Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Muita tecnologia para pouco futebol
A colunista Luh Ferreira mostra como a camisa azul da seleção, o VAR e novas ferramentas de vigilância tem mais em comum do que poderíamos supor à primeira vista
A camisa reserva da seleção brasileira de futebol se esgotou em apenas dois dias após o seu lançamento no site oficial. Sim, me refiro à camisa azul.
Que tempo esquisitos hein, camaradas? Essa camisa azul nunca teve nenhum charme, quase ninguém tinha. Toda vez que alguém aparecia com essa camisa azul no jogo era uma tiração de sarro só:
— E aí vai ficar na reserva? Cadê? Não tinha a camisa verdadeira na loja, não?
Já a amarelinha guardava ainda a simbologia da sorte. Com ela nos sentíamos mais seguros para entrar em campo com a seleção.
O livro “Maracanã: quando a cidade era terreiro” (2021) de Luiz Antonio Simas nos diz:
‘A camisa da seleção brasileira de futebol – que já foi branca, é amarela e vez por outra azul – pareceu ser em outros tempos, não tão distantes um exemplo daquilo que o romeno Mircea Eliade, filósofo e mitólogo, chama de hierofonia: a percepção da existência do sagrado manifestada em um objeto material. A camisa uma vez trajada pelos deuses do gramado, parecia virar manto de santo, vestimenta de orixá, cocar de caboclo, capa de Exu, terno de malandro, roupa de marujo; estandarte de aldeia que buscou definir-se a partir das artes de drible e gol’ (p. 9)
Simas nos confirma a força de uma vestimenta, de uma indumentária histórica, que carrega consigo um povo e uma cultura. Ok, isso foi antes do 7×1, quando parece que a gente entrou em campo sem camisa, sem cabeça, sem corpo, sem Brasil… Bom, pulemos essa parte.
Para ler mais: A democracia securitária em meio à pandemia e uma nota sobre a revolta e o militantismo
O próprio Simas, o autor que nos inspira a escrever este texto, realiza toda uma investigação da história, da cultura, da geografia dos encantados que convivem e dão vida, graça à mistica futebolistica brasileira, Exu e seus compadres e comadres se fazem presente e dentro e fora de campo, algo que o mercado, o capital que se engendra em tudo quanto é espaço, busca acabar. Mas a verdade é que “sorte não se compra”, então sai pra lá marca estrangeira rica, que aqui tu não se cria!
Censura, perseguição religiosa, não combina com futebol.
Censura e perseguição religiosa não combinam com futebol.
Voltemos então para a tal da camisa azul, a mais nova queridinha dos brasileiros. Aquela azulzinha besta já era! A nova camisa reserva tem status de oficial, minha genty!! Carrega um azul vivo, mais que anil, e uma estampa de onça pintada fluorescente nas mangas, bem mais animada que a amarela que ficou com a marca d’água estampada em toda a camisa. Os patrocinadores investiram na onça como simbolo de sua luta e da garra, coisa bemmmmm necessária nos tempos atuais.
A seleção brasileira vai à campo vestida de Juma Marruá, trabalhada na réiva?!
A patrocinadora que sempre lucrou muito com as vendas de camisa, ainda mais nessa fase bozónarista, busca atingir agora o público mais progressista? O animal print fresh pode dar alguma vida, tanto à desenxabida seleção brasileira, quanto à camisa reserva.
Pois bem, falando em futebol… confesso, sempre gostei muito! De jogar e de acompanhar os campeonatos, de ir ao estádio, de assistir pela TV. Torço ou já torci muito para o time do Palmeiras (que nos últimos anos vêm fazendo bonito até…) mas a presença do VAR me afastou do futebol e da torcida. Não consigo acompanhar e nem entender porque uma coisa destas apareceu no esporte. O VAR tornou-se o verdadeiro juiz do jogo. O juiz, que sempre foi aquela pessoa com a qual todos eram obrigados a lidar, porque estava em suas mãos a definição das jogadas, e portanto para lidar com ele e suas intervenções tinha que ter a ginga, sabedoria brasileira, arte de fazer sem ter feito… Juiz passou a ser um moribundo, desconsiderado, chutado mais que a bola, que corre de lá pra cá em campo só esperando o momento polêmico acontecer, para gesticular o perverso quadrado com as mãos que aponta “é lance para o VAR” e aí tudo pára. As câmeras entram em cena e ali se vão os segundo mais enfadonhos de todo o jogo… enquanto se espera o momento em que a maldita da câmera vai dizer se foi ou não pênalti, se o gol valeu ou não, se foi mão na bola ou bola na mão.
Se o VAR estivesse presente na copa do mundo de 1986, Dieguito Maradona teria seu famoso gol “mano de Dios” invalidado e o que seria do futebol sem esse lance? E quantos lances incríveis vêm sendo impedidos, corrigidos, massacrados por conta dessa tela vigilante que vêm orientando e até mesmo paralisando o futebol brasileiro nos últimos anos?
É tanta paralisia, é tanta pressão, é tanta desconfiança e preocupação com o que acontece fora de campo, uma vez que a vigilância está ali presente, que a coisa só poderia descambar para onde? Em violência. É impressionante a quantidade de xingamentos, de pontapés, de descontentamento expressos em um jogo. Até técnico agora quer entrar em campo pra tretar com juiz, que situação… A brincadeira, a alegria acabou.
O livro de Simas (2021) nos apresenta a história da construção do estádio do Maracanã e as reformas que mudaram completamente a experiência de quem o frequenta, transformações que vêm acontecendo em todo o mundo futebolístico, que podem mudar completamente a maneira como enxergamos o esporte e cultura que ele carrega.
Tais mudanças, que vão desde a destruição da geral, que trazia todo um misticismo, toda uma cultura das periferias para o centro, onde torcer não significava apenas comprar um ingresso e incentivar o seu time, mas marcar presença em um lugar, num espaço-tempo do encantado, onde tudo no mundo poderia esperar, pois ali no gramado, quando o juiz apitasse o início do jogo, coisas inacreditáveis, sagradas e profanas poderiam acontecer. Dependia mais da fé e da sorte do que da competência da turma.
Hoje, como alerta Simas, não há mais estádio, mas arena. Não existe mais manto sagrado, mas uma camisa que mais parece um outdoor. Não existe mais torcedor, e sim clientes.
O VAR, a vigilância e o mercado da bola não combinam com o futebol.
Nos anos 2000, quando acompanhava os campeonatos e jogava futebol na escola, aparecia vez ou outra uma expressão que circulava entre os boleiros famosos e, obviamente chegava na nossa vila:
“É muita tecnologia para pouco futebol”
Lembro bem que nessa época chegavam nas quadras, nos campinhos, aquelas chuteiras coloridas, com travas incríveis, tinha também as camisas de tecido dry fit, os jogadores patrocinados pelas marcas… enfim… tudo isso aí a turma dizia que era tecnologia. Mas o que importava mesmo era se a pessoa jogava bola, se tinha aquele cacoete no modo de andar que nem o Pagão, se trançava as pernas do adversário no elástico, se tinha estilo na cobrança de falta – que era gol na certa do Zico, se driblava com a alegria do Garrincha. Eram essas tecnologias que realmente importavam, que todo mundo que curte futebol se esforça para fazer e ver.
Essas tecnologias combinam demais com o futebol.
Outra coisa que me fez lembrar esta expressão entre tecnologias e capacidades nessa semana, foi a notícia de que os milicos adquiriram um software que tem a capacidade de capturar e analisar dispositivos celulares smartphone, extraindo dados de e-mails, nuvens, redes sociais e aplicativos de mensagem, mesmo de conversas apagadas. A empresa que vendeu a tecnologia, sem licitação, já lucrou mais de R$ 70 milhões de reais em equipamentos de vigilância, todos com dispensa de licitação com a justificativa de que não existem empresas habilitadas a oferecer este serviço. Tudo à serviço da segurança cibernética. Será?
Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, os responsáveis pela compra deste e de outras tecnologias são os mesmos milicos aliados de Bozó que questionam a lisura do processo eleitoral e das urnas eletrônicas! Vejam só…Quando a gente acha que já viu de tudo da prática vigilantista…. chega um VAR para pegar geral.
