Por Vitória Rodrigues – 13/03/2024

 

 

Com 13 anos quando Marielle foi assassinada, a ativista Vitória Rodrigues transcreve sua trajetória e angústias enquanto jovem que sonha com a política e fala sobre o impacto da ex-vereadora em sua vida

Nota da Edição: O texto foi publicado antes das revelações das investigações da Polícia Federal que culminaram na acusação dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão como mandantes.

Há exatos seis anos, eu tinha treze anos de idade e ela tinha trinta e oito. Eu estava  no último ano do ensino fundamental. E tinha o hábito de sair da escola e andar até o quarteirão ao lado, onde minha mãe trabalhava como diarista numa casa. Tinha que dar um abraço nela.

Quando cheguei lá, abracei minha mãe. Logo depois, ela minha mãe começou a limpar o chão enquanto a televisão estava ligada. Meio-dia é hora de RJTV, que eu logo comecei a ver. Mostrava as imagens de uma mulher bonita e do seu motorista, também bonito. Falava de morte. Fiquei nervosa, mas me sentei para ver o que acontecia.

Naquela época, eu já tinha alguma consciência política — como muitos da minha geração, nossa formação democrática começou pela página de Facebook Quebrando O Tabu. Mas eu não sabia quem era aquela mulher. Só sabia que me sentia triste, desolada e como se uma parte de mim tivesse ido embora também. 

Aos meus treze anos de idade, eu vi a Marielle Franco, de trinta e oito, ir embora. Diferente dos outros dias, o RJTV1 foi todo sobre o assassinato da Marielle e do Anderson. Aquilo me indicava que era sério. Diferente dos outros dias em que passava no trabalho da minha mãe, só fui embora quando o telejornal acabou.

Quando decidi partir, abracei a minha mãe e fui ao ponto de ônibus pensando que a mãe da Marielle jamais poderia abraçá-la de novo. Naquele busão sem ar-condicionado no calor da Pavuna e de São João de Meriti, minhas lágrimas angustiadas se misturaram com o meu suor. Péssimo dia.

Cheguei em casa e meu Galaxy J5 Prime nunca fez tantas pesquisas. Passaram-se horas. Queria saber quem era Marielle Franco, o que ela fazia, porque fazia. Nela, vi muito do que eu acreditava. Eu nunca tinha visto uma mulher negra e sáfica ser política. Na época eu não entendi, mas aquilo me inspirou. Muito.. Me vi nela. As notícias falsas que eu li eram numerosas e aquilo me doía o coração. Eu estava confusa, enfurecida e ensandecida.

Já depois de muito pesquisar e estudar para concurso público de ensino médio, era noite. Com a minha avó, resolvi ver o RJTV2 pra ver se tinha alguma novidade. Naquele dia, a imagem da Cinelândia tomada por pessoas me emocionou muito. Prometi que seria determinada e sensível como a Mari. Desde o dia 15 de março, espero alguma explicação para o crime. Mas criei as minhas próprias respostas a esse absurdo. E quem me ajudou foi a revolta. 

Anos de espera e de luta

A revolta pelas desigualdades que eu vivi e vivo me fez focar na educação como forma de mudar de vida — de comprar uma casa, de ter carteira assinada, de poder sonhar. Um ano depois do dia 15 de março de 2018, eu estava estudando na escola dos meus sonhos. E naquele dia, o Coletivo Feminista levou quem quisesse para o Redes da Maré, do ladinho d’onde eu havia acabado de começado a estudar.

Na favela lar da quinta vereadora mais votada em 2016, naquele dia acontecia a abertura de uma exposição que homenageava a vida de três ativistas negros: a data de falecimento de Marielle Franco também era data de nascimento de Abdias do Nascimento e de Carolina Maria de Jesus.

As pessoas faziam discursos emocionados e tinham várias fotos da Marielle. Queria ser um terço do que ela é, pensei. Naquela semana, muitos dos meus professores falaram da Mari porque a conheciam e sabiam quem ela era. Tinham votado nela. Faltava muito, mas gostaria de votar em alguém como Marielle. Poderia eu ser uma referência assim um dia?

O sonho de ser mais

Estudar do lado da Maré e da Favela de Manguinhos significava não saber se eu voltaria pra casa tranquila. O ano do primeiro aniversário de morte da Marielle foi marcado por tiroteios em que minhas aulas eram interrompidas constantemente. Fiz um projeto de lei para o Parlamento Jovem Brasileiro e comecei a achar que poderia sonhar, sim, com a política.

