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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Troca de mensagens: entenda o que faz do Signal a opção de aplicativo mais segura para ativistas

Troca de mensagens: entenda o que faz do Signal a opção de aplicativo mais segura para ativistas

Conheça as funcionalidades da plataforma que tem como prioridade a privacidade dos usuários.

Montagem com imagens do Signal – divulgação

Foto: Divulgação

 

A troca de mensagens instantâneas pelo celular é tão natural no cotidiano que às vezes esquecemos do básico: saber se o aplicativo que usamos para conversar é seguro. O Signal possui vantagens se comparado com alguns outros mensageiros e é usado predominantemente por pessoas que se preocupam com segurança online. Que tal entender mais sobre a plataforma que tem a privacidade como prioridade e começar a se comunicar de forma mais segura?

O Signal é um aplicativo móvel desenvolvido pela Signal Messenger LLC e oferece serviço de envio de mensagens instantâneas e chamadas protegidas com um protocolo de criptografia extremamente seguro.  O aplicativo é um software livre, possui configuração para sigilo telefônico, possibilita a autenticação de chaves, permite o uso de PIN e autenticação em dois fatores além de possuir a configuração de autodestruição de mensagens para chats privados e grupos.

O aplicativo é gratuito, fácil de usar e está disponível tanto no sistema operacional Android quanto no iOS. Também existe versão desktop para Windows, Mac e Linux. Para aderir, tudo o que precisa é de um número de telefone. Veja abaixo o passo a passo.

Além da privacidade, a plataforma conta com todos os recursos que de outros mensageiros, como chamadas de vídeo e áudio, stories, multimídia, conversas em grupo e mensagem temporária. 

A criptografia de ponta a ponta do Signal é sólida e mantém as conversas totalmente privadas. Por oferecer privacidade e baixíssima (quase nula) possibilidade de invasões, a recomendação é que ativistas, comunicadores e defensores de direitos humanos que trabalham com informações sensíveis e confidenciais ou apenas pessoas querendo mais privacidade nas suas comunicações utilizem o Signal. Mesmo que não abandone outro aplicativo (WhatsApp, Telegram ou outro), uma opção é usar o canal mais seguro em conversas que possam oferecer algum tipo de risco.   

O Tecnorgânico (Rafael Ramires), educador popular em Letramento Digital, Segurança da Informação e Computação no coletivo InfoCria e pesquisador em Humanidades Digitais afirma que a indicação de Signal para ativistas vem da própria utilização do app pelos ativistas mais procurados do mundo. 

“Isso indica que é um ótimo lugar para trocar mensagens sem correr o risco de ser rastreado. Para se ter uma ideia, a criptografia ponto-a-ponto utilizada no aplicativo mais usado foi implementada pela organização que criou o Signal, ou seja, a ferramenta é referência em segurança até mesmo para o aplicativo mensageiro mais popular no Ocidente”, explicou. 

O Signal, assim como os outros aplicativos de mensagem, vem se atualizando e já possui todos os recursos e as funcionalidades necessárias, se mostrando uma plataforma completa. 

“Além da segurança, o canal vem incluindo outras funções presentes também em seus concorrentes, como os status, que no Signal chamam-se stories. Por ele você pode mandar e receber figurinhas à vontade, criar grupos, ligar por vídeo ou áudio e diferente das demais plataformas, tudo isso é feito de forma criptografada, e em alguns casos, como nos grupos e mensagens privadas, suas mensagens sequer são identificadas pelos servidores do Signal”, disse o especialista em segurança digital.

Mas não é só baixar e começar a usar. O que faz do aplicativo uma ótima opção de chat seguro, são as configurações de segurança e privacidade que o aplicativo disponibiliza. Então, para utilizar o Signal com mais segurança, é importante configurá-lo. Veja aqui um passo a passo para configurar o aplicativo.

Mas qual a diferença?

Muitos fatores tornam o Signal único e muito mais seguro. 

Entre os diferenciais estão as listas de contatos. Você pode escolher se deseja que as pessoas com quem conversa no Signal vejam seu número de telefone como parte das informações do seu perfil. Na plataforma só é possível visualizar números telefônicos de quem você já tinha o contato salvo na agenda do celular. Se quiser ter mais privacidade em relação ao número de telefone, você pode optar por não permitir que ninguém encontre você pelo número de telefone.

Os perfis pessoais são criptografados e compartilhados apenas com os contatos com quem você conversa. Agora se você está em um grupo, mas não tem os contatos das pessoas, você não saberá o número delas e nem elas o seu.  

No aplicativo os contatos são criptografados usando seu PIN do Signal e o servidor da plataforma não tem acesso a essas informações. O PIN ajuda você a restaurar sua conversa e a manter suas informações criptografadas.

O protocolo de criptografia do Signal é extremamente seguro e suporta Foward Secrecy e Future Secrecy (em português: sigilo de Encaminhamento e Sigilo Futuro). 

O Forward Secrecy é quando as chaves são rotacionadas com muita frequência, de modo que, se a chave de criptografia atual for comprometida, as mensagens recebidas antes da chave de criptografia ser comprometida, não serão expostas. 

O Future Secrecy (ou segurança Post-Compromise Security) é um recurso em que um invasor é impedido de descriptografar mensagens futuras após comprometer uma chave privada, a menos que também comprometa mais chaves no futuro. Isso força efetivamente o invasor a precisar interceptar toda a comunicação entre as partes para ter de fato acesso às mensagens, pois ele perde o acesso assim que ocorre uma troca de chaves que não é interceptada. E essa troca de chaves acontece com certa frequência.

O Signal permite a autodestruição de mensagens. Em alguns casos, é importante não manter conversas sensíveis no celular e este aplicativo permite que você configure um tempo de expiração de mensagens em uma conversa. O tempo de expiração é personalizável. Passado esse período, as mensagens são autodestruídas. Caso algum celular envolvido na conversa seja roubado, ou alguém sem autorização tenha acesso a ele, a pessoa poderá ter acesso a apenas a um histórico reduzido de mensagens.

Outro diferencial é que o Signal oferece suporte a grupos privados, nos quais o servidor não tem registro de quais grupos você está, títulos de grupos, avatares de grupos ou configurações de grupos. 

O aplicativo tem metadados mínimos coletados com algumas funções ativadas, por exemplo: o endereço de quem envia a mensagem é criptografado junto com o corpo da mensagem, e somente o endereço do destinatário fica visível para o servidor do Signal. 

 

Segurança na prática

Todos esses recursos são importantes para a privacidade e segurança, principalmente das pessoas que têm acesso a informações confidenciais e sensíveis. Muitas conversas dentro do ativismo podem oferecer algum tipo de risco, então todo cuidado é pouco. 

Vamos a alguns exemplos de como um aplicativo seguro pode útil no dia a dia. 

Um comunicador que precisa denunciar ou trocar informações sobre uma área que está sendo desmatada ilegalmente e quer levar o caso à imprensa pode usar o Signal para enviar uma mensagem a um portal de notícias de forma mais segura. Se a pessoa que você enviar as informações não tiver seu número salvo, seu contato pessoal também estará protegido. Se for esse o objetivo, em uma situação como esta é importante não ter nome, sobrenome e foto de perfil e se atentar para as configurações de privacidade. 

Agora se você pertence a um grupo que está sendo ameaçado por conta de conflito de terra, é recomendável que utilize o Signal sempre que for tratar desse assunto em ligações, troca de conversas e reuniões por vídeo chamada. Essa ação é importante para garantir privacidade e prevenir que a conversa seja rastreada ou vazada. No Signal, nem mesmo os desenvolvedores do aplicativo podem ouvir em chamadas individuais ou em grupo. 

Mas calma. Não precisa deixar de usar o seu outro aplicativo preferido, mas recomende para o seu grupo e utilize para assuntos que envolvam assuntos delicados. Basta lembrar: se é assunto sensível e pode oferecer risco, é preciso ter privacidade e segurança. 

Em casos como estes, a tecnologia VPN também é altamente recomendada para ativistas de diferentes áreas que precisam aumentar a proteção e privacidade online. A ferramenta tem como objetivos a privacidade, segurança e o anonimato

 

Como instalar o Signal no celular (android e iOS)

1. Entre na loja de aplicativos do seu celular (Play Store ou  App Store) e digite Signal.

2. Baixe o aplicativo

3. Leia e aceite os termos e política de privacidade e aperte em continuar 

4. Autorize as informações referentes à lista de contatos

5. Adicione seu número de telefone

6. Insira o código de verificação que chegará via SMS

7. Crie um código PIN (código numérico com ao menos quatro dígitos)

8. Crie seu perfil – Nessa fase você decide quem pode encontrar você pelo número de telefone. Se clicar em TODOS, qualquer pessoa que tenha seu número de telefone verá que você está no Signal e poderá iniciar chats com você. Se escolher NINGUÉM, nenhuma pessoa verá que você está no aplicativo, a não ser que você envie uma mensagem ou participe de um grupo em comum. 

9. Pronto! O aplicativo está pronto para usar

Como instalar o Signal no computador

1. No navegador, digite Signal e clique na primeira opção (Fale livremente – Signal

2. Clique em Baixar Signal 

3. Escolha uma das opções em (Signal para desktop)

4. Aguarde o download

5. Clique no arquivo baixado e aperte em executar para concluir a instalação

6. Escolha as configurações mais adequadas para você e comece a usar

Cuidado ao usar o aplicativo pelo desktop! Por esse dispositivo ele não possibilita a configuração de uma senha de proteção e as mensagens são armazenadas no disco do seu computador, sem criptografia. Isso pode ser um problema se você não tiver senhas de acesso no computador ou um computador criptografado. Nesse caso, suas conversas ficam vulneráveis em caso de perda, apreensão ou roubo de seu computador.

Quer aumentar o cuidado com seu telefone e computador e com sua presença nas redes sociais? Acesse o site da Escola de Ativismo e acesse vários conteúdos sobre segurança digital. Na aba educação > cuidados digitais você vai aprender várias técnicas para uma navegação segura, desde dicas de aplicativos até métodos para proteger pastas no seu computador e como criar senhas fortes.

Homens trans usam futebol como ferramenta de articulação política e transformação social

Homens trans usam futebol como ferramenta de articulação política e transformação social

Conheça três times de futebol de homens trans que contam uma história de sociabilidade, resistência, inclusão e companheirismo

Time da Transviver disputando campeonato

Foto: Bruno Silva/Cortesia

Um reencontro com o futebol, um encontro consigo mesmo. É assim que o atual coordenador do time de futsal da ONG Transviver, Bruno Silva, define sua entrada no projeto, fundado no Recife em 2018, com o objetivo de engajar homens transgêneros na prática esportiva.