Afinal, são os mesmos milicos, que compõe o governo federal e recentemente gastaram outros milhões em próteses penianas e caixas e caixas de comprimidos viagra.
É muita tecnologia pra pouco futebol mesmo, né?
Quem tem o direito de sonhar?
por Marcele Oliveira*
A ativista Marcele Oliveira conta sobre a resistência climática que vêm das favelas, periferias e subúrbios fluminenses e se pergunta como sonhar em conjunto é possível
“O clima hoje é de mudança. É da ousadia de querer justiça e uma vida digna para todos, todas e todes.” l Foto: @luannevesph via Instagram de Marcele Oliveira
Eu me chamo Marcele Oliveira, tenho 23 anos, sou uma jovem preta e periférica que integra a construção de uma Agenda 2030 no território de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Falante desde pequena, minha formação acadêmica e profissão em atuação é em torno da Produção Cultural e da Comunicação. A Cultura, em um momento duro da vida após a ocupação das escolas em 2016, foi uma alternativa de horizonte importante para curar a tristeza de perceber que nem sempre as ações mais radicais irão surtir os efeitos que a gente deseja. Ainda assim, não abri mão de seguir radicalizando e sonhando futuros e presentes possíveis – e hoje não dá pra falar nem de cultura, nem de futuro nem de presente sem falar de questões socioambientais e justiça climática.
Nasci em 1999 e cresci na periferia. Graças ao incentivo nos estudos e um bom ensino médio público, tive acesso ao direito do passe livre secundarista e foi ele quem me apresentou a cidade para além das ruas da minha infância e do turismo dos cartões postais. O trem lotado, a lagoa entre prédios, o mar de gente, os cortejos entre sinais, os prédios históricos, o metrô gelado, o ônibus engarrafado na Avenida Brasil que corta do Centro até Santa Cruz te mostrando quantas cidades cabem em uma só…
Tudo isso eu observava enquanto circulava entre museus, teatros, jazz e sambas que me faziam feliz – mas nunca me faziam sentir em casa. Eu nunca me senti em casa na Zona sul. Hoje, reconheço que o direito de poder ocupá-la e conhecê-la, inclusive em seus defeitos. Foi isso que me despertou a curiosidade de entender como a minha e todas as outras periferias do Rio se adaptam aos desafios colocados quando ousavam existir para além dos impedimentos da mobilidade, da violência e da falta de futuros possíveis.
Leia mais: O que é resistência climática?
No meu território, situado numa origem de contexto militar, um possível Parque Verde está há anos sem garantias de sua implementação por conta da especulação militar-imobiliária que não arreda o pé de fazer de qualquer metro quadrado um negócio lucrativo. O Movimento 100% Parque de Realengo Verde denuncia esse caso e apresenta soluções práticas, como a Ocupação Parquinho Verde, localizada na calçada do terreno em disputa. A ocupação construiu uma horta comunitária, teto verde, composteira e um espaço para realização de eventos e encontros formativos. No espaço de eventos, tivemos um curso de Políticas Públicas de Realengo no primeiro semestre de 2022 e gerou as propostas que constroem a Agenda Realengo 2030.
Se em 8.000 metros quadrados já inventamos novos futuros, imagina com 142.000?
Fato é que um espaço público verde e de convivência traria muito mais desenvolvimento sustentável para o nosso território do que mais prédios de concreto e muros ao invés e árvores.
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Justiça Socioambiental foi um dos principais temas durante o curso de políticas públicas em Realengo. Além da ameaça de destruição do Parque – última área verde da região – o bairro vem sofrendo com constantes enchentes, fruto do descaso dos governos com a pauta da emergência climática. l Crédito: Marcele Oliveria/Reprodução
Resistir e sonhar
Ainda do lado de cá, a Teia de Solidariedade, organização de mulheres da Zona Oeste do Rio, se destaca pela proteção da identidade das mulheres negras quilombolas, indígenas, agricultoras e artesãs das Vargens e demais extremidades. Entre elas, o debate sobre empreendedorismo, empoderamento e tecnologias ancestrais de sobrevivência através de rodas de conversa, do reiki, da boa alimentação e da garantia do bem viver.
Em Sepetiba, o Instituto Arayara denunciou e, com muita luta, impediu junto ao Ministério Público a instalação de termelétricas flutuantes na baía. A baía, vale lembrar, é viva e meio de sustento de muitas famílias que são diretamente afetadas pelos efeitos colaterais da utilização de uma fonte de energia não renovável. Infelizmente, a decisão judicial já está sendo desrespeitada. Na Zona Oeste, tudo pode, não é mesmo?
Do outro lado da cidade, em Belford Roxo, a ONG Sim Eu Sou do Meio, aponta que, além de “nada de nós sem nós”, a justiça social precisa ser uma premissa essencial para a construção de uma sociedade igualitária.
Em Queimados, a Visão Coop constrói, junto a outros movimentos, a Agenda Queimados 2030 e se consolida como um laboratório de inovação cívica que organiza redes de cooperação e trabalha tecnologias sociais, digitais e verdes para a Baixada Fluminense. Em Caxias, o Movimenta Caxias e o Artivismo BXD incidem nas ruas com rodas de rima, sopão e distribuição de cestas vinculadas à proposta de construção de uma “Câmara dos Vereadores Popular” para fiscalizar e reivindicar direitos.
No Jacarézinho e na centralidade do debate de segurança pública, o Labjaca se coloca enquanto instituição que pode e vai também debater arte, cultura, esporte, educação e tudo mais o que for essencial para o desenvolvimento das favelas além do cessar fogo.
No Complexo da Maré, o data_labe é uma organização de mídia e pesquisa que realiza um projeto fixo chamado Cocozap, onde os moradores podem enviar denúncias de violações em relação ao saneamento básico do território via whatsapp, promovendo uma geração cidadã de dados que podem contestar dados oficiais que não condizem com a realidade do território.
Tempos de ousadia
Em reuniões nacionais e conferências mundiais sobre Clima, como a COP27 que esse ano rola no Egito e a Rio+30, que foi cancelada no Rio, é importante que instituições e coletivos que apresentam tecnologias verdes, sociais e faveladas com aplicações tão concretas para o enfrentamento das consequências das mudanças climáticas, tenham espaço.
Essa inserção se dá não só pela relevância dos seus trabalhos, mas também porque ocupar espaços como esses é importante para garantir, dentro das nossas condições políticas atuais, uma inserção de urgência e alerta vermelho para o Rio de Janeiro dentro da pauta Sul Global. É lá que nossas articulações de terceiro setor que pautam Justiça Climática tem uma chance real de garantir a visibilidade que pode atrair o tão necessário financiamento para alavancar seus impactos.
Essas ações e medidas urgentes, vale dizer, só são necessárias visto a ausência do Estado, que deixa lacunas e sangue nas periferias como medida de contenção da crise social vigente. Se quem cuida ou deveria cuidar não o faz, a gente se cuida, se reinventa e se propõe.
Mas, muito trabalho, vez ou outra, tira a nossa capacidade de seguir sonhando e sendo inventivo para além de apagar incêndio e salvar móveis de enchentes. Com o aumento dos preços, do trânsito, do intervalo dos trens, das injustiças e do caos, eu me pergunto: quem tem o direito de sonhar? A concretude da tragédia, da violência e do sofrimento já nem nos assustam mais. O massacre, sistemático, de corpos e corpas vulnerabilizados por suas cores, territórios e identidades é televisionado e a Justiça, aquela que deveria equilibrar a balança, não é capaz nem de descobrir onde estão os corpos.
O sonho, princípio básico da vida e da relação com a natureza e com o ancestral, como afirma Ailton Krenak, líder da União das Nações Indígenas, se torna, assim como a arte se tornou pra mim em 2016, estratégia de defesa. As tecnologias de resiliência nós já temos e aplicamos. O que queremos agora é tornar nossos sonhos mais utópicos de justiça social, de gênero, econômica e climática realidade de Leste a Oeste fluminense. A utopia, nesse caso, é viável, possível e urgente — como apontam as propostas da Agenda Rio 2030 construída pela Casa Fluminense.
