Por Danilo Mekari – 06/09/2023

 

 

Especialistas explicam características do movimento global de popularização do ultraconservadorismo que absorveu boa parte da direita tradicional e normatizou ideias retrógradas

Manifestação bolsonarista em Santa Catarina contesta as eleições em 2022 fazendo saudações nazistas | Foto: Reprodução

Pesquisas mostram que, hoje, o Brasil concentra mais redes de extrema-direita do que todos os países europeus somados. No início de 2022, a plataforma Antifascist Europe catalogou mais de 400 organizações extremistas no continente, ao passo que o Brasil já conta com mais de 530 células de extrema-direita, concentradas nas regiões sul e sudeste do país, de acordo com uma pesquisa feita pela ONG Anti-Defamation League no mesmo período.

“As minorias se adequem [às maiorias] ou simplesmente desapareçam.” A frase, que poderia ter sido dita por Adolf Hitler, foi proferida em João Pessoa, capital da Paraíba, em fevereiro de 2017, por aquele que seria eleito presidente do Brasil alguns meses depois: Jair Bolsonaro. 

Em um discurso de menos de um minuto, o então deputado federal reuniu alguns dos principais fundamentos políticos que – segundo especialistas presentes no seminário internacional Direita Radical em Debate, realizado no final de agosto em São Paulo – caracterizam a atual onda de extrema-direita global: nativismo, autoritarismo e populismo. 

 De acordo com eles, essa nova onda apresenta um movimento radical de direita cada vez mais heterogêneo, midiático e normalizado. “As barreiras entre as direitas se transformaram”, observa o cientista político holandês Cas Mudde.

A quarta onda da direita radical

Especialista em extremismo político e populismo na Europa e nos Estados Unidos, Mudde considera que vivemos atualmente a quarta onda da direita radical desde o período pós-Segunda Guerra Mundial. Enquanto as primeiras estavam ligadas aos fiéis remanescentes do movimento fascista, a partir da terceira onda, nos anos 1980, a questão migratória ganha centralidade. “Até aqui, a extrema-direita era vista como outsider”, pontua. 

Essa realidade muda nos primeiros anos do século XXI, quando três eventos marcantes, com impacto global, deram novo fôlego aos movimentos radicais de direita, configurando a quarta e atual onda: o ataque às Torres Gêmeas em 2001, a recessão econômica em 2008 e a crise de refugiados em 2015.  

“O elemento que mais define essa onda é a popularização da extrema-direita”, acredita Mudde, lembrando que hoje as políticas públicas defendidas pelos radicais de direita não se limitam aos seus partidos. “A Dinamarca, por exemplo, é um dos países mais antiimigração da Europa, mesmo sendo governada por um partido social democrata. Isso significa que a direita tradicional e a radical se parecem cada vez mais, e mostra como as posições da direita extremista estão sendo normatizadas”, avalia.  

Um dos efeitos dessa normatização passa por diminuir a estigmatização do movimento, que começa a atrair mais apoio das elites econômicas e até mesmo intelectuais, antes majoritariamente avessas ao radicalismo político. Nesse sentido, o pesquisador considera o Brasil um exemplo perfeito da quarta onda: normatização de posturas ultraconservadoras radicais, combate à população LGBTQIAP+, misoginia e a radicalização do movimento, que resultou inclusive na tentativa de golpe em 8 de janeiro. 

“Apesar de ainda não ter uma estrutura partidária que seja claramente de extrema-direita, o movimento no Brasil conta com a simpatia das estruturas militar e evangélica e do lobby pró-armas, setores que nas últimas décadas vinham apoiando a direita tradicional, mas que se deslocaram para a extremidade.” 

Fascista, populista e autoritária 

No governo Bolsonaro, o feriado de Sete de Setembro foi utilizado como um grande palanque nacionalista e patriótico. Durante quatro anos, o mandatário se apropriou da comemoração da Independência do Brasil e, mesmo durante a pandemia de Covid-19, promoveu desfiles cívico-militares e apoiou a organização de atos pró-governo. Ainda, o presidente aproveitou a data para exaltar o golpe militar de 1964 e, já de olho nas eleições, fazer críticas agressivas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao sistema eleitoral.

Coordenador do Observatório da Extrema Direita, Guilherme Casarões enxerga nessas manifestações, para além da óbvia exploração de um sentimento nacionalista, um bom exemplo de “tirania da maioria”, situação em que os interesses de minorias são constantemente atravessados em favor de uma maioria eleitoral. “Trata-se de um governo autoritário, que busca ressignificar o conceito de democracia por meio de noções como ‘supremo é o povo’”, afirma. 

Para além de autoritário, o governo Bolsonaro pode ser considerado autocrata, na opinião de André Singer, cientista político e professor da USP. “Há evidências de que o governo Bolsonaro tentou manipular as eleições de 2022. Para um projeto de poder absoluto como esse, é fundamental que haja a reeleição, que chancela pela maioria e dá muita legitimidade ao regime autoritário”, analisa. À lista de evidências de que o governo Bolsonaro era autocrático e autoritário, o professor soma ainda a retirada de autonomia de instituições de estado, como a Polícia Federal, a concentração de poder em si mesmo e a articulação para capturar as Forças Armadas ao seu projeto de poder.

