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Foto: Tiriri Rayo/Cortesia

O que pode um corpo em retomada?

Raquel Kariri* refaz os rastros de uma mulher cabocla em retomada para propor um antídoto para memoricídio e um caminho para o reencantamento das palavras

Há um toré do povo Kiriri, habitante do território conhecido por Bahia, que diz assim: 

“Naquela mata tem uma pedra que abalei. Abalei, vou voltar abalar. Sou eu, índio caboclo índio, eu vim da mata para trabalhar”. 

Nesses anos de retomada me sinto assim, abalando diversas pedras que foram alicerçadas dentro e fora do meu espírito para me afirmar uma “índia cabocla índia”. Acho muito bonito que no toré os parentes se afirmam três vezes, afinal, para um bom encanto funcionar, as palavras tem que acompanhar a força da intenção. 

Uma das coisas mais bonitas das retomadas no Nordeste é a ressignificação da identidade “cabocla”, antes sinônimo de apagamento étnico, hoje é signo de força e resiliência nativa de quem se mantém alegre e tenaz na defesa de sua ancestralidade. 

Bastante presente no vocabulário das gentes das zonas rurais, a caboclagem segue firme no propósito de dar de ombros às categorias raciais criadas pela colonização. Se inventa, reinventa, hackeia e come tudo com farinha na hora do almoço. 

Gosto de me pensar como uma mulher cabocla, uma mestiça como o milho crioulo multicolorido que nasce dos andes à Chapada do Araripe. Uma mestiza  “tenaz, firmemente amarrada às cascas de sua cultura”, como disse certa vez a cabocla Glória Anzaldúa. Ela também compartilhava essa experiência de pertencimento, de estar agarrada “ao sabugo como os grãos; com caules grossos e raízes fortes”. Essa experiência do espírito que a gente tenta traduzir em palavras, emerge em meu corpo como uma uma vasta floresta cósmica plantada por muitas mãos. Parecem apenas palavras bonitas? Não são. 

Reconhecer e dar passagem para essas energias dentro de si não é fácil, há muitas pedras para se abalar, às vezes, pedreiras inteiras. Quando eu fui despertada, havia muita dor no início. O aperto no peito é irmão da desorientação. Algumas se perguntam: “Não é melhor continuar a dormir, seguir o coma colonial?”. Afinal, muitas de nós não é aldeada, – talvez a maioria? – isso deixa a caminhante ainda mais temerosa. Mas retomada não é feita de lógica.

Foto: Tiriri Rayo

As pedras são abaladas em cada território que habita um corpo caboclo e, uma a uma, as mestiças são despertadas pela força do território, dos rios, plantas, bichos e encantados. As mestiças sabem que retomadas são transmitidas pelo espírito. Foi assim antes de nós e continuará muito depois que nos despedirmos desse céu. 

“Pisada bonita só tem caboclo/ Oh, pisa caboclo no rastro do outro” 

Pisada bonita só tem caboclo – Toré do povo Kiriri

Não tenho na memória, meu pai e tias mais velhas, usando a palavra índio ou indígena para determinar-se, e isso me causou muita confusão. Na época, não entendia nada sobre o Nordeste ser um território de primeiro contato e o que isso significa para a interrupção de nossas vidas, culturas e memórias. Havia um grande vácuo narrativo em minha família, as memórias sobre minhas/meus ancestrais simplesmente acabavam muito cedo. 

Foi observando os costumes, curas, jeitos de nos relacionarmos com a mata e nosso modo de habitar a Terra que passei a cismar, estranhar o que me diziam ser natural. Até então éramos “do sítio” e não havia nada demais estar rodeada de rezadeiras, pessoas que sabiam prever chuvas, anciãs que receitavam plantas para cura, assombrações e encantados que vagavam pela mata, acender fogueira e passar a noite contando histórias… Foi muito depois, quando perguntei à minha tia Rita Alves Rocha, se nossa família é indígena, que pude ouvir a resposta ligeira: “Sim”.

Para mim, dar passagem à minha ancestralidade é uma experiência de amor e carinho profundos, tanto que não sei traduzir. É também fazer justiça para quem foi tão desrespeitado, aviltado, violentado. Quando penso nisso, minhas presas e garras aumentam de tamanho e exigem respeito.  

"E, assim, as palavras encantadas estão retornando, a ancestralidade sendo convocada por seu nome, as lutas sendo travadas para a defesa das plantas, bichos e encantados, todas e todos que não falam como os homens."

Raiva e indignação irrompem do meu peito e eclodem em força para enfrentar a violência do etnocídio. Uma violência tão brutal que apagou a memória da minha família tal qual lavou o urucum de nossas peles. Por isso, entre vacilante e destemida, me pinto, defumo, firmo meu ponto, e sigo afirmando que os povos que dão nome ao meu território nunca foram extintos. O povo Kariri e Kariú, não são fantasmas do passado, somos presente e estamos reflorestando com nossas culturas nativas essa imensa monocultura branca. 

E, assim, as palavras encantadas estão retornando, a ancestralidade sendo convocada por seu nome, as lutas sendo travadas para a defesa das plantas, bichos e encantados, todas e todos que não falam como os homens.

Quando eu vi o sete estrelo se alumiar no céu/Tive certeza meu povo, Kariri bebeu no mel/ Oh, abelha nativa/ Oh, meu chão é Caatinga 

– Toré recebido da encantaria por João Kariri

Quem observa o chão da Chapada do Araripe percebe que ele tem muitas camadas, cada uma com sua função, até aquela que vai tocar as fontes d’água. Esse é o chão que piso: caatingueiro, nativo, do sítio, que me leva cada vez mais profundo e ao encontro dessa e das outras índias caboclas índias. Esse chão se move e deságua em universidades, congressos, reportagens e textos como esse. No meu chão tem toré e passinho de tecno brega, cheiro de futurismo e de pequi da Chapada do Araripe. Tem angústia, indignação e alegria. Meu chão é meu corpo, meu espírito, meu retorno. É pulsão de vida nativa. 

TEXTO

Raquel Kariri

Raquel Kariri é caatingueira, jornalista e pesquisadora na Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, gestora na Escola de Ancestralidades Kariri e colunista do Afoitas.

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