“Eu trabalhava no Cinema São Luiz e estava acontecendo o Recifest, um festival de cinema da diversidade, onde colocaram uma bandeirinha do time da Transviver. Era o começo da minha transição e procurei um grupo, que foi um divisor de águas na minha vida”, lembra.

Apaixonado por futebol, Bruno havia deixado de praticar o esporte em razão da dificuldade de integração com equipes compostas por pessoas cisgêneras — isto é, que se identificam com o sexo biológico que lhes foi atribuído ao nascer — e encontrou no grupo um espaço de acolhimento fundamental para seu processo de autoidentificação. Para ele, em todo o país, há um aumento do número de times de futebol compostos por transmasculinos, fenômeno que atribui à capacidade desses espaços de promover a sociabilidade e, por vezes, de oferecer diversas formas de assistência, funcionando como uma importante ferramenta de articulação política de seus integrantes.

“O time foi fundamental no início da minha transição, pois foi lá que descobri, por exemplo, a localização dos centros de referência e acolhimento, assim como recebi indicações de atendimento médico seguro. Outro fator importante foi a troca de experiência com outros homens trans, que muitas vezes enfrentam situações semelhantes de preconceito e reações fisiológicas parecidas durante o processo. Nessas trocas, a gente acaba se vendo no outro e conseguindo lidar melhor com tudo”, comenta.

Nos treinos, o trabalho em grupo vai muito além das quatro linhas. Atento às dinâmicas estabelecidas pelos jogadores entre si, Bruno faz questão de suscitar debates importantes para a socialização do grupo, como a reprodução do machismo e a importância da construção de uma cultura de acolhimento entre eles.

“Na ânsia de se afirmarem homens, alguns participantes acabam tendo posturas que não aprovamos. Em nossos encontros, a gente debate bastante com aqueles que estão chegando, para passar com muita calma e paciência nossa forma de ver as coisas. Os debates também servem para compartilhar nossas indignações relacionadas à transfobia e ao machismo, buscando formas de superar esses desafios”, completa Bruno.

O Mandabusca, time de futebol que também é um espaço de articulação política no interior do Estado de São Paulo 

Foto: Ray Godoy Cavalheiro/Reprodução

Ferramenta de luta

Único time voltado para homens trans em Sorocoba, no interior Paulista, o Mandabusca conta com nada menos do que 70 integrantes. “Iniciamos nossas atividades em 2021, treinando com cerca de cinco pessoas, num parque aqui da cidade, chamado Parque das Águas. Resolvemos criar uma página no Instagram e mais pessoas foram aparecendo. O grupo atual inclui tanto as pessoas que estão conhecendo o time quando aqueles que são mais ativos”, explica Lucca Spinelli, fundador da equipe.

Para ele, a ampla adesão ao Mandabusca se deve à falta de espaços de assistência social às pessoas trans em Sorocaba. “Temos integrantes entre 14 e 48 anos, que buscam acolhimento, ajuda com a transição, retificação de nome e até conversar com um terapeuta, através da nossa rede de apoio. Muitos deles, não chegam em busca do futebol, mas de alguma forma de auxílio e depois passam a praticar o esporte”, comenta Lucca.

Além do time de futebol, o único espaço de acolhimento a transmasculinos em Sorocaba é a Associação de Transgêneros de Sorocaba (ATS). Juntas, as instituições têm travado uma árdua batalha em defesa dos direitos da comunidade trans no município, administrado pelo conservador Rodrigo Manga (Republicanos), que, em dezembro do ano passado, encerrou os atendimentos de processo transexualizador no Hospital Santa Lucinda.

“Existe uma portaria que garante que toda cidade do estado de São Paulo tem direito a um ambulatório para pessoas trans. O prefeito, um bolsonarista sem escrúpulos, já fechou diversas vezes esse ambulatório. Só no meu grupo, temos 70 pessoas sem acesso a atendimento de saúde”, denúncia Lucca.

De acordo com ele, a desassistência leva a população da cidade a entrada no uso de hormônios sem qualquer supervisão médica. “Sorocaba é uma cidade bolsonarista e extremamente conservadora. No desespero pela aceitação muitos estão tomando hormônio por conta própria. Quando as pessoas sabem que somos trans, não conseguimos emprego”, desabafa.

Ao lado dos companheiros de time e da ATS, ele tem articulado mobilizações para cobrar a garantia do acesso à saúde para a população trans do município. “Fizemos protesto cobrando a volta do ambulatório, que a prefeitura diz que funciona, mas não funciona, denúncia no Ministério Público e temos feito o possível para auxiliar nossos integrantes na retificação de seus documentos. A situação é surreal. A existência do Mandabusca é fundamental para a comunidade trans de Sorocaba”, conclui Lucca.

O Trans United FC 

Foto: Rodrigo Arcanjo/Cortesia

Falta de apoio

Embora já figurem em algumas competições esportivas, os times de futebol compostos por pessoas trans costumam encontrar dificuldades para arcar com a participação nos eventos. “A gente percebe que as pessoas cis tem uma vida mais estabilizada, com amigos e conhecidos que oferecem patrocínio, coisa que não conseguimos. Além disso, muita gente questiona o porquê de a gente não querer jogar contra pessoas cis, ignorando o fato de que elas sempre tiveram espaço para jogar, sem nunca interromper esse hábito por causa de uma transição. As pessoas trans nem sempre puderam, foram parando de praticar o esporte, o que faz com que o nível técnico caia”, lamenta Rodrigo Arcanjo, fundador e treinador do Trans United FC, equipe do Rio de Janeiro formada por mais de vinte atletas trans.

Campeão sul-americano de kung fu, Rodrigo escreveu através do esporte alguns dos capítulos mais importantes de sua vida. “Desde criança, antes da transição, eu jogava bola. Aos 11 anos de idade, no período em que minha família se mudou para o Espírito Santo, entrei em um time só de meninos. Para poder disputar as primeiras competições, o clube entrou com ações na justiça”, lembra. 

O bom desempenho esportivo rendeu a Rodrigo, aos 15 anos de idade, uma Bolsa Atleta, benefício que o poder público oferece para incentivar a profissionalização da prática esportiva. A conquista, contudo, forçou o afastamento do lutador de sua outra paixão. “Minha mãe não me deixava jogar bola, porque tinha medo de me machucar e me prejudicar nas competições, então tive que parar com o futebol. Eu treinava pela manhã, estudava à tarde e treinava de novo à noite”, relata Rodrigo. Na época, o desejo de voltar aos gramados ainda motivou sua participação nas peneiras de grandes clubes, como o Santos e o Vasco. “Não vi muito futuro no futebol feminino, que era a categoria que eu disputava na época, estava querendo fazer faculdade, iniciei minha transição e acabei desistindo”, completa.

Após uma passagem pelo Big T Boys, outro time formado por pessoas trans no Rio de Janeiro, Rodrigo resolveu fundar o Trans United FC. “Parte do grupo veio comigo e hoje incentivamos também a participação de mulheres trans. Temos duas em nosso grupo”, ressalta. As dificuldades apareceram logo no início do projeto, com a falta de recursos para garantir um local seguro para os treinos. “No início, nossa quadra tinha uma mensalidade de R$ 800 e muitos me procuraram para dizer que não estava dando para pagar. A gente não podia contar com o espaço público, porque não era seguro para o grupo. Agora, conseguimos a autorização da administração para jogar no Parque Madureira nas noites de segunda, em um horário em que ele fica fechado para outras pessoas”, ressalta. 

Com a concentração dos campeonatos da diversidade no estado de São Paulo, o desafio de gerir um time trans inclui os custos com deslocamento da equipe. Rodrigo conta que, por vezes, precisou assumir os gastos para não deixar ninguém de fora. “A gente sabe que muitos homens trans não conseguem acesso a uma formação profissional ou a um emprego. Como muitos não têm condição de bancar nem alimentação, a gente só viaja com essa garantia para todos. Além disso, vejo a alegria do pessoal quando a gente consegue fretar um ônibus, o clima legal de uma equipe viajando para jogar futebol. Para muitos, é a realização de um sonho”, afirma. 

A chegada nas competições, contudo, nem sempre é fácil. Não são raros os relatos de transfobia contra atletas mesmo nos eventos organizados pela comunidade LGBTQUIAP+, que costumam ocupar toda a agenda dos times compostos por pessoas trans. “A transfobia começa nas súmulas, que não respeitam os nomes sociais de muitos atletas os quais ainda não tiveram acesso à retificação. Além disso, as arbitragens insistem em nos chamar pelos pronomes incorretos, a ponto de eu precisar intervir porque meus atletas não estão sendo respeitados”, lamenta Rodrigo. 

Apesar dos desafios, o treinador vê a potência política do time como o principal motivo para não desistir da iniciativa. “Nosso modo de fazer política é existir. É entrar na Vila Olímpica, no meio dos homens cis, com nossa bandeira, para fazer com que vocês entendam que a nossa militância é através do esporte e que vamos ocupar esses lugares sim”, destaca. 

“Uma nova família”

O atendente de telemarketing Bernardo Valentim, de 24 anos, um dos atletas que integram o Trans United, conta que descobriu o time por intermédio de uma amiga, em um momento crucial de seu processo de autoaceitação. “Não tinha contado para meus familiares que era um homem trans, apenas falei que me sentia atraído por mulheres, o que já fez com que eles me rejeitassem. Eu entrei em depressão, nem me olhava no espelho. Através do time, vi que corpos trans existiam, fiz amigos como o Luan e o Dante, que foram me mostrando que era normal ser como nós somos, que eu não deixava de ser homem por ter a voz mais fina ou por não ter passado por uma cirurgia”, comenta. 

Oriundo de uma família de militares, Bernardo chegou a ingerir uma dose alta de medicamentos em razão da tristeza com o afastamento de entes queridos. “No hospital, deram como uma tentativa de suicídio. Nesse momento, minha amiga pegou meu celular e ligou para o Rodrigo, explicando toda a situação e o porquê de eu não estar indo aos treinos. Desde então, todos os dias, o time mandava mensagens, fazia videochamadas, dizendo que eu estava fazendo falta. Vi que eu não estava sozinho e que eu tinha uma nova família”, lembra.

Para o coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), Fabian Algarte, os espaços de integração através do esporte são fundamentais para a comunidade. “O esporte é um espaço de construir trocas, fazer amigos, de cuidado com a saúde física e mental, então os espaços transcentrados, feitos pela população trans, oferecem maior segurança e apoio, para além da prática esportiva. Isso melhora a qualidade de vida e também a sensação de pertencimento social, de não estar sozinho, de fazer parte de um grupo e de conhecer pessoas parecidas com você”, destaca. 

