Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Festival Fala! alia cultura, ancestralidade e comunicação como ação política
Por Luiza Ferreira – 29/09/2023
Realizado entre 21 e 23 de setembro, em Recife (PE), o evento debateu diversidade, jornalismo de causas, cultura popular e resistência climática
Foto: Festival Fala l Divulgação
“Os movimentos sociais históricos deste país precisam parar de olhar a comunicação como instrumental, só para a divulgação das causas. Comunicação é um campo político, um campo de ação política”, disse Ana Veloso, jornalista e professora da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE).
As palavras da professora, durante o terceiro dia do Festival FALA! 2023 de Comunicação, Cultura e Jornalismo de Causas, realizado entre os dias 21 e 23 de setembro, em Recife (PE), ilustram alguns dos atravessamentos abordados nas mesas e oficinas dos três dias de evento.
No centro das discussões, a luta pela construção de uma comunicação popular, que fuja dos velhos paradigmas e que se interesse por contar novas histórias, de outras maneiras e com novas vozes da diversidade e que esteja no centro da ação política, encarando também a necessidade da comunicação ser realizada pelos povos e por seus territórios.
Quem comanda a organização do Festival é o Instituto FALA, organização que nasceu “para promover e reverberar o encontro de novas agendas, formas e linguagens de um jornalismo baseado em causas e experiências”, juntamente com os veículos Alma Preta, Ponte Jornalismo, 1 Papo Reto e Marco Zero Conteúdo.
A noite de abertura, na quinta-feira (21/09), homenageou o poeta recifense Miró da Muribeca, que faleceu no ano passado. O poeta foi escolhido por comunicar seus anseios, sentimentos, emoções e denúncias através da poesia e da performance pelas ruas do Recife.
Narrativas ancestrais para uma nova comunicação
Mãe Beth de Oxum, que participou da mesa “Comunicação e ancestralidade: memória e linguagem para a transformação”, trouxe em sua fala a indignação com a falta de representavidade do povo negro e dos povos de terreiros na comunicação feita no Brasil. Para a Yalorixá, que comanda uma rádio em sua comunidade, é preciso abrir cada vez mais espaço para os comunicadores populares liderarem a informação em seus territórios a partir de investimento governamental na democratização dos meios de comunicação.
“A gente começou a se apropriar da comunicação e a dar oficinas quando a gente entende essa importância. Essa rádio que nós temos no nosso terreiro e na nossa comunidade é um produto de uma resistência. As rádios comunitárias foram muito perseguidas, as que sobraram foram cooptadas pelas igrejas. A gente precisa de uma mídia para formar e trazer a sociedade civil para ocupar esse espaço. Cadê a rádio do povo preto, do povo indígena?”, questionou.
Géssica Amorim, fundadora do Acauã, coletivo de jornalismo de Pernambuco, reforçou a importância de se produzir um jornalismo em que “todo mundo e todo lugar importa, independente de onde veja e onde esteja”.
Comunicar o território
A discussão sobre o protagonismo dos povos e de seus territórios esteve presente em todos os no Festival FALA!. André Fidelis, do Força Tururu, coletivo de midiativismo de favela, sempre se viu incomodado com a forma que a mídia retratava as mazelas da sua comunidade, e isso serviu de mote principal para criação do coletivo, “que trabalha a comunicação popular e comunitária para ecoar vozes e enfrentamento das desigualdades sociais”. Para André, é preciso falar na linguagem das pessoas da comunidade, uma “linguagem que gere empatia, reflexão e ative nas pessoas reflexão sobre os problemas da própria comunidade”.
Foi a mesma possibilidade de comunicar o seu próprio território que Takumã Kuikuro encontrou no cinema uma forma de perpetuar a cultura dos povos indígenas. Além de cineasta, Kuikuro é idealizador do 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena (FeCCI).
“Estamos trabalhando dentro da nossa comunidade, estamos lutando para nos tornar protagonistas das nossas próprias histórias. Valorizando nossa cultura, nossa língua, nossos costumes através do cinema. No nosso trabalho como realizadores e documentaristas, nós nos sentimos como comunicadores da floresta”, ele disse, durante a mesa “Incidências climáticas: meio ambiente e direito à vida em pauta”.
O que pode o jornalismo de causas?
Foi durante a roda de conversa “Questões identitárias ou estruturais? O que pode o jornalismo de causas”, que Ana Flor Fernandes, Cristian Góes, Raquel Kariri e Rosane Borges debateram sobre a identidade dentro do processo comunicacional e na construção do jornalismo de causas.
Para Raquel Kariri, o debate hoje posto sobre identidade no Brasil é um debate que provoca um imenso apagamento dos povos indígenas do Brasil.
“Ou eu falo para comunicar outro mundo, ou eu falo para reativar minha rede de magia e encantaria para fazer frente ao esvaziamento neoliberal ou não estamos fazendo nada. Ou reativamos a magia a partir do nosso território, ou então a gente vai passar pelas ruínas desse planeta de forma indigna. Que tenhamos a capacidade de nos unir, mas também para a anunciação de outros mundos, outras vidas de encantaria”, afirmou a ativista.
A educadora Ana Flor Fernandes trouxe a necessidade de romper com processos violentos contra toda forma de diversidade, em especial às vidas trans e travestis no Brasil, que foram construídos por algumas instituições, entre elas o próprio jornalismo, a partir da perspectiva de uma “biopolítica da transfobia”, que constitui socialmente um modo de viver e um modo de pensar que rejeita a existência da travestilidade e de corpos trans.
“Eu tenho certeza que se a gente for capaz de construir um Brasil bom para as travestis, ele vai ser um país bom para a imensa maioria das pessoas também”, finalizou a pesquisadora de gênero, sexualidade e política.
Quer ler mais? Confira a nossa cobertura do Festival Fala! no Instagram da Escola da Ativismo ou leia nossas matérias especiais sobre o encontro:
> Por uma comunicação que construa novos mundos: a identidade como estrutura e o papel do jornalismo de causas
> “A história oficial do brasil é desinformação” — indo além do trauma bolsonarista para pensar sua superação
“A história oficial do brasil é desinformação” — indo além do trauma bolsonarista para pensar sua superação
Por Pedro Ribeiro Nogueira – 23/09/2023
Debate durante o Festival Fala! propõe a educação midiática como um olhar para a própria história e a comunicação como ação política
(Da esquerda para a direita) Ana Veloso, Catarina de Angola, Ariel Bentes e mediadora Martihene Oliveira durante a roda de conversa “Educação Midiática: caminhos para combater a desinformação e o discurso de ódio” | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/ Escola de Ativismo
Quando pensamos em desinformação, discurso de ódio e ascensão da extrema-direita, é inevitável que voltemos os nossos olhares para o que foi o processo do governo Bolsonaro, sua chegada ao poder e quais tentáculos permaneceram fincados no debate público e na política brasileira. Afinal, foi um período traumático, no qual a desinformação efetivamente contribuiu para uma política genocida que causou mortes em massa durante a pandemia do Covid e ataques aos biomas, povos tradicionais e populações periféricas.
Porém, para superar e ultrapassar esse estado de coisas, é necessário olhar mais longe e examinar as raízes, imaginar e inventar estratégias de formação crítica, educação de mídia e combate à desinformação.
“A gente fala da importância das pessoas checarem as informações, mas a gente só vai conseguir isso quando as pessoas conhecerem a própria história. Somos um país estruturalmente desigual e a desinformação está a serviço dessa estrutura” apontou Catarina de Angola, jornalista pernambucana, fundadora da Angola Comunicação, durante o 4º FALA! Festival de Comunicação, Cultura e Jornalismo de Causas, que aconteceu entre os dias 21 e 23 de agosto em Recife (PE).
