Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Ativismo, a palavra – a origem e a disputa pelo sentido do termo
Participação democrática: como ativistas e a sociedade civil podem pressionar candidatos antes, durante e depois das eleições
Ameaças contra lideranças, ativistas e defensores: quais cuidados tomar?
O que descobrimos escutando 137 coletivos, organizações e lideranças brasileiras sobre não violência
As mulheres negras no lugar mais alto do pódio
Em um país em que as atletas precisam enfrentar violências de gênero e de raça e pouco incentivo ao esporte, ver o protagonismo feminino e negro nas Olimpíadas tem um grande significado
Por Letícia Queiroz- 12/08/2024

“Mulherada, pretas e pretos do mundo todo, acreditem!” A frase de encorajamento foi dita por Beatriz Souza após ganhar medalha de ouro em uma final contra Israel nas Olimpíadas em Paris. A melhor do mundo em sua categoria é uma mulher negra que fez questão de incentivar outras e outros atletas.
O protagonismo da delegação brasileira foi feminino. Das 20 medalhas conquistadas durante as Olimpíadas, 12 são de mulheres. Neste ano o Brasil presenciou apenas mulheres como medalhistas de ouro. E mulheres negras: Bia Souza, Rebeca Andrade e a dupla Ana Paula Ramos e Duda Lisboa – do vôlei de praia.
A judoca Bia Souza se tornou a primeira brasileira a conquistar medalha de ouro logo na estreia em uma Olimpíada. Mas o caminho para ela não foi fácil. Militante do esporte, em 2018, quando o Brasil era governado por Michel Temer, ela se manifestou contra a Medida Provisória que previa que parte do valor destinado pelas loterias ao Ministério do Esporte fosse transferido para o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).
A MP colocava em risco não só projetos de desenvolvimento do esporte nacional, mas também diversas carreiras. Depois de manifestações, o então presidente voltou atrás e devolveu a verba para a pasta do esporte.
Bia sabe que tem força. E não é só física. Ela tem consciência que estimula meninas e mulheres negras a alcançarem excelentes resultados e transformarem suas vidas através do esporte. Nas entrevistas à imprensa após a vitória, a judoca motivou outros atletas, focando em mulheres e pessoas negras. “Às vezes a gente acha que pode estar pagando muito caro, mas vale cada centavo quando a gente conquista o que a gente quer”, disse emocionada.
Rebeca Andrade, jovem negra de 25 anos, já teve uma atleta negra como inspiração e agora inspira outras meninas e mulheres. De família humilde da periferia de Guarulhos (SP), ainda criança Rebeca ingressou em um projeto social de incentivo ao esporte e se encantou pela ginástica artística. Antes de começar a conquistar medalhas, tinha como referência Daiane dos Santos, mulher negra que neste ano se emocionou com a vitória de Rebeca.
Em Paris, Rebeca se tornou a maior medalhista brasileira dos Jogos Olímpicos. Só nesta Olimpíada ela subiu ao pódio quatro vezes. Ao receber sua medalha de ouro na disputa do solo, ficou ao lado das estadunidenses Simone Biles e Jordan Chiles. As três formaram um pódio negro e as americanas fizeram um gesto de reverência à brasileira. A cena rendeu uma foto que viralizou no mundo.
A rivalidade entre as adversárias deu lugar ao afeto e ao cuidado de mulheres negras. A felicidade, a sororidade e o carinho entre as medalhistas era visível. E atravessou fronteiras, como visto nas mensagens que a atriz estadunidense Viola Davis deixou para Rebeca.

A ícônica foto de Rebeca Andrade e Simone Biles (esq.) e Jordan Chiles (dir.) l Foto: Reprodução
Daiane dos Santos, que inspirou Rebeca e a viu crescer – literalmente – no esporte, se emocionou ao comentar a vitória da sucessora. “A Rebeca falou sobre representar a todos. Sim, ela representa a todos, mas é a representatividade de 56% de uma nação que é excluída, que é subjugada”, disse.
Ana Paula Ramos e Duda Lisboa, do vôlei feminino, também são as melhores do mundo e trouxeram o ouro para o Brasil. Mulher lésbica e negra de 26 anos, Ana Paula contou que enquanto treinava nos últimos anos ouviu muitos comentários ofensivos. “Recebi tanta mensagem de ódio, de pessoas que queriam que eu desistisse, mas tenho que agradecer a muitas pessoas, a Deus e a mim mesma. Mereci isso com a Duda. Muita gente fala muita coisa. Que falem agora também, porque nós demos o sangue para sermos campeãs olímpicas”.