Fabian ressalta que, embora iniciativas do tipo ainda sejam raras no Brasil, elas têm aparecido com maior frequência nos últimos anos. “Principalmente por causa da alta divulgação. A gente tem times de futebol que começam a se divulgar nas redes sociais, a divulgar sua logo e a chamar gente para participar. Isso passa a fomentar essa ideia em outras cidades, outros espaços, em que as transmasculinidades começam a ver que poderiam fazer o mesmo.  E aí não é só no futebol, acontece em outros esportes e também nas artes e na cultura”, explica.

Serviço// Redes Sociais 

Transviver: @transviver

Trans United: @transunitedfc 

Mandabusca: @mandabuscaft

Um barco chamado cinema: projeto leva filmes paraenses para comunidades à beira do rio

Por Letícia Queiroz – 19/06/2024

 

 

Iniciativa defende a democratização do cinema e valorização de materiais audiovisuais que dialoguem com a luta em defesa dos territórios tradicionais

Barco leva equipamentos e estruturas para montar salas de cinema | Foto: Instituto Regatão Amazônia

Produções que inspiram, encantam e têm poder de conectar riquezas culturais e tradicionais da região amazônica: essas são algumas diretrizes usadas na escolha dos filmes e documentários que são exibidos em aldeias e comunidades ribeirinhas do Pará pelo Cineclube Regatão. O projeto itinerante leva, de barco, curtas e longa-metragens para as comunidades com objetivo de popularizar o cinema e torná-lo um instrumento democrático para manter viva as culturas amazônicas e fomentar a luta em defesa dos territórios da floresta.

O projeto é do Instituto Regatão Amazônia. O acesso aos indígenas e ribeirinhos da região se dá pelos rios. De barco, a equipe leva filmes, equipamentos e toda a estrutura necessária para montar uma sala de cinema em barracões comunitários, no meio da floresta, às margens dos rios Amazonas, Tapajós e Arapiuns, na região do Baixo Amazonas e para localidades da Resex Tapajós – Arapiuns e Flona Tapajós.

Sem precisar sair da comunidade, crianças e adultos assistem filmes com temática amazônica no Pará | Foto: Instituto Regatão Amazônia

Cinema para todos, em toda parte

As sessões sempre contam com grande público. Nesses encontros muitos dos participantes têm acesso à produção audiovisual do tipo pela primeira vez. Afinal, a realidade das salas de cinema no Brasil é quase exclusiva das grandes cidades, em bairros elitizados e com preços pouco acessíveis.

De acordo com dados do Filme B – portal sobre mercado do cinema no Brasil – em 2022 apenas 450 cidades brasileiras tinham salas de cinema, pouco mais de 8% do total de municípios na época. Segundo dados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais do IBGE, a região Norte tem menor acesso a cinemas, teatros e museus. A distribuição inadequada impossibilita milhares de pessoas de acessarem os espaços criando desigualdades e uma lacuna social e cultural.

Em Santarém, por exemplo, cidade paraense com mais de 300 mil habitantes, há salas de cinema apenas em um shopping da cidade, com exibição de filmes comerciais exclusivamente. Segundo o Instituto Regatão Amazônia, não há espaço para filmes brasileiros, muito menos paraenses. E é por isso que eles oferecem à população filmes produzidos no estado, que ressaltam a identidade, linguagem e realidades próximas destas comunidades.

“A gente vem fazendo uma curadoria de filmes que dialogue diretamente com a identidade cultural de cada comunidade, com produção local, feito por pessoas próximas de cada comunidade, para reduzir o distanciamento que as pessoas têm do fazer audiovisual”, disse Zek Nascimento, um dos diretores do Instituto Regatão.

Filmes em cartaz

No primeiro semestre de 2024 duas edições foram realizadas. Em abril, a comunidade de Jamaraquá, na Floresta Nacional do Tapajós, assistiu a um curta de animação “O Doutor e o Caboco” e ao documentário “Festa de São Benedito – Gambá de Pinhel”, produções audiovisuais feitas no Pará.

Em maio, o cine itinerante chegou à comunidade indígena de Atodi, rio Arapiuns, com as produções: “Salve o Nosso Tapajós” e “Vídeo Cartas Tapajós-Arapiuns”, que traz questões sobre o imaginário, a arte e a cultura local, assim como, histórias mitológicas e verídicas, cobertura de eventos e festas locais, denúncias contra injustiças sociais e ambientais.

Marlena Soares, presidenta do Instituto, diz que o projeto cineclube Regatão faz parte de um planejamento do Instituto voltado para o fortalecimento das narrativas amazônicas. Ela defende que fortalecer a cultura ribeirinha da Amazônia é fundamental para proteger territórios ameaçados.

“Os filmes apresentam conexões com o fazer cultural das comunidades ribeirinhas, o que contribui para preservar nossa biodiversidade. São promovidos diálogos com as comunidades desses filmes que abordam o cotidiano e a cultura das comunidades locais”, diz Marlena

O Instituto

O Instituto Regatão Amazônia é um coletivo de fazedores culturais, com base em Alter do Chão, oeste do Pará, que desde março de 2023 promove transformações sociais através do fortalecimento da identidade cultural e da proteção territorial da Amazônia.

Regatão é um personagem amazônida que vive a bordo. Viaja pelos rios fazendo interconexões e trocando insumos, alimentos e objetos nos trapiches, vilas e barracões. Metaforicamente, o propósito do Instituto e seus projetos é o mesmo: trocar cultura e interconectar comunidades amazônicas.

Ativismo ancestral: identidade, autocuidado e educação são bases da resistência das mulheres quilombolas

Ativismo ancestral: identidade, autocuidado e educação são bases da resistência das mulheres quilombolas

Beleza, gênero e raça, os modos de vida e o afeto dentro dos territórios quilombolas são partes importantes da resistência

Mulheres quilombolas no Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas da CONAQ em Brasília em junho de 2023 

Foto: Letícia Queiroz

Por séculos a “estética branca” determinou os padrões de beleza em praticamente todo o mundo, enquanto o racismo estrutural reduzia as chances de pessoas negras se sentirem bonitas e de alcançarem uma autoestima plena. Com o passar dos anos, as mulheres negras e quilombolas dentro dos seus territórios e dos movimentos sociais consolidaram redes para fortalecer a identidade e reafirmar orgulho pela negritude. Apesar das violações de direitos que ainda afetam os quilombos, o ativismo ancestral acendeu uma nova geração: a de mulheres e meninas quilombolas empoderadas e orgulhosas da aparência e da identidade ancestral. 

E é exatamente assim que se sente a jovem Lorena Bezerra, 20 anos. Quilombola da comunidade Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE), a modelo e estudante de psicologia nasceu e cresceu em um quilombo com lideranças femininas. Desde a infância a jovem acompanha reuniões e ações que discutem questões que afetam a vida das mulheres. Ela conta que o modo de vida contribuiu para sua autoestima. 

“Cresci me achando linda graças às mulheres do meu quilombo, à luta do movimento quilombola e à construção matriarcal da minha comunidade. Tenho uma avó preta, minha mãe é preta, minhas tias são pretas e eu também sou uma mulher preta de cabelo crespo. Em nenhum momento da vida fui ensinada que eu teria que me adequar aos espaços. Pelo contrário. Eu cresci ouvindo que os espaços teriam que se adequar à minha presença e a tudo que sou, desde o meu tom de pele a todas as formas que gosto de usar meu cabelo. O amor próprio se constrói e, como eu cresci nesse processo, sempre fui instigada a me amar. Por isso conquistei a minha autoestima muito cedo”, disse Lorena.  

Sinônimo de resistência negra, os quilombos são historicamente locais onde as pessoas escravizadas se refugiavam e resgatavam suas origens africanas. As comunidades quilombolas são fruto das heróicas resistências ao modelo escravagista e opressor instaurado no Brasil Colônia. 

Lideranças quilombolas afirmam que não existe luta quilombola sem a participação das mulheres. Os territórios são femininos e é possível afirmar que a autoestima das quilombolas parte de um lugar particular. A autoconfiança conquistada ao longo de décadas, desde o fim da escravização negra, é fruto da resistência e da influência dos modos de vida, do afeto e do cuidado das mais velhas com as mais novas. Um comportamento que tem atravessado territórios e gerações. 

“Desde muito pequena as minhas referências em beleza estavam todas dentro da minha comunidade, perto de mim. Eu via as mulheres, achava todas lindas e falava: ‘quando eu crescer quero ser igual a elas’. Aprendi a usar turbante, me ensinaram a deixar meu cabelo armado e hoje escuto as meninas falando que quando crescerem querem ser iguais a mim. Agora é a minha vez de fazer esse diálogo com as crianças, porque elas estão enxergando em mim uma referência em beleza”, disse Lorena que é adepta de adereços e maquiagens coloridas. 

Liberdade estética

“Cresci me achando linda graças às mulheres do meu quilombo, à luta do movimento quilombola e à construção matriarcal da minha comunidade”, diz Lorena 

Foto: Reprodução

A cor da pele, a textura do cabelo e outros traços físicos, principalmente do nariz e boca, são as principais características percebidas nas pessoas negras. Muito mais que beleza e estilo, para as mulheres quilombolas o cabelo crespo carrega uma história e está ligado à ancestralidade. Dentro de alguns quilombos, os cabelos são considerados símbolos políticos de resistência contra-hegemônica.

Para Lorena Bezerra, o cabelo tem uma importância ancestral. Amante das tranças, turbantes, blackpower, apliques, cabelo natural, com ou sem definição, Lorena Bezerra gosta de mudar o visual com frequência. 

“Eu mudo de cabelo sempre e sempre me encontro. Sinto uma liberdade muito grande ao mudar. Ao mesmo tempo que sou desapegada, tenho muito cuidado e apego por conta da minha questão ancestral. Tem toda uma simbologia por trás. Tocar na fibra do meu cabelo é tocar na minha ancestralidade”, disse Lorena. 

No quilombo Acre, em Cururupu (MA), a trancista quilombola, fisioterapeuta e comunicadora popular Wynnie Andreza Gomes, 27 anos, sempre esteve rodeada de mulheres. Ainda criança tinha os cabelos cuidados e trançados pelas tias. O costume a fez crescer amando a forma e a textura dos fios. 