O clima hoje é de mudança. É da ousadia de querer justiça e uma vida digna para todos, todas e todes da Cidade Maravilhosa e do Brasil. É da insistência em não deixar que desrespeitem a história, memória e patrimônio de nossos territórios. É das ocupações em espaços públicos e privados e principalmente dos espaços de decisão e de financiamento. É do compartilhamento da tecnologia mais milenar e ancestral que conhecemos: a capacidade de sonhar! Sonhar e acreditar que nada precisa ser como é, tudo sempre pode mudar, afinal, quem dita nossos caminhos somos nós. Precisamos, em geral, fazer parte da mudança e parar de acreditar naquilo que dizem ser “só” o que podemos. A gente pode muito, pode mesmo, pode mais e pode mais ainda quando se permite, se coloca e, em coletivo, SONHA.
Referências:
Agenda Rio 2030 – @casafluminense
Agenda Realengo 2030 – @agendarealengo2030
Movimento 100% Parque Realengo Verde – @parquederealengo
Ocupação Parquinho Verde – @parquinhoverde
Labjaca – @labjaca
Visão Coop – @visaocoop
data_labe – @data_labe
Teia de Solidariedade de Mulheres da ZO – @teiasolidariedadzo
Instituto Arayara – @arayaraoficial
Movimenta Caxias – @movimentacaxias
Artivismo BXD – @artivismo.bxd
*Marcele Oliveira é cria da Zona Oeste, produtora, comunicadora e ativista climática. Graduanda em Produção Cultural pela UFF – Niterói, mestre de cerimônias do Circo Voador e integrante da Agenda Realengo 2030 pautando políticas públicas para o território. Apresentadora, mediadora, facilitadora, produtora de conteúdo e praticante do exercício de comunicação popular e comunitária – onde a sensibilidade e o papo reto dominam e facilitam o entendimento. Pesquisa Justiça Climática e Racismo Ambiental vinculado às pautas de ocupação dos espaços públicos e direito à cidade. Mobilizadora popular no Movimento 100% Parque de Realengo Verde. O clima é de mudança! Instagram: @marceleolivv
5 passos para criar um coletivo de comunicação comunitária
Saiba como abrir uma associação comunitária de bairro
Pistas em linha – Formas de fazer processos dinâmicos de aprendizagem online
Queremos experiência reais, mas os tempos atuais insistem em nos manter na virtualidade. Confira pistas para atividades seguras e dinâmicas on-line
A vacina chegou, a pandemia amenizou, mas nem todas as atividades presenciais retomaram à normalidade. Será que estamos preparades para realizar atividades de forma segura e proveitosa? Preparamos algumas pistas para conduzir dinâmicas em linha.
Parece que o online veio para ficar. Já antes da pandemia, os conglomerados de tecnologia, a vigilância praticada por Estados e corporações e a expansão da nossa vida no universo digital já vinham redesenhando a presença humana no mundo. Agora as adequações feitas pela necessidade do isolamento indicam um caminho sem volta. Estamos cansados das telas, saudosos de presença e sedentos por experiências, mas a realidade insiste em nos manter em linha.
Em um encontro da Escola de Ativismo, um participante comentou: “Acaba a semana e a gente fica com a sensação de que falou com tanta gente mas, muitas vezes, não passamos do portão de casa”. Eu mesma sinto que fiquei mais silenciosa e sensível ao som, mesmo que tenha vivido esses dois anos com algum trabalho de campo e dinâmicas online bem interessantes — propostas pela galera do teatro-educação que teve que rebolar pra trazer para os encontros em linha a presença exigida pela atividades.
E você, já parou pra pensar em como você e as pessoas ao redor mudaram ao longo desses dois anos?
É pensando nessa presença e aproximação que acontecem no momento do café, nos intervalos ou na própria dinâmica presencial, que a Escola de Ativismo preparou dois materiais para guiar atividades online (ou em linha). Eles são resultado da experiência com grupos de ativistas na prática e trazem, inclusive, relatos e contribuições pessoais, além de um cardápio de possibilidades de ferramentas baseadas em cuidado digital.
A ideia é politizar a tecnologia. Nós a inventamos, não o contrário. Por isso, reinventaremos os modos de usá-la, reconhecendo seus limites, capacidades e vieses. Além de descolonizar as linguagens que afirmam uma certa hegemonia. Tomar as ferramentas em nossas mãos passa também por utilizar termos que possamos compreender. Queremos descolonizar, tropicalizar, tupiniquinizar, aquilombar estes termos e seus conceitos. Por isso, chamamos de atividade “em linha”, não online, e propomos uma desburocratização de métodos, através dos métodos-processo.
Veja algumas pistas para os seus processos de aprendizagem
Aquecimento
Momento para as pessoas contarem um pouco de si, uma mania, uma história da infância, um aprendizado, trazer uma receita, algo relacionado ao tema do encontro que possa depois ser resgatado durante as atividades. É diferente da checagem que se assimila ao “oi, tudo bem?” do dia a dia onde corre-se o risco da pessoa falar qualquer coisa de forma mecanizada.
Trazer sentidos fora da tela
Apesar de termos muitas atividades focadas na visão nos processos “em linha”, temos percebido a importância de criar atividades que envolvam outros sentidos, criando estímulos para que as pessoas experimentem algo com o corpo, com a audição, com as mãos fora do teclado e das telas, produzindo uma relação outra com o encontro e com o conteúdo. Que tal cantar juntos uma canção? Esculpir algo com argila?
Problematizar ferramentas e o mundo online
Muitas vezes, acreditamos que todas as ferramentas são iguais quando na verdade existem muitos mundos no espaço tecnológico. Reserve um tempo para problematizar questões politico-econômicas que envolvem a aquisição e compartilhamento das ferramentas. Busque informações complementares sobre sistemas de código aberto e fechado e a diferença entre ambas. E crie uma linha de recomendações. As pessoas precisam saber porque você escolhe uma e não outra, qual o histórico para a escolha, enfim: são diversos fatores que podem contribuir para que mais e mais pessoas descubram o potencial das ferramentas à serviço das pessoas, e não o contrário.
E por falar em problematização…. educação em linha para quem?
É importante lembrar como a conexão com a internet é racista, colonial e não inclusiva. As estruturas favorecem determinados grupos, segmentam setores e multiplicam desigualdades. Quem tem a possibilidade de estar conectada e participar de encontros online? Algumas comunidades ainda estão sem acesso à energia elétrica. Algumas pagam mais caro pela conexão que também não chega a determinados territórios. Ao promover e fomentar encontros em linha, vale a pena mapear e compreender a estrutura disponível ao público que se quer atingir e tentar garantir alguma estrutura.
Por fim, vale lembrar que não existe manual para atividades de aprendizagem. As pistas, como a própria palavra indica, são parte do caminho. É preciso refletir com elas e levar em conta as peculiaridades e características de cada território onde se propõe a atividade. Fazer com as pessoas e não para elas. Aprender fazendo é viver o método e não falar sobre.
Veja aqui o PDF completo com outras pistas para os seus processos de aprendizagem
Y hay también una versión en español
Como descobrir se sua senha foi vazada
De Jesus a Bolsonaro – Por que as histórias de jornadas funcionam e como podemos utilizá-las ao nosso favor
Resistência climática nos territórios: o que é e como fazer
Por Alicia Lobato
Em seu texto, a repórter Alicia Lobato entrevista uma série de ativistas pelo clima da região Norte e Nordeste do país, que falam um pouco de suas trajetórias e como têm feito para mobilizar suas comunidades para resistir.
Quem precisa lutar pelo seu território precisa resistir de várias formas. E isso é o que move pessoas a arriscarem suas vidas para falar sobre a proteção dos seus territórios e lutar batalhas incansáveis. Além de um ativismo, a resistência climática é sobre nascer em um contexto onde se é obrigado a ser ativista, saber usar os meios que lhe foram oferecidos e se apropriar dos que não foram.