A fala de Catarina expandiu a noção de desinformação. Segundo a comunicadora, a história oficial do Brasil é desinformação. E a mídia, assim como a academia, sempre esteve a serviço de uma história que desumaniza existências não-brancas e transgêneras. “A educação midiática é antes de tudo a capacidade de a gente refletir criticamente sobre nossa história”, pontuou. “A gente falava de polarização política, mas é uma disputa desigual de narrativas. E a gente disputa esse campo por existir, por nosso corpo circular nos espaços”.
Comunicação enquanto ação política
A noção defendida pela jornalista da história brasileira como desinformação e da comunicação como elemento estruturante da mobilização popular, esteve em íntimo diálogo com a fala de Ana Veloso, professora da UFPE e coordenadora da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadoras com Visão de Gênero e Raça.
Ela ressaltou que a mídia tradicional tentou se credibilizar durante a pandemia fazendo o que deveria ser seu dever: combater o negacionismo, a desordem informativa e o autoritarismo. “Mas, ao fazer isso, eles se colocaram como ‘o jornalismo profissional’, descredibilizando o jornalismo independente da mídia disruptiva. Parecia que a velha mídia patrocinada pelo agro e capital nunca tinha praticado desinformação”.
De acordo com a pesquisadora, é preciso que a sociedade civil “ocupe espaços e vá pra cima” do governo federal para discutir política pública de comunicação, regulamentação democrática da mídia e das plataformas digitais. “Os movimentos sociais históricos desse país precisam parar de olhar a comunicação como instrumental, só para a divulgação das causas. Comunicação é um campo político: um campo de ação política!”, disse.
E provocou: “A gente devia ser ousada. Por que não discutir uma educação para tomar a mídia? Para construir nossas próprias plataformas? Temos que bater na porta, mas se não abrir a gente tem que arrombar e criar nossas mídias para fazer plataformização da vida contra as plataformas e os algoritmos do racismo e da morte. O povo sabe, o povo entende, não são vítimas nos territórios, são protagonistas de suas histórias e precisam se reconhecer numa mídia que reafirme isso”, concluiu.
Recortes
Mas como será uma mídia e uma educação midiática que esteja ao lado da vida, contrariando a necropolítica em cada passo? Ao contar sobre a Abaré – Escola de Jornalismo, um coletivo de educação midiática de Manaus, a co-fundadora Ariel Bentes trouxe apontamentos importantes. Segundo ela, a Abaré surge, durante a pandemia, da necessidade de um recorte das Amazônias – no plural, pois são muitas – que destoe de um jornalismo e de uma comunicação “feitas por brancos e sudestinos”.
Ela lembra que a Abaré foi criada enquanto Manaus atravessava uma crise brutal por conta da Covid 19 e da negligência do governo federal, que deixou que pessoas morressem sem oxigênio. Bentes reclama que tanto o jornalismo hegemônico, como o independente, ajudaram a reforçar a noção de uma “cepa amazônica” do Covid. “Estávamos, então, sendo duplamente massacradas”, lamentou.
Para contrabalancear isso, a Abaré se focou em produzir textos e fazer campanhas que combatiam esse preconceito e desinformação. Nos últimos tempos, o coletivo tem realizado oficinas em diversas escolas pelo Estado do Amazonas, para formar jovens que possam multiplicar leituras críticas de mídia.
“Nossa ideia é que os jovens conversem com a tia, com o avô, com os pais e ajudem a espalhar essa educação midiática. As pessoas geralmente acreditam em desinformação porque um parente enviou, tem essa relação emocional”, disse.
E não pararam por aí: durante as eleições de 2022, foram ao bairro da Compensa, em Manaus, para conversar com a população e panfletar sobre desinformação. “É o bairro mais estigmatizado pela mídia e quisemos ir lá para fazer o corpo-a-corpo. E muito da educação midiática demanda isso: de ir pra rua, de encontrar as pessoas, de colar lambe, de panfletar”, concluiu.
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> Por uma comunicação que construa novos mundos: a identidade como estrutura e o papel do jornalismo de causas
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Leituras, escutas e materiais para entender – e enfrentar – a extrema-direita
Por Debora Pio – 15/09/2023
Separamos livros, trabalhos acadêmicos e podcasts que discutem o fenômeno da extrema-direita no Brasil e no mundo
A ascensão da extrema-direita é um fenômeno que assusta. Ela tem crescido e feito cada vez mais estrago no mundo, por meios institucionais e na ação política de movimentos conservadores. Suas práticas ficam ainda mais evidentes em momentos como nas tentativas de golpe das últimas eleições brasileiras, a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, ou na destruição do Palácio do Planalto, em oito de janeiro deste ano em Brasília. Além de produzir atos violentos em si, ela também utiliza o ecossistema das redes sociais para se espalhar com muita rapidez e pouca regulação.
Mas a extrema-direita seria apenas uma antítese à democracia? Estudos apontam que ela é mais complexa do que isso. Suas práticas incluem desinformação, apego às pautas de costumes, fake news e muito ódio às minorias. Seus efeitos ainda são incalculáveis, mas começam a apresentar certa previsibilidade depois que cientistas de diversas áreas passaram a se debruçar sobre o problema.
Por isso, é importante que a gente esteja disposto e atento para compreender este fenômeno e saber como combatê-lo. Abaixo, realizamos uma curadoria de conteúdos para compreender o que é a extrema-direita, como suas ideias têm sido disseminadas e como devemos encará-la.
Livros para entender a extrema-direita
O mundo do avesso – Leticia Cesarino
Lançado em 2022, o livro aborda o populismo, pós-verdade, negacionismo, conspiracionismos e outros processos emergentes em um mundo onde a internet se tornou a principal arena de comunicação política.
“Zuero” e politicamente incorreto
O senso de humor da extrema-direita brasileira, conhecido principalmente por meio do intenso uso de memes, normalizou discurso de ódio contra mulheres, nordestinos e membros da comunidade LGBTQIAP+. De acordo com Luiza Foltran, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a estética “zuera” também pode ser considerada uma das portas de entrada do bolsonarismo.
Sobre o autoritarismo brasileiro – Lilia Schwarcz
No texto, Schwarcz faz o exercício de derrubar o mito da cordialidade brasileira através de dados estatísticos e um exame nas origens do autoritarismo brasileiro. Ela aborda ainda nossa herança colonial, marcada pela escravidão e lógicas de dominação.
Red Pilled – O fascínio do ódio digital – Luke Munn
O livro traz um apanhado de histórias de pessoas comuns e análise de sites e redes sociais da extrema-direita, discutido por especialistas em estudos de mídia, de raça e gênero, psicologia e ciência política. O autor vai desenhando o passo a passo de como o ódio se infiltrou em corações e mentes no mundo digital.
A era do capitalismo de vigilância – Shoshana Zuboff
Zuboff chama a atenção para as consequências das práticas de empresas de tecnologia sobre todos os setores da economia. As big techs, como são conhecidas as principais empresas de tecnologia do mundo, vêm produzindo um enorme volume de riqueza e poder que, através das redes sociais, são negociados sem o nosso consentimento.
Fascismo: um alerta – Madeleine Albright
Depois da Segunda Guerra Mundial, o globo enfrentou o embate pela retomada da democracia. A autora argumenta que o fascismo não apenas perseverou, como continua sendo uma ameaça à paz internacional. O livro foi best seller #1 no New York Times no ano de 2018.
Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro – Raymundo Faoro
Mais uma publicação nacional para compreender a política no Brasil e suas origens. De onde brota o conservadorismo? No texto, Faoro (1925 – 2003) explora as raízes do patrimonialismo brasileiro, que se apropria dos aparatos políticos-administrativos e usa o poder público em benefício próprio.