“A influência da minha família e o fato de ter vivido dentro do movimento negro contribuiu muito para o fortalecimento da minha autoestima. Sempre tive uma grande representatividade das mulheres do quilombo que, desde sempre, tinham essa cultura de usar tranças e o cabelo natural. Naquele tempo as tranças não eram populares como atualmente e, mesmo vivenciando o preconceito na escola por usar tranças e por ter o cabelo que não “voava”, eu nunca me abalei. Foi trabalhado desde sempre em mim que o meu cabelo, crespo ou feito tranças, era bonito”, afirmou. 

Entre a infância e a adolescência, Wynnie também aprendeu a trançar e começou a fazer tranças no próprio cabelo e nas outras meninas do quilombo. Aos 17 anos a jovem tornou-se trancista profissional e passou a trabalhar resgatando a autoestima de outras mulheres negras.  Para ela, não há sensação melhor do que a de ver as clientes felizes com a aparência. 

“Ver as mulheres chegando inseguras e saindo confiantes, realizadas e felizes com o resultado não tem preço. É muito prazeroso elevar a autoestima de uma mulher negra e vê-la se sentir empoderada. Hoje já vemos a aceitação do cabelo crespo e as tranças são uma ótima opção para quem ainda está deixando de alisar os cabelos”, afirmou Wynnie.

Indo contra a imposição de alisamento, o cabelo black power carrega uma história ligada ao movimento negro. Utilizado por homens e mulheres, o cabelo volumoso e com formato arredondado virou símbolo de identidade e resistência na década de 1960, quando se popularizou. Na época, integrantes do Panteras Negras – grupo que surgiu com a pauta de combate à violência policial contra negros e defendia o lema ‘Black Power’ (Poder Preto, em tradução livre) – traziam a discussão estética sobre o padrão de beleza eurocêntrico. 

O pente garfo é muito utilizado para manter o cabelo black power, porém o item não é encontrado com facilidade como outros acessórios usados para pentear cabelos com outras texturas. 

Em paralelo às discussões antirracistas envolvendo cabelos, os debates sobre a transição capilar – procedimento que resgata a textura natural dos cabelos – e valorização de cabelos crespos e cacheados têm crescido nos últimos anos. Mas é importante destacar que o uso do cabelo natural não deve ser uma obrigação ou imposição entre as mulheres negras e quilombolas. As mulheres são livres e nesse ponto o que vale é o livre arbítrio. 

“Resistir para existir!”

“É muito prazeroso elevar a autoestima de uma mulher negra e vê-la se sentir empoderada”, diz Wynnie 

Foto: Reprodução

Muitas questões como a falta de políticas públicas, desigualdades e violações diversas afetam os territórios quilombolas e impactam na autoestima das mulheres. E foi para resistir e combater essas violências que nasceu o Coletivo de Mulheres Quilombolas da Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) – organização de âmbito nacional, sem fins lucrativos que representa a grande maioria da população quilombola do Brasil. 

A jornalista e ativista Maryellen Crisóstomo, 31 anos, quilombola do território Baião, Almas (TO), é integrante do Coletivo e explicou que o grupo de ativistas atua no fortalecimento das mulheres quilombolas em suas múltiplas faces. O coletivo já está em sua segunda década de organização.

“Essa rede de autocuidado se dá por meio de escutas, encontros e valorização da nossa identidade. Nos nossos encontros são destinados momentos de lazer, momentos de registros fotográficos profissionais, além de incentivos e trocas de autocuidado focando no bem-estar e autoestima”, disse Maryellen. 

Em 2022 o coletivo lançou um livro de bolso com escritas sobre as mulheres quilombolas e em 2023 o grupo organizou um Encontro Nacional que reuniu mais de 300 mulheres quilombolas de 24 estados e de todos os biomas brasileiros.

A ativista quilombola disse que muito se avançou com o passar dos anos, inclusive a visibilidade do protagonismo das mulheres quilombolas em várias frentes. “O lema do Coletivo de Mulheres Quilombolas da CONAQ é “Resistir para Existir”. Tudo o que alcançamos e almejamos é forjado na luta, nas disputas de narrativas, sobretudo no merecimento. Sobre evolução não há dúvidas. Estamos cada dia mais fortalecidas”. 

Apesar das discussões sobre o racismo terem se ampliado nos últimos anos, Maryellen afirma que a população brasileira ainda tem muito que avançar no quesito respeito sobre a diversidade dos corpos.

“A população negra resiste a uma série de violações e o nosso cabelo sempre foi alvo de parte dessas violações. Eu, por exemplo, fiz uso de química por 20 anos porque sempre ouvi que ficaria bom e mais fácil de cuidar. Minha geração e as gerações anteriores sofreram essa violência. Não tínhamos referências e nem tinha produtos específicos. Eu não pude escolher o meu cabelo natural aos oito anos”, lembra. 

Ao falar sobre os desafios da representatividade negra na mídia e na indústria dos cosméticos, a ativista afirmou que houve mudança significativa por causa da luta de mulheres negras. 

“Isso com certeza isso impacta não somente em nosso modo de nos ver, mas, também em como nos veem. A mesma sociedade que dizia que tínhamos que relaxar o cabelo para ficar “bom e bonito”, passou a ver nossos cabelos em texturas reais nas propagandas. A última década tem muito mais representatividade negra na mídia, se pensamos em padrões é a mídia que dita. Há mais crianças nesses locais com seus cabelos naturais. Foi também na última década que tivemos a primeira telenovela com um elenco 70% negro [Vai na Fé] nos espaços mais importantes da trama. As crianças atualmente se vêem mais representadas”, finalizou Maryellen.

“Resistir para existir!”

“A população negra resiste a uma série de violações e o nosso cabelo sempre foi alvo de parte dessas violações”, diz Maryellen 

Foto: Reprodução

O diálogo é essencial para a naturalização da autoestima quilombola desde a infância e a educação antirracista é vista pelo movimento como um dos principais mecanismos para enfrentar o racismo estrutural. É dentro da escola, ainda na educação infantil, que as crianças interagem com outras pessoas de fora do círculo familiar, são incentivadas a refletirem sobre diferentes temas e desenvolvem o senso crítico. 

Com a falta de escolas dentro dos territórios, muitas crianças precisam estudar em unidades escolares comuns, que não abordam a questão racial mesmo após a Lei 10.639/2003 tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira.

As Escolas Quilombolas, como a que existe dentro do Quilombo Conceição das Crioulas, ainda devem garantir a implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Nesse caso, nas salas de aula as crianças quilombolas devem contar com uma educação diferenciada, que valorize as práticas do cotidiano dos quilombolas e respeite as especificidades étnico- raciais e culturais de cada comunidade.

É importante que as escolas e profissionais da educação se engajem para combater o racismo estrutural desde a infância com as crianças de todas as cores e raças.

Paralelamente, projetos criados para fortalecer o movimento quilombola trabalham a questão racial e o empoderamento entre estudantes. A Escola Nacional de Formação de Meninas Quilombolas, projeto da CONAQ apoiado pelo Fundo Malala, trabalha diversos temas com jovens quilombolas de todas as regiões do Brasil. O projeto tem encontros virtuais e funciona como um espaço de estímulo e de luta para meninas que enfrentam diversas desigualdades. Juntamente com lideranças quilombolas, as estudantes participam de discussões sobre questões de gênero, combate ao racismo, engajamento na luta política do movimento quilombola, entre outros assuntos.

“A identidade quilombola é constituída dentro do quilombo. O problema é quando saímos e nossos modos são questionados e ridicularizados. Uma criança não tem maturidade para contrapor, sobretudo em um cenário onde não havia referências. Atualmente com os avanços nas discussões sobre a importância dos corpos negros e suas diversidades e a presenças desses nos espaços de exposição da beleza, serve como retaguarda para as crianças e sobretudo, para que os olhares sobre nós sejam menos invasivos e violentos”, afirmou Maryellen Crisóstomo. 

TEXTO

Letícia Queiroz

Jornalista, quilombola, comunicadora popular e ativista antirracista

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Moda e ativismo: dilemas, potências e 4 exemplos de quando vestir foi um ato político

Muito mais do que escolher roupas e seus significados, pensar ativamente a moda, é questionar a indústria na qual ela se transformou

Por Fernanda Damasceno* – 17/06/2024

Se engana quem ainda associe a moda com algo supérfluo, vazio e com pouco significado. Ao longo da história, a moda tem sido uma ferramenta de representação social – coletiva ou individual – que transmite valores e símbolos que refletem visualmente o estado em que a pessoa ou a sociedade se encontra naquele momento.

Com isso, todo o processo de criar, confeccionar e vestir uma roupa acabam por ser atos sociopolíticos e, portanto, devem ser questionados e pensados de acordo com o contexto em que nos encontramos. 

Isso porque a moda evoluiu junto com a sociedade, proporcionando episódios marcantes que mostram que vestir não está nem um pouco distante de militar – ao contrário. 

Não à toa, após as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil e escolheu como um de seus símbolos a camisa verde e amarela da seleção de futebol para exaltar o “nacionalismo” e o “orgulho” brasileiro, usar essa camisa, desde então quem usar essa camisa seja ou não com a intenção de se posicionar politicamente, inevitavelmente poderá ser confundido com um dos seguidores do ex-presidente, mesmo anos depois do ocorrido. Ainda bem que tanto a Madonna quanto à Parada do Orgulho LGBTQIAP+ de São Paulo estão se esforçando para disputar essa peça.

Mesmo assim, muito mais do que escolher roupas e seus significados, pensar ativamente a moda, é questionar a indústria na qual ela se transformou.

Isso porque, estima-se que a indústria da moda seja responsável por cerca de 10% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2), de acordo com estatísticas de um relatório Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

A produção de tecidos, como o algodão, demanda grandes volumes de água e libera produtos químicos tóxicos durante o processo de tingimento, poluindo rios e oceanos. Além disso, a busca por matérias-primas, como a viscose, contribui para o desmatamento de florestas, diminuindo a biodiversidade e intensificando as mudanças climáticas.

Em entrevista para a Escola de Ativismo, a educadora social, ativista e coordenadora de mobilização da Fashion Revolution Marina de Luca, falou um pouco sobre o assunto.

A moda como uma indústria poluente

Resíduos textêis se acumulam em rio l Foto: Greenpeace/Reprodução

A Fashion Revolution se apresenta como “o maior movimento de ativismo da moda do mundo”, e atua através da comunicação, educação, colaboração, mobilização e participação para uma nova consciência a respeito da moda.

“O Fashion Revolution surgiu em 2013, a partir da revolta de um grupo de profissionais da moda”, contou Marina. Para ela, não há separação entre a importância política da moda na sociedade e os questionamentos em como a indústria se encontra atualmente.

“Gostamos de reforçar que a moda não é só a passarela, mas sim a roupa que todas as pessoas usam, dessa forma, todas as pessoas estão envolvidas em um elo da cadeia de produção, consumo e venda” respondeu a ativista.