Resistir não é apenas se fortalecer como indivíduo, é também se fortalecer coletivamente, seja por meio de organizações estruturadas, artivismo, comunicação popular. É respeitar também quem veio antes e usar esse conhecimento que foi passado para proteger os de agora e os que vem depois. Ou seja, é quando pensamos não apenas nas nossas florestas, mas nas vidas que estão nelas e no entorno, temos a compreensão do que é o meio ambiente e como resistir diante de tantas violências.
Apesar da pauta climática e ambiental estar sendo reconhecida como um problema a ser discutido, essa evolução precisa se dar junto com os territórios que já abordavam isso na sua própria história. O Brasil é o quarto país do mundo que mais mata ambientalistas, de acordo com relatório divulgado pela ONG Global Witness, em 2021. Defender os biomas e seus territórios no país costuma ter um preço muito alto, que ficou ainda mais caro nos últimos anos por conta de uma política agressiva e de não inclusão de pautas ambientais nos seus projetos.
Por isso, ouvir quem está na luta da resistência é fundamental para não apenas avançarmos nesta agenda, mas também encontrarmos uma solução.
Os Guardiões do Bem Viver atuam para proteger seu territórios das ameaças da mineração l Foto: Divulgação
Conhecimento é resistência
Diante desse cenário de medos e inseguranças, ativistas têm buscado caminhos para continuar na luta e conseguir também fortalecer os coletivos que atuam. Em Rondônia, a solução encontrada por jovens indígenas foi a construção de um coletivo, o “Juventude Indígena de Rondônia”, surgiu pela ausência de um espaço onde jovens lideranças pudessem atuar e contribuir com as pautas nas suas comunidades. Para Marciely Ayap Tupari, uma das coordenadoras da organização, a vontade surgiu depois dela ter participado do Acampamento Terra Livre, em Brasília, no ano de 2018. Ao ouvir vários relatos de participantes, ela se sentiu encorajada para participar de mobilizações.
“Até porque eu falo, principalmente, como mulher indígena, aqui dentro do estado de Rondônia é muito difícil você ver as mulheres atuando e ainda mais jovens, porque muitas vezes a gente não tem espaço”, conta.
Segundo a jovem, no primeiro encontro da organização eles conseguiram mobilizar representantes de pelo menos vinte povos indígenas. E eles têm se esforçado para alcançar mais jovens. Para resistir e poder ocupar outros espaços, Marciely precisa ir além do seu território, no entanto, esses outros lugares são repletos de violências que surgem de vários lados.
“A partir do momento que você sai de dentro do seu território e busca ocupar esses espaços você também acaba sofrendo um pouco de preconceito dos próprios parentes porque eles dizem que por ‘a gente não morar dentro do nosso território, nós não temos direito a voz’”.
“A gente sempre coloca que quando nós nascemos, principalmente povos indígenas, já somos ativistas”, diz Marciely l Foto: Arquivo Pessoal
Mesmo assim, com a crise climática, ela vê no seu dia a dia mudanças graves que precisam de soluções. De acordo com ela, o calendário tradicional de colheita já não é o mesmo, e além disso ainda tem as queimadas e o desmatamento. Esse conjunto de fatores a obriga buscar outros caminhos fora da sua comunidade, soluções para uma resistência coletiva, que, para ela, se baseia em investir no conhecimento e na comunicação.
“Precisamos sair do nosso território exatamente para buscar essas informações para ver que forma transmitimos para os não-indígenas entenderem qual é a nossa luta. Outra arma que usamos é a comunicação, estamos buscando formar outros comunicadores indígenas para mostrar para o mundo o que está acontecendo”. A resistência para Marciely surge naturalmente, com a luta constante nos territórios “Na verdade, a gente sempre coloca que quando nós nascemos, principalmente povos indígenas, já somos ativistas”, enfatiza.
O conhecimento, ou a educação, é um símbolo fundamental quando se fala de resistir, apesar de ser um obstáculo para alguns lugares, a migração obrigatória de sair do seu território em busca de uma formação é resistência. A educação para Emerson ‘Uýra’ Munduruku, bióloga, artista e educadora, também é resistir, principalmente, para jovens e juventudes das comunidades tradicionais.
Também conhecida como Uýra — A árvore que anda —, ela se define como “às vezes gente, às vezes árvore”, e tem atuado em pautas relativas aos territórios amazônicos. Nascida em Santarém (PA) e moradora de Manaus (AM), Emerson busca refletir suas vivências da periferia amazônida nos seus trabalhos. A árvore que anda, é uma maneira também de lembrar às pessoas o que é a natureza que encontramos hoje, como Emerson explica:
“Conta histórias dessas naturezas, das poluições, desmatamento, racismo, de opressões, mas também conta história de esperança de uma natureza das águas, das folhas, do som das nossas vozes”, diz Uýra, que também afirma ser uma pessoa indígena em diáspora, em retomada ancestral Para ela, se utilizar da arte é um modo de integrar natureza e “gente”, especialmente, quando se fala de Amazônia, com suas diversas causas e territórios.
Nesse sentido, seu trabalho artístico foi a maneira que ela encontrou para resistir como um corpo trans indígena. E, por isso, precisa ser política e um reflexo do que vivemos hoje. “A arte reconta a história, ela pode mudar rumos no futuro, fazer ver, se fazer sentir, pelo local da vida fazer sentir o outro. Quando falo de artivismo falo de fazer sentir, aproximar mundos”.
Intervenções artísticas e oficinas podem aproximar gerações e unir mundos. l Foto: Barbára Alves
A resistência vem da preservação da cultura e das tradições
Esse aproximar mundos é o que tem movido ativistas ambientais pelo país em meio aos retrocessos. Quando se nasce sendo quase que obrigado a estar na luta, a única forma encontrada de viver é procurar meios de persistir durante essa jornada. Os Guardiões do Bem Viver, de Santarém (PA), mostram que este aproximar dos mundos pode ser coletivo. Para Ronald Soares, um dos membros do coletivo, resistir é continuar um longo trabalho que começou com seus ancestrais, “para preservar hoje essas riquezas que temos aqui e combater a mineração dentro do nosso assentamento”. Resistir para os moradores do assentamento PAE Lago Grande, é evitar a chegada da mineração que tem tentado invadir suas terras.
Assim como a luta que começou com os seus antepassados, o que move também os moradores a enfrentar diversas violências é o conforto do bem viver, que Ronald resume como “costume, cultura e tradição”, que deve envolver diversas gerações e não apenas os jovens, que ele qualifica como “corajosos” e “vasos ruins de quebrar” na defesa de seu patrimônio social, natural e cultural.
“Todo assentamento tem um bem viver, pelo qual ele preza. A mineração afeta de morte o bem viver, que é tudo de bom que possuímos no nosso território, o qual não queremos que acabe”, diz.
A educação, segundo Soares, tem sido um bom começo para os ativistas espalharem e fortalecerem suas pautas. A motivação de compartilhar o que sabem e assim contribuir com perspectivas diferentes para suas famílias e amigos é uma aliada importante.
“Nós trazemos essas informações [sobre mineração] para a nossa comunidade, sempre debatendo. Isso é importante, levar esse conhecimento e transmitir ali aquela realidade do que pode causar, quais são as consequências e o que pode vim acontecer se nós como moradores não nos juntarmos”, diz Ronaldo, sobre a ação direta de ir de casa em casa falando sobre os perigos da mineração.
No assentamento não há sequer uma unidade básica de saúde, nem escolas públicas, por isso a resistência também passa por lutar por um futuro próximo em que outros jovens possam ter acesso a atendimento básicos.
“Temos criado projetos, logísticas de como debater esses temas, não só no nosso assentamento mas em qualquer lugar que vamos, o conhecimento é uma ferramenta muito importante que temos em levar essas informações, dá essa visibilidade”, diz.
“A juventude sem terra tem se colocado como sujeito importante até porque nós temos direito ao futuro e a sociobiodiversidade é um patrimônio das futuras gerações”, diz Aline. l Foto: Arquivo Pessoal
O assentamento Lameirão, em Alagoas, no bioma da Caatinga também tem buscado novas formas de resistência. Falamos com Aline Oliveira, do coletivo nacional da juventude do Movimento Sem Terra, que vive no assentamento desde sempre: seus pais se firmaram por lá ainda na década de 90. Para ela, ser ativista nunca foi uma escolha.