As atletas que se destacaram reconhecem que são referências negras no esporte. Mas elas também sabem que fazem parte da população mais vulnerável.
Enquanto mulheres negras conquistam medalhas, sobem aos pódios, emocionam uma nação, quebram recordes nas Olimpíadas e motivam crianças e jovens negros, o Brasil continua sendo um lugar perigoso para mulheres, principalmente para mulheres negras que são vítimas da dupla violência.
A Lei Maria da Penha, que acaba de completar 18 anos, é considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres. A lei estabelece ações para proteger as vítimas, como a concessão de medidas protetivas de urgência, a criação de juizados especiais de violência doméstica e a garantia de assistência às mulheres. Mas medidas como estas não têm sido suficientes e a violência de gênero segue crescendo no país. De acordo com o 18° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher foi estuprada a cada seis minutos em 2023 e os feminicídios bateram recordes. A pesquisa também mostra que os casos de racismo registrados saltaram de 5.100 em 2022, para 11.610, em 2023, o que representa um aumento de 77,9% das ocorrências.
Em um país em que violências de gênero e de raça são constantes, ver o protagonismo de mulheres negras nas Olimpíadas tem um grande significado. Não é exagero falar e repetir que, no Brasil, as mulheres negras são, sim, o destaque em diferentes esportes.
É importante lembrar que o país ainda se recupera de um governo de extrema direita que implantou o bolsonarismo e tinha como principal alvo as mulheres e as pessoas negras. Em vários discursos, Jair Bolsonaro fez comentários racistas e misóginos. Pelo menos duas vezes ele disse que pessoas negras são pesadas em arrobas. Em uma das vezes se referiu a um quilombola. Ele também disse que no black power de um apoiador havia baratas e piolhos. Mesmo sendo criticado e até denunciado, nunca se retratou sobre nenhum de seus discursos racistas.
Diversas vezes Bolsonaro atacou os direitos das mulheres e fez falas misóginas e sexistas. Em uma das falas ele disse que teve quatro filhos do sexo masculino e no quinto “deu uma fraquejada e veio uma mulher”.
O governo anterior também desencorajou atletas. Durante seu mandato, Jair Bolsonaro destruiu o Ministério do Esporte, enfraqueceu as políticas públicas esportivas no Brasil e desestimulou todo um projeto olímpico brasileiro.
Durante a pandemia, o presidente vetou o Projeto de Lei 2824/2020. O texto previa um auxílio emergencial para atletas. Na época, em pleno estado de calamidade pública e com redução das atividades econômicas e paralisação de competições esportivas, atletas brasileiros tiveram que abandonar treinos e procurar outro trabalho para sobreviver.
É verdade que muita coisa mudou desde a primeira Olimpíada, mas avanços ainda são necessários.
Quando fazemos questão de destacar que mulheres negras são as protagonistas, não estamos considerando apenas o pódio, mas toda uma trajetória que não começou há quatro anos – na preparação para as Olimpíadas de Paris – mas em gerações anteriores. Reverenciamos não só quem subiu no pódio, mas as referências profissionais e toda a base familiar negra e a ancestralidade.
A vitória dessas atletas é também a vitória de todas as competidoras negras. E de toda a população que enfrenta desigualdades em suas carreiras. Vibrar com uma atleta negra é também reconhecer o esforço das que vieram antes de nós abrindo os caminhos.
E para quem acha bobagem falar que os ouros são de mulheres negras, saiba que este resultado é apenas o começo. O Brasil e todo o mundo ainda vai ver, por muitas vezes, mulheres negras brasileiras no lugar mais alto do pódio.
Políticas Públicas e Juventudes Brasileiras: avanços ou promessas de progresso?