Trabalhos acadêmicos para pensar sobre a extrema-direita
O terrorismo de extrema-direita como ameaça na agenda de segurança Ocidental no século XXI: articulação ideológica, estrutura transnacional e representações estatais do inimigo – Álvaro Anis Amyuni
“Algoritmização da vida: o debate sobre Amazônia e incêndios florestais no Twitter em 2020” – Lori Regattieri
Violência política de gênero e raça no Brasil – Instituto Marielle Franco
Podcasts para entender o conservadorismo
Extrema direita: a onda reacionária que conquistou um país – Politiquês
A extrema direita clássica – Curso História e Política II
Retrato Narrado – Rádio Novelo
Misoginia, memes, espelhamento invertido: o que une e organiza a extrema-direita brasileira
Por Danilo Mekari – 13/09/2023
Quais são os padrões de comportamento e táticas que marcam o movimento da direita radical no Brasil
Extrema-direita se apropriou de táticas de manifestação associadas à movimentos progressistas e os tornou-as mais violentas| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
A década de 2010 ainda engatinhava quando um deputado federal carioca considerado “excêntrico” começou a ganhar espaço midiático, em programas na TV aberta como Superpop, Pânico e CQC. Em suas frequentes aparições, o parlamentar destilava racismo e homofobia sem pensar duas vezes.
“Dessa forma, Jair Bolsonaro chegava à superfície usando seu repertório de esgoto”, define o professor Michel Gherman, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Alguns anos depois, em 2018, o capitão reformado do exército foi eleito presidente do Brasil com quase 58 milhões de votos. Já no ano passado, o candidato à reeleição recebeu ainda mais votos – exatos 58.206.322 – e, por muito pouco, não foi escolhido para um segundo mandato à frente do maior país da América Latina.
A expressiva votação de um representante da extrema-direita em eleições consecutivas deixa claro como o movimento radical ganhou musculatura para virar um fenômeno político e eleitoral no Brasil. Como mostramos anteriormente, o território brasileiro concentra hoje mais redes de extrema-direita do que todos os países europeus somados.
Especialistas presentes no seminário internacional Direita Radical em Debate, realizado no final de agosto em São Paulo, apontam alguns padrões de comportamento ultraconservadores como elementos que unem movimentos da extrema-direita brasileira: misoginia, uso de memes e da estética “zuera”, espelhamento invertido da realidade e revisionismo histórico.
Masculinismo
A misoginia é uma das marcas registradas do bolsonarismo e também pode ser considerada uma porta de entrada aos movimentos de extrema-direita. Essa é a visão de Bruna Camilo, doutora em Ciências Sociais e autora da tese “Masculinismo: misoginia e redes de ódio no contexto da radicalização política no Brasil”.
Para ela, não foi à toa que as questões de gênero ganharam tanta centralidade nos últimos anos: afinal, ao controlar conceitos de gênero, também controlam-se relações de poder. “O movimento masculinista é extremamente patriarcal e misógino, no qual as mulheres são vistas como aproveitadoras e perigosas”, observa Bruna. “E o bolsonarismo engloba esse movimento, promovendo discursos de submissão e exclusão feminina.”
O crescimento da cultura digital, impulsionada pela evolução tecnológica, transformou a internet em um espaço de disputa política. E foi no ambiente digital, aproveitando-se do anonimato e da impunidade, que se estabeleceu a manosfera, uma rede de comunidades ultra machistas que combatem o empoderamento das mulheres e defendem ideias antifeministas e sexistas. É nesse bojo que ganham força movimentos de masculinismo tóxicos como os celibatários involuntários (incel) e os red pill.
A filósofa e youtuber Contrapoints explica mais sobre os incels e os red pills no vídeo acima
“São grupos que defendem menos empoderamento e mais ‘empauduramento’. Aliás, todos eles seguem fielmente Olavo de Carvalho”, acrescenta Bruna, classificando o falecido como um significativo “orientador da misoginia”. Como exemplos práticos de violência cotidiana utilizada por esses homens, ela cita o uso de termos como “merdalheres” e “conservadias” e, com asco, descreve casos em que misóginos usaram aplicativos de relacionamento para se encontrar com mulheres que se descreviam como progressistas e, no momento do sexo, gritavam “Bolsonaro!” assim que ejaculavam.
“Zuero” e politicamente incorreto
O senso de humor da extrema-direita brasileira, conhecido principalmente por meio do intenso uso de memes, normalizou discurso de ódio contra mulheres, nordestinos e membros da comunidade LGBTQIAP+. De acordo com Luiza Foltran, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a estética “zuera” também pode ser considerada uma das portas de entrada do bolsonarismo.
O ecossistema virtual da direita radical, que engloba hackers e gamers, em sua vasta maioria homens e jovens, aposta na cultura da trollagem para – usando uma frase conhecida do bolsonarismo – “combater tudo o que está aí”.
“Muitos jovens entraram no movimento por meio da ‘zuera’, e ficam restritos à ela. Outros, porém, se politizaram nesse processo, virando ativistas digitais”, aponta Foltran, citando como exemplo os assessores do gabinete do ódio, grupo de servidores públicos que produziam desinformação de maneira sistêmica e oficial durante o governo Bolsonaro.
A pesquisadora cita também o salto de popularidade do conceito de “politicamente incorreto”, que usa a ambiguidade para defender que o establishment é enviesado por ideias de esquerda. “Eles não se enxergam como machistas, racistas e homofóbicos, mas sim contrários aos movimentos feministas, negros e gays. Podemos olhar para a ‘zuera’ bolsonarista como algo amplo. A ironia e o sarcasmo são características muito presentes na cultura brasileira, e nesse caso elas foram politizadas pela extrema-direita.”

Domínio no Youtube
Em agosto de 2022, a integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio, Letícia Capone, realizou um levantamento que evidencia o domínio dos canais de extrema-direita no YouTube brasileiro. A pesquisa mostrou que, durante uma semana, os 256 canais atrelados à ideias de extrema-direita somaram 88 milhões de visualizações e tiveram 14,7 milhões de interações, ao passo que os 104 canais do espectro à esquerda tiveram 20 milhões de visualizações e 3 milhões de interações. (Imagem: The Intercept Brasil)
Espelhamento invertido
Uma característica notável do movimento de extrema-direita no Brasil é o uso de um conceito que especialistas definem como “espelhamento invertido”. Trata-se da apropriação da linguagem e de elementos comumente relacionados ao ideário esquerdista, como as táticas de bloqueio de estradas e acampamentos, que se antigamente eram ligados à luta por reformas agrária e urbana, hoje têm aspectos golpistas e antidemocráticos.
“É o hackeamento da luta”, afirma Pedro Arantes, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. “Surge assim uma nova cultura reacionária, uma identidade e orgulho de ser direita.”
Para Letícia Cesarino, professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina e assessora especial no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, essa bifurcação identitária cria uma lógica de guerra suicida. “Seguindo esse pensamento [muito bem exemplificado nesse meme], o inimigo é igual a mim – só que o meu oposto. Essa é a forma mais extrema de diferença, pois só pode ter um de nós ocupando aquele espaço.”
Uso do revisionismo histórico para transformar a ditadura em defesa da democracia foi adotada por grupos conservadores l Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Brasil Paralelo e o revisionismo
Para além de guiar a misoginia bolsonarista, Olavo de Carvalho também está por trás da “guinada militante” da produtora Brasil Paralelo, segundo a pesquisadora do Laboratório de História Política e Social (LAHPS) da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mayara Balestro, que produziu um mestrado sobre a empresa.
Fundada em 2016, a Brasil Paralelo produz materiais audiovisuais cujo foco central é a história do Brasil. Com um discurso extremamente meritocrático, na análise da pesquisadora, a empresa baseia suas produções em dois pilares: o revisionismo histórico e o ultraliberalismo. Foi no canal do Brasil Paralelo no YouTube, por exemplo, que o ex-chanceler Ernesto Araújo defendeu que fascismo e nazismo “são fenômenos de esquerda”.