Ela explica que a luta pela reforma agrária tem sido uma luta pela natureza e pela conservação de práticas tradicionais. Nesse sentido, os territórios dos assentados tem potencial de preservação, além de produzirem alimentos sem veneno em um contexto em que o governo tem liberado agrotóxicos constantemente.
Aline conta que por causa de todo esse potencial destrutivo, o território vive em um estado de insegurança e sofre com ataques diários. “A juventude sem terra tem se colocado como sujeito importante até porque nós temos direito ao futuro e a sociobiodiversidade é um patrimônio das futuras gerações. Agora, isso não vai rolar se continuar nessa mesma forma de exploração”, acrescenta.
Segundo ela, a crise ambiental pela qual passamos surge de um capitalismo com falsas soluções que apenas encobrem problemas que o sistema mesmo criou. Ela diz que a luta é para que se crie resultados verdadeiros, respeitando os territórios e as pessoas que vivem nele. E isso passa principalmente por resistir ao avanço do agronegócio e das políticas anti- ambientais do governo. Mas como? Para Aline, a resistência dos assentados é continuar produzindo os alimentos saudáveis e reafirmar a identidade comunitária do espaço.
“Resistir perpassa esse processo de cultura, de identidade, mas também de reafirmação que esse território é muito mais do que um processo compensatório, como os capitalistas têm colocado”, analisa.
Olhando todos esses casos, um fio comum atravessa: a resistência é como cada um enxerga seu território, é sobre um futuro só ser possível se respeitar tradições apesar de um ambiente de luta. Para que as próximas gerações também tenham acesso ao bem viver, é sobre trabalhar o coletivo e entender que a educação e as trocas são peças fundamentais desse processo e da construção desses novos caminhos.
O que está acontecendo na Colômbia agora? A eleição de Petro e a mudança política no país
Por Sigifredo Romero Tovar
O que ocasionou a vitória da primeira chapa da esquerda na Colômbia? Em artigo, o filósofo colombiano Sigifredo Tovar analisa o evento à luz da história de nosso vizinho latino-americano.
A vice-presidenta Francia discursa no palanque da vitória. “É uma revolução moral”, aposta o filósofo. l Foto: Página de Facebook de Gustavo Petro/Reprodução
Há exatamente 20 anos, não havia nada mais incrível na Colômbia do que Álvaro Uribe Vélez (2002-2010). O salvador da pátria, a esperança de todo o país, o maior fenômeno político em 50 anos. Ele chegou para resolver o problema da guerra, por meio da morte, para sempre. Todo mundo era uribista na época. Ele era o cara.
Hoje ele deve estar se narco-lembrando amargamente disso lá na sua narco-fazenda, agora que seu tempo parece ter acabado. Uribe, narcotraficante e paramilitar como poucos, o homem mais poderoso da Colômbia em décadas, governou oito anos – coincidindo mais ou menos com os oito de Lula – e depois continuou sendo o protagonista principal da novela política nacional. Nas eleições de 2018, conseguiu obter a maioria no Congresso e colocar uma marionete sua na presidência: Iván Duque (2018-2022).
No próximo 7 de agosto, termina o governo dos narcotraficantes e assassinos e começará o governo do esquerdista, do ex-guerrilheiro Gustavo Petro e da militante negra e ex-empregada doméstica Francia Marquez. O mandato da pele escura, dos negros, dos indígenas, das feministas, da galera LGBTQIA+, das vítimas, dos defensores de direitos humanos, dos direitos dos animais e dos defensores da natureza – o termo “ambientalista” nunca é suficiente.
É como se de repente aparecessem no governo todas as pessoas que não aparecem nas novelas da Globo. É uma revolução moral. As mudanças que estão ocorrendo nas instituições políticas colombianas nunca tinham acontecido em toda a sua história. Estamos testemunhando muitas primeiras vezes. Mas é só porque a grande mídia é burra e o Estado é lerdo. Os dois são imorais e o povo sempre é, como no Brasil, superior e mais rápido.
O que é a Colômbia: em três tempos
Se sobre a Colômbia você não sabe nada de nada, vou te dar a grande enciclopédia de tudo o que você tem que saber sobre o país em três parágrafos. Se sabe, pode pulá-los. Quanto mais ao norte do Brasil você for, mais tudo se parece à Colômbia. Deixa o sul de fora, óbvio. No entanto, se você está na Colômbia, quanto mais pra cima você subir na montanha, mais diferente é do Brasil. A mestiçagem indígena, espanhola e africana lá foi intensa, migração europeia posterior, quase nula.
A maioria dos 50 milhões mora nas montanhas mas a população também é numerosa no litoral. Há menos gente na região amazônica e nos Llanos orientais, as grandes savanas vaqueiras — os llaneros são os gaúchos, os cowboys – cuja cultura é compartilhada com a Venezuela. Oito milhões de desgraçados moram na capital Bogotá que, verdade seja dita, é a cidade mais feia que eu já vi. Tem bastante gente em Antioquia, uma terra intensa, cheia de contrastes e orgulhosa. Antioquia é protagonista, mais do que Bogotá, tanto da história do café quanto da história da cocaína, as duas drogas que fazem a fama do país. Já a região Caribe é deliciosa, tranquila, quente pra caramba, mais pele à mostra, García Márquez, vallenato e cumbia, mais viciantes ainda do que café e cocaína. Finalmente existe (existe!) o litoral Pacífico, africano, selvático, menosprezado e molhado todos os dias em muitas águas: o mar Pacífico, a chuva intensa, os grandes rios que vêm do sul e procuram o norte. A Colômbia com frequência tem uma vibe muito parecida com a brasileira, uma tropicalidade, uma tranquilidade, uma alegria, uma festividade, uma emocionalidade, ficar só de shorts e sem camisa.
E, finalmente, a guerra, a violência, a exploração brutal por parte das elites econômicas, o terrorismo de estado, os exércitos paramilitares, as chacinas que envolviam vilarejos inteiros e que duravam vários dias, mortes por motosserra, morte para os indígenas, os comunistas, as pessoas em situação de rua, os deficientes, os mais de 4 mil membros de um partido de esquerda chamado Unión Patriótica, tortura, desaparição forçada sistemática, desterro de milhões de camponeses, estupro de crianças, a violência intensa dos cartéis, brigas de vizinhos que terminam em bala e tripas de fora, sequestro, extorsão, minas terrestres antipessoais, o exército bombardeando vilarejos, homens jogando ácido nas mulheres que os rejeitam, empalamento, todo tipo de jogos macabros com o corpo, carros-bomba, colares-bomba, cartas-bomba, bikes-bomba, burros-bomba, pessoas-bomba, aviões-bomba, tantas cagadas que as guerrilhas de esquerda fizeram também, medo, pavor, terror da noite, da paisagem, do pai. O lugar é um manicômio e uma chacina. Colômbia. Não consigo ser mais conciso do que isso.
Sessenta anos de guerra
O Pacto Histórico, a coalizão de esquerda liderada por Gustavo Petro que ganhou a presidência nas eleições de 19 de junho deste ano, também foi o movimento político mais votado nas eleições para o congresso que ocorreram um pouco antes, no dia 13 de março. Mais uma primeira vez. O Pacto agrupa grande parte dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda, incluindo o Partido Comunista e o Polo Democratico — esse último o partido de esquerda mais importante das últimas décadas. Todos eles sobreviventes do genocídio político colombiano.
A guerra e a violência na Colômbia são fenômenos muito complexos, permeiam todos os âmbitos da vida dos indivíduos, são parte constituinte das identidades, mudam de região para região e têm muitos ciclos. Problemas socioeconômicos e políticos mal resolvidos levaram a uma violência bipartidária extrema entre liberais e conservadores nas décadas de 1940 e 1950. Os problemas não foram resolvidos e nas décadas de 1960, 1970 e 1980 nasceram muitas e diversas guerrilhas. Guerrilhas marxistas, guevaristas, maoístas, nacionalistas, urbanas, camponesas, indígenas, operárias, etc. As Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, as FARC, são as mais importantes nessa profusão toda. Na década de 1980 irromperam os narcotraficantes com seu poder ilimitado. Pablo Escobar, líder do cartel de Medellín, capital da Antioquia, é só o mais famoso. Torturou, matou, estuprou, sequestrou, comprou consciências e explodiu os corpos de milhares de pessoas nos lugares mais inusitados. Naquela época surgiu e prosperou ainda o paramilitarismo. Los paracos são narcotraficantes, militares e ex-militares, latifundiários, coronéis e até mesmo ex-guerrilheiros, que cumpriram vários propósitos: eliminar o dissenso e o pensamento, matar sindicalistas para as corporações estrangeiras, apavorar camponeses e expulsá-los de suas terras para roubá-las, matar y recontramatar comunistas, gays, maconheiros, ou seja, matar a vida em si.
