Muito conectada ao respeito e consequente conservação dos territórios, proteção espiritual e psicossocial de povos indígenas e tradicionais ainda é um desafio.

Por Elvis Marques, em parceria com a Revista Casa Comum*

 

Cortejo de celebração e resistência • 01/02/2019 • Belo Horizonte (MG)

Foto: Mídia NINJA

“Um grande ensinamento que os povos indígenas nos têm transmitido, desde tempos imemoriais, é o de saber conviver, nos espaços que habitamos, com diferentes seres e, ao mesmo tempo, saber respeitar a terra, sem reduzi-la à condição de mero recurso. Para alguns povos indígenas, a terra é mãe, pois tem a capacidade de fazer germinar a vida e acolher todos os seus frutos.” 

Essa breve descrição do significado da terra para os povos indígenas está no histórico jornal Porantim, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no encarte pedagógico de abril de 2015.

Tati, como prefere ser chamada, é ativista cultural e ambiental, militante do movimento negro feminista, quilombola, educadora popular, formada em História e especialista em Estudos Culturais e Políticas Públicas. O longo currículo, no entanto, não foi necessário para lhe ensinar algo básico: o significado de território e de bem viver. 

A mesma frase, reimaginada e com outras palavras, repete-se ainda hoje. Isis Tatiane da Silva, de 42 anos, nasceu e foi criada em um território de vasta beleza, como ela mesmo classifica: o quilombo do Curiau, situado no estado do Amapá. “Entendo território como um conjunto de especificidades que compõem um quilombola. É o conglomerado onde existe um movimento étnico-racial, cultural, religioso e ambiental”, explica.

Em consonância com a visão da ativista, Porantim traz uma fala famosa do Cacique Seattle ao receber uma oferta pelo território de sua etnia:  

“Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo. Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar aos teus filhos que é sagrada.”

 

Diante de tamanha importância aos povos tradicionais, indígenas, quilombolas e tantos outros, como é possível pensar e colocar em prática a segurança dos territórios dessas populações e de seus ancestrais e encantados? Como é possível pensar a segurança espiritual desses povos, conectada, em sua grande maioria, com o respeito e, consequentemente, conservação do espaço que ocupam?

Proteção do sagrado

Tati conta que devido a toda a luta travada pelo povo negro e seus movimentos no Brasil por longos séculos, é imprescendível não pensar na proteção da coletividade em seus diferentes aspectos, como o espiritual. “Nós trabalhamos com os territórios, e não dá para dissociar o que é pertinente dentro desse local durante as formações de proteção, como o aspecto espiritual.”

Constituída em 2011, a Escola de Ativismo é um coletivo independente cuja a missão é fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, como campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

No caso específico da segurança integral, Marcia Maria Nóbrega, antropóloga da Escola de Ativismo, explica que essa temática de atuação do coletivo abarca várias dimensões, como a digital, de informação, física, patrimonial e organizacional. Nesse campo, a Escola atua com toda a diversidade de povos e comunidades tradicionais, assim como com as organizações e movimentos populares que os apoiam.

“Na trajetória da Escola, atuamos muito com oficinas, em espaços de escuta das demandas das comunidades e das organizações, e, nesse processo, entendemos que os aspectos psicossociais e espirituais são fundamentais para como esses povos se organizam. Por entender essa importância, é algo que temos incorporado em nossas oficinas de segurança integral”, contextualiza Marcia.

“A proteção espiritual é algo novo para nós, e ancestral para os povos”
Marcia Maria, antropóloga

 

Marcia explica que tem ouvido muito nas oficinas que nunca alguém ou algo está seguro se não há uma proteção espiritual. “Por isso temos tentado entender como podemos trazer essa sabedoria dos povos tradicionais para os processos formativos e para os planos de ação e segurança elaborados junto às organizações e comunidades.”

Processo de escuta 

Com uma metodologia de ensino baseada em Paulo Freire, patrono da educação brasileira, Marcia destaca que as oficinas de proteção integral buscam ouvir, primeiramente, como e onde as pessoas se sentem seguras, seja em casa, com a família ou junto à sua comunidade.

“E teve uma fala, certa vez, de um indígena que disse se sentir seguro quando tem ‘domínio’, que, em suas palavras,  é ter conhecimento de que todo lugar tem ‘dono ou mestre’, domínio sobre determinado lugar. Ou seja, geralmente o mestre do lugar é uma entidade espiritual que tem alguma atuação sobre determinado espaço, como um rio. Então a frase dele é: ‘eu me sinto seguro quando entendo o domínio daquele espaço, quando conheço e respeito à ancestralidade daquele local.’”

“Durante uma oficina em um país da América Latina muito ameaçado para defensores, ouvi a seguinte frase de uma liderança: ‘nada começa se a gente não se protege espiritualmente, e quem abre os trabalhos são os tambores, a nossa principal arma de resistência’”
Marcia Maria, antropóloga

Segundo a antropóloga, a necessidade de olhar para a proteção em toda a sua integralidade, incluindo o aspecto espiritual, sempre tem aparecido para a Escola de Ativismo. 

Atualmente, o desafio é destinar mais atenção justamente para o campo espiritual e psicossocial. “Não tem como alguém se sentir seguro se não está em paz com o seu corpo, seu território e com os seus espíritos. E aí começamos a rever a nossa metodologia de como atuamos com esses grupos, de modo que possamos incorporar essas duas dimensões que andam juntas”, avalia Marcia.

Saiba mais 
Materiais do Cimi e da Escola de Ativismo aprofundam o assunto:
> Encarte Porantim: Territórios e espaços de viver [link];
> A Internet Também É Nosso Território (2023)
[link];
> 
Folder: Segurança se faz com os nossos e as nossas (2023) [link] ;
> LabCuidados: Ansiedade (2022)
 [link];
> 
Guia para o desenvolvimento de uma avaliação de risco e medidas de segurança (2023) [link].

*Matéria publicada em 29/08 pela Revista Casa Comum em parceria com a Escola de Ativismo.

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