Assim como outros grupos, a organização se radicalizou ainda mais com a vitória de Bolsonaro em 2018. “Foi o Olavo que deu a ideia da Brasil Paralelo ser uma empresa militante, pois apenas vender cursos não seria suficiente para resgatar os bons valores do Brasil”, observa Mayara.
Conhecida como “Netflix da direita” por oferecer planos de assinatura mensal, a organização deve sobreviver à queda de popularidade do ex-presidente, segundo a pesquisadora. “É um projeto de longo prazo, que ocupa não apenas as redes sociais, mas também o território, por meio de uma parceria com o G10 Favelas, por exemplo, e que tem como público-alvo educadores de todo o país”, analisa. Segundo informações da própria empresa, a Brasil Paralelo possui hoje mais de 500 mil assinantes.
Gramática antissemita
Com relação à perspectiva revisionista, Michel Gherman cita ainda as referências de Bolsonaro a David Irving, um dos mais famosos negacionistas do Holocausto. Em sua visão, o governo Bolsonaro e os grupos da direita radical adotam uma gramática antissemita, que prega a destruição de grupos minoritários.
“A extrema-direita tem um projeto de passado e quer recuperar a ideia que os direitos originais são deles, da branquitude”, crê. “Hoje temos o desafio de letrar as pessoas para uma perspectiva antifascista, pois na última década setores importantes da sociedade brasileira foram letrados para uma perspectiva pós-fascista”, finaliza Gherman.
De onde surgiu – e como se move – a nova onda de extrema-direita no Brasil e no mundo
Proteção espiritual é segurança integral na defesa de povos e seus territórios
Muito conectada ao respeito e consequente conservação dos territórios, proteção espiritual e psicossocial de povos indígenas e tradicionais ainda é um desafio.
Por Elvis Marques, em parceria com a Revista Casa Comum*
Foto: Mídia NINJA
“Um grande ensinamento que os povos indígenas nos têm transmitido, desde tempos imemoriais, é o de saber conviver, nos espaços que habitamos, com diferentes seres e, ao mesmo tempo, saber respeitar a terra, sem reduzi-la à condição de mero recurso. Para alguns povos indígenas, a terra é mãe, pois tem a capacidade de fazer germinar a vida e acolher todos os seus frutos.”
Tati, como prefere ser chamada, é ativista cultural e ambiental, militante do movimento negro feminista, quilombola, educadora popular, formada em História e especialista em Estudos Culturais e Políticas Públicas. O longo currículo, no entanto, não foi necessário para lhe ensinar algo básico: o significado de território e de bem viver.
A mesma frase, reimaginada e com outras palavras, repete-se ainda hoje. Isis Tatiane da Silva, de 42 anos, nasceu e foi criada em um território de vasta beleza, como ela mesmo classifica: o quilombo do Curiau, situado no estado do Amapá. “Entendo território como um conjunto de especificidades que compõem um quilombola. É o conglomerado onde existe um movimento étnico-racial, cultural, religioso e ambiental”, explica.
Em consonância com a visão da ativista, Porantim traz uma fala famosa do Cacique Seattle ao receber uma oferta pelo território de sua etnia:
“Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo. Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar aos teus filhos que é sagrada.”
Diante de tamanha importância aos povos tradicionais, indígenas, quilombolas e tantos outros, como é possível pensar e colocar em prática a segurança dos territórios dessas populações e de seus ancestrais e encantados? Como é possível pensar a segurança espiritual desses povos, conectada, em sua grande maioria, com o respeito e, consequentemente, conservação do espaço que ocupam?
Proteção do sagrado
Tati conta que devido a toda a luta travada pelo povo negro e seus movimentos no Brasil por longos séculos, é imprescendível não pensar na proteção da coletividade em seus diferentes aspectos, como o espiritual. “Nós trabalhamos com os territórios, e não dá para dissociar o que é pertinente dentro desse local durante as formações de proteção, como o aspecto espiritual.”
Constituída em 2011, a Escola de Ativismo é um coletivo independente cuja a missão é fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, como campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.
No caso específico da segurança integral, Marcia Maria Nóbrega, antropóloga da Escola de Ativismo, explica que essa temática de atuação do coletivo abarca várias dimensões, como a digital, de informação, física, patrimonial e organizacional. Nesse campo, a Escola atua com toda a diversidade de povos e comunidades tradicionais, assim como com as organizações e movimentos populares que os apoiam.
“Na trajetória da Escola, atuamos muito com oficinas, em espaços de escuta das demandas das comunidades e das organizações, e, nesse processo, entendemos que os aspectos psicossociais e espirituais são fundamentais para como esses povos se organizam. Por entender essa importância, é algo que temos incorporado em nossas oficinas de segurança integral”, contextualiza Marcia.
Marcia explica que tem ouvido muito nas oficinas que nunca alguém ou algo está seguro se não há uma proteção espiritual. “Por isso temos tentado entender como podemos trazer essa sabedoria dos povos tradicionais para os processos formativos e para os planos de ação e segurança elaborados junto às organizações e comunidades.”
Processo de escuta
Com uma metodologia de ensino baseada em Paulo Freire, patrono da educação brasileira, Marcia destaca que as oficinas de proteção integral buscam ouvir, primeiramente, como e onde as pessoas se sentem seguras, seja em casa, com a família ou junto à sua comunidade.
“E teve uma fala, certa vez, de um indígena que disse se sentir seguro quando tem ‘domínio’, que, em suas palavras, é ter conhecimento de que todo lugar tem ‘dono ou mestre’, domínio sobre determinado lugar. Ou seja, geralmente o mestre do lugar é uma entidade espiritual que tem alguma atuação sobre determinado espaço, como um rio. Então a frase dele é: ‘eu me sinto seguro quando entendo o domínio daquele espaço, quando conheço e respeito à ancestralidade daquele local.’”
“Durante uma oficina em um país da América Latina muito ameaçado para defensores, ouvi a seguinte frase de uma liderança: ‘nada começa se a gente não se protege espiritualmente, e quem abre os trabalhos são os tambores, a nossa principal arma de resistência”, diz Márcia Maria. Segundo a antropóloga, a necessidade de olhar para a proteção em toda a sua integralidade, incluindo o aspecto espiritual, sempre tem aparecido para a Escola de Ativismo.
Atualmente, o desafio é destinar mais atenção justamente para o campo espiritual e psicossocial. “Não tem como alguém se sentir seguro se não está em paz com o seu corpo, seu território e com os seus espíritos. E aí começamos a rever a nossa metodologia de como atuamos com esses grupos, de modo que possamos incorporar essas duas dimensões que andam juntas”, avalia Marcia.
Saiba mais
Materiais do Cimi e da Escola de Ativismo aprofundam o assunto:
> Encarte Porantim: Territórios e espaços de viver [link];
> A Internet Também É Nosso Território (2023)[link];
> Folder: Segurança se faz com os nossos e as nossas (2023) [link] ;
> LabCuidados: Ansiedade (2022) [link];
> Guia para o desenvolvimento de uma avaliação de risco e medidas de segurança (2023) [link].
*Matéria publicada em 29/08 pela Revista Casa Comum em parceria com a Escola de Ativismo.
Belo Levante: jogo reúne experiências ativistas para potencializar insurgências
Por Velot Wamba – 23/08/2023
Lançado pela Autonomia Literária e pela Escola de Ativismo, jogo reúne 126 cartas com experiências de ação política
O que é o Belo Levante? À primeira vista, é um jogo de cartas com diversas opções de jogabilidade com tema de fundo ativista, adaptado para o Brasil pela Autonomia Literária e a Escola de Ativismo e com lançamento previsto para outubro. Mas é muito mais que isso: é um rol de experiências e pensamento que compila o saber acumulado por ativistas dos quatro cantos do mundo, que refinaram suas considerações sobre práticas de ação direta no calor das lutas mundo afora.