O auge paramilitar foi em 1997, quando os diferentes grupos conformaram um exército de alcance nacional chamado Autodefensas Unidas de Colombia, AUC. Poucos anos depois, com o paramilitar Álvaro Uribe Vélez (2002-2010) a situação foi propícia para negociarem com o governo boas condições de desmobilização. Nunca a Colômbia foi tão paraca como naquela época. Numa ocasião, o congresso nacional louvara fervorosamente os chefões paracos em patriótica homenagem. As AUC desapareceram, o paramilitarismo persiste.
Petro, Uribe e a paz
Como Garcia Márquez, Gustavo Petro nasceu no Caribe e estudou lá, em cima da montanha, em Zipaquirá. Foi um membro não muito destacado — ele era jovem — do grupo guerrilheiro M-19. O grupo tinha em sua composição uma galera mais urbana do que as outras guerrilhas e se caracterizava por sua espetacularidade. Eles fizeram marketing de expectativa antes de se assumirem publicamente e seu primeiro ataque foi — pasmem — a um museu em Bogotá. Roubaram a espada de Simón Bolívar. Bolívar, a tua espada volta à luta! A guerra é tanto que é também símbolo. O M-19 nasceu porque as elites roubaram as eleições de 1970 de um velho militar populista, um Getúlio vetusto e a destempo.
Eu vi o Petro na TV há pouco menos de 20 anos. Era senador do Polo Democrático e denunciava uma realidade vigente ainda hoje: que os paramilitares estão no congresso, no governo, nas forças armadas, nos governos departamentais, nas prefeituras, entre os ruralistas claro, na indústria da palma africana, nas empresas estrangeiras mineiras e bananeiras e nos escritórios mais altos, espaçosos e limpos dos bancos.
Isso me lembra uma cena de Narcos. Wagner Moura como Pablo Escobar sonha que é recebido como presidente na Casa de Nariño. Numa cena incomparavelmente melhor, o chefão Vito Corleone fala para o seu filho Michael que tinha uma outra expectativa para a vida dele; ele queria que seu filho não só tivesse poder, mas também respeito: “… senator Corleone, governor Corleone…”
Quando o ex-governador de Antioquia, Álvaro Uribe, chegou à presidência em 2002, a grande maioria nem sabia ou se negava a acreditar naquilo que já sabiam tanto os bandidos como os norte-americanos: que o ex-senador Uribe, das entranhas do cartel de Medellín, era na verdade a herança mais maldita, o presente mais abominável de Pablo Escobar para a Colômbia. A chegada de Álvaro à presidência em 2002 foi a realização do sonho de Pablo, nove anos depois da morte do capo em 1993.
Uribe, el patrón, narcotraficante, paramilitar e assassino em massa. Durante seu governo o aparelho de inteligência da época, o DAS, estava nas mãos dos paramilitares. Uribe vê Pinochet, vê o Medici e ri. Muitos poucos mortos para ele. Ele matou mais, muito mais. Também cometeu diversos outros crimes: ele conhece a lei como ninguém porque ninguém foge tanto dela. Uribe, o bandido mais bem-sucedido na história de um país que tem a sua história cheia de bandidos terríveis.
E depois de quatro anos na presidência ele quis seguir matando, reformou a constituição, que não permitia a reeleição, e comprou congressistas com cartórios para poder governar mais quatro. E depois de oito anos ainda queria mais — mas a lei não permitiu dessa vez. Então ele quis botar um lacaio, seu Ministro de Agricultura, na presidência. Lamentavelmente, o lacaio tinha organizado um esquema para tirar milhões dos camponeses e encher ainda mais os bolsos dos seus amigos riquinhos. O ministro virou foragido e foi extraditado à Colômbia recentemente. Supostamente ele hoje está pagando por seus crimes num resort militar.
Então, em 2010, impedido pelas circunstâncias de pôr uma marionete de presidente, Uribe teve que confiar em quem não confiava, seu ministro Juan Manuel Santos (2010-2018), um príncipe dourado da elite bogotana que antes de saber ler já sabia que seria presidente só olhando para as fotos de família. Foi ministro da morte de Álvaro Uribe e antes disso ministro de outras atrocidades em outros governos, fanático neoliberal e antissocial da pior categoria. Mas ele fez uma coisa boa: o Processo de Paz com as FARC. Recebeu o Nobel de Paz como outros grandes assassinos, Barack Obama e Henry Kissinger.
Não foi por Santos — senão porque as ruas, as selvas, os campos, e as cidades da Colômbia estão cheios de gente milagrosa que movimenta o país todos os dias e todos os dias é capaz de derrotar o Estado e seus donos – que o Processo foi muito importante para transformar o país. De um dia para outro havia muitos menos mortos e os jornais tinham menos batalhas para informar.
As elites e a mídia por elas controlada afirmaram durante anos que a Colômbia era muito boa e tinha muitas possibilidades, mas que lamentavelmente os guerrilheiros não deixavam o povo progredir para poder ser como os norteamericanos. As FARC eram a maldade absoluta em um sentido quase bíblico.
Até que um belo dia, graças ao Processo de Paz, os colombianos acordaram num país sem FARC e repararam que continuavam ferrados do mesmo jeito. De fato, eles tiveram que prestar mais atenção aos políticos sorridentes tirando descaradamente o dinheiro da saúde, das mães, da educação, das crianças, dos deficientes, dos velhinhos, dos doentes, dos trabalhadores. É mais difícil enxergar o escândalo diário das elites roubando legalmente as pessoas do seu tempo, da sua alegria, da sua família, da comida gostosa e do ar. Assim, quando a pessoa perguntava, como dom Hélder, “Por que são pobres?” a resposta “Guerrilheiro, terrorista!” já não colava. Tiveram que começar a dizer “Venezuela!”. Só que a Venezuela não tinha estourado bombas nem sequestrado ninguém, então o efeito não foi o mesmo.
O Processo de Paz (2012-2016) foi o começo do fim do uribismo que havia chegado ao poder com a promessa de acabar com a guerra por métodos violentos depois de vários processos de paz malsucedidos nas décadas de oitenta e noventa. Uribe e os seus se opunham ferozmente ao Processo e o sabotaram. Todas as obscenidades que Uribe tinha cometido no Processo com os seus amigos paramilitares em 2002-2006, os uribistas inventaram que houve no processo de 2012-2016. Que o Santos era das FARC, falaram. Dizer que Santos é comunista é como dizer que Elon Musk é petralha ou cientista. Hoje em dia eles continuam atacando a paz e promovendo a guerra. Mesmo assim, graças à pacificação da época de Santos, o mais importante aconteceu, o povo começou a reverdejar.
Também me lembro de Petro na época do Processo quando era prefeito de Bogotá. Deram um golpe nele em 2014 mais rápido que o golpe na Dilma em 2016 só que depois de umas poucas semanas tiveram que restituí-lo. Foi bem naquela época que a petrofobia tomou a sua forma atual: Petro é um perversor de almas que fecha igrejas e abusa das freiras, um ser malvado que acende velas ao Chávez, que quer que a Colômbia vire Venezuela como um Zeus das placas tectônicas, que sequestrou o filho do Lindbergh, que matou Papai Noel e que é culpado de tudo aquilo que antes era culpa das FARC. Posso dizer que Petro governou em Bogotá para os mais oprimidos e desprezados e que graças a ele meu sobrinho de 20 anos hoje estuda numa sede da Universidade Distrital de Bogotá que fica em Bosa, um bairro de pessoas de carne e osso que nunca aparecem nos postais turísticos.