Atualmente um dos maiores desafios na discussão é combater o fast fashion – modelo de negócio que incentiva o consumo em excesso, tendências que sempre se renovam e ofertas quase intermináveis de roupas a preços baixos são algumas das características da fast fashion, além da produção vestuário em grandes quantidades em pouco tempo, o que traz consequências sérias para o meio ambiente.

Além do problema

Algumas alternativas a isso são os brechós, que reutilizam peças descartadas por outras pessoas, alongando a vida daquele produto e evitando desperdício. Além disso, há também o incentivo ao consumo de pequenos produtores, já que esses geralmente emitem bem menos poluentes do que as grandes lojas.

“Desejamos que a partir da nossa atuação, somada a atuação de outros coletivos, grupos organizados e sociedade civil, possamos de fato fazer a diferença na forma que a moda é feita, usada, descartada e pensada hoje em dia” contou Marina sobre a atuação do movimento Fashion Revolution.

Para além desse exemplo, trouxemos seis momentos em que a moda se mostrou política e nos fez refletir sobre determinado assunto ou sobre o momento em que vivemos.

 

Panteras Negras: o poder do povo também no vestuário

Membros do Partido dos Panteras Negras protestam em frente a um tribunal de Nova York, em 11 de abril de 1969. l Foto: David Fenton

Durante o movimento pelos direitos civis norte-americanos nos anos 60, os Panteras Negras ganharam notoriedade por sua atitude direta e seu modo de vestir: óculos de sol, calças, botas e jaquetas de couro pretas e uma boina preta. 

Além das roupas, o cabelo natural foi muito difundido pelo movimento, como forma também de resistir à imposição racista de esconder ou alisar cabelos crespos. Junto ao black power, sempre havia um pente garfo, instrumento fundamental para cuidar de cabelos crespos, da mesma forma que a escova é usada por quem tem fios lisos ou ondulados.

Dançarinas da cantora Beyoncé durante ensaio l Foto: Instagram/Reprodução

Até hoje o estilo dos Panteras Negras ainda é referência no movimento negro, mas não só: na apresentação da cantora Beyoncé no intervalo do Super Bowl em 2016 ela usou um figurino inspirado pelo cantor Michael Jackson, enquanto suas bailarinas usaram o uniforme do partido antirracista Panteras Negras.

Para a população negra, a moda nunca foi dissociada do ativismo, uma vez que o modo de se vestir pode muitas vezes salvar vidas, evitando ser perseguido ou agredido verbal ou fisicamente. Não à toa muitas pessoas negras, especialmente homens, têm a lembrança de ser ensinados desde criança a sempre estar bem vestidos e arrumados, na esperança de que a roupa certa possa evitar algum episódio de violência por conta da cor de pele.

 

Nunca mais uma moda sem indígenas!

Thelma Assis e Dandara Queiroz foram modelos do desfile de Maurício Duarte. l Foto: Reprodução/Instagram @mauricioduartebrand

Maurício Duarte é um renomado estilista indígena brasileiro que alcançou reconhecimento internacional por suas criações inovadoras que celebram a herança cultural dos povos indígenas do Brasil.

Duarte é conhecido por sua habilidade em combinar tecidos naturais, como algodão, linho e fibras vegetais, com técnicas de tingimento natural e bordados elaborados, resultando em peças que transmitem uma sensação de autenticidade e artesanato.

O trabalho do estilista é uma expressão de sua identidade indígena e um testemunho de sua dedicação à sustentabilidade e à inovação na moda. Suas roupas não adornam os corpos, elas contam histórias de luta, resistência, culturas e representatividade dos povos indígenas, que até hoje lutam contra o genocídio e por mais equidade.

Sua participação no São Paulo Fashion Week de 2023 representou um marco significativo, pois proporcionou uma plataforma que tradicionalmente era fechada somente a certos padrões, mas que vem cada vez mais se movimentando para incluir novas narrativas da moda.

A moda plus size: rompendo padrões e incluindo pessoas diversas

Sinara Assunção para Liana D_Áfrika moda. l Foto: Matheus Clima

Padrões de beleza e questões que antes não eram discutidas ganham holofotes quando a sociedade começa a questionar a falta de representatividade e de opções no mundo da moda para diferentes tamanhos e diferentes corpos. Se antes a magreza exagerada era vista como padrão a ser alcançado, atualmente o culto a dietas milagrosas é questionado e isso se reflete também na moda.

Sinara Assunção, comunicadora, produtora cultural, DJ e modelo de Belém, no Pará, falou conosco um pouco sobre o assunto: “falar sobre a falta de oportunidades para essas pessoas de diferentes corpos é também falar sobre falta de política, falta de letramento, enfim, é falar de um lugar que por muito tempo não nos pertenceu mas que existem pessoas hoje que tem mudado essa realidade”, opina.

Para a modelo, utilizar a própria moda como forma de expressão é demarcar seu lugar enquanto mulher negra, bissexual e gorda “ainda é uma barreira a ser rompida e vem sendo rompida a passos muito lentos, mas acredito que já houveram muitos avanços e é interessante que a gente olhe para eles”.

Moda e no Movimento LGBTQIA+: aliados históricos

Lírio Moraes: “Eu acho que só fui ter uma relação consciente com a moda depois da minha transição” l Foto: Instagram de Lírio Moraes/@hbrpedro

“A moda é mais do que só seguir tendências, só o consumo pelo consumo. Ela também é uma ferramenta de construção de identidade, de ativismo” nos contou Lírio Moraes, jornalista e empreendedor de moda que se identifica como uma pessoa não binária.

Lírio começou a trabalhar com moda em 2019, quando abriu um brechó junto com outros amigos “na época eu via apenas como um meio de desapegar de algumas peças que eu não usava mais e conseguir uma grana extra com isso. Mas depois da minha transição, que ocorreu de fato em 2020, eu passei a enxergar essa questão de forma mais política.”

E ele não está sozinho. A moda sempre foi uma grande aliada do movimento LGBTQIA+, servindo muitas vezes de vitrine para o rompimento que essa comunidade propõe trazer para a sociedade.

Isso também tem sido visto pelas empresas, já que algumas marcas têm lançado coleções específicas ou colaborações em apoio à comunidade LGBTQIA+, com parte dos lucros muitas vezes revertida para apoiar as causas da comunidade.

Lírio contou que durante boa parte da vida não teve uma boa relação com a moda, se sentido “desconfortável” com as roupas que vestia “eu acho que só fui ter uma relação consciente com a moda depois da minha transição.”

Em outras palavras, ele conta que “enquanto pessoa não binária a moda foi e ainda é a ferramenta principal na construção da minha identidade”. Durante a entrevista, o jornalista reforçou que a construção de sua autoestima vem se dando juntamente com a construção de seu estilo de se vestir, além da consciência de uma moda mais sustentável, pauta que lhe atravessa por conta de seu brechó: “a política é essencial nesses processos, para que a gente tenha uma moda pensada para corpos e estilos diversos, mais acessível e para estimular o consumo consciente”.

Vestir-se pode ser mais do que apenas uma decisão estética ou prática – pode ser um meio de expressar identidade, valores e posicionamento político. Pode ser a maneira com que pessoas consigam fazer as pazes com a própria identidade, ou também questionar a própria moda em si e desafiar padrões estéticos impostos por ela. Vestir-se sempre é político, e pode também ser um ato de dizermos ao mundo a mudança que queremos.

*Fernanda Damasceno é jornalista, produtora de conteúdo e de audiovisual. Entusiasta de artes visuais e de moda, adora escrever sobre meio ambiente e Amazônia.

De olho na COP 30: uma conversa sobre cultura, imaginação, sonho e revolta

Por Vitória Rodrigues – 12/06/2024

 

 

Encontro no Rio de Janeiro debate intersecção entre cultura, indústrias criativas e a crise climática

Foto: The People’s Palace Projects

No ano passado, pela primeira vez, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) contou com um pavilhão dedicado exclusivamente para as áreas de Entretenimento e Cultura. Com doze dias de programação, o pavilhão dedicou-se a olhar qual é o papel da cultura no combate à crise climáticas.

De olho na importância da cultura e do clima pensando na primeira COP que o Brasil receberá na história, em Belém (PA), em 2025, na última sexta-feira (07), houve um encontro no Rio de Janeiro para discutir as intersecções entre cultura, clima e incidência internacional.

O encontro, realizado pela People’s Palace Projects do Brasil, em parceria com o Perifalab, recebeu Andrew Potts, advogado especializado em políticas culturais, sobre os esforços internacionais para colocar a arte, a cultura, o patrimônio e as indústrias criativas no centro das políticas climáticas da COP.

Imaginação e sonho

A conversa foi mediada pela ativista climática, comunicadora e produtora cultural Marcele Oliveira, que já escreveu por aqui sobre seu interesse em fazer arte e cultura andarem lado-a-lado com a justiça climática. Marcele, diretora executiva do Perifalab, também é co-fundadora da Coalizão O Clima É De Mudança e Jovem Negociadora pelo Clima.

Para ela, é imprescindível manter três ideias-chave: mudança, revolta e sonho. “A imaginação é chave, porque raramente as pessoas se dispõem a sonhar com um presente justo”, complementou o advogado Andrew Potts, da Climate Heritage.

Se imaginar é arriscado, viver uma realidade que seja boa, justa e de qualidade parece distante. Para Andrew, “a nossa vida é tão enraizada nesta cultura do petróleo, que certas vezes soa assustador viver em um mundo que não é assim. Como você viveria numa cidade carbono zero? O que você comeria, como você se locomoveria?”

E como imaginar uma cultura sem isso? No Brasil, por exemplo, a exploração de recursos naturais não renováveis financia uma parte significativa da produção artística e cultural.

Neste ano, por exemplo, o edital Petrobras Cultural destinou R$250 milhões a projetos artísticos por meio de incentivos fiscais da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. A última chamada do Instituto Cultural Vale 2024 destinou R$ 30 milhões para patrocínios a projetos de todo o Brasil.

“No contexto capitalista, a gente tem uma política cultural dependente de empresas petroleiras, mineradoras, a gente tem uma política climática dependente de países que são exploradores, que colonizaram. A caneta, o dinheiro ainda está na mão de quem causou o problema. E aí, quando eu penso em capitalismo, em enfrentamento, em ecossocialismo radical, eu penso que é fazer essa denúncia de forma escalonada, então não é só numa pequena conversa, sabe?”, provoca Marcele.