Jarê Aikyry e Thalia Silva, do Engajamundo, refletem sobre as limitações e possibilidades das políticas públicas para a juventude e os desafios da participação
Por Jarê Aikyry e Thalia Silva* – 12/08/2024

Montagem: Jarê Aykiry
Além das consequências de uma pandemia global que afetou a transição da adolescência para a vida adulta, as juventudes da atualidade carregam nas costas a pressão e os impactos de uma grande crise socioambiental. Diante desse cenário, é importante destacar que a ausência de ações e projetos de governo direcionados para as juventudes nas últimas décadas resultou no agravamento de desigualdades estruturais e sistêmicas. Isso pode ser observado no aumento exorbitante do número de homicídios que a juventude negra tem sofrido dentro de seus territórios, assim como índices alarmantes de suicídio entre jovens indígenas e a expectativa de vida da população trans e travesti, que se dá ainda na juventude.
Por isso, ao falarmos sobre políticas públicas específicas para as juventudes, é de extrema importância que este conceito seja plural, compreendendo as distinções sociais de gênero, étnico-raciais, territoriais, de sexualidade, deficiência, e aspectos religiosos/espirituais, que influenciam diretamente na vivência e experiência destes jovens.
De acordo com o Censo de 2022, o Brasil é composto por cerca de 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, o que representa pouco menos de um quarto da população. Este número expressivo carrega uma demanda urgente: políticas públicas construídas por e para as juventudes brasileiras.
Em 2013 foi instituído, por lei, o Estatuto da Juventude, que nomeia os direitos dos jovens brasileiros e traz os princípios e orientações para a criação de políticas públicas específicas para este grupo. Quando analisamos as diretrizes do estatuto, temos, em teoria, a garantia de direitos inegociáveis como a autonomia e emancipação dos jovens, a valorização e a promoção da participação política e social – esta, de forma direta e/ou representativa – o reconhecimento do jovem como sujeito de direitos, a promoção do bem-estar, o respeito a identidade individual e coletiva da juventude, a promoção da vida segura e a não discriminação.
O que acontece, na prática, porém, é a constante violação dos direitos de jovens indígenas, negros, quilombolas, LGBTQIA+, de comunidades tradicionais e com deficiência em nosso país. A exclusão das juventudes dos espaços de decisão reflete uma política ultrapassada, que não considera o jovem como sujeito atuante e capaz de contribuir.
“Os jovens brasileiros encaram diariamente diversas barreiras sociais, que nos atravessam de formas muito diferentes. Quando chegamos nos espaços políticos ou governamentais ainda somos impactados pelas barreiras linguísticas, não parece haver interesse em fazer com que debates, acordos e compromissos sejam transmitidos de forma compreensível para todos”, nos disse, em conversa, o biólogo e ativista do Cerrado, Vitor Sena.
Um dos acertos no retorno do Governo Lula para com os jovens brasileiros foi o lançamento do Plano Juventude Negra Viva, em 2024. O plano possui 11 eixos de atuação e conta com 217 ações pactuadas com 18 Ministérios, visando a redução das desigualdades e, principalmente, da violência letal que assola jovens negros no Brasil. A expectativa agora é que este não seja mais um plano engavetado, mas que se concretize em ações diretas e efetivas em todo território nacional, com necessidade de apoio e incentivo para ações municipais e estaduais, chegando, assim, na proteção e garantia de direitos das juventudes negras do Brasil.
“Colocar o Plano Juventude Negra Viva em ação, nos dá capacidade de promover um futuro onde a juventude negra não seja apenas incluída, mas protagonista da mudança. Entretanto, para que isso não seja uma utopia, é imperativo que suas diretrizes sejam acompanhadas de investimentos reais e compromisso governamental, garantindo que cada jovem negro possa existir e resistir dentro das suas pluralidades”, nos disse a pesquisadora e ativista baiana Ísis Fernanda.
Além disso, atualmente estão em fase de atualização o Plano Nacional de Juventude (PNJ) e o Plano Nacional de Juventude e Meio Ambiente (PNJMA). Para estes, as juventudes brasileiras seguem propondo, se articulando e reivindicando mais ampliação na participação social, garantindo que estes planos, suas diretrizes e ações levem em consideração as demandas de grupos historicamente marginalizados.
É importante lembrar que, mesmo com a execução de planos que abarquem a juventude de forma ampla, políticas de reparação específicas para jovens indígenas, quilombolas, negros, de povos e comunidades tradicionais, LGBTQIA+ e com deficiência, são necessárias para a redução das desigualdades no país.
Nos últimos 11 anos, desde a criação do Estatuto, as juventudes estão diariamente reivindicando sua emancipação. Os avanços são celebrados, mas a urgência de reconhecer o papel fundamental dos jovens não apenas nas discussões globais, mas também nos espaços de tomada de decisão, ainda se faz presente. Seguiremos lutando!