A última vez que o Petro havia se candidatado à presidência foi em 2018. Essa vez ele perdeu para Iván Duque, o pau-mandado do Uribe que, entre outras coisinhas, ganhou porque seus amigos narcotraficantes investiram uma boa grana nele, em sua vice-presidente de família narcotraficante, e em seu partido que é o partido dos narcotraficantes.
Duque, pau-mandado dócil, mas também guloso, do Uribe, é um carinha mediano, sem mérito algum. E aí Uribe se estrepou porque o Duque pode ser muito assassino, sim, mas o principal é que ele é (era, já era) um inepto de pobre intelecto e inexperiente — ainda hoje depois de quatro anos de presidência. É só escutá-lo falar para reparar na sua idiotice, e o seu foi o governo dos idiotas, dos falsificadores de títulos, dos medíocres, dos racistas, dos oportunistas, dos mentirosos, dos puxa-sacos dos norte-americanos.
Francia e o povo
E Francia, quem é? Há muitas como ela no Brasil. Negra da região do Pacífico, defensora da natureza e da comunidade, filha de parteira. A primeira vez que soube dela foi porque recebeu um prêmio muito importante. Como isso aconteceu nos Estados Unidos, a mídia colombiana foi obrigada a dar a notícia. Isso não impediu que o regime de narcos que a mídia defende tentasse ainda matá-la. E ainda assim a mídia não viu, não acreditou e não entendeu o que aconteceu quando no passado 13 de março, na consulta do Pacto Histórico, Francia recebeu quase 800 mil votos, para grande inveja dos políticos de sempre que têm todo o dinheiro, toda a atenção da mídia e todas as máquinas políticas.
A proposta política de Francia é de uma radicalidade tanto revolucionária como ancestral que é o oposto do desenvolvimento capitalista e do Estado liberal pois não vem de Paris nem de Washington nem de John fucking Locke. A proposta é vivir sabroso, viver gostoso, curtir. Isso inclui tudo aquilo que não seja vender a vida por horas aos opressores nem poluir a terra por eles. É uma filosofia que vem do povo e não se ensina em faculdade nenhuma.
E foi no povo que aconteceram as transformações profundas que culminaram na vitória eleitoral. Eu soube disso em um dia de setembro de 2020 quando um cara, não um líder, não um defensor de direitos humanos, um cara que era só um cara normal chamado Javier foi assassinado pela polícia de Bogotá. Até aí nada de novo. A novidade foi que as pessoas atearam fogo no prédio policial onde ele foi assassinado, fizeram protestos, a cidade feia foi incendiada e a polícia assassinou mais uma dúzia de pessoas no que constituiu mais uma chacina cometida pelo Estado colombiano.
No ano seguinte, quando o governo de Duque propôs uma reforma tributária para empobrecer o pobre e enriquecer o rico, a Colômbia foi para as ruas de novo. Os que saíram eram principalmente jovens, quase crianças, apenas com idade suficiente para saber que na Colômbia não tinham futuro além de uma vida de bicos, desemprego e humilhação. O chamado estallido social. Porque é isso, as pessoas estouram. Eu que cresci no medo reparei que aquilo era diferente dos outros protestos que tinha visto antes por um fator importante: a duração da luta. As pessoas foram para a rua sem pensar no regresso com uma raiva contida por décadas.
A cidade ardeu de novo, a grande mídia chorou pelos vidros quebrados e os pneus carbonizados enquanto o Estado saiu para massacrar de novo. A polícia e os paramilitares mataram dúzias, dúzias e mais dúzias, arrebentaram os olhos das crianças, torturaram transeuntes, estupraram mulheres e culparam as vítimas. Iván Duque os animava a matar. Tantos mortos no povo e tantos assassinos na força policial, começando com Duque, marcaram a morte de uma era, a era Uribe.
E no meio disso tudo, nos últimos 20 anos se popularizaram a internet e os celulares. Na minha época a internet estava ainda chegando e se usava bastante o telefone fixo. As pessoas se informavam principalmente pelos dois canais privados da TV nacional. Hoje, a grande mídia continua falando as suas mentiras, só que há jornalistas em potencial em cada esquina do país e em qualquer aparelho você pode acessar a imprensa internacional, os arquivos de qualquer coisa, tudo. Meu sobrinho de 20 anos, celular em mãos, só assiste telejornal para gargalhar das mentiras da mídia.
Por conta de muitas razões muito diversas que nem sempre tiveram a ver nem com a Francia nem com o Petro, caiu neles a oportunidade do impossível. Talvez antes deles houveram outros que mereciam mais, só que os rumos da história são moralmente inescrutáveis. Eles permaneceram de pé depois de uma longa lista de mortos. Os assassinos não conseguiram matar todo mundo.
A vitória do 19 de junho foi dada a eles pela idiotice dos seus inimigos que geraram uma oportunidade histórica para o Pacto. Francia e Petro, insubordinados de sempre, sobreviventes, militantes sem descanso, mantiveram a esperança nos tempos mais escuros. Agora parece que foram recompensados por isso. Recompensa nenhuma. O poder deveria ser um dever. Veremos se Petro e Francia estarão à altura do que virá. Daqui pra frente corresponde a eles a pior das responsabilidades.
A responsabilidade lhes foi dada pelas pessoas que votaram, as que não aguentaram a vergonha e saíram para a rua e por muitos outros que estão mortos agora. Nos últimos três anos aconteceram coisas na Colômbia que não aconteciam há décadas. Isso porque o povo em que eu cresci, cabisbaixo e assustado, o povo da era Uribe, hoje é outro povo.
Claro, seguimos sendo indígenas, negros, cholos, descamisados, nadies, camponeses, ñeros, trabalhadores, maricas, amigos incorruptíveis e mães solteiras. O que eu quero dizer é que hoje em dia tem gente que cresceu sem medo. O que mudou foi o povo. Essa é a magnitude da mudança que está acontecendo agora mesmo na Colômbia. E o povo persistirá criando coisas novas, coisas além de nós mesmos, além de Francia e Petro. Só o povo pode salvar o povo.
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*Sigifredo Romero Tovar é filósofo ecosocialista formado em Historia pela Universidad Nacional de Colombia e em Estudos da Religião pela Florida International University. Atualmente, seu interesse acadêmico é a superação do capitalismo para que a humanidade não derreta de calor. Contato: srome039@fiu.edu
Entenda os cuidados e riscos de participar de boicotes para esvaziar eventos
Por Bibiana Maia
Inscrever-se para retirar ingressos pode ser considerado um ato de liberdade de expressão, mas existe uma zona cinza no campo jurídico sobre o uso de dados falsos
Atualmente, qualquer organizador de eventos faz um passo a passo simples: cria uma página em alguma plataforma de venda de ingressos (com informações sobre a programação e as atrações) e os interessados se cadastram e retiram suas entradas, sejam elas pagas ou gratuitas. O processo vale para shows, peças de teatro, cursos, palestras e até convenções políticas, caso do Partido Liberal (PL). O que o PL não contava era com uma estratégia de mobilização para esvaziar o evento, que envolvia adquirir um ingresso com a intenção de não comparecer.
Em uma estratégia de boicote, diversos usuários nas redes sociais encorajaram seus seguidores a retirar os ingressos, na plataforma Sympla, para o encontro que acontece neste domingo (24/07), no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. A convenção vai anunciar a candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro e do vice General Braga Netto. Com a viralização das postagens, surgiram dúvidas sobre a legalidade deste tipo de mobilização e a segurança dos dados. Algumas publicações sugeriram o uso de informações falsas, como CPF e e-mail, na ação.
Das 50 mil inscrições, o PL decidiu cancelar 40 mil com uma triagem feita “com o uso de ferramentas próprias, por meio de inteligência artificial”, como informou o partido ao Correio Braziliense. Além disso, declarou que os IPs foram armazenados para eventuais medidas legais. A organização também disse ao site Poder360 que apresentaria uma uma representação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a investigação sobre a mobilização. O partido defendeu que “foram descobertas fraudes e tentativa de hackeamento”. O evento, inclusive, aconteceu sem a necessidade ingresso para comparecimento.