Quanto mais eu me envolvia com projetos e lia o que diziam referências para mim, mais ficava nítido que eu gostaria de ser eleita para fiscalizar o poder público de forma integral. Sempre que surgia uma entrevista em que a jornalista perguntava o que eu gostaria de fazer, me era simples dizer uma única palavra: política.

Minha mãe, que me abraçava e ainda abraça todo dia, costumava ficar apavorada com essa ideia de querer fazer a diferença na vida pública. Dizia que eu ia morrer como a Marielle. Isso me assustava, mas nunca me parava de idealizar essa possibilidade. Tinha um medo quando dizia que queria, sim, viver a vida partidária pelo Brasil.

E é, de fato, difícil dizer isso. Eu sou uma mulher jovem de esquerda e a política massacra a mulheres todos os dias, especialmente meninas jovens de esquerda. Não imagino as coisas que as parlamentares Brasil afora escutam e enfrentam. A Marielle enfrentou.

Acredito que se tem uma coisa que a Franco ensinou é que a política pode ser do meu jeito e para o que eu acredito. Eu sempre gostei de assistir aos discursos que o Instituto Marielle Franco publicou via YouTube e é lindo ver essa mulher que eu tanto me inspiro falando com tanta veemência. Tinha uma firmeza linda na voz dela. Sinto muitas saudades do que não vivi com Marielle. Acho que eu já a teria conhecido pessoalmente se ela estivesse aqui.

Durante o último ano do ensino médio, tive muitas dúvidas se deveria escrever minha monografia sobre as milícias no Rio de Janeiro. Com tantos acadêmicos que são homens brancos, parecia não ser pra mim discutir violência. Quando meu orientador contou que a dissertação de mestrado da Mari era sobre as Unidades de Polícia Pacificadoras, fez muito sentido querer falar de necropolítica — a minha principal inspiração política falava disso. E tanto ela dizia e lutava, que incomodava quem promove o caos que atinge diariamente o nosso povo. 

Seis anos

Já fazem seis anos daquele dia em que eu, no ensino fundamental, vi pela TV a Cinelândia tomada por gente chorando e clamando por justiça. Agora estou entrando na faculdade e vejo como a ausência da Marielle fez com que eu germinasse a presença da força em mim.

No meu coração, sinto que conheço a Marielle, sim. Sei que poucas a conheciam como ninguém, mas existe a sensação de que ela vive muito em mim. Não sei. Só sei que sinto alguma coisa muito forte quando vejo uma foto dela ou lembro dela, e sinto vontade de fazer tudo o que nunca foi feito. Essa, talvez, seja a força que ela queria transmitir.

Eu bem que fui convidada e poderia me candidatar esse ano. Mas não pensei muito porque sempre ficou muito claro com o que aprendi com ela que a revolta deve ser organizada. E antes de fazê-la, a gente precisa estudar e aprender antes de fazer o que sempre sonhamos em fazer.

Penso sempre em como seria com ela aqui. O que ela estaria achando da política federal? Será que ela teria ido na minha escola? Será que ela teria sido eleita para outro cargo? Será que eu não ia me inspirar tanto assim em alguém?

Nesses dias, fui almoçar em comemoração ao aniversário de uma pessoa importante pra mim, a Beatriz. Acabamos falando de Marielle, e algumas semanas antes dela dispersar semente, minha amiga disse que a conheceu na escadaria da Câmara Municipal. Bonita, alta, atenciosa, ela desligou o telefonema em que estava para ouvir as sugestões da Bia sobre as mudanças do clima. Ficou muito claro ali que a presença dela tinha uma aura de força muito grande. Eu queria muito ter vivenciado isso.

Não me culpo por não ter acompanhado o trabalho de Marielle Franco antes de sua morte — eu era uma criança. Criança esta que estava numa escola municipal do Rio que ela sabia, mais do que ninguém, que estava ruim. E falava disso sempre e lutava para que mudasse. E eu sou muito grata por isso. E isso me faz querer saber mais e mais sobre a Mari sempre.

Minha mãe também resolveu abraçar o questionamento pelo assassinato da Mari. Dona Regina ainda fica com receio da vida que almejo ter algum dia, mas sabe que a gente precisa estar com a caneta na mão pra fazer tudo o que os que tem a caneta na mão se recusam a escrever e assinar.

Em 2024, quero parar de perguntar quem mandou matar a Marielle. Daqui uns anos, espero fazer um texto emocionado sobre como cheguei onde ela me inspirou a sonhar em estar. Acharam que matariam ela com tiros. Estavam enganados. Os projéteis disparados viraram incontáveis sementes espalhadas pelo mundo. Eu sou apenas uma delas. E brotei.

 

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