“Se não tiver o dinheiro da petroleira, então qual é o dinheiro que vai financiar a cultura? Se não tiver a caneta na mão desse país, que não está nem um pouco comprometido, como que a gente faz o Sul Global crescer? É sobre influência para tomar as próprias decisões. São perguntas que não estão prontas, mas que nos guiam para enfrentar o capital”, disse Marcele.

Andrew Potts, Marcele Oliveira e Mayra Mota l Foto: The People’s Palace Projects

E os grandes espaços de produção de entretenimento também têm a sua responsabilidade. Ela disse que gostaria de convidar os produtores de grandes eventos, donos e gestores de casas, museus e espaços de cultura para uma grande roda. Nela, convocaria essas pessoas a incluir pauta climática e conscientização no escopo de nossas curadorias, nas informações que estão propagadas nos espaços de grande circulação de público.

De olho na COP

E se o caminho para a vitória política da cultura na COP30 começa com mobilizações como essa, é preciso olhar com certa crítica o que foi feito até agora. Para Andrew, o que é construído hoje nas Conferências “não leva em consideração as construções históricas e o colonialismo, além de ignorarem os facilitadores para soluções sociais e locais.”

Dentro das políticas desenvolvidas pelos países, muitas vezes só há um foco especial para o combate da crise climática através de um olhar que pensa o mundo da tecnologia e das finanças, mas acaba-se deixando de lado a cultura e os atores sociais. O advogado do Climate Heritage ainda complementa dizendo que é uma crise antropogênica, causada por determinados setores da sociedade e que é agravada pela população a partir de uma cosmovisão imposta.

Para Marcele, é urgente conectar a discussão para pensar em soluções que as periferias e as comunidades originárias e tradicionais essencialmente estão fazendo. “É respeitar a história, memória e patrimônio e usar essa mesma história, memória e patrimônio para construir narrativas.”

As narrativas construídas por produtores de arte e cultura na COP sempre estiveram nas conferências, na opinião de Andrew. Elas só precisam ser amplificadas e levadas mais a sério. Apenas no ano passado foi criado o ‘Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura’, co-presidido pela Ministra da Cultura Margareth Menezes.

Mesmo com avanços da criação do Pavilhão de Clima e Entretenimento, além da criação do Grupo de Amigos, a cultura precisa estar oficialmente dentro de uma estratégia para ações climáticas. Mas ainda assim, a cultura nunca foi mencionada nos documentos oficiais da COP.

Andrew, que acompanha os debates e as negociações com afinco, lembra que é preciso de muito mais. “Líderes e políticos se apresentaram lá dentro [do pavilhão], como o Michael Regan, da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Mas quando ele atravessou a rua e entrou no Pavilhão Azul (de negociação) votou contra a inclusão de cultura dentro do debate de mudanças climáticas.”

As mudanças climáticas já estão acontecendo e exterminando territórios, memórias e construções de culturas ao redor do mundo inteiro. É necessário garantir que a sociedade civil não esteja apenas protestando dentro das suas delimitações em conferência, mas que tenha, também, o poder de decisão para decidir os rumos de um mundo que a cada dia é mais destruído em nome do lucro e da exploração. 

Enquanto se financia a cultura, acaba-se com ela. Até quando essa atividade poderá ser realizada por grandes empresas? Até que ponto atividades que não se enxergam como conectadas ao clima poderão ser executadas? 

Sem possibilidades de vida, não há chance de sobrevivência, de clima e de cultura.

Fake news sobre chegada de Starlink no Vale do Javari promovem racismo anti-indígena

Povo Marubo, do Vale do Javari, no Amazonas, se defende de comentários discriminatórios e desrespeitosos após viralização de manchetes falsas sobre uso indevido da internet.

Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo – 12/06/2024

Instalação de uma antena Starlink na aldeia Ararimba, no Amapá l Foto: Conexão Povos da Floresta/Reprodução

Nos últimos 21 meses, a Starlink, a provedora de internet de baixa-orbitagem do bilionário Elon Musk, chegou na Amazônia trazendo internet de alta velocidade por um preço acessível onde antes era impossível. Já são mais de 66 mil assinaturas na região amazônica, muitas em povos de recente contato ou em regiões remotas. As transformações causadas pela chegada do serviço são profundas e ainda estão sendo entendidas por povos indígenas e tradicionais.

Mas a forma discriminatória e exótica de enxergar os povos indígenas associada à disseminação de fake news ganhou força nos últimos dias desde que viralizou a notícia falsa sobre o impacto negativo do uso da internet no Vale do Javari, no Amazonas. 

A notícia original, veiculada no The New York Times tinha como título “The Internet’s Final Frontier: Remote Amazon Tribes”, na tradução para o português “A fronteira final da Internet: tribos remotas da Amazônia”. O uso do termo “tribos” já é questionado por povos originários tanto no Brasil, quanto mundo afora, preferindo “aldeias”, “territórios indígenas” ou “povos”. O termo usado pelo jornal estadunidense inclusive ecoou nos veículos brasileiros.

Após a publicação da matéria, o texto foi distorcido por sites brasileiros que afirmavam que os jovens Marubos estariam viciados em pornografia e em jogos online violentos, deixando de lado suas tradições. A comunidade e o jornalista Jack Nicas, que escreveu a matéria internacional, negam e desmentem as manchetes. O jornalista pediu: “Por favor, parem de compartilhar essa mentira”

“Dezenas de sites agregaram nossa matéria sob uma manchete que diz falsamente que o povo Marubo rapidamente tornou-se viciado em pornografia. Muitos desses sites usaram fotos do povo Marubo. Fizeram vídeos, memes. A coisa está feia. Os Marubo não são viciados em pornografia e a matéria nunca disse que eles eram”, afirmou o jornalista Jack Nicas no X, antigo Twitter. 

O povo indígena também nega. A Rede de Estudantes Indígenas do Vale do Javari divulgou uma nota de repúdio às declarações.

“Essas afirmações são não apenas infundadas, mas também desrespeitosas e discriminatórias. Elas perpetuam estereótipos negativos sobre os povos indígenas e ignoram a complexidade das questões que envolvem a introdução de novas tecnologias em suas comunidades. O acesso à internet, tem o potencial de proporcionar inúmeras vantagens, como o fortalecimento da educação, a melhoria dos serviços de saúde, a promoção da cultura indígena e a facilitação da comunicação entre aldeias distantes uma da outra, bem como se comunicar com reuniões importantes que acontecem fora da Terra Indígena Vale do Javari. Repudiamos a postura paternalista e preconceituosa implícita nessas declarações, que desconsidera a autonomia dos jovens indígenas do Vale do Javari, e sua capacidade de gerir o uso das tecnologias de acordo com suas necessidades e valores culturais”, afirma a nota.  

Matéria do New York Times foi usado como combustível para racismo anti-indígena l Foto: Google/Reprodução

As lideranças reconhecem a importância da introdução da internet e da conectividade. A Rede de Estudantes Indígenas do Vale do Javari condena qualquer tentativa de desviar o foco das verdadeiras questões que afetam os povos do Vale do Javari, como a falta de políticas públicas eficazes, a invasão de territórios por atividades ilegais e a precariedade dos serviços básicos de saúde e educação. “Estas são as questões que devem ser tratadas com urgência e seriedade pelas autoridades competentes, bem como veículos de informações”.

Mesmo desmentindo, portais e páginas brasileiras de grande repercussão, incluindo os de alcance nacional mantiveram as publicações, mostrando a falta de interesse com a verdade e com o bem-estar e saúde mental dos povos indígenas. Os textos chamam atenção pela forma exótica e estereotipada como os indígenas ainda são vistos. 

O jovem Denilson Pixi Kata Matis é indígena do povo Matis, na região do Vale do Javari. Ele informou que antes da chegada da internet, as comunidades se comunicavam através de rádio, que era ligado em hora em hora.

“Às vezes o rádio não tem uma boa comunicação. Não dá para ouvir direito. Então, era muito ruim essa questão da comunicação entre eles. Como a internet possibilita fácil acesso de informações e envio de mensagens rápidas, os líderes quiseram instalar. Então a chegada de Starlink nas aldeias foi boa, está sendo boa, na verdade. Porque melhorou a comunicação entre os familiares, da comunidade para a cidade, dos municípios de perto, até as cidades distantes. E também melhorou a questão da informação, da saúde, o contato com a SESAI [Secretaria de Saúde Indígena]. É mais fácil agora trocar conversa e falar: ‘está acontecendo isso’”.

O jovem falou que também é possível saber, sem interferências, sobre o que está acontecendo em outros países. “Não precisa outra pessoa do município comunicar sobre o que está ocorrendo ao redor do mundo. É possível saber de tudo morando na aldeia”.

A disseminação da notícia falsa nos últimos dias trouxe consequências ao povo, que tenta se defender das acusações. Após a onda de fake news, as famílias começaram a ser tratadas de forma desrespeitosa. “As informações falsas foram vazadas e colocadas fora de contexto. O New York Times, fala uma coisa e a mídia brasileira fala outra. Não existe vício ou dependência de internet. Têm a hora para ligar e a hora exata de desligar, tudo controlado pelos líderes. A comunidade vê tudo isso de uma forma maldosa. Estão com aquela sensação de querer falar para o mundo que isso não é verdade. Estão querendo sujar o nome do Vale, sujar o nome do povo”, disse Pixi Kata.

É possível pensar em uma transição energética popular? Uma experiência brasileira diz que sim

Por Bárbara Poerner – 29/05/2024

 

 

Conheça o Veredas Sol e Lares, uma usina fotovoltaica localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, proposta pelo Movimento Atingidos por Barragens e parceiros, e desenvolvida com protagonismo das comunidades em todas as etapas

Metodologia participativa baseou o processo de construção e implementação da usina l Foto: MAB/Divulgação

No dia oito de março de 2018, Aline Ruas marchou ao lado de mais de 300 mulheres no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, reivindicando que “mulheres, água e energia não são mercadoria”. Naquele dia, uma conquista foi alcançada: o Governo do estado mineiro assinou um termo de cooperação técnica para a execução do Projeto Veredas Sol e Lares.

O Veredas Sol e Lares é uma usina solar fotovoltaica (USFV), construída sobre o lago da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Marta, que estava operando com baixíssima capacidade. Localizada no Vale do Jequitinhonha, semiárido de Minas Gerais, a região concentra intenso conflito fundiário relacionado à exploração de eucalipto e lítio.

Aline, uma das coordenadoras do Movimento Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais, conta que o movimento “elaborou um projeto que propusesse ao Estado brasileiro uma metodologia popular e participativa, na qual a energia possa realmente ser pensada através do povo, com o povo e para atender às demandas do povo”.