A Sympla informou à Escola de Ativismo que pode “realizar a suspensão de contas identificadas como falsas ou que contenham informações inverídicas”. Sobre o IP, a plataforma declarou que não disponibiliza este tipo de informação aos organizadores de eventos cadastrados.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do TSE respondeu que, até sexta-feira (22/07), não houve nenhuma representação do partido sobre o caso e que a mobilização de retirada de ingresso com o intuito de não comparecer não tem tipificação de crime eleitoral, mas pode haver alguma implicação criminal no uso de documentos falsos, como o CPF.
Boicote gerou dificuldades para a extrema-direita, mas pode colocar em risco segurança de ativistas l Créditos: Pixabay
Que tipos de dados o usuário fornece
Assim que uma pessoa decide adquirir um ingresso na plataforma Sympla, segundo o documento sobre Políticas de Privacidade nos Termos e Políticas, é preciso que forneça informações divididas em três blocos: Informações do Participante, Informações para o recebimento do ingresso e Informação de pagamento.
Na primeira, são coletados dados de identificação sobre a pessoa que usará o ingresso para acessar o evento, como o nome e o e-mail. Em alguns casos, o organizador pode pedir informações adicionais, como o CPF. A segunda refere-se aos dados de identificação do consumidor, ou seja, a pessoa que receberá o ingresso, e se resumem ao nome e e-mail. O último bloco é sobre dados financeiros e de identificação, como informações do cartão de crédito, nome, telefone, CPF e endereço.
A plataforma ainda diz que o usuário poderá fornecer outros tipos de dados, como geolocalização, comportamento de uso do aplicativo e informações referentes ao dispositivo usado para visitar o site, como celular ou computador. Entre esses dados estão o número de telefone, endereços IP, tipo de navegador e idioma, redes Wifi, provedor de serviços de Internet, operadora, sistema operacional, fabricante do dispositivo, modelo, informações sobre data e horário, páginas de consulta e saída, e dados sobre a sequência de cliques.
O documento também indica como funciona a segurança desses dados, mas alerta que o sistema não é infalível. Segundo a Sympla, são usadas técnicas de criptografia, monitoramento e testes de segurança periódicos, Firewall, entre outros. “Contudo, não é possível garantir completamente a não ocorrência de interceptações e violações dos sistemas e bases de dados, uma vez que a internet possui sua estrutura de segurança em permanente aperfeiçoamento.”
Cuidados ao decidir participar de boicotes
O Brasil tem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que dá diretrizes sobre como essas informações devem ser geridas. Segundo Christian Perrone, head de Direito, Tecnologia e Govtech do Instituto Tecnologia e Sociedade (ITS), não há nada que impeça a plataforma de compartilhar dados com os organizadores, mas é preciso haver transparência e não quebrar as expectativas do usuário sobre sua privacidade. Eles precisam saber quais dados serão utilizados, quais serão tratados e para quais finalidades.
Sobre informações que as pessoas fornecem indiretamente, como o IP, existe uma obrigação legal, em alguns casos, de as empresas precisarem guardá-los porque há uma lógica na legislação brasileira de que não se pode ser completamente anônimo na internet. A Sympla precisa mantê-los por um período de tempo e pode entregá-los com o conhecimento do titular ou em caso de requisição legal, como uma ordem judicial. Desta forma, o PL só poderia ter acesso aos IPs com requerimento legal, já que a plataforma informou que não fornece aos organizadores.
A LGPD considera dados sensíveis aqueles que podem ser discriminatórios, como religião, raça, cor, estado civil, diagnósticos de saúde, ou por serem únicos, como os biométricos, por exemplo, digitais, íris e formato do rosto. Informações como e-mail e CPF são dados pessoais relevantes, mas não são considerados sensíveis.
Ainda assim, devemos ter cuidado com eles. “Quando você tem o CPF, ele é uma espécie de chave para encontrar outros cadastros porque normalmente os cadastros indexam nossas informações ao CPF”, explicou Perrone. Já o e-mail é relevante pois usamos para dar acesso a uma série de contas por serem parte do login, desde redes sociais e streaming a banco. É por isso que o especialista indica usar um outro e-mail para compras e plataformas de eventos, como a Sympla.
PL teve que autorizar a entrada de pessoas sem ingresso no evento que aconteceu no Maracanãzinho l Créditos: Agência Brasil
Uso de dados falsos e VPN
Este tipo de mobilização é encarada como legal e democrática. Uma das defesas para o ato de se registrar sem a intenção de participar é a liberdade de expressão, enquanto um protesto. Mas existe uma zona cinzenta quanto ao uso de dados falsos como CPF e e-mail e até de divulgar essa tática nas redes sociais. Perrone explicou que o usuário pode ter que arcar com os danos dessa falsidade e entrar na categoria de fraude, mas não é tão simples definir esta ação como um crime. Demanda interpretação.
“Usualmente, preencher um dado incorretamente e ‘falso’, não é crime, mas é crime em algumas circunstâncias. É por isso que algumas pessoas estão dizendo que pode ter causado um crime eleitoral, por estarem fornecendo dados eleitorais, mas isso pressupõe um contexto oficial e eleitoral. Preencher um cadastro para ganhar um ticket, ainda que esteja ligado a uma questão eleitoral, é difícil que exista uma interpretação que visualize como um crime.”
Outra questão levantada nesse caso foi o uso de VPN para mascarar o IP e assim evitar que as pessoas que participassem deste tipo de boicote sejam identificadas. O IP mostra onde está o dispositivo que está acessando aquele site. É um endereço que é fornecido automaticamente pelo sistema, pois é a forma como a rede funciona. Mas existem técnicas para driblar esse rastreamento. O VPN funciona como se indicasse um endereço intermediário ou espelhasse outro número de IP que não é o seu.
É comum o uso em países não democráticos ou ainda em situações que o usuário não queira indicar sua localização, como em investigações jornalísticas. Na China, por exemplo, é utilizado para acessar sites que não são permitidos no país, como o Google. No Brasil, esse recurso não é ilegal.
Contudo, Perrone defendeu o uso dos dados verdadeiros para este tipo de estratégia. “Há uma lógica de que, se você quer participar do processo democrático, deve participar como você. Participar sem entregar os dados é complexo porque começa a beirar os limites do que é considerado politicamente correto e legítimo. Por exemplo, entra nessa fronteira de estar em fraude por não entregar o CPF quando lhe é pedido e entregar o que não é seu. Não é automaticamente ilegal, você estaria na zona de discussão da liberdade de expressão, mas é possível de não ser visto como correto e, em algumas circustâncias, como ilegal. Beira a antijuridicialidade”.
Mobilização foi inspirada nos fãs de Kpop
Este tipo de boicote não é exatamente uma novidade. A estratégia de organizar uma retirada massiva de ingressos para não comparecer a um determinado evento foi inspirada em uma mobilização que aconteceu nos Estados Unidos. Em junho de 2020, o então presidente Donald Trump fez um comício em Tulsa, Oklahoma, cujas entradas deveriam ser retiradas com um cadastro usando o número do celular.
Quando os organizadores pediram ao público para inscrever-se, fãs de Kpop (música popular coreana) e usuários do TikTok encorajaram as pessoas a se registrarem sem a intenção de ir. Segundo o “The New York Times”, muitos usuários apagaram as publicações com a orientação como parte do plano. A organização chegou a divulgar que mais de 1 milhão de pessoas se inscreveram, mas o público foi bem abaixo do esperado. Dos 19 mil lugares disponíveis, apenas 6.200 foram ocupados, segundo os bombeiros da cidade. Trump havia planejado um discurso para o público quem não conseguisse entrar no local, mas acabou cancelando.
O mesmo tipo de tática teria sido usada com o evento “Minha cor é o Brasil”. Com teor conservador e negando o racismo, o encontro aconteceria este mês em Alphaville, em São Paulo, mas havia intenções de levá-lo para outros lugares, como o Rio. Sérgio Camargo, ex-presidente exonerado da Fundação Palmares, divulgou em seu perfil no Twitter que o evento seria remarcado “por motivos de força maior”.