São 126 cartas divididas em cinco naipes de cartas: Táticas, Princípios, Teorias, Histórias e Metodologias. Inclusive, na versão brasileira do jogo, as cartas de Histórias são baseadas em lutas realizadas, sobretudo, no Sul global. E o conjunto total das cartas possibilita uma compreensão lúdica e acurada das diversas etapas necessárias para realizar uma ação direta bem sucedida para desafiar o status quo, que vão desde uma ação de cartazes criativa até a realização de uma greve geral. Dessa forma, são úteis tanto para o ativismo comunitário quanto para o desafio de parar uma cidade!
As cartas são amplamente referendadas na plataforma de ativismo internacional Beautiful Trouble, que conta com a contribuição de mais de 170 ativistas de movimentos de base dos cinco continentes do planeta, totalizando sete idiomas e contando com a contribuição de notáveis estrategistas de diversos movimentos, como Arundhati Roy, George Monbiot, Vijay Prashad e Mark e Paul Engler, por exemplo. E são justamente as experiências reais que dão profundidade e efetividade ao que é apresentado em Belo Levante.
Além disso, a Escola de Ativismo é responsável pela edição brasileira do jogo Belo Levante (em parceria com a editora Autonomia Literária), dando ênfase ao universo do ativismo local e olhando com maior apuro para as práticas do Sul Global, o que deu uma roupagem muito atualizada e condizente com os grandes desafios que todo ativista enfrenta nos dias atuais.
Veja na galeria acima uma amostra dos cards e propostas do Belo Levante
As possibilidades de jogabilidade das cartas são diversas, desde o simples divertimento em formato de competição até modalidades que sempre ressaltam um ângulo possível para se analisar a efetividade e sucesso de uma ação. É possível de ser usada em oficinas, momentos de planejamento de ações e para diversão.
A carta de jogo “Planeje uma ação criativa”, por exemplo, é perfeita para movimentos sociais ou grupos ativistas refletirem sobre uma futura ação. Com 3 pilhas de cartas (Táticas, Princípios e Teorias), os participantes dão nome ao problema que enfrentam (clima, por exemplo) e identificam seu objetivo – digamos, a exploração de fracking no nordeste. Tirando uma carta de cada pilha, é possível criar uma ação hipotética. Usando as cartas de estratégia, você pode melhorar e reinventar a ação proposta e, com a carta “Avalie sua ação”, é possível analisar sua ação sob diversos enfoques diferentes.
Além das cartas de jogabilidade, o jogo apresenta seis tipos de cartas que, em conjunto ou de forma isolada, nos ajudam a entender toda a ciência por detrás de uma ação bem efetivada.
São elas:
– TÁTICAS: Formas específicas de ações criativas, como um flash mob, um bloqueio ou uma greve geral.
– PRINCÍPIOS: Percepções a partir de conquistas que podem guiar ou oferecer subsídios para o planejamento de ações criativas.
– TEORIAS: Conceitos gerais e ideias que podem nos ajudar a entender como o mundo funciona e como podemos transformá-lo.
– HISTÓRIAS: Relatos de ações e campanhas memoráveis com análises sobre o que funcionou, o que não deu certo e por quê. Essas histórias são úteis para ilustrar como princípios, táticas, teorias e metodologias podem ser aplicados na prática e de modo bem-sucedido.
– METODOLOGIAS: Modelos estratégicos e exercícios práticos para ajudar você a avaliar sua situação e planejar sua campanha.
– DEBATES: Controvérsias eternas (tais como mudar o mundo ou mudar a nós mesmos?) que devem ser exploradas de forma constante.
Ao fim e ao cabo, o Belo Levante é uma caixa de ferramentas essencial na mão de organizações, coletivos e ativistas. Saiba como adquirir sua cópia em pré-venda pelo site da Autonomia Literária.
Margaridas: um olhar sobre os muitos ativismos das mulheres dos campos, florestas e águas
Por Vitória Rodrigues – 17/08/2023
A ativista Vitória Rodrigues esteve na Marcha das Margaridas e conta seus aprendizados com as lutas das trabalhadoras rurais
Mulheres em luta durante a Marcha das Margaridas de 2023 | Foto: Vitória Rodrigues
Entrar na área delimitada do Parque da Cidade para a maior marcha de mulheres da América Latina na manhã do dia 15 de agosto foi como se imergir num fundo mar de esperança. Afinal, lá começava, repleta de diversidade, mais uma edição da Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Como frutos do sol, as mulheres do campo, da floresta e das águas que não paravam de chegar esbanjavam sorrisos no rosto e uma energia radiante para reivindicar o que já deveria ser seu.
Naquela manhã, a programação havia começado com uma sessão solene no Senado Federal, homenageando a Marcha. No mesmo dia, foi finalmente aprovado o Projeto de Lei que indicava a inclusão de Margarida Maria Alves no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.
Foi assim, que após 40 anos de um assassinato bárbaro na frente de sua casa, a grande homenageada do encontro teve sua luta em vida por ser mulher, sindicalista e trabalhadora rural que ameaçava os interesses de poderosos, reconhecida. Para além disso, suas sementes se espalharam mais longe do que ela jamais ousou imaginar. A resistência está firmada.
Corpos-territórios
Nas tendas espalhadas na grama antes da entrada no Pavilhão de Exposições, havia de tudo um pouco: oficina de batuque feminista, de danças populares, plenárias, painéis temáticos, feira. Nesta última, havia um palco em que mulheres declamavam poemas, cantavam canções e passavam as mais diversas mensagens para quem transitasse debaixo daquela tenda, observando, comprando e apoiando produtos de mulheres de todos os estados do país.
Muito perto dali, uma iniciativa importantíssima acontecia: o Coletivo Jurídico estava reunido com advogadas e membras da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Distrito Federal e do Ministério Público para orientar as margaridas em um plantão que aconteceu nos dois dias de Marcha. As mulheres no Coletivo prestavam orientações jurídicas com o objetivo de promover a segurança e a integridade das margaridas.
A fila do credenciamento para entrada no Pavilhão só aumentava. E quando finalmente se pôde entrar no evento, com o pulso coberto por uma pulseira, se desvelou um verdadeiro oceano de margaridas. Carregavam consigo suas malas, chapéus, bandeiras com palavras de ordem e de seus estados também. Mais importante que isso, usavam seus corpos-territórios para dizer que a hora de fazer a reforma agrária e acabar com as violências de gênero é agora.
Margaridas
Lúcia Lima (57) é uma das milhares de mulheres que estavam lá. Moradora de Brejo da Madre de Deus (PE), a agricultora foi à Marcha porque quer representar inclusive quem não pôde estar lá. “Eu vou explicar sobre a participação que tive aqui, o que eu vi, o que eu aprendi, para as minhas companheiras. Vou repassar pra daqui a quatro anos a gente possa vir aqui todas juntas.”
Lúcia na fila para tirar fotos com o banner ‘Marcha das Margaridas 2023: eu fui’ | Foto: Vitória Rodrigues
Há também companheiras que interromperam suas atividades como agricultoras, mas jamais como ativistas pela terra. Maria Rosa Silva, de 74 anos, de Montes Claros (MG), é agricultora aposentada e afirma que foi para Brasília porque acredita na força das margaridas. “A gente conhece a terra, a luta, a gente sabe das coisas. A força da mulher é muito boa. E elas [militantes] não fazem pensando nelas, mas por todas e eu admiro muito isso.”
Maria Rosa a caminho de oficina sobre agroecologia | Foto: Vitória Rodrigues
Com diferentes atividades de variados temas acontecendo simultaneamente, as margaridas pediam também o fim das diversas formas de violências que existem contra mulheres e isso só é possível com a colaboração de todo mundo. Um dos margaridos presentes no evento é Manoel Soares, de 37 anos, que veio de Igarapé-Miri (PA). Ele diz que a educação contra o machismo e as violências contra as mulheres precisam acontecer, principalmente para os homens que convivem com as margaridas.