No entanto, Singer afirma que o movimento bolsonarista não deveria ser considerado populista. “Inclusive, ele tem caráter antipopulista, já que o bolsonarismo tem o objetivo de destruir o campo popular na política”, opina. Para ele, também não há elementos suficientes para dizer que trata-se de fascismo. “Não vejo o bolsonarismo como um movimento de extrema-direita que vise conter uma revolução da classe trabalhadora, diferentemente da origem do fascismo, quando, após a Primeira Guerra Mundial, o Biênio Vermelho na Itália é derrotado pelo movimento fascista dirigido por Benito Mussolini.”

Diferentemente do fascismo histórico, Singer também não vê no governo Bolsonaro a construção de um estado voltado para a guerra. Contudo, o professor cita uma tendência fascista clássica muito presente no governo de Jair Bolsonaro: a exploração de mecanismos do inconsciente coletivo por meio da propaganda. “Foi criado um sistema delirante, muito além das teorias conspiratórias e notícias falsas”, que praticamente estabeleceu uma realidade paralela. “Isso não se trata de direita tradicional ou de extrema-direita, mas sim de fascismo.” 

A pesquisadora do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Camila Rocha, pondera que esses conceitos – populismo, autoritarismo e fascismo – “não transparecem a existência de novos elementos da direita contemporânea, como o uso de mídias digitais, a cruzada anti-gênero, a erosão da legitimidade da ordem política neoliberal e corrosão democrática.”

Duas crianças seguram folhas de protesto pela defesa do rio Jauquara

Atos radicalizados como o de o8 de janeiro deste ano simbolizam o recrudescimento da extrema-direita| Foto: Wikimedia Commons

Ressentimento econômico

A pesquisa “Polarização política no Brasil”, realizada em novembro de 2021 pelo Instituto Locomotiva, revelou que 18% do eleitorado brasileiro se identificava com a extrema-direita, ao passo que somente 6% se enxergava na direita tradicional. 

 Para Eduardo Costa Pinto, professor de Economia Política da UFRJ, essa guinada pode ser creditada a um ressentimento econômico “de uma parte da sociedade que ascendeu” durante os primeiros governos Lula e o ciclo das commodities “e depois perdeu” com os efeitos da crise econômica, social e política que o país viveu na década seguinte.

 “Esse é o gancho central do crescimento da extrema-direita como fenômeno de massas. O movimento surfa muito bem na onda de degradação das condições do trabalhador”, avalia o docente. “Essa onda vai continuar crescendo enquanto não houver mecanismos de distribuição de renda mais eficazes.” 

Entulho autoritário

Na construção civil, é chamado de entulho qualquer resto e fragmento inútil dos materiais utilizados na obra. Pois o professor da Faculdade de Direito da USP, Conrado Hubner Mendes, pega emprestada esse significado para definir o governo Bolsonaro como um “entulho autoritário”. O jurista considera cinco categorias para estudar o que chamou de “processo de autocratização brasileiro”:

  1. Redução de controle e centralização – formalizada juridicamente por normas legais, pode ser vista na militarização dos quadros do poder executivo e na redução de transparência pública;
  1. Violação da autonomia institucional de órgãos governamentais – acometeu principalmente a área ambiental, por meio de pressão (assédio permanente) e desmonte administrativo (nomeação de pessoal desqualificado);
  1. Construção de inimigos – a realização intensa da retórica política teve como alvo grupos sociais como cientistas, jornalistas e ambientalistas, entre outros, que foram sistematicamente desacreditados para semear desconfiança permanente;
  1. Ataque ao pluralismo e às minorias – através de práticas discriminatórias, corroendo a luta pelos direitos fundamentais;
  1. Legitimação da violência e obscurantismo – aprovando o porte de armas e estimulando o “desaparecimento” de quem é considerado diferente. 

“O repertório que Bolsonaro deixa de legado para as práticas institucionais é a fadiga da legalidade”, aponta Mendes. “Agora, os sentidos de controle jurídico precisam estar mais afiados para não deixar os autocratas irem tão longe, e hoje temos o desafio de reajustar esse arranjo institucional por completo.” 

Extrema-direita pós-Bolsonaro

Mesmo após deixar a presidência, ser declarado inelegível até 2030 e estar cercado de escândalos de corrupção, o ex-presidente ainda é considerado o grande líder brasileiro da extrema-direita atual.

“Para onde o Brasil está indo?”, questiona Cas Mudde. “Bolsonaro perdeu as eleições, mas o bolsonarismo ganhou força. O Brasil hoje é um país dividido, e grande parte dessa polarização não é ideológica, mas sim afetiva, sobre como você se sente em relação ao outro.”

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