Por Danilo Mekari – 13/09/2023

 

 

Quais são os padrões de comportamento e táticas que marcam o movimento da direita radical no Brasil

Extrema-direita se apropriou de táticas de manifestação associadas à movimentos progressistas e os tornou-as mais violentas| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A década de 2010 ainda engatinhava quando um deputado federal carioca considerado “excêntrico” começou a ganhar espaço midiático, em programas na TV aberta como Superpop, Pânico e CQC. Em suas frequentes aparições, o parlamentar destilava racismo e homofobia sem pensar duas vezes.

“Dessa forma, Jair Bolsonaro chegava à superfície usando seu repertório de esgoto”, define o professor Michel Gherman, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Alguns anos depois, em 2018, o capitão reformado do exército foi eleito presidente do Brasil com quase 58 milhões de votos. Já no ano passado, o candidato à reeleição recebeu ainda mais votos – exatos 58.206.322 – e, por muito pouco, não foi escolhido para um segundo mandato à frente do maior país da América Latina.

A expressiva votação de um representante da extrema-direita em eleições consecutivas deixa claro como o movimento radical ganhou musculatura para virar um fenômeno político e eleitoral no Brasil. Como mostramos anteriormente, o território brasileiro concentra hoje mais redes de extrema-direita do que todos os países europeus somados.

Especialistas presentes no seminário internacional Direita Radical em Debate, realizado no final de agosto em São Paulo, apontam alguns padrões de comportamento ultraconservadores como elementos que unem movimentos da extrema-direita brasileira: misoginia, uso de memes e da estética “zuera”, espelhamento invertido da realidade e revisionismo histórico.

Masculinismo

A misoginia é uma das marcas registradas do bolsonarismo e também pode ser considerada uma porta de entrada aos movimentos de extrema-direita. Essa é a visão de Bruna Camilo, doutora em Ciências Sociais e autora da tese “Masculinismo: misoginia e redes de ódio no contexto da radicalização política no Brasil”.

Para ela, não foi à toa que as questões de gênero ganharam tanta centralidade nos últimos anos: afinal, ao controlar conceitos de gênero, também controlam-se relações de poder. “O movimento masculinista é extremamente patriarcal e misógino, no qual as mulheres são vistas como aproveitadoras e perigosas”, observa Bruna. “E o bolsonarismo engloba esse movimento, promovendo discursos de submissão e exclusão feminina.”

O crescimento da cultura digital, impulsionada pela evolução tecnológica, transformou a internet em um espaço de disputa política. E foi no ambiente digital, aproveitando-se do anonimato e da impunidade, que se estabeleceu a manosfera, uma rede de comunidades ultra machistas que combatem o empoderamento das mulheres e defendem ideias antifeministas e sexistas. É nesse bojo que ganham força movimentos de masculinismo tóxicos como os celibatários involuntários (incel) e os red pill.

A filósofa e youtuber Contrapoints explica mais sobre os incels e os red pills no vídeo acima

“São grupos que defendem menos empoderamento e mais ‘empauduramento’. Aliás, todos eles seguem fielmente Olavo de Carvalho”, acrescenta Bruna, classificando o falecido como um significativo “orientador da misoginia”. Como exemplos práticos de violência cotidiana utilizada por esses homens, ela cita o uso de termos como “merdalheres” e “conservadias” e, com asco, descreve casos em que misóginos usaram aplicativos de relacionamento para se encontrar com mulheres que se descreviam como progressistas e, no momento do sexo, gritavam “Bolsonaro!” assim que ejaculavam.

“Zuero” e politicamente incorreto

O senso de humor da extrema-direita brasileira, conhecido principalmente por meio do intenso uso de memes, normalizou discurso de ódio contra mulheres, nordestinos e membros da comunidade LGBTQIAP+. De acordo com Luiza Foltran, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a estética “zuera” também pode ser considerada uma das portas de entrada do bolsonarismo. 

O ecossistema virtual da direita radical, que engloba hackers e gamers, em sua vasta maioria homens e jovens, aposta na cultura da trollagem para – usando uma frase conhecida do bolsonarismo – “combater tudo o que está aí”.

“Muitos jovens entraram no movimento por meio da ‘zuera’, e ficam restritos à ela. Outros, porém, se politizaram nesse processo, virando ativistas digitais”, aponta Foltran, citando como exemplo os assessores do gabinete do ódio, grupo de servidores públicos que produziam desinformação de maneira sistêmica e oficial durante o governo Bolsonaro.