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Thalia Silva é uma ativista climática e socioambiental do Pará, atua em defesa das juventudes e pela promoção da justiça territorial, climática e social. Ela é Articuladora Nacional do Engajamundo e Coordenadora de Relações Políticas no CONJUCLIMA.
Jarê Aikyry é um ativista socioambiental que atua há pelo menos sete anos pesquisando e pautando a intersecção entre clima, raça e gênero. Atualmente é Diretor Executivo do Engajamundo, onde trabalha com Negociações Internacionais e Relações Governamentais, e um dos coordenadores do Miriã Mahsã, coletivo de indígenas LGBTQIA+ do Amazonas.
Mudanças climáticas tornaram queimadas 40% mais intensas no Pantanal
Secas mais fortes e períodos chuvosos mais restritos ampliam alcance do fogo e ameaçam biodiversidade e povos tradicionais
Por Letícia Queiroz- 08/08/2024

Cápsulas coletadas por indígenas após ataque contra retomada Pataxó na TI Barra Velha, em janeiro de 2023. l Foto: Mayke Toscano/Secom-MT
Os incêndios florestais que têm devastado o Pantanal brasileiro estão cada vez mais severos e recorrentes. Segundo uma pesquisa da World Weather Attribution, as mudanças climáticas causadas por humanos tornaram as condições quentes, secas e com ventos fortes 40% mais intensas, aumentando risco de incêndios. A situação do bioma tem afetado modos de vida nas comunidades originárias e tradicionais e provocado mortes de milhões de animais, incluindo espécies que sofrem risco de extinção.
Segundo os estudiosos, as devastações na maior zona úmida do mundo tem potencial para se tornarem as piores de todos os tempos. Conforme a pesquisa, “acredita-se que mais de 1,2 milhão de hectares tenham sido queimados […] quase metade do tamanho da Bélgica”.
Os focos de incêndio no Pantanal superam os números do primeiro semestre de 2020, ano recorde de queimadas. Na época, cerca de um terço do bioma foi destruído.
Também houve uma alta de 898% nas queimadas nos primeiros cinco meses de 2024, em comparação com o mesmo período do ano passado. Foram 880 focos de incêndio, de janeiro a maio deste ano, contra 90 focos no mesmo período em 2023.
Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que nos cinco primeiros dias de agosto deste ano foram contabilizadas 1.363 queimadas no Pantanal. O número é 11,9% maior que todos os registros acumulados nos 31 dias de julho. Na primeira quinzena de junho, por sua vez, o bioma já havia registrado o maior número de focos de incêndios para um mês de junho de toda a série histórica do Inpe, iniciada em 1998.
Os dados e o estudo destacam a necessidade urgente de substituir os combustíveis fósseis por renováveis, de reduzir o desmatamento e fortalecer as proibições de queimadas. Com a seca, pequenos incêndios podem rapidamente se transformar em incêndios devastadores, independentemente de como tenham começado.
Cientistas de todo mundo concordam que as alterações climáticas contribuem com a situação. O calor persistente seca os solos e a vegetação, criando condições mais inflamáveis. Ao mesmo tempo, as chuvas e a umidade relativa do ar estão diminuindo, aumentando consideravelmente o risco de incêndios florestais.
O estudo da World Weather Attribution foi conduzido por 18 pesquisadores como parte do grupo World Weather Attribution, incluindo cientistas de universidades e agências meteorológicas do Brasil, Portugal, Estados Unidos, Suécia, Holanda e Reino Unido. Veja o estudo “Hot, dry and windy conditions that drove devastating Pantanal wildfires 40% more intense due to climate change “Condições quentes, secas e com ventos fortes intensificaram os incêndios no Pantanal em mais de 40% graças às mudanças climáticas” aqui.

Como as escolas militarizadas contrariam a constituição — mas também o que é educação
Julho das Pretas: onde tem mineração, tem pretas em luta
Dia Internacional da Mulher Negra Latinoamericana e Caribenha celebra luta e denuncia o machismo, racismo e outras vulnerabilidades enfrentadas por mulheres negras no mundo.
