O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Era o fim de tarde da quarta-feira, 14 de março de 2018. O dia tinha sido de duros embates na Câmara Municipal de Belo Horizonte para a então vereadora Áurea Carolina (PSOL), a mais votada nas eleições de 2016 na cidade. A conversa que deu origem ao depoimento abaixo aconteceu numa sala de reuniões da Gabinetona – o espaço institucional hackeado por Áurea e pela sua colega de movimento e partido Cida Falabella – e teve, por isso, uma gravidade incomum, tematizada no texto: a do “peso” da luta. Poucas horas depois, a vereadora Marielle Franco seria assassinada no centro do Rio. Amorosidade, resiliência, a “dor do mundo que constitui as lutas” ecoam aqui o sentimento de indignação que marcarão para sempre a lembrança daquele dia.

Fagulha

Há primeiro uma faísca, um chamado para se engajar. Na adolescência, um dia eu me dei conta de que existia injustiça no mundo. É difícil precisar uma marca, mas há um momento da tomada de consciência, a experiência subjetiva de a pessoa sentir a necessidade de colaborar com alguma coisa maior do que sua própria existência. Aconteceu mesmo antes de eu atuar na cultura Hip Hop como cantora de rap. Ainda que no Hip Hop houvesse a arte – e arte também é essa política dos encontros – eu sabia que não era suficiente escrever letra de rap, cantar rap. Eu queria ter a vivência maior (que está presente no imaginário do Hip Hop) da importância do conhecimento e de agir coletivamente. Daí eu fui tendo acesso a várias outras lutas. Em 2003, participei da retomada do Hip Hop Chama, uma movimentação de jovens da cultura hip hop em Belo Horizonte. Não sei que termo eu usava na época, mas o foco era claro: discutir direitos, política pública, porque havia influência de outros grupos e do debate político na época. O Observatório da Juventude estava puxando a pauta dos direitos juvenis, que era nova. As coisas estavam se entrelaçando. Uma parte de nós era ligada a esses processos de resistência nas comunidades. Depois isso foi virando uma marca. Eu passei a me reconhecer como uma lutadora.

Prefiguração

Há um grau de utopia imprescindível para a gente suportar a investida ativista. Para encorajar as pessoas e se encorajar, é preciso acreditar que é possível mudar. Existe um grau de prefiguração, em que a coisa que se sonha é sonhada porque esse outro mundo pode existir mesmo – e existe, de muitas formas no nosso cotidiano, por mais que não esteja generalizado. A Gabinetona é a tentativa de reconhecer que temos um espaço limitado, mas que pode ser um território das nossas buscas de horizontalidade, das práticas feminista, antirracista, de representatividade, de processos decisórios partilhados, por mais que isso seja uma raridade no ambiente institucional e em outros espaços. É difícil, dá trabalho, mas há uma disposição sincera para fazer. A utopia precisa ser alimentada por essas experimentações, senão as pessoas desistem.

Amor

Nessa conjuntura, em que nossa fé está sendo testada noite e dia, a gente precisa da energia vital da utopia. Eu me alimento das conversas com as mulheres, grupos de jovens, com os movimentos sociais, é lá que eu recarrego esse amor… É um amor, mesmo. Eu sinto também que, quando eu me dei conta disso na adolescência, era uma questão de amor próprio, de as pessoas não se submeterem às disposições que não levam em conta o que você pensa. Porque a gente vai sendo maltratada a vida inteira e esses silenciamentos são estruturais, não são apenas pessoais. O ativismo nos chama para entendermos nossa própria condição de mundo.

Dor

Há uma dor do mundo que constitui as lutas, sempre. Não existe luta sem um sentimento de indignação.

Amor e Luta

Eu tenho me sentido como uma lutadora. Porque os embates são barra-pesada. Lutadora dá a dimensão da contestação das opressões. [A noção de] ativismo pode trazer isso, mas não de primeira. O termo “lutadora” afirma que há um espaço de enfrentamento. Nós temos inimigos (não pessoas, mas ideias, práticas); nós temos coisas a superar, inclusive em nós mesmas, que se reproduzem na nossa formação: lutar contra as violências que aprendemos desde crianças, lutar contra as violências que estão em todos os lugares. Eu tatuei no corpo a expressão “Amor e Luta”. Acho que esses dois elementos são inseparáveis. O amor não é nada passivo, dócil, servil; é uma busca de justiça, de autoconhecimento, de respeito, e não é possível conhecer outra pessoa sem desvendar essas estruturas violentas. Nossos potenciais são massacrados por tudo isso que está aí. A luta precisa de amorosidade para a gente não se aniquilar também. Existe um registro de competição – capitalista, racista, patriarcal – que também afeta as lutas sociais e as esquerdas. Se queremos lutar de outra forma, de uma maneira que nos eduque, a luta precisa ser acolhedora.