Atingida pela barragem do Calhauzinho, no município de Açude, ela explica que a geração da energia da usina, que começou a operar oficialmente no final de 2023, será destinada a 1.250 famílias atingidas, de 21 municípios do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo. Serão aproximadamente quatro mil pessoas diretamente beneficiadas. 

Hoje, a Usina integra o Plano de Recuperação e Desenvolvimento de áreas e territórios atingidos por barragens no Vale do Jequitinhonha. Além do MAB, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS) foi uma das proponentes; Efficientia S.A. e CEMIG (companhia de energia elétrica de Minas Gerais) estão como financiadoras; e PUC Minas e Axxiom Tecnologia e Inovação como parceiras executoras.

Como continuidade da agenda, foi criada, em 2022, a Associação dos Consumidores de Geração Distribuída de Minas Gerais – Veredas Sol e Lares, focada na gestão popular e social da Usina. É um modelo participativo que visa garantir o caráter do projeto e garante o título de “maior associação da América Latina de geração de energia distribuída”, afirma Aline.

A usina em ação l Foto: Arquivo/Reprodução

Energia popular = participação popular

Um dos ineditismos do Veredas Sol e Lares é centralizar o povo no processo. Mais do que um projeto energético, a iniciativa é uma experiência de desenvolvimento comunitário, no qual foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina. 

Tudo isso foi feito com metodologias integrativas, pois, para Aline, “não adiantava pensar em uma geração de energia solar em que o povo não fosse protagonista. Não trata-se de chegar e dar para o povo, é chegar e construir com ele”. 

Uma das estratégias foi incluir o Instituto Federal Campos Araçuaí (MG), Instituto Federal Campos Salinas (MG), algumas escolas, famílias agrícolas e jovens dessas instituições e de comunidades próximas para que eles se tornassem pesquisadores populares.

Tais pessoas eram responsáveis por ir a campo, fazer pesquisas, desenvolver a metodologia, dialogar com a população e articular com os outros pesquisadores das universidades parceiras. 

“Essa é uma ideia de participação onde o povo, que já conhece os seus problemas, também pode apontar soluções científicas, juntar, sistematizar e elaborar propostas de como é que ele quer esse desenvolvimento não para atender os interesses somente de fora”, continua Aline. 

Maria Aparecida, conhecida como Cida, foi uma das pesquisadoras populares em Virgem da Lapa (MG). Ela começou a participar do MAB em 2016, à convite de uma vizinha, e, desde então, integra o núcleo local do movimento. Durante a construção do Veredas, a militante compartilha que os pesquisadores “espalharam-se pelas comunidades, buscando aprender mais sobre os problemas, acesso e qualidade da energia”. Segundo ela, o aprendizado fortaleceu sua capacidade de interlocução com seu território.

“Elucidar”, inclusive, têm sido um dos principais verbos conjugados no Veredas Sol e Lares. Foram feitos estudos das contas de energia, apresentados para os cidadãos dos municípios, além de rodadas de formações e explicações sobre a tarifa social de energia elétrica. A coordenadora explica, com isso, que “o povo entendeu o que são aqueles números, o que é imposto, o que é ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação) e o que ele realmente está pagando”.

Um percalço enfrentado, contam Aline e Cida, foi o hiato que o projeto sofreu em 2020. À época, o Governo de Minas Gerais, gerido por Romeu Zema, congelou as obras e o desenvolvimento da Usina. Depois de lutas e articulações do MAB e outras entidades envolvidas, o empreendimento voltou a construção. “É muito inovador e, ao mesmo tempo, desafiador para todos os envolvidos. A CEMIG teve que buscar soluções também. A proposta que tínhamos era algo que não existia e não existe ainda”, continua Aline.

reunião em cooperativa

O Veredas Sol e Lares dá pistas de como conduzir uma agenda de enfrentamento à crise climática que contemple os direitos territoriais l Foto: Veredas Sol e Lares/Reprodução/Via Flickr

Pílula de mudança

A geração de energia fotovoltaica no Brasil está crescendo, O modelo centralizado, que é composto de grandes parques solares, já tem 18 mil usinas solares instaladas nacionalmente, capazes de produzir uma potência de 10,3 GW. Entre janeiro e setembro de 2023, houve o maior incremento da capacidade de geração solar centralizada da história no país, e ainda são previstos investimentos históricos no recurso.

Contudo, investir e construir mais parques solares não significa, necessariamente, uma transição energética. Tampouco implica justiça climática. Segundo Aline, é necessário perguntar, “para além da tecnologia, quem essa tecnologia vai atender?”.

A realidade dos dados, depoimentos e vivência de comunidades revelam que os empreendimentos energéticos de matriz renovável (hidrelétricas, eólicas ou fotovoltaicos) configuram violações territoriais e ambientais e agravam ainda mais a desigualdade social sob a escusa do desenvolvimento. Só em 2022, a Caatinga teve 4 mil hectares destruídos para a produção de energia gerada pelo sol e vento. O bioma, um dos mais eficientes em capturar carbono, sofre cada vez mais com processos de desertificação.

Embora o Brasil seja signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afirma que os povos tradicionais devem ser consultados previamente sobre esse tipo de projeto, que tem impacto direto em seus territórios, isso não é experienciado na maioria dos grandes projetos energéticos.

Por essa razão o impacto do Veredas Sol e Lares pode ser medido em números, mas também em práxis: os GW gerados que diminuem o valor das contas de luz dos moradores soma-se à experiência de lançar ao mundo uma pílula da transição energética justa e popular, dando pistas de como conduzir uma agenda de enfrentamento à crise climática que contemple os direitos territoriais, às demandas do povo e sua escuta ativa.

Um exemplo, citado por Aline, é a comunidade de Beril. A partir do Veredas, o território conseguiu ter acesso à energia elétrica no final de 2023. “Trata-se do acesso à energia solar, ao direito de se ter energia, e energia com preço justo”, defende a coordenadora do MAB MG. 

Ainda, há poucas semanas, Cida recebeu uma ligação de uma colega falando que, finalmente, iria conseguir adquirir um ventilador. “Em janeiro, [essa atingida] pagou R$ 300 de conta de luz. Esse mês, ela já teve o desconto [devido a USFV]. Ela falou para mim que, por isso, vai conseguir comprar um ventilador”, relembra a militante, ao destacar como o Veredas Sol e Lares também reduz a pobreza energética.

“Faz-se necessário pensar em uma proposta de desenvolvimento que não retire mais terras do povo. O Veredas é um pedacinho de um exemplo de uma proposta do projeto energético popular para o Brasil. Uma experiência, que se ampliada, com o povo e o meio ambiente no centro do debate, vamos estabelecer outra lógica de energia”, finaliza Aline.

Aquilombar: mobilização reúne comunidades quilombolas para exigir direitos e fortalecer tradições ancestrais 

Saiba como foi o encontro de luta, articulação e fortalecimento quilombola; estudo divulgado aponta que 98% das comunidades sofrem ameaças

Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo – 17/05/2024

Deslize para o lado para conferir fotos do evento. l Fotos: Thaiane Miranda/CONAQ

A resistência, a diversidade e as culturas dos quilombos de todo o Brasil ocuparam Brasília (DF) durante o II Aquilombar. Com o tema “Ancestralizando o Futuro”, o evento foi realizado nesta quinta-feira (16) para juntar vozes, reivindicar direitos, exigir segurança e justiça e promover a valorização das tradições quilombolas.

O evento organizado pela Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) está na segunda edição e é a maior mobilização quilombola do Brasil. Comunidades de todas as regiões e biomas formaram caravanas e participaram das discussões e manifestações. Ministros, secretários de governo e presidentes de pastas estiveram no evento e ouviram as demandas das comunidades.

Entre as principais pautas dos quilombolas está a necessidade de titulação dos territórios e de segurança de lideranças que defendem seus lugares ancestrais. 

De acordo com um estudo inédito divulgado nesta quinta-feira pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a CONAQ, mais de 98% dos territórios quilombolas estão ameaçados no país. A pesquisa traz diagnóstico sobre o impacto de obras de infraestrutura, requerimentos minerários e sobreposições de imóveis rurais nos territórios quilombolas. 

Durante o ato, lideranças quilombolas denunciaram e cobraram Justiça por quilombolas assassinados por conta de conflitos. “Muitos não estiveram aqui no Aquilombar porque tombaram por conta da luta pelo território ancestral”, disse emocionada Selma Dealdina Mbaye.  

O encontro contou também com oficinas de trança e dança, atendimento jurídico, espaço quilombinho (para crianças), rodas de conversa e feira temática quilombola com barracas para comercialização de itens produzidos nas comunidades.

Crise climática ampliará desigualdade política e impactará democracia, diz especialista

Crise climática ampliará desigualdade política e impactará democracia, diz especialista

Em entrevista, Graziela Souza, do Instituto Clima de Eleição, analisa o novo cenário imposto pela crise climática e suas consequências para as elieções e a democracia

Crédito: Montagem sobre foto de Graziela Souza/Arquivo Pessoal

O ano de 2023 foi o ano mais quente já registrado na história da América Latina. O Brasil teve um recorde de eventos climáticos extremos: foram 12, segundo dados da ONU. No mesmo ano, mais de 26 milhões de pessoas foram deslocadas por emergências relacionadas ao clima. E agora, todos os olhares estão virados para o Rio Grande do Sul, onde já são contabilizados 148 mortos e 124 desaparecidos. Há muito que poderia ser feito para evitar e mitigar o que estamos vivendo. Mas mais importante: há muito o que fazer. Ainda mais em um ano de eleições.

Por isso, a Escola de Ativismo foi conversar com Graziela Souza, cientista social, mestre em Ciência Política pela UERJ e coordenadora de relações governamentais no Instituto Clima de Eleição. Ela explicou que historicamente a pauta climática foi negligenciada por lideranças políticas, mas também porque o próprio eleitorado não mobilizou votos pela questão ambiental. “É como se no Brasil o clima e o meio ambiente fossem questões de ‘segunda ordem’, onde precisaríamos resolver uma série de problemas mais urgentes antes”, disse Graziela.

Ela explica que as consequências das mudanças climáticas acentuarão todos os tipos de desigualdade e injustiça, incluindo a política. E pontua que é preciso avaliar atentamente a postura dos candidatos e tomar cuidado com o greenwashing, principalmente extrema direita, já que a narrativa do negacionismo climático ainda é forte e um inimigo a ser combatido, e provavelmente estará bastante presente no período eleitoral. Mas acredita: “Ainda é possível termos um Brasil engajado pelo clima”.

