“Se algo der errado com uma criança, a responsabilidade é de todo mundo”, lembra Luh Ferreira, da Escola de Ativismo, ao falar sobre o genocídio Yanomami.

foto aérea de terra indígena yanomami

Foto: Leonardo Prado/PG/FotosPúblicas/2015

z tempo que venho querendo escrever sobre esse assunto. Mas, as palavras costumam faltar quando o embolamento no peito, a ausência de compreensão e a indignação são grandes.

Passei este final de semana na companhia de algumas crianças. O mais novo tinha cerca de 9 meses. A do meio seis anos e a mais velha nove.

Brincamos um monte, demos risada, pulamos, cuidamos de um, corremos de outro.

Comemos bala, chupamos sorvete.

Foi uma tarde de tempo suspenso. Digo isso em oposição ao tempo cronológico, parado e dedicado às tarefas  que ocupam nossa vida. Um tempo suspenso que faz tudo ser  vivência, voltado  para a experiência e a  amizade entre uma pessoa adulta e três crianças.

Após esse tempo que deve ter durado umas quatro horas de tempo cronológico, retornei a casa e para as minhas atividades, para me dedicar aos velhos problemas que por este tempo ficaram esquecidos, em sobrevoo por entre as bolhas de sabão que a do meio soltava, para encanto do irmão, o bebê.

Retornei aos meus afazeres, mas não consegui voltar a velha Luh de antes…

Uma onda de alegria, de fé na vida, de confiança, de ideias mil invadiram meu corpo e me vi cantando e dançando na sala de casa uma música da banda Gilsons: 

Vou levando eu vou, no swing vou levar, espalhando amor, vou já

Anda leve eu vou… caminhando pela cidade, andar leve eu vou sem me preocupar..

E aí me deixei levar por essas sensação por uns instantes.

E percebi que a intensidade da infância que havia me tomado, um devir-infância abriu uma fresta radiante no meu corpo opaco. 

A sensação me lembrou das crianças indígenas, que para mim são um sinônimo de alegria sem fim… 

Pra quem já foi a alguma aldeia vai saber que é um ambiente dominado por risos e gritarias de crianças. Elas com seus olhos grandes e curiosos, observam tudo, acompanham todos, sabem de quase tudo que se passa, estão ali sempre à espreita em busca do novo!  

Em busca da novidade que as alimenta, assim como sobem nos pés de fruta em busca da que está mais distante das mãos, e provavelmente mais saborosa. 

Foi observando as crianças de uma aldeia no Mato Grosso que descobri o melhor lugar para se banhar em um rio. Foi andando com as crianças de uma aldeia no Pará que aprendi a observar o rastros dos animais na mata e saber sua localização, a não ter medo deles, mas tê-los como aliados.

Foram as crianças de uma aldeia no Amazonas que me mostraram que a vida é uma brincadeira, e se você não acredita, é um tolo.

Então estar com as crianças significa renovar o sentido, significa deslocar a rota para observar aquilo que realmente importa. 

 Cuidar de uma criança nos devolve o sentido de humanidade.  

A gente se lembra o que veio fazer aqui nesse  mundo, se lembra que viemos aqui para apoiar, pra torná-lo melhor, mais vivo…  

É por isso que ao me deparar com a situação de extrema calamidade vivenciada pelos Yanomami da região de Roraima, fiquei sem ar. Sem fôlego. Imaginei que as cenas que vimos e vivenciamos ao longo destes quatro anos já teriam sido o bastante. Mas não… 

A tragédia estava anunciada, e estamos verificando a concretização deste desespero absurdo que é a perda de 570 crianças, a morte de 570 mundos! 

Em outubro de 2021 me recordo da notícia de duas crianças Yanomamis que foram dragadas quando brincavam no rio, nesta mesma região em Roraima. Elas estavam com uma prancha, certamente brincando e aprendendo a nadar, a lidar com as correntezas fortes desde muito cedo, para pescar e se deslocar pelo rio com destreza quando forem adultos.  

Tiveram sua brincadeira interrompida, por máquinas que nunca deveriam estar ali, por pessoas que ocupam o território ilegalmente levando doenças, produtos nocivos à saúde e destruição. 

É de arrancar o coração do peito ver as crianças Yanomami no estado que estão — e não duvido que outras crianças indígenas estejam também em proporcional vulnerabilidade no Brasil. Infelizmente estávamos sob o comando de um genocida, agora mais que comprovado. O projeto de extermínio foi colocado em prática pelo Estado Brasileiro, não há dúvidas. 

Costumo dizer na minha família que se alguma acontece com alguém mais novo que a gente, a culpa é de todo mundo, de todos os mais velhos que estavam ali para cuidar de um mais novo.  

Se algo der errado com uma criança, a responsabilidade é de todo mundo. 

Espero que o aparato disponibilizado para socorrer os Yanomami funcione e  torço para que haja a possibilidade de corrigir o mal feito e que os indígenas possam criar as suas crianças e viver com dignidade e autonomia. 

De todo modo, chamo a atenção para as infâncias.  

Elas são sim capazes de reencantar o nosso dia, e muito mais do que isso, elas são as responsáveis pela renovação do mundo.

Se não tivermos as crianças por perto e junto conosco, não há mundo porvir — para dialogar com Debora Danowiski e Eduardo Viveiros de Castro no livro que lança esta minha afirmação como pergunta: “Há mundo porvir? Ensaios sobre os medos e os fins” (2014).

Finalizo este texto com Hannah Arendt em “A Condição Humana” (1977), que nos chama a atenção para a responsabilidade com o mundo e com a renovação dele, ao cuidarmos e apresentarmos o mundo às crianças, estando com elas nessa empreitada.

A educação é a posição em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele, e pela mesma razão, salvá-lo da ruína que a não ser pela renovação, a não ser pela vinda do novo e dos jovens, seria inviável. E a educação é também quando decidimos se amamos nossos filhos o bastante para não expulsá-los de nosso mundo e deixar que façam o que quiserem e que se virem sozinhos, nem para arrancar de suas mãos as mudanças de empreender algo novo, algo imprevisto por nós.”, HANNAH ARENDT (1977, p. 196)

Por Luh Ferreira, da Escola de Ativismo

plugins premium WordPress