Por Movimento pela Soberania Popular na Mineração – 25/07/2024

Elane Barros, do MAM, em manifestação | Foto: Jerê Santos
No dia 25 de julho, celebra-se o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em reconhecimento à luta e à resistência das mulheres negras. Essa data surgiu a partir do esforço de mulheres negras que se organizaram e realizaram o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas em 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana. O evento promoveu a união de mulheres negras de diversos países para discutir temas e estratégias de luta, uma vez que compartilham realidades similares devido ao colonialismo e à escravização. Durante esse encontro, foi instituído o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, que foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas no mesmo ano.
No Brasil, essa data também homenageia Tereza de Benguela, líder do Quilombo Quariterê, localizado entre o rio Guaporé e a atual cidade de Cuiabá, no Mato Grosso, que resistiu e lutou contra a escravização no século XVIII. Essa data foi oficializada em 2 de junho de 2014, por meio da Lei nº 12.987, que instituiu o dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
A população negra no Brasil corresponde à maioria, sendo 55,5% de acordo com o Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022). Os resquícios do colonialismo e da escravização ainda se refletem nessa população através do desemprego, da má remuneração, de mortes violentas, injustiças climáticas, entre outras desigualdades sociais, afetando principalmente as mulheres negras, que compõem o grupo mais vulnerável da sociedade. Ainda de acordo com o Censo do IBGE, 2022, as mulheres negras representam 41,3% da população pobre do país e 8,1% da população em situação de extrema pobreza. Entre as brancas, o percentual é 21,3% e 3,6%, respectivamente.
Além disso, as pessoas negras sofrem os maiores impactos dos crimes ambientais praticados por grandes mineradoras e pelo garimpo ilegal. Historicamente, a exploração mineral foi um dos principais meios de exploração da população negra durante a escravidão no período colonial. Esses impactos são resultados de um processo histórico contínuo que sustenta os pressupostos do racismo estrutural e excludente, que promove a ideia de que negros são inferiores. Em outras palavras, ainda persiste a crença de que as vidas das populações negras têm menos valor, sendo avaliadas em termos dos lucros obtidos com a exploração delas.
Conforme Januário (2023), as relações de poder no Brasil também foram moldadas pelo conceito de raça e se manifestam de diversas maneiras, perpetuando os privilégios da população branca. Isso fica evidente nas expressões do racismo ambiental enfrentado pela população negra, como doenças causadas por áreas e águas contaminadas, rios poluídos, desmatamento da floresta, expulsão e deslocamento forçado de seus territórios, assassinato das suas lideranças, entre outras.
No livro “Mulheres Atingidas: Territórios Atravessados por Megaprojetos” (Instituto de Políticas Afirmativas para o Cone Sul – PACS, 2021), são listados diversos impactos causados na vida das mulheres, especialmente das negras, com sérias implicações nos direitos humanos. Esses impactos incluem o fortalecimento da divisão sexual do trabalho, a falta de infraestrutura e segurança no ambiente laboral, a contratação massiva de trabalhadores estrangeiros nos territórios afetados, a precarização e contaminação decorrentes da responsabilidade pelas atividades gerais, como limpeza, o aumento do trabalho reprodutivo, o crescimento da violência doméstica, a perda da soberania alimentar, o agravamento da dependência econômica das mulheres e o reconhecimento apenas dos homens como responsáveis pelos lares.
Nesse contexto da exploração mineral, as mulheres negras são lideranças que protagonizam as lutas e resistências nos territórios através de associações, coletivos, mobilizações e movimentos sociais contra o modelo predatório da mineração. Essas mulheres enfrentam diversos desafios e buscam, de forma contínua, promover a justiça social e ambiental em suas comunidades. Além disso, se tornam porta-vozes de suas comunidades, levando suas demandas para fóruns nacionais e internacionais, onde lutam por reconhecimento e apoio para suas causas.
É fundamental reforçar o protagonismo, a luta e a resistência das mulheres negras na oposição à mineração no Brasil, uma vez que essa é uma luta ancestral. Elas representam uma continuidade histórica de resistência e fortalecimento das comunidades afrodescendentes, enfrentando os desafios contemporâneos impostos pelos impactos da mineração predatória. Dessa forma, o Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) celebra o Julho das Pretas, destacando e honrando essas mulheres que, de punho erguido, estão na linha de frente da luta pela soberania popular na mineração.
Mulheres Negras – luta ancestral e resistência contra o modelo mineral predatório!