Manoel junto a suas companheiras de luta de Igarapé-Miri | Foto: Vitória Rodrigues
Semear soberanias
Ao lado inverso do imenso pavilhão que também funcionava como acampamento, mulheres organizaram oficinas como forma de acolher e semear não só a luta, mas afetos também. As atividades sobre corpo e sexualidade, soberania digital e espaços voltados para mulheres com suas filhas faziam com que o ambiente se tornasse acolhedor para aquelas viajantes.
Apesar de muitas terem viajado dias e dias para comparecer aos dois dias de evento, a energia seguia nas alturas mesmo com a chegada da noite, onde outras pessoas também chegaram: ministros de estado. A Abertura Político-Cultural da 7ª edição da Marcha contou com diferentes ministérios do Governo Federal, além de parlamentares, secretarias e delegações estrangeiras.
Depois da Abertura com algumas promessas de mudanças de chefes de ministérios, aconteceu a noite cultural, um espaço de descontração e que marca tradicionalmente o fim do primeiro dia de evento. Esse evento não é apenas fundamental por explorar as diversidades de diferentes artistas, mas também para relaxar as trabalhadoras, que teriam de acordar cedo para o café da manhã, que começa a ser servido às 04h.
Marcha nas ruas
Já na manhã do segundo e último dia da Marcha das Margaridas, a concentração em direção à Esplanada dos Ministérios aguarda as mulheres por uma hora até começarem a marchar às 7h, tendo o Congresso Nacional como destino final, onde o presidente Lula e ministras fariam pronunciamentos. Neste momento, mulheres pegam suas bandeiras, caracterizações e o que mais quiserem para passar cerca de quatro quilômetros exibindo toda a sua força.
Com duas faixas que antecedem a Esplanada ocupadas durante um significativo período de tempo, mulheres em carros de som comandam palavras de ordem poderosas e discursos que fortalecem a ideia de que a Marcha é necessária. Alguns carros passam ao lado buzinando para demonstrar apoio, que é respondido com gritos e palmas das mulheres de todo o Brasil.
São cerca de cem mil mulheres, com faixas, bandeiras e os cantos reforçam que a disposição em garantir o que já deveria existir se reafirma.
Galeria de fotos da Marcha das Margaridas | Foto: Vitória Rodrigues
O apoio e a solidariedade também estiveram presentes na Marcha. Um dos coletivos que estava presente em ambos os dias de Marcha é o Borda Luta do Distrito Federal, que surgiu em 2016 como uma pequena iniciativa de duas mulheres solidárias à ex-Presidenta Dilma Rousseff, durante o processo do golpe político-empresarial. Atualmente, o grupo que usa linhas, agulhas e tecidos como forma de ativismo conta com mais de sessenta colaboradoras voluntárias.
A coordenadora do coletivo é a Dirnamara Guimarães (57), servidora pública aposentada e artesã. “Toda a minha existência hoje tá voltada pro BordaLuta. Somos artevistas políticas, bordadeiras e arteiras. Entendemos que a luta política se dá pelo discurso e pela ação, mas também pela estética. Conseguimos alcançar muitas consciências através da imagem, e através disso conseguimos conversar, acolher e trocar.”
“Conseguimos nos encontrar uma vez por semana para construir a nossa luta e no decorrer desse tempo, espontaneamente escolhemos que o nosso lugar é na rua. Na rua, mulheres veem e às vezes conseguimos acolher aquelas que estão em situações de risco. Nossa luta é pelo fortalecimento da luta feminina e contra a violência, por isso também estamos na Marcha.”
Com atrasos, o Presidente Lula chegou ao palanque pedindo desculpas por fazer tantas mulheres esperarem por ele no sol – já que o fim de sua fala sinalizava o fim da Marcha. Baseado na carta dos 13 eixos da edição deste ano foi entregue pela coordenadora do evento, Mazé Moraes, Lula anunciou uma série de decretos: instituição da Comissão de Enfrentamento à Violência no Campo; criação do Programa Quintais Produtivos para promover a segurança alimentar das mulheres rurais; retomada do Programa Bolsa Verde de pagamentos para famílias de baixa-renda em áreas protegidas; formação do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios; retomada da Política Nacional para Trabalhadores Empregados de fortalecimento a direitos sociais; formação do Grupo de Trabalho Interministerial para construir o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural; estabeleceu o Programa Nacional de Cidadania e Bem Viver para as Mulheres Rurais; retomou a Reforma Agrária com atenção a famílias chefiadas por mulheres.
Logo após o fim do pronunciamento e assinatura dos decretos, o evento foi encerrado, mas não exatamente assim. A Marcha das Margaridas é construída diariamente por cada mulher brasileira do campo, da floresta e das águas que se dispõe a desenvolver e lutar pelas diversas soberanias que existem, sejam alimentares, climáticas, humanas. As sementes de Margarida estão em todo o território nacional.
A imagem que permanece de um evento tão grande e feito por tantas formas de companheirismo mostra que, apesar de decretos e medidas assinadas, ainda há muito trabalho a fazer nas marchas Brasil afora que são o trabalho das Margaridas. Que em 2027 ainda não tenha-se que pedir pelo fim da violência e pela tão necessária, sonhada e urgente reforma agrária. Avante, Margaridas.
Caso Brigadistas de Alter do Chão: Para destruir o meio ambiente, comece perseguindo a sociedade civil
Por Luíza Ferreira – 11/08/2023
Brigadistas de Alter do Chão foram presos, investigados e perseguidos até pelo então presidente Jair Bolsonaro; consequências permanecem quatro anos depois
Brigadistas são soltos em 2019 após serem ilegamente presos | Foto: Reprodução
Após liderar o primeiro turno em 2018, o agora ex-presidente Jair Bolsonaro disse que colocaria um ponto final em todos ativismos no país. Durante seu mandato, frequentemente comparou organizações não governamentais à um “câncer”. As ações seguiram as palavras: os quatro anos de seu governo significaram o aumento de ataques contra ativistas de direitos humanos, povos tradicionais e a sociedade civil.
Um exemplo emblemático e ilustrativo desse contexto obscuro no qual as organizações da sociedade civil estavam imersas ocorreu em 2019, no Pará, e lançou luz sobre a tentativa de criminalização de ativistas e de ONGs atuantes na região. Naquele ano, quatro brigadistas que atuavam no combate a incêndios florestais na região de Alter do Chão, próximo a Santarém, foram presos – e posteriormente inocentados – acusados de provocar incêndios criminosos com o objetivo de arrecadar doações para a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão. Entre os brigadistas, alguns também trabalhavam junto ao Projeto Saúde e Alegria.
“Na época a Brigada era uma instituição nova, porém muito atuante e forte. A gente não estava pra brincadeira. Tínhamos um objetivo claro de proteção da floresta. Por isso assustamos tanto eles, nosso crescimento era exponencial”, é o que diz Daniel Govino, fotógrafo, jornalista, brigadista voluntário, fundador e ex-coordenador da Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão e do Instituto Aquífero Alter do Chão.
Ainda segundo Daniel, a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão tinha uma boa relação com todas as esferas do governo, tendo recebido em certa ocasião uma moção de aplausos da Câmara de Santarém, além de elogios do próprio governador.
“Eu falava diretamente no celular do prefeito e da secretária de meio ambiente. Éramos treinados e incentivados pelos bombeiros militares. Era sério o trabalho e ainda é. Porém, a nossa inocência era grande também e não conseguimos ver depois dos tapinhas nas costas viria um punhal”, relembra.
O brigadista afirma chegou a temer que eles poderiam ser alvo de alguma tentativa de calúnia e culpabilização, mas a legalidade e a transparência na atuação da Brigada o tranquilizava.
“Se alguém nos investigasse, veria que estávamos perfeitos nas contas e na atuação. Mas nós não fomos investigados, fomos sacaneados”, afirma.