“Podemos começar investindo na conscientização sobre a transversalidade da questão ambiental. Muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, já estão sofrendo com os impactos das mudanças climáticas. No entanto, nem sempre é fácil fazer a associação entre problema e solução de forma imediata. Por isso, é importante reforçar continuamente que os desastres “naturais” têm uma razão por trás deles: o modelo produtivo baseado no carbono, que beneficia alguns bilionários enquanto sacrifica todo o restante da população.” 

Leia a entrevista completa:  

Escola de Ativismo: Pela falta de recursos e planejamentos, podemos afirmar que toda a destruição RS e demais localidades afetadas pelas chuvas é culpa da falta de políticas públicas? Houve negligência dos representantes eleitos? O que eles deixaram de fazer?

Graziela Souza: Com certeza! As pessoas tomadoras de decisão devem ser responsabilizadas pelo aumento do impacto de eventos climáticos extremos, pois o Brasil dispõe de sistemas de monitoramento climático eficazes, como o CEMADEN, o METSUL e a AGAPAN, que podem alertar os governantes sobre anormalidades climáticas. No entanto, muitas vezes, pesquisadores, organizações da sociedade civil e movimentos sociais que alertam as lideranças políticas sobre as mudanças climáticas são tratados como “profetas do caos”.

O poder público gaúcho, tanto o Executivo quanto o Legislativo, deveria compreender melhor a vulnerabilidade climática histórica do Rio Grande do Sul. O Estado historicamente sofre com cheias de rios, e nos últimos anos tem sido assolado por enchentes recorrentes, como em 2020, 2021, 2022, 2023 e agora em 2024. Diante dessa realidade evidente, é crucial implementar políticas de adaptação climática para preparar o Rio Grande do Sul para o aumento das chuvas, deslizamentos de terra e ciclones. No entanto, em vez de fortalecer as legislações ambientais, a estratégia predominante de tomadores de decisão gaúchos tem sido flexibilizá-las, o que contraria a urgente necessidade de proteger o Estado contra os impactos das mudanças climáticas.

EA: As eleições deste ano são em nível municipal, mas é inegável o impacto que os eventos climáticos extremos estão tendo na opinião pública. Como você enxerga que a crise climática aparecerão nas eleições nesse ano? E para 2026? 

GS: Arrisco a dizer que, devido às enormes consequências das mudanças climáticas e seu impacto doloroso na população, a pauta climática vai mobilizar mais votos nas duas eleições, mesmo nas municipais – ao menos, esse é o nosso desejo.

A temática das mudanças climáticas deve aparecer, mas não necessariamente de forma positiva. Portanto, é preciso avaliar atentamente a postura da direita, já que a narrativa do negacionismo climático ainda é forte e um inimigo a ser combatido, e provavelmente estará bastante presente no período eleitoral. Além disso, é necessário estar atento às candidaturas que se apoiam no greenwashing, que tentam mascarar ações superficiais como se fossem esforços reais de sustentabilidade. 

EA: De que forma a crise climática impacta na possibilidade de termos uma democracia real? É possível sequer falar em democracia sem mitigação e justiça climática?

GS: Não será possível discutir qualquer assunto sem medidas de mitigação e justiça climática imediatas, pois já estamos atrasados.

Falando especificamente sobre democracia, as consequências das mudanças climáticas acentuarão todos os tipos de desigualdade e injustiça, incluindo a política. Quando grupos sociais já vulneráveis se tornam ainda mais vulneráveis, a política tende a se tornar ainda mais elitista e desconectada da realidade.

EA: O que os eleitores devem considerar ao escolher candidatos nas próximas eleições?

GS: Há muitas coisas a serem consideradas. Principalmente, é necessário avaliar se os planos de governo e os mandatos incluem uma defesa explícita de medidas de adaptação e mitigação, considerando o contexto dos territórios e das comunidades mais vulneráveis. Além disso, é crucial estar atento ao greenwashing, que pode mascarar ações ineficazes ou superficiais sob a aparência de sustentabilidade.

EA: Se alguém quer escolher um candidato tendo em vista a questão ambiental, mas não sabe bem como começar, que discursos e as pautas devem ser mais observados? Por onde começar? Os partidos políticos, ideologias e concepções dos candidatos também devem ser considerados? Por que?

GS: Se alguém quer escolher um candidato tendo em vista a questão ambiental, mas não sabe bem por onde começar, deve observar alguns aspectos fundamentais:

Discursos e Pautas: Em primeiro lugar, é importante avaliar as ideologias de candidaturas. Deve-se excluir candidaturas negacionistas e desenvolvimentistas, ou seja, aquelas que negam as mudanças climáticas ou que consideram o desenvolvimento econômico mais importante do que o meio ambiente. 

Planos de Governo e Mandatos: Avalie os planos de governo e os mandatos das candidaturas. O conhecimento sobre as vulnerabilidades climáticas do município que a liderança representará é essencial. Discursos e planos genéricos devem ser rejeitados. A candidatura deve demonstrar um entendimento claro das especificidades climáticas do Município, quais são seus problemas climáticos, quais legislações já foram aprovadas e quais ainda necessitam de aprovação.

Participação Social: Considere se a liderança fala abertamente sobre a participação social. Uma candidatura comprometida com a questão climática deve incentivar e valorizar a participação ativa da comunidade nas decisões políticas.

Reeleição: Se a liderança está buscando reeleição, avalie o histórico de suas ações. Verifique quais projetos climáticos foram propostos ou implementados durante seu mandato anterior. Renovação política é quase sempre boa, mas, muitas vezes, lideranças climáticas extremamente competentes não conseguem a reeleição. 

Partidos Políticos: Embora partidos de direita tendam a ser menos receptivos à questão ambiental, essa dinâmica pode variar no nível municipal. No entanto, infelizmente, a pauta climática ainda é mais associada a partidos de centro-esquerda e esquerda. É importante considerar essa tendência ao avaliar os candidatos.

Diversidade de Gênero e Raça: A diversidade de gênero e raça também deve ser considerada. A política institucional é dominada por homens brancos e a eleição de mulheres, negros, indígenas e quilombolas coloca no centro da tomada de decisão os grupos sociais que estão na linha de frente do impacto das mudanças climáticas. 

EA: Porque será que muitos políticos e eleitores insistem em não levar a sério a crise climática? 

GS: Historicamente a pauta climática foi negligenciada por lideranças políticas porque o próprio eleitorado não mobilizou votos pela questão ambiental. É como se no Brasil o clima e o meio ambiente fossem questões de “segunda ordem”, onde precisaríamos resolver uma série de problemas mais urgentes antes.

Em razão disso, ainda há muito a ser feito. Primeiramente, é necessário demonstrar ao eleitorado a transversalidade da questão ambiental. Como estamos observando, as consequências das mudanças climáticas se manifestam de diversas formas: aumento da pobreza, maior vulnerabilidade de pessoas — especialmente mulheres, indígenas e a população negra —, fome, impacto na economia, encarecimento e escassez de alimentos básicos, afastamento de crianças da escola e do lazer, piora na saúde mental e, sobretudo, morte de pessoas. É fundamental ressaltar essa transversalidade e tratar a pauta climática como prioritária, pois o clima é tudo e impacta em tudo.

EA: Na visão de vocês, porque a extrema-direita segue combatendo de forma tão ativa a questão das crises climáticas?

GS: O principal objetivo da extrema direita é manter o status quo, ou seja, garantir a continuidade do modelo de produção capitalista baseado na emissão de carbono. Por outro lado, os movimentos ambientalistas e de justiça climática lutam contra esse modelo, buscando sua substituição por práticas mais respeitosas com o meio ambiente.

O paradoxo é que, se a extrema direita não se opuser a esse modelo de produção, não haverá futuro para ela, pois a degradação ambiental causada por esse sistema afetará a vida no planeta como um todo. A grande questão é que quem mais sofre com os impactos das mudanças climáticas não é quem mais emite e polui. 

EA: No caso do RS, podemos trocar “desastre natural” por qual termo/nomenclatura?  

GS: Omissão governamental climática

EA: O que nossos candidatos precisam nos apresentar como soluções para grande volume de chuva, seca e outras variáveis extremas do clima?                                                    

GS: Para lidar com o grande volume de chuvas, secas e outras variáveis climáticas extremas, as candidaturas precisam apresentar soluções concretas. Isso inclui a elaboração ou aperfeiçoamento dos planos municipais de adaptação e mitigação. Esses planos devem começar com um diagnóstico climático detalhado do município, identificando as vulnerabilidades específicas de cada bairro. Com base nesse diagnóstico, devem ser definidas ações prioritárias urgentes a serem implementadas. Essas ações devem ser elaboradas com base nos territórios já afetados, considerando as características locais e as principais vulnerabilidades das comunidades.

EA: Como ajudar, nesse momento, as pessoas afetadas pela falta de políticas ambientais?

GS: Os refugiados climáticos precisam de ajuda urgente. Apoiar vaquinhas organizadas por organizações ambientalistas, indígenas e quilombolas pode ser uma solução imediata. No entanto, é essencial que esse esforço seja contínuo e consolidado através do voto em candidaturas comprometidas com o clima.

EA: De que forma é possível que ativistas cobrem e pressionem candidatos para pautarem a questão das mudanças climáticas? 

GS: Ativistas podem cobrar e pressionar candidatos para pautarem a questão das mudanças climáticas de várias maneiras. Uma abordagem eficaz é por meio de iniciativas como a nossa no Clima de Eleição, que investe na formação de candidaturas e qualifica o debate público sobre o clima durante os períodos eleitorais. O engajamento contínuo é fundamental, envolvendo diversos atores e esforços colaborativos. O primeiro passo é garantir que as candidaturas reconheçam a pauta climática como uma demanda do eleitorado, pois isso é o que mais mobiliza. Para as lideranças já eleitas, é importante combater a narrativa de que os desastres climáticos são eventos naturais e a-políticos. É crucial que os tomadores de decisão sintam que negligenciar as políticas climáticas afeta diretamente a percepção do eleitorado sobre sua gestão.

EA: Ainda é possível termos um Brasil engajado pelo clima? Por onde começar?

GS: Sim. Podemos começar investindo na conscientização sobre a transversalidade da questão ambiental. Muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, já estão sofrendo com os impactos das mudanças climáticas. No entanto, nem sempre é fácil fazer a associação entre problema e solução de forma imediata. Por isso, é importante reforçar continuamente que os desastres “naturais” têm uma razão por trás deles: o modelo produtivo baseado no carbono, que beneficia alguns bilionários enquanto sacrifica todo o restante da população.

Devemos ter cuidado com discursos negativos e sempre oferecer possibilidades em nossas falas, destacando que a mudança é possível e urgente. 

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