O ativista leve

A ideia de “ativista” parece ter uma certa “leveza”. Pode-se construir de muitas formas a dedicação para a coletividade. Ativismo parece tirar um pouco essa carga de que a luta é pesada. A luta traz para nós uma corresponsabilização. Eu não posso transferir a responsabilidade para outra pessoa meramente, trata-se de um processo coletivo que, necessariamente, me envolve. O ativismo talvez tenha a imagem – pode ser muito estereotipada – da ação do voluntariado nas comunidades, tudo muito importante, mas que às vezes faz parecer que você pode fazer uma intervenção e que não precisa continuar.

Micro/Macro

Eu não acredito que há ponto de chegada, que chegaremos a uma situação melhor para todo mundo. Um dia eu falei: “nós vamos ser feministas até o fim, antirracistas até o fim, porque o racismo não vai acabar, o patriarcado não vai acabar, o capitalismo não vai acabar” – pelo menos não no horizonte histórico que temos. Não que o desejo pela mudança não nos interpele e nos convoque. Essa deve ser a nossa busca. O fato é que somos atravessadas infinitamente por essas violências, nós somos essas violências em última instância. Eu acho que a questão entre “micro” e “macro” – um debate situado no século 20 sobre como se organiza as lutas – trata de uma coisa só. Os feminismos também. Não dá para desconectar a minha intimidade, a forma como eu me sinto, do sistema global da especulação financeira, de como a gente lida com os recursos naturais. Chegamos numa fase em que todo mundo vai ter de se virar com tais problemas, algo que incansavelmente é preciso levar adiante e enfrentar.

Conviver

Compartilhar [ideias, experiências] com outras pessoas vai sintonizando os afetos. Aí a coletividade se materializa. Quando estou num espaço só com mulheres, e mais ainda, com mulheres negras, periféricas, a confiança vai também refazendo a vontade de lutar, de seguir. A gente vai construindo mediações, alianças – e as lutas são essas relações, principalmente. As lutas são sempre formas de convivência.

Ambiente institucional

Na Câmara de Vereadores, a pressão para que aumente a distância entre os movimentos e a vida institucional é assustadora. Os movimentos podem até tentar ocupar, mas as barreiras formais são brutais. Existem procedimentos, sombras, apagamentos, ruídos que não tornam automática a conexão das lutas com a vida institucional. Há um vetor do próprio sistema jogando para ficarmos aqui dentro, confinadas. Não se pode permanecer muito tempo nesse ambiente institucional. É preciso arejar a vida institucional continuamente. Do mesmo modo como somos socializadas para nos adequar às normas desde criança, assim é com as lutas no espaço institucional. A radicalidade, a ousadia, a inventividade, tudo isso que nos constitui, vai perdendo um pouco de vigor ao longo do tempo. A conexão das lutas com a institucionalidade requer uma tensão básica: as lutas precisam manter processos autônomos para além das instituições e, ao mesmo tempo, não descansar das instituições. A derrocada do projeto petista, democrático-popular do último período, tem a ver com essa separação. Eu nem falo de cooptação, mas de um enquadramento mesmo, de um empobrecimento [da ação]. Erguer na vida institucional uma presença ativa das lutas é custoso, e pode ser ameaçado com muita facilidade. Mas não se pode desistir; é tudo o que eles querem.

A luta na Câmara

Quando eu olho a Gabinetona na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, tenho de relembrar por que nós estamos aqui, qual é a dedicação de vida para esse projeto comum que a gente sonhou e aos trancos e barrancos vem colocando em prática. Nós primeiro inventamos que queríamos ocupar as eleições – ouvimos de tudo no meio do caminho e tivemos de fazer uma síntese no meio do caminho para persistir. Aqui é um esforço de resiliência diária. Aqui a gente tem de desenvolver estratégias de sobrevivência, e forjar atitudes também. Não se consegue simplesmente com a nossa “boa intenção” sobreviver aqui. É preciso romper, ir abrindo espaço, na marra.

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

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