Por Vitória Rodrigues – 17/08/2023

A ativista Vitória Rodrigues esteve na Marcha das Margaridas e conta seus aprendizados com as lutas das trabalhadoras rurais

Mulheres em luta durante a Marcha das Margaridas de 2023 | Foto: Vitória Rodrigues

Entrar na área delimitada do Parque da Cidade para a maior marcha de mulheres da América Latina na manhã do dia 15 de agosto foi como se imergir num fundo mar de esperança. Afinal, lá começava, repleta de diversidade, mais uma edição da Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Como frutos do sol, as mulheres do campo, da floresta e das águas que não paravam de chegar esbanjavam sorrisos no rosto e uma energia radiante para reivindicar o que já deveria ser seu.

Naquela manhã, a programação havia começado com uma sessão solene no Senado Federal, homenageando a Marcha. No mesmo dia, foi finalmente aprovado o Projeto de Lei que indicava a inclusão de Margarida Maria Alves no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria

Foi assim, que após 40 anos de um assassinato bárbaro na frente de sua casa, a grande homenageada do encontro teve sua luta em vida por ser mulher, sindicalista e trabalhadora rural que ameaçava os interesses de poderosos, reconhecida. Para além disso, suas sementes se espalharam mais longe do que ela jamais ousou imaginar. A resistência está firmada.

Corpos-territórios
 

Nas tendas espalhadas na grama antes da entrada no Pavilhão de Exposições, havia de tudo um pouco: oficina de batuque feminista, de danças populares, plenárias, painéis temáticos, feira. Nesta última, havia um palco em que mulheres declamavam poemas, cantavam canções e passavam as mais diversas mensagens para quem transitasse debaixo daquela tenda, observando, comprando e apoiando produtos de mulheres de todos os estados do país.

Muito perto dali, uma iniciativa importantíssima acontecia: o Coletivo Jurídico estava reunido com advogadas e membras da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Distrito Federal e do Ministério Público para orientar as margaridas em um plantão que aconteceu nos dois dias de Marcha. As mulheres no Coletivo prestavam orientações jurídicas com o objetivo de promover a segurança e a integridade das margaridas.

A fila do credenciamento para entrada no Pavilhão só aumentava. E quando finalmente se pôde entrar no evento, com o pulso coberto por uma pulseira, se desvelou um verdadeiro oceano de margaridas. Carregavam consigo suas malas, chapéus, bandeiras com palavras de ordem e de seus estados também. Mais importante que isso, usavam seus corpos-territórios para dizer que a hora de fazer a reforma agrária e acabar com as violências de gênero é agora.

Margaridas

Lúcia Lima (57) é uma das milhares de mulheres que estavam lá. Moradora de Brejo da Madre de Deus (PE), a agricultora foi à Marcha porque quer representar inclusive quem não pôde estar lá. “Eu vou explicar sobre a participação que tive aqui, o que eu vi, o que eu aprendi, para as minhas companheiras. Vou repassar pra daqui a quatro anos a gente possa vir aqui todas juntas.”

Duas crianças seguram folhas de protesto pela defesa do rio Jauquara

Lúcia na fila para tirar fotos com o banner ‘Marcha das Margaridas 2023: eu fui’ | Foto: Vitória Rodrigues

Há também companheiras que interromperam suas atividades como agricultoras, mas jamais como ativistas pela terra. Maria Rosa Silva, de 74 anos, de Montes Claros (MG), é agricultora aposentada e afirma que foi para Brasília porque acredita na força das margaridas. “A gente conhece a terra, a luta, a gente sabe das coisas. A força da mulher é muito boa. E elas [militantes] não fazem pensando nelas, mas por todas e eu admiro muito isso.”

Maria Rosa a caminho de oficina sobre agroecologia | Foto: Vitória Rodrigues

Com diferentes atividades de variados temas acontecendo simultaneamente, as margaridas pediam também o fim das diversas formas de violências que existem contra mulheres e isso só é possível com a colaboração de todo mundo. Um dos margaridos presentes no evento é Manoel Soares, de 37 anos, que veio de Igarapé-Miri (PA). Ele diz que a educação contra o machismo e as violências contra as mulheres precisam acontecer, principalmente para os homens que convivem com as margaridas.

Manoel junto a suas companheiras de luta de Igarapé-Miri | Foto: Vitória Rodrigues

Semear soberanias

Ao lado inverso do imenso pavilhão que também funcionava como acampamento, mulheres organizaram oficinas como forma de acolher e semear não só a luta, mas afetos também. As atividades sobre corpo e sexualidade, soberania digital e espaços voltados para mulheres com suas filhas faziam com que o ambiente se tornasse acolhedor para aquelas viajantes.  