A pesquisadora cita também o salto de popularidade do conceito de “politicamente incorreto”, que usa a ambiguidade para defender que o establishment é enviesado por ideias de esquerda. “Eles não se enxergam como machistas, racistas e homofóbicos, mas sim contrários aos movimentos feministas, negros e gays. Podemos olhar para a ‘zuera’ bolsonarista como algo amplo. A ironia e o sarcasmo são características muito presentes na cultura brasileira, e nesse caso elas foram politizadas pela extrema-direita.”

Domínio no Youtube

Em agosto de 2022, a integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio, Letícia Capone, realizou um levantamento que evidencia o domínio dos canais de extrema-direita no YouTube brasileiro. A pesquisa mostrou que, durante uma semana, os 256 canais atrelados à ideias de extrema-direita somaram 88 milhões de visualizações e tiveram 14,7 milhões de interações, ao passo que os 104 canais do espectro à esquerda tiveram 20 milhões de visualizações e 3 milhões de interações. (Imagem: The Intercept Brasil)

Espelhamento invertido

Uma característica notável do movimento de extrema-direita no Brasil é o uso de um conceito que especialistas definem como “espelhamento invertido”. Trata-se da apropriação da linguagem e de elementos comumente relacionados ao ideário esquerdista, como as táticas de bloqueio de estradas e acampamentos, que se antigamente eram ligados à luta por reformas agrária e urbana, hoje têm aspectos golpistas e antidemocráticos.

“É o hackeamento da luta”, afirma Pedro Arantes, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. “Surge assim uma nova cultura reacionária, uma identidade e orgulho de ser direita.”

Para Letícia Cesarino, professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina e assessora especial no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, essa bifurcação identitária cria uma lógica de guerra suicida. “Seguindo esse pensamento [muito bem exemplificado nesse meme], o inimigo é igual a mim – só que o meu oposto. Essa é a forma mais extrema de diferença, pois só pode ter um de nós ocupando aquele espaço.”

Uso do revisionismo histórico para transformar a ditadura em defesa da democracia foi adotada por grupos conservadores l Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Brasil Paralelo e o revisionismo 

Para além de guiar a misoginia bolsonarista, Olavo de Carvalho também está por trás da “guinada militante” da produtora Brasil Paralelo, segundo a pesquisadora do Laboratório de História Política e Social (LAHPS) da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mayara Balestro, que produziu um mestrado sobre a empresa.

Fundada em 2016, a Brasil Paralelo produz materiais audiovisuais cujo foco central é a história do Brasil. Com um discurso extremamente meritocrático, na análise da pesquisadora, a empresa baseia suas produções em dois pilares: o revisionismo histórico e o ultraliberalismo. Foi no canal do Brasil Paralelo no YouTube, por exemplo, que o ex-chanceler Ernesto Araújo defendeu que fascismo e nazismo “são fenômenos de esquerda”.

Assim como outros grupos, a organização se radicalizou ainda mais com a vitória de Bolsonaro em 2018. “Foi o Olavo que deu a ideia da Brasil Paralelo ser uma empresa militante, pois apenas vender cursos não seria suficiente para resgatar os bons valores do Brasil”, observa Mayara. 

Conhecida como “Netflix da direita” por oferecer planos de assinatura mensal, a organização deve sobreviver à queda de popularidade do ex-presidente, segundo a pesquisadora. “É um projeto de longo prazo, que ocupa não apenas as redes sociais, mas também o território, por meio de uma parceria com o G10 Favelas, por exemplo, e que tem como público-alvo educadores de todo o país”, analisa. Segundo informações da própria empresa, a Brasil Paralelo possui hoje mais de 500 mil assinantes. 

Gramática antissemita

Com relação à perspectiva revisionista, Michel Gherman cita ainda as referências de Bolsonaro a David Irving, um dos mais famosos negacionistas do Holocausto. Em sua visão, o governo Bolsonaro e os grupos da direita radical adotam uma gramática antissemita, que prega a destruição de grupos minoritários.

“A extrema-direita tem um projeto de passado e quer recuperar a ideia que os direitos originais são deles, da branquitude”, crê. “Hoje temos o desafio de letrar as pessoas para uma perspectiva antifascista, pois na última década setores importantes da sociedade brasileira foram letrados para uma perspectiva pós-fascista”, finaliza Gherman.

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