“Isso parece uma coluna, mas é uma carta de amor e cartas de amor são feitiços poderosos, elas carregam palavras vivas, daquelas que nos desacostumamos a sentir.”

Por Raquel Kariri – 28/04/2024

No dia 28 de abril celebra-se o dia da Caatinga l Crédito: Codevasf via Flickr/Creative Commons

Eu sei. Você deve ter ouvido e visto coisas horríveis sobre a Caatinga. Imagens de solo rachado, gado morto e ressecado e mulheres esfarrapadas com latas de água na cabeça. Imagino que você tenha ouvido histórias sobre como aqui não temos água, há pouca comida e somos destinados à fome. 

Claro que você pode se esquivar, afinal, porque alguém quereria um roçado de ausências no coração? Mas se você me der uma chance, além de plantar eu vou fazer chover em tua alma. Eu não, a Caatinga. 

Como? Bem, isso parece uma coluna, mas é uma carta de amor e cartas de amor são feitiços poderosos, elas carregam palavras vivas, daquelas que nos desacostumamos a sentir. E quando as palavras estão vivas, elas fazem coisas conosco, cutucam, nos tiram do eixo. Elas comunicam paixão e eu confio nessa força encantada. Eu confio que do meu coração, consigo soprar meu amor pela Caatinga bem no centro do teu. 

Não pense que somos tão diferentes assim. Sim, eu sou uma mulher caatingueira e isso significa que eu possuo um duplo na minha alma, a Caatinga. Mas olha, não é sobre região geográfica, é sobre dança de espíritos. E talvez, até o fim dessa carta, você sinta também. 

Um duplo é uma força que se irmana com nosso espírito, se movem juntos, se comunicam e dali retiram forças e pesares. Mas há algo que preciso dizer sobre duplos: eles são, antes de tudo, selvagens. 

Sabe aquela frase de Guimarães Rosa: “perto de muita água tudo é feliz”?, uma frase nunca representou tanto um bioma. Você já viu a Caatinga em tempos de muita água? Ela não se poupa! Ela transborda! Suas cores ficam vivas, vivíssimas! Uma infinidade de tons de verde colorem tudo! Que bonito, precisa ver! São tantos que nem a IA é capaz de criar. E os frutos? Pequi, Umbu, Cajá, Pitanga, Pitomba, Seriguela.. Puxa, ela não se poupa!

Entende? É isso que ela nos ensina: quando houver muita água, quando houver muita alegria, muito amor, não se poupe! Não há porque não dividir com todes. Se há vida, exploda! É um grande ensinamento que coloca em xeque a mesquinhez que se espalhou pela antivida chamada capitalismo. Essa antivida que drena mundos de encantaria, forças de celebração e não permite que tomemos ensinamentos com os espíritos das florestas.

Essa mesma antivida que interrompeu nossa conexão com a encantidade, como ensina Cacique Chiquinho Pankaxuri, e nos deixa apáticas, adoecidas, gananciosas, tristes, mergulhadas apenas em um mundo de humanos. Mas sabe o que é bonito? A Caatinga é uma exterminadora de antivida. No meu tempo sobre a Terra, presenciei muitas tentativas de deixá-la dócil, obediente, domesticada para o bel prazer dos homens que a querem outra, mas ela não se dobra. 

E todas que não se dobram pagam um preço. O corpo da Caatinga não se parece com o corpo das florestas desejadas pelos homens brancos. Sua autenticidade não se reflete no espelho de Narciso. Te parece com alguém? Será que com você? A tua beleza, a tua autenticidade, tua maneira única de estar no mundo também já foi menosprezada? 

Mais: você já foi menosprezada por simplesmente ser você?

Então, temos algo em comum. Então, temos algo em comum com a Caatinga. Talvez, o que você julgava distante, sempre esteve junto a ti. Afinal, se mesmo sendo apontada como inadequada, tendo tuas capacidades e potências menosprezadas, tua vida invizibilizada, se mesmo retirada as melhores condições você ainda floresce, você ainda explode em vida… Deixa eu te contar: Sim, você também é uma filha da Caatinga. Bem-vinda, a gente tava te aguardando. 

Raquel Kariri é jornalista, co-fundadora Escola Livre de Ancestralidades Kariri e colunista da Afoitas.

 

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