Apesar de muitas terem viajado dias e dias para comparecer aos dois dias de evento, a energia seguia nas alturas mesmo com a chegada da noite, onde outras pessoas também chegaram: ministros de estado. A Abertura Político-Cultural da 7ª edição da Marcha contou com diferentes ministérios do Governo Federal, além de parlamentares, secretarias e delegações estrangeiras.

Depois da Abertura com algumas promessas de mudanças de chefes de ministérios, aconteceu a noite cultural, um espaço de descontração e que marca tradicionalmente o fim do primeiro dia de evento. Esse evento não é apenas fundamental por explorar as diversidades de diferentes artistas, mas também para relaxar as trabalhadoras, que teriam de acordar cedo para o café da manhã, que começa a ser servido às 04h. 

Marcha nas ruas

Já na manhã do segundo e último dia da Marcha das Margaridas, a concentração em direção à Esplanada dos Ministérios aguarda as mulheres por uma hora até começarem a marchar às 7h, tendo o Congresso Nacional como destino final, onde o presidente Lula e ministras fariam pronunciamentos. Neste momento, mulheres pegam suas bandeiras, caracterizações e o que mais quiserem para passar cerca de quatro quilômetros exibindo toda a sua força.

Com duas faixas que antecedem a Esplanada ocupadas durante um significativo período de tempo, mulheres em carros de som comandam palavras de ordem poderosas e discursos que fortalecem a ideia de que a Marcha é necessária. Alguns carros passam ao lado buzinando para demonstrar apoio, que é respondido com gritos e palmas das mulheres de todo o Brasil.

São cerca de cem mil mulheres, com faixas, bandeiras e os cantos reforçam que a disposição em garantir o que já deveria existir se reafirma.

Galeria de fotos da Marcha das Margaridas | Foto: Vitória Rodrigues

O apoio e a solidariedade também estiveram presentes na Marcha. Um dos coletivos que estava presente em ambos os dias de Marcha é o Borda Luta do Distrito Federal, que surgiu em 2016 como uma pequena iniciativa de duas mulheres solidárias à ex-Presidenta Dilma Rousseff, durante o processo do golpe político-empresarial. Atualmente, o grupo que usa linhas, agulhas e tecidos como forma de ativismo conta com mais de sessenta colaboradoras voluntárias.

A coordenadora do coletivo é a Dirnamara Guimarães (57), servidora pública aposentada e artesã. “Toda a minha existência hoje tá voltada pro BordaLuta. Somos artevistas políticas, bordadeiras e arteiras. Entendemos que a luta política se dá pelo discurso e pela ação, mas também pela estética. Conseguimos alcançar muitas consciências através da imagem, e através disso conseguimos conversar, acolher e trocar.”

“Conseguimos nos encontrar uma vez por semana para construir a nossa luta e no decorrer desse tempo, espontaneamente escolhemos que o nosso lugar é na rua. Na rua, mulheres veem e às vezes conseguimos acolher aquelas que estão em situações de risco. Nossa luta é pelo fortalecimento da luta feminina e contra a violência, por isso também estamos na Marcha.”

Com atrasos, o Presidente Lula chegou ao palanque pedindo desculpas por fazer tantas mulheres esperarem por ele no sol – já que o fim de sua fala sinalizava o fim da Marcha. Baseado na carta dos 13 eixos da edição deste ano foi entregue pela coordenadora do evento, Mazé Moraes, Lula anunciou uma série de decretos: instituição da Comissão de Enfrentamento à Violência no Campo; criação do Programa Quintais Produtivos para promover a segurança alimentar das mulheres rurais; retomada do Programa Bolsa Verde de pagamentos para famílias de baixa-renda em áreas protegidas; formação do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios; retomada da Política Nacional para Trabalhadores Empregados de fortalecimento a direitos sociais; formação do Grupo de Trabalho Interministerial para construir o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural; estabeleceu o Programa Nacional de Cidadania e Bem Viver para as Mulheres Rurais; retomou a Reforma Agrária com atenção a famílias chefiadas por mulheres.

Logo após o fim do pronunciamento e assinatura dos decretos, o evento foi encerrado, mas não exatamente assim. A Marcha das Margaridas é construída diariamente por cada mulher brasileira do campo, da floresta e das águas que se dispõe a desenvolver e lutar pelas diversas soberanias que existem, sejam alimentares, climáticas, humanas. As sementes de Margarida estão em todo o território nacional.

A imagem que permanece de um evento tão grande e feito por tantas formas de companheirismo mostra que, apesar de decretos e medidas assinadas, ainda há muito trabalho a fazer nas marchas Brasil afora que são o trabalho das Margaridas. Que em 2027 ainda não tenha-se que pedir pelo fim da violência e pela tão necessária, sonhada e urgente reforma agrária. Avante, Margaridas.

plugins premium WordPress