Antes mesmo de serem presos, muita gente já acusava os brigadistas de atearem fogo na floresta propositalmente, ao que Daniel nomeia como uma “alucinação da extrema-direita bolso-trumpista”, de uma parte da população que está imersa no discurso de ódio contra qualquer um que se coloque em defesa dos direitos humanos.
“Para mim é claro: eles queriam criminalizar as ONGs. Uma grande (World Wide Fund for Nature – WWF), uma média (Projeto Saúde e Alegria – PSA) e uma pequena (Brigada de Alter e Instituto Aquífero Alter do Chão). Acharam que estavam dando um tiro certeiro para nos derrubar e o que eles acabaram conseguindo foi nos levantar mais ainda”, diz.
Para Daniel, outro fator importante na acusação foi Abraham Weintraub, Ministro da Educação à época, que foi alvo de protestos em Santarém por ativistas que atuavam na região, enquanto passava férias com a família. A situação com o ex-ministro teria tensionado ainda mais a relação das autoridades com os ativistas e as ONGs.
Brigadistas em ação durante incêndio | Foto: Brigada de Alter/Reprodução
Danos e prejuízos
A junção de calúnias, acusações de órgãos oficiais e motivação política para as polícias locais foi fatal: brigadistas passaram três dias presos com medidas cautelares que perduraram por um ano, além da apreensão de equipamentos da instituição por mais de três anos. E como ainda existe um inquérito em aberto, alguns equipamentos ainda se encontram em poder da Polícia Civil.
A lista de efeitos é extensa e não se limita às consequências físicas e materiais, visto que, no contexto institucional, colaborou para o enfraquecimento do projeto, dificultando a interligação com órgãos públicos envolvidos nas ações de prevenção e combate a incêndios florestais, impedindo a captação de recursos e amedrontando potenciais voluntários, além do impacto psicológico brigadistas, como comenta João Romano, outro brigadista acusado no mesmo processo.
“O trabalho de contra narrativa, justamente pelo contexto político em que se deu a criminalização demandou e demanda esforços que ocupam tempo que seria fundamental no fortalecimento do projeto”, narrou.
Romano ainda alerta outras instituições que atuam com ações emergenciais em parceria com o poder público: o respaldo legal é fundamental, principalmente se há envolvimento de dinheiro público, o que não era o caso da Brigada de Alter. Para ele, o caso serve para analisar as fragilidades institucionais e ilustra a necessidade de entendimento de procedimentos mais seguros para atuação.
“As instituições necessitam de uma assessoria jurídica e de entender sobre segurança digital e comunicação, mas especialmente as que fazem um trabalho ativista, ambiental e lidam com causas sensíveis”, reforça.
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Como atua a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão e o PSA?
A Brigada de Incêndio Floresta de Alter do Chão é um programa dentro do Instituto Aquífero Alter do Chão (IAA), funciona de forma totalmente voluntária e independente, e reúne, desde de 2017, um grupo de comunitários voluntários, que trabalham para combater incêndios florestais na Área de Proteção Ambiental de Alter do Chão (APA Alter do Chão) e na proteção da biodiversidade local. A formação para o trabalho vem dos Bombeiros Militares, da Defesa Civil e da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Turismo de Belterra (SEMAT).
“Os bombeiros de Alter treinavam a gente. Eles incentivaram a nossa criação e manutenção. Para eles era bom ter esse grupo lá, porque a gente ia combater diretamente o fogo na floresta, já que eles já tinham uma cidade inteira para cuidar”, diz.
“Os bombeiros de Alter treinavam a gente. Eles incentivaram a nossa criação e manutenção. Para eles era bom ter esse grupo lá, porque a gente ia combater diretamente o fogo na floresta, já que eles já tinham uma cidade inteira para cuidar”, diz.
Entre as frentes principais da atuação da Brigada estão a prevenção, o combate e a articulação política ou inteligência de ação e comunicação, que age para agilizar o atendimento das ocorrências. À época dos acontecimentos ninguém recebia salário para realizar os trabalhos, inclusive os de combate direto aos incêndios.
Já o Projeto Saúde e Alegria (PSA) desempenha, há mais de 30 anos, um trabalho na região da Amazônia, em especial na cidade de Santarém, no Pará. Ao longo de sua trajetória, a ONG tem desempenhado um papel fundamental na melhoria das condições de vida das comunidades locais, aliando a promoção da saúde, educação, inclusão social e preservação ambiental.
No mesmo ano das acusações, eles foram reconhecidos como uma das 100 melhores ONGs atuantes no Brasil. Uma das iniciativas pioneiras do Projeto Saúde e Alegria foi a implantação do programa “Barco da Saúde”, que percorre os rios da região amazônica, oferecendo assistência médica, odontológica e preventiva a milhares de pessoas que vivem em áreas remotas.
Além disso, a ONG também desenvolve projetos educacionais voltados para a formação de professores e o apoio pedagógico em escolas ribeirinhas, contribuindo para a melhoria da qualidade da educação nessas comunidades. Em parceria com as comunidades locais, o Projeto Saúde e Alegria tem promovido ações de conscientização ambiental e preservação da floresta amazônica.

Bolsonaro acusou até ator de Hollywood de tacar fogo na Amazônia
Outro aspecto surreal da narrativa dos acusadores envolvia até mesmo o ator Leonardo DiCaprio, – conhecido por seu apoio à causa amazônica. Ele foi citado pelo presidente Bolsonaro como um financiadores da Brigada, em mais uma “tentativa de criminalizar quem faz trabalhos honestos na Amazônia”. O então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, também se apressou em condenar os brigadistas, vistos como bode escapatório perfeito contra críticos de seu governo.
“A Polícia Civil tinha escuta em nossos telefones e um dia eles grampearam um áudio de alguém da Brigada falando que a gente estava crescendo e que “daqui a pouco o Leonardo DiCaprio ia nos procurar”. É claro que a gente queria sentar na mesa com a Fundação Leonardo DiCaprio. Tenho certeza que se não fosse a baita sacanagem que fizeram com a gente, isso não ia demorar a acontecer”, diz.
“Nós fomos presos no dia 26 de novembro de 2019, no dia 30 de novembro tínhamos uma reunião com representantes da Fórmula E. O grupo nos procurou por vontade própria para nos financiar. Eles queriam financiar a gente e os bombeiros de Santarém. Eu estava com o projeto pronto, não deu tempo de apresentar”, lamenta Daniel.
E como ficou a investigação?
Ao longo dos últimos anos, a investigação enfrentou diversas reviravoltas, com períodos de estagnação e avanços nas apurações. Diversas entidades e especialistas manifestaram preocupação em relação à condução do caso, ressaltando a falta de provas consistentes e indícios de que as acusações tinham motivações políticas e econômicas.
Após uma análise minuciosa das evidências e da argumentação apresentada pelas defesas dos brigadistas, o Ministério Público do Pará (MPPA) concluiu que não havia elementos suficientes para sustentar as acusações.
O inquérito foi arquivado, e os brigadistas foram considerados inocentes das acusações de incêndio criminoso e organização criminosa. Mesmo com o desfecho favorável, o caso revela uma realidade preocupante na tentativa de criminalização de ONGs e ativistas socioambientais, além de deixar uma marca na história das organizações.
Para Daniel, todo o processo de investigação à qual foi submetido junto aos demais brigadistas representa um aprendizado para as organizações:
“A quem interessa que a gente não se organize? Existem basicamente dois tipos de organização jurídica: empresas e ONGs. Por que será que uma parte da burguesia e uma parte dos políticos atacam as organizações da sociedade civil? Porque as ONGs fazem o que eles deveriam fazer”, enfatiza. O brigadista afirma ainda que atacar ONGs faz parte da estratégia da extrema-direita de criminalizar “a estrutura jurídica que não tem fins lucrativos e que, geralmente, presta um serviço social que o governo, e muito menos as empresas, não conseguem prestar”.
