Alemão. Ela ainda acrescenta que “defendemos abertamente o fim do vestibular, pois ele é processo de exclusão. E quem vai ser excluído são essas parcelas da população que são mais marginalizadas e que enfrentam uma desigualdade educacional muito grande”.  

Pioneiro na experiência, o atual Instituto Cultural Steve Biko começou em 1992, na cidade de Salvador (BA), como um cursinho voltado para a população preta e parda com o “propósito de inserir pessoas negras politizadas e conscientes dentro da universidade”, afirma Jucy Silva, diretora pedagógica do espaço. A ideia foi inserir uma disciplina diferente, chamada de cidadania e consciência negra, na grade do pré-vestibular.  

Desde então, muita coisa mudou no cenário educacional brasileiro. A Lei de Cotas foi aprovada em 2012 e, em meados de 2000, surgiu o ENEM. A diretora lembra que, há 30 anos, uma pessoa negra oriunda da escola pública demorava mais tempo para ingressar na universidade e não era comum vê-las ocupando cadeiras de cursinhos preparatórios. Hoje, o Steve Biko tem alunos de todas as idades, inclusive estudantes do ensino médio, e ampliou sua atuação para além das aulas preparatórias, mas Jucy destaca que ainda existe uma longa trajetória para garantir o direito ao ensino para a população preta e parda no país.

Uma turma do cursinho +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Superando os desafios 

Movimento de Educação Popular Inclusiva do Jurunas, realizado em parceria com a Universidade Estadual do Pará (UEPA), atua no bairro homônimo em Belém (PA), começou na década de 1970, passou por um hiato e voltou em meados de 2015. Gabriel Pacheco, professor de História e um dos coordenadores do projeto, explica que o critério de seleção prioriza os estudantes que já residem no bairro, a fim de facilitar a locomoção e também driblar um problema comum entre os cursinhos populares: a evasão.  

Uma estratégia do Afirmação para lidar com a mesma adversidade foi criar o grupo de acolhimento, no qual existe um contato direto com os alunos e alunas a fim de entender a realidade individual de cada. Além disso, existem os núcleos de atividades extracurriculares, comunicação, financeiro e coordenação. “Nenhum grupo tem mais importância ou mais voz do que o outro, são só grupos com tarefas diferentes”, explica Isadora Franck, professora de física e co-coordenadora.  

Tal disparidade no acesso à educação começa muito antes do ensino superior. São 52 milhões de brasileiros que não completaram o ensino médio – ou porque abandonaram, ou porque nunca frequentaram a escola; sete em cada 10 são pretos ou pardos. “O racismo provoca muito fracasso na vida escolar de um jovem negro ou uma jovem negra. O racismo tem efeitos perversos e que impede mesmo a pessoa terminar o ensino médio, a pessoa entrar na universidade. Às vezes ela entra, mas ela não consegue permanecer”, argumenta Jucy.  

Ana também cita o desafio da evasão, mas acrescenta outro que se manifesta no estado carioca: a violência. “Esse problema interfere diretamente na atuação do pré-vestibular, principalmente se ele é localizado dentro de comunidades de favela”, conta a professora, que destaca como o +Nós atua também com reforço escolar para remediar o problema e oferecer espaços seguros de acolhimento. 

reunião em cooperativa

“Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, diz professora do +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Construindo a educação popular

Desde criança, Gabriel desejava dar aulas de história. Foi no cursinho popular Jurunas onde ele conseguiu concretizar esse desejo e ampliar sua visão de mundo. Segundo o historiador em formação, fazer parte da “grande família” que é o projeto serviu para refrescar sua prática pedagógica. Ao sentir que está ajudando as pessoas com aquilo que ele sabe fazer de melhor, Gabriel acredita “que cada vez mais você está contrariando o sistema, que tenta cada vez mais fazer essas pessoas desistirem e somente aceitarem as coisas”. 

Um dos métodos do Jurunas para abordar temas sociais foi incluir a matéria “Interdisciplinar”, onde são tratados assuntos da atualidade como feminicídio, prisões, fome, escassez hídrica e lixo. A potência do projeto, para o coordenador, está em manter o acesso ao ensino público, gratuito e de qualidade, indo na contramão do ideal de privatização. 

Os cursinhos também são espaços de formação de professores, defende Isadora. Foi o que aconteceu com ela e Nicoly. Hoje, ambas estudam o curso de licenciatura em física e química, respectivamente, motivadas pelas experiências que tiveram no Afirmação. 

Os impactos não se mantêm só na vida do estudante, mas sim ampliam-se para sua família e território. “Conseguimos fazer um trabalho que alcança essas famílias e essas comunidades formando uma rede”, diz Jucy. O estudante “consegue ter uma melhor percepção do que é ser negro na sociedade e eles também têm acesso à história dos nossos ancestrais, nossos antepassados de forma positiva e também consegue se instrumentalizar para poder combater o racismo fora do Instituto Steve Biko, dentro da universidade e também fora dela”. 