Referências
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 24-25.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico de 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
JANUÁRIO, Geovanna Laura Santos. A mulher na base da territorialidade e resistência a mineração. Viçosa: UFV, 2023.
PACS. Mulheres atingidas: territórios atravessados por megaprojetos. Organização: Ana Luísa Queiroz, Marina Praça, Yasmin Bitencourt. 1 ed. Rio de Janeiro: Instituto Pacs, 2021
Apesar de mudanças na política, violência contra indígenas cresceu em 2023, aponta CIMI
Falta de avanço nas demarcações é apontada como um dos fatores que acarretaram no crescimento da violência
Por Letícia Queiroz- 24/07/2024

Cápsulas coletadas por indígenas após ataque contra retomada Pataxó na TI Barra Velha, em janeiro de 2023. l Foto: Tiago Miotto/Cimi
O número de assassinatos de pessoas indígenas cresceu e chegou a 208 no Brasil em 2023, ano marcado por ataques a direitos dos povos originários e de poucos avanços na demarcação de terras. É o que afirma o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em seu relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – 2023”. Segundo a organização, pelo menos 17 indígenas foram mortos violentamente por mês. Também foram registrados 276 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas.
O ano de 2023, primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, iniciou com grandes expectativas em relação à política indigenista e foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas – condutas extintas no governo anti-indígena de Bolsonaro. Mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades foram insuficientes, permitindo a continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra as comunidades.
O texto do documento afirma que o governo que tinha o compromisso e obrigação de avançar na garantia dos direitos dos povos indígenas ficou inerte. “A demarcação dos territórios indígenas avançou muito pouco. Muito aquém do esperado, bem longe do necessário e na contramão do urgente”, diz o CIMI.
Os dados apontam que os estados que registraram o maior número de assassinatos foram Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36), que representam 39% do total. Os mais de 200 crimes foram registrados em 26 estados do país e vitimaram 179 homens e 30 mulheres. Do total, 171 vítimas tinham entre 20 e 59 anos de idade e 19 delas tinham até 19 anos.
A quantidade de assassinatos no ano passado foi maior do que em 2022, quando 180 mortes foram contabilizadas.
Também foram altos os índices de suicídios entre os povos indígenas. Um total de 180 pessoas de diferentes etnias tiraram a própria vida. Os casos de “Violência contra a Pessoa” totalizaram 404 registros em 2023. Além dos crimes de assassinatos, a seção contabilizou: abuso de poder (15 casos); ameaça de morte (17); ameaças várias (40); homicídio culposo – quando não há intenção de matar (17); lesões corporais (18); racismo e discriminação étnico-cultural (38); tentativa de assassinato (35); e violência sexual (23).
A presença garimpeira não cessou em 2023. Segundo o relatório, “os esforços do Estado brasileiro foram insuficientes. Com a manutenção da atividade criminosa, a deterioração das condições de vida dos Yanomami se tornou incorrigível pela disseminação de doenças (malária, tuberculose, infecções respiratórias agudas, anemias), acrescida pela mortalidade infantil, em um contexto de quadros agudos de desnutrição e contaminação por mercúrio”.
Além dos garimpos, entre os principais tipos de danos ao patrimônio indígena registrados ficaram em destaque os casos de desmatamento, extração de recursos naturais como madeira, caça e pesca ilegais e invasões possessórias ligadas à grilagem e à apropriação privada de terras indígenas.
O relatório traz informações sobre a desassistência aos povos indígenas e violência por omissão do Poder Público. Segundo os dados reunidos pelo Cimi, foram registradas 1040 mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos de idade em 2023.
“A maior parte dos óbitos infantis teve causas consideradas evitáveis por meio de ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequados. Entre estas causas, destaca-se a grande quantidade de mortes ocasionadas por gripe e pneumonia (141), por diarreia, gastroenterite e doenças infecciosas intestinais (88) e por desnutrição (57)”, informa o relatório.
O material reúne dados sobre racismo e discriminação étnico-cultural, omissão e morosidade na regularização de terras.
O relatório
O relatório do Cimi é publicado anualmente e sistematiza dados de várias fontes, como organizações da sociedade civil, órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) e informações obtidas junto a fontes públicas, como secretarias estaduais de saúde, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). O material também reúne textos que buscam aprofundar a reflexão sobre os temas abordados pela publicação.
Acesse aqui o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – 2023” na íntegra