Mas, ao fim ao cabo, Daniel comemora: “A saúde e a alegria venceram”, finaliza.
O protesto como exercício da Democracia – de 2013 até hoje
Por Mario Campagnani – 11/08/2023
Seminário nacional realizado em Recife contou com lançamento da publicação “A experiência da advocacia popular no exercício do direito ao protesto”
Foto: Elaine Guimarães
Nas democracias, o direito ao protesto tem uma função basilar. Não apenas por estar entre as garantias fundamentais, mas também porque é por meio dele que se obtém a manutenção de todos os outros. Quando há o desejo autoritário de calar as vozes, é sobre ele que os primeiros golpes se concentram. Não sem motivo, a garantia de exprimir nossas opiniões e lutar pelos direitos são alvo de duplos ataques. Se por um lado o fascismo e a repressão buscam cercear aqueles e aquelas que lutam por garantias e avanços, por outro há o risco desse mesmo direito ser colocado como uma marionete, um fantoche útil para esconder desejos totalitários, sob a máscara da liberdade de expressão.
A diferença entre o direito de protestar e os ataques à democracia, porém, não é difícil de ser desenhada, como mostraram as falas dos participantes do Seminário “Direito ao Protesto como Exercício da Democracia: Das Jornadas de 2013 aos Desafios Atuais”, realizado nos dias 9 e 10 de agosto em Recife (PE). O evento também foi o lançamento da publicação “A experiência da Advocacia Popular no Exercício do Direito ao Protesto”.
Em 2013, os tiros e bombas da polícia caíam do lado de fora da sala de aula enquanto a então estudante de Direito Sheila de Carvalho – hoje assessora especial do Ministério da Justiça e presidente do Conare – fazia suas últimas provas, antes de se formar. Então na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, Sheila lembra das detenções arbitrárias e até onde a repressão consegue chegar no Brasil:
Isso dialoga com o Brasil, com a forma como foi construído o direito a protestos. Somos um país que ainda tem uma ditadura militar que está debaixo do tapete. Não tivemos uma transição que permitiu que o que passou na ditadura fosse sanado”, afirma Sheila que também refletiu sobre como isso reverbera quando se chega a 8 de janeiro deste ano, quando a tentativa de golpe tem novamente por trás o militarismo.
“Aquilo não pode ser considerado um direito ao protesto. Não há como garantir um direito se a tentativa é usá-lo para derrubar um estado democrático de direito”, ressalta Sheila, lembrando como pedidos de golpe foram tolerados e incentivados pelo antigo governo federal.
Para o advogado Rodrigo Mondego, que atuava nas ruas do Rio de Janeiro durante 2013, a seletividade de quem tem direito ou não de protestar aparece não apenas quando se fala de campo progressista ou conservador, mas muito mais quando se fala de raça e classe. Atuando com familiares de vítimas da violência do Estado, ele conta sobre como o Sistema de Justiça atua quando se trata de jovens negros. Um dos casos emblemáticos disso foi o de Rafael Braga, preso no contexto das manifestações acusado de porte de produto inflamável, no caso, um Pinho Sol.
Mondego lembra que a chegada desse perfil – jovem negro pobre – na delegacia leva quase que automaticamente a uma entrada no sistema e impactos difíceis de serem sanados. Por isso, ele destaca a importância de advogados e advogadas que acompanham protestos estarem presentes no momento da prisão e da chegada na delegacia, de forma a mitigar os impactos.
“Quem faz defesa do direito a protesto tem que estar in loco, pois isso faz diferença. Para termos uma análise correta da investigação, que seja feita bem desde o início, porque a perícia do local não funciona corretamente, testemunhas vão sumir por medo”, diz Mondego, acrescentando que as conversas com delegados muitas vezes modificam até mesmo o tipo de acusação que vai ser feita aos manifestantes.
“Fechando as ruas para abrir os caminhos”
Na segunda mesa do dia 9, “Das Jornadas de 2013 aos desafios atuais”, a conversa sobre o relevância, mas também os privilégios do ativismo foram colocadas em destaque. Paique Santarém, do Movimento Passe Livre, relembrou o histórico de revoltas populares que tiveram no transporte o seu estopim, como a Revolta do Vintém, que em 1880 levou a população do Rio de Janeiro, então capital do país, a um protesto contra a cobrança nos bondes. Para Paique, pensar sobre transporte é também pensar a questão racial brasileira, com a lógica da (i)mobilidade urbana retroalimentando o racismo. Porém, ressalta ele, é necessário não deixar de dar o destaque ao tema principal desses atos:
“Essas revoltas são lidas para entender outras coisas, como se não fosse o transporte o motivo. A formulação de que junho seria para destruir a democracia. Um esforço hercúleo para falar que essas manifestações não são sobre o que elas declaram que são. Esse delírio acontece porque não se chegou a um debate sério sobre o que seria a questão do transporte no Brasil, de como as cidades foram construídas como um muro social”, explicou Santarém.
Esse muro social que aparece não apenas na mobilidade, mas também na própria forma de fazer ativismo no Brasil. Partindo do exemplo de 2013, Ingrid Farias, coordenadora de formação do Instituto Update, lembrou como aquele ano serviu também para esgarçar uma série de contradições presentes nos próprios movimentos sociais, com debates sobre privilégios, assim como opressões como misoginia e LGBTQIAP+fobia.
“Só faz ativismo hoje quem tem muito privilégio. O direito de reivindicar deveria ser de todo mundo, mas depois de pegar dois ônibus para ir trabalhar, dois para voltar, pegar o menino na casa da mãe, quem ainda tem tempo?”, questiona Ingrid, destacando a necessidade de o campo progressista estar atento e atuante para lidar com essas questões.
Os ataques por meio do Legislativo e do Judiciário
Carla Varea Guareschi iniciou o segundo dia do Seminário tratando das repercussões políticas e legislativas da criação da lei 13.260 de 2016, a chamada Lei Antiterrorismo. Destacando que a lógica de repressão aos movimentos sociais não é nova, Guareschi mostrou como essa lei, aprovada dentro do contexto de realização das Olimpíadas do Rio, abriu a porta para que a o tema da criminalização dos movimentos fosse abordada no Legislativo.
“O uso dessa terminologia de terrorismo contra movimentos sociais não é algo só do Brasil, mas da América Latina e do mundo. Então não há dúvida nenhuma de que essa preocupação com essa lei se sustenta, de que ela abriu uma janela para um recrudescimento dessa perseguição”, afirma a pesquisadora.
De 2016 a 2018, foram apresentadas 7 propostas para modificar a lei, aumentando sua capacidade repressiva. Com a chegada de Bolsonaro ao poder e o crescimento da extrema direita, foram 13 projetos de 2019 a 2021. Apenas 20% das proposições mencionam exemplos de atentados terroristas internacionais na justificativa, o que indica uma aparente desconexão entre um suposto debate hegemônico global e o debate no Brasil.
“O que mobiliza a pauta são os movimentos sociais, que centralizam e norteiam essas propostas”, sinaliza Guareschi.
Não é apenas pelo Legislativo que vem os ataques contra os movimentos progressistas. A advogada Sofia Rolim, doutoranda da FGV-SP, pesquisa o caso dos 23 presos da Copa de 2014. Na véspera da final do mundial, essas pessoas foram presas sob a acusação de associação criminosa. Por meio de uma peça acusatória fragmentada e fantasiosa, essas pessoas respondem até hoje na Justiça.
“Essa lei dilui o ônus do Estado de dizer o que essas pessoas estão fazendo. Pela mera associação das pessoas pode-se dizer que estão cometendo um crime. Isso vai facilitar e fortalecer um processo de como o estado brasileiro funciona, que é transformar a verdade policial em verdade judicial”.