Essa prática de ensino ligada às experiências que ultrapassam o caráter conteudista tradicional estão presentes em inúmeros cursinhos populares e são, para Ana, uma formação de cidadania. Ser professora no +Nós expandiu sua leitura de mundo e, hoje, ela é adepta do verbo esperançar, de Paulo Freire . “Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, finaliza. 

Brotei: a perspectiva de uma semente de Marielle

Por Vitória Rodrigues – 13/03/2024

 

 

Com 13 anos quando Marielle foi assassinada, a ativista Vitória Rodrigues transcreve sua trajetória e angústias enquanto jovem que sonha com a política e fala sobre o impacto da ex-vereadora em sua vida

Nota da Edição: O texto foi publicado antes das revelações das investigações da Polícia Federal que culminaram na acusação dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão como mandantes.

Há exatos seis anos, eu tinha treze anos de idade e ela tinha trinta e oito. Eu estava  no último ano do ensino fundamental. E tinha o hábito de sair da escola e andar até o quarteirão ao lado, onde minha mãe trabalhava como diarista numa casa. Tinha que dar um abraço nela.

Quando cheguei lá, abracei minha mãe. Logo depois, ela minha mãe começou a limpar o chão enquanto a televisão estava ligada. Meio-dia é hora de RJTV, que eu logo comecei a ver. Mostrava as imagens de uma mulher bonita e do seu motorista, também bonito. Falava de morte. Fiquei nervosa, mas me sentei para ver o que acontecia.

Naquela época, eu já tinha alguma consciência política — como muitos da minha geração, nossa formação democrática começou pela página de Facebook Quebrando O Tabu. Mas eu não sabia quem era aquela mulher. Só sabia que me sentia triste, desolada e como se uma parte de mim tivesse ido embora também. 

Aos meus treze anos de idade, eu vi a Marielle Franco, de trinta e oito, ir embora. Diferente dos outros dias, o RJTV1 foi todo sobre o assassinato da Marielle e do Anderson. Aquilo me indicava que era sério. Diferente dos outros dias em que passava no trabalho da minha mãe, só fui embora quando o telejornal acabou.

Quando decidi partir, abracei a minha mãe e fui ao ponto de ônibus pensando que a mãe da Marielle jamais poderia abraçá-la de novo. Naquele busão sem ar-condicionado no calor da Pavuna e de São João de Meriti, minhas lágrimas angustiadas se misturaram com o meu suor. Péssimo dia.

Cheguei em casa e meu Galaxy J5 Prime nunca fez tantas pesquisas. Passaram-se horas. Queria saber quem era Marielle Franco, o que ela fazia, porque fazia. Nela, vi muito do que eu acreditava. Eu nunca tinha visto uma mulher negra e sáfica ser política. Na época eu não entendi, mas aquilo me inspirou. Muito.. Me vi nela. As notícias falsas que eu li eram numerosas e aquilo me doía o coração. Eu estava confusa, enfurecida e ensandecida.

Já depois de muito pesquisar e estudar para concurso público de ensino médio, era noite. Com a minha avó, resolvi ver o RJTV2 pra ver se tinha alguma novidade. Naquele dia, a imagem da Cinelândia tomada por pessoas me emocionou muito. Prometi que seria determinada e sensível como a Mari. Desde o dia 15 de março, espero alguma explicação para o crime. Mas criei as minhas próprias respostas a esse absurdo. E quem me ajudou foi a revolta. 

Anos de espera e de luta

A revolta pelas desigualdades que eu vivi e vivo me fez focar na educação como forma de mudar de vida — de comprar uma casa, de ter carteira assinada, de poder sonhar. Um ano depois do dia 15 de março de 2018, eu estava estudando na escola dos meus sonhos. E naquele dia, o Coletivo Feminista levou quem quisesse para o Redes da Maré, do ladinho d’onde eu havia acabado de começado a estudar.

Na favela lar da quinta vereadora mais votada em 2016, naquele dia acontecia a abertura de uma exposição que homenageava a vida de três ativistas negros: a data de falecimento de Marielle Franco também era data de nascimento de Abdias do Nascimento e de Carolina Maria de Jesus.

As pessoas faziam discursos emocionados e tinham várias fotos da Marielle. Queria ser um terço do que ela é, pensei. Naquela semana, muitos dos meus professores falaram da Mari porque a conheciam e sabiam quem ela era. Tinham votado nela. Faltava muito, mas gostaria de votar em alguém como Marielle. Poderia eu ser uma referência assim um dia?

O sonho de ser mais

Estudar do lado da Maré e da Favela de Manguinhos significava não saber se eu voltaria pra casa tranquila. O ano do primeiro aniversário de morte da Marielle foi marcado por tiroteios em que minhas aulas eram interrompidas constantemente. Fiz um projeto de lei para o Parlamento Jovem Brasileiro e comecei a achar que poderia sonhar, sim, com a política.

Quanto mais eu me envolvia com projetos e lia o que diziam referências para mim, mais ficava nítido que eu gostaria de ser eleita para fiscalizar o poder público de forma integral. Sempre que surgia uma entrevista em que a jornalista perguntava o que eu gostaria de fazer, me era simples dizer uma única palavra: política.

Minha mãe, que me abraçava e ainda abraça todo dia, costumava ficar apavorada com essa ideia de querer fazer a diferença na vida pública. Dizia que eu ia morrer como a Marielle. Isso me assustava, mas nunca me parava de idealizar essa possibilidade. Tinha um medo quando dizia que queria, sim, viver a vida partidária pelo Brasil.

E é, de fato, difícil dizer isso. Eu sou uma mulher jovem de esquerda e a política massacra a mulheres todos os dias, especialmente meninas jovens de esquerda. Não imagino as coisas que as parlamentares Brasil afora escutam e enfrentam. A Marielle enfrentou.

Acredito que se tem uma coisa que a Franco ensinou é que a política pode ser do meu jeito e para o que eu acredito. Eu sempre gostei de assistir aos discursos que o Instituto Marielle Franco publicou via YouTube e é lindo ver essa mulher que eu tanto me inspiro falando com tanta veemência. Tinha uma firmeza linda na voz dela. Sinto muitas saudades do que não vivi com Marielle. Acho que eu já a teria conhecido pessoalmente se ela estivesse aqui.

Durante o último ano do ensino médio, tive muitas dúvidas se deveria escrever minha monografia sobre as milícias no Rio de Janeiro. Com tantos acadêmicos que são homens brancos, parecia não ser pra mim discutir violência. Quando meu orientador contou que a dissertação de mestrado da Mari era sobre as Unidades de Polícia Pacificadoras, fez muito sentido querer falar de necropolítica — a minha principal inspiração política falava disso. E tanto ela dizia e lutava, que incomodava quem promove o caos que atinge diariamente o nosso povo. 

Seis anos

Já fazem seis anos daquele dia em que eu, no ensino fundamental, vi pela TV a Cinelândia tomada por gente chorando e clamando por justiça. Agora estou entrando na faculdade e vejo como a ausência da Marielle fez com que eu germinasse a presença da força em mim.

No meu coração, sinto que conheço a Marielle, sim. Sei que poucas a conheciam como ninguém, mas existe a sensação de que ela vive muito em mim. Não sei. Só sei que sinto alguma coisa muito forte quando vejo uma foto dela ou lembro dela, e sinto vontade de fazer tudo o que nunca foi feito. Essa, talvez, seja a força que ela queria transmitir.

Eu bem que fui convidada e poderia me candidatar esse ano. Mas não pensei muito porque sempre ficou muito claro com o que aprendi com ela que a revolta deve ser organizada. E antes de fazê-la, a gente precisa estudar e aprender antes de fazer o que sempre sonhamos em fazer.

Penso sempre em como seria com ela aqui. O que ela estaria achando da política federal? Será que ela teria ido na minha escola? Será que ela teria sido eleita para outro cargo? Será que eu não ia me inspirar tanto assim em alguém?

Nesses dias, fui almoçar em comemoração ao aniversário de uma pessoa importante pra mim, a Beatriz. Acabamos falando de Marielle, e algumas semanas antes dela dispersar semente, minha amiga disse que a conheceu na escadaria da Câmara Municipal. Bonita, alta, atenciosa, ela desligou o telefonema em que estava para ouvir as sugestões da Bia sobre as mudanças do clima. Ficou muito claro ali que a presença dela tinha uma aura de força muito grande. Eu queria muito ter vivenciado isso.

Não me culpo por não ter acompanhado o trabalho de Marielle Franco antes de sua morte — eu era uma criança. Criança esta que estava numa escola municipal do Rio que ela sabia, mais do que ninguém, que estava ruim. E falava disso sempre e lutava para que mudasse. E eu sou muito grata por isso. E isso me faz querer saber mais e mais sobre a Mari sempre.

Minha mãe também resolveu abraçar o questionamento pelo assassinato da Mari. Dona Regina ainda fica com receio da vida que almejo ter algum dia, mas sabe que a gente precisa estar com a caneta na mão pra fazer tudo o que os que tem a caneta na mão se recusam a escrever e assinar.

Em 2024, quero parar de perguntar quem mandou matar a Marielle. Daqui uns anos, espero fazer um texto emocionado sobre como cheguei onde ela me inspirou a sonhar em estar. Acharam que matariam ela com tiros. Estavam enganados. Os projéteis disparados viraram incontáveis sementes espalhadas pelo mundo. Eu sou apenas uma delas. E brotei.

 

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