Por José Vargas Júnior

O advogado José Vargas Júnior, que acompanha o maior massacre no campo dos últimos 20 anos, fala sobre a potência destrutiva dos crimes estatais, sob um verniz de legitimidade construído pela justiça, sociedade e mídia

Dez camponeses foram assassinados pela polícia em Pau D’Arco, no Pará, em 24 de maio de 2017 l Foto:  Arquivo/Agência Brasil

A violência do Estado é construída e tida sempre como legítima. Descobri isso muito antes de entrar na faculdade de Direito. Descobri ainda criança quando, assistindo o jornal local, fiquei atônito diante das cenas que mais tarde tomariam o mundo: Marisa Romão, repórter da afiliada do Sul do Pará da Rede Globo, acuada junto com sem terras dentro de um dos barracos de madeira existentes na curva do S, em Eldorado dos Carajás, abre uma fresta de porta e grita para os policiais militares que cercam os barracos: “Por favor, para, eu sou a repórter, só tem mulher e criança lá”. A imagem tem a estética da violência: o breu do barraco sendo iluminado por uma fresta que cega os olhos dos que fogem em pânico.

Só tem mulher e criança” era a senha de que aquelas pessoas não estavam no rol das que podiam ser sumariamente executadas pelo Estado, ao menos não na frente das câmeras de TV. “A polícia só revidou” foi a versão oficial do Estado. “Fez uma limpa, só matou bandido” foi a versão extraoficial repetida à exaustão especialmente pelos distintos senhores do latifúndio.

A “justiça” aplicada em Eldorado dos Carajás já era descrita no primeiro parágrafo da obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault, quando cita os autos processuais que condenaram Robert-François Damiens no ano de 1757 a ser conduzido nu ao local de sua execução. Damiens também foi torturado com chumbo, azeite, piche, cera e enxofre derretidos. A partir daí, Foucault mostra como as reformas da lei penal vão décadas depois colocar fim aos suplícios, uma transformação onde o castigo vai começar a ceder lugar para um projeto humanista de recuperação do indivíduo. Mas será que algo de fato mudou?

Bem, após esta revolução do processo penal, a humanidade ainda conviveu com a escravidão negra e seus martírios, tendo o Brasil o nada honroso título de último país do mundo a abolir a escravidão. Conviveu na metade do século XX com o nazismo e todo o horror dos campos de concentração e sua máquina de moer gente. Conviveu com a segregação racial nos Estados Unidos que antecedeu e sucedeu o nazismo alemão e inspirou a política estatal do apartheid na África do Sul.

Embora a história sempre registre a existência de indivíduos que se rebelaram contra o que hoje julgamos violações contra a dignidade humana, a verdade é que elas só existiram porque adquiriram o status de “legal e justo”.

A ideia de que a justiça estava sendo feita também foi repetida naquele que foi o maior crime no campo desde as mortes em Eldorado dos Carajás, o Massacre de Pau D’Arco, em 2017. As forças policiais novamente optaram pela execução sumária de 10 trabalhadores rurais. A diferença é que agora eu não era mais um mero expectador chocado diante da TV: eu era o advogado dos trabalhadores assassinados e dos sobreviventes.

Dias difíceis antecederam o massacre, pois ele era anunciado na cidade. Dias ainda mais difíceis sucederam o massacre: acolher os sobreviventes; suportar o luto da perda de amigos; amparar a revolta de familiares que perderam pais, filhos, irmãos; afirmar a obviedade de que foi um massacre e não um confronto; tentar assegurar que o Estado investigasse seus próprios crimes.

O que quero dizer é que a violência do Estado é mais potente do que qualquer outra violência, não apenas por seu aspecto objetivo e cunho simbólico, mas porque desencadeia diversos tipos de violência.

Em 24 de maio de 2017, o Estado assassinou dez pessoas, mas muitas outras morreram naquele dia: G. aparenta estar vivo mas também foi morto, quando com 15 anos teve que enterrar seu pai, sua mãe e milhares de sonhos. Abandonou a escola, morou nas ruas, cometeu pequenos delitos para sobreviver e só recentemente saiu do abrigo para menores em que estava internado. Abrigo e internação que não passam de nomes palatáveis para a política estatal de encarceramento de jovens pobres em lugares que na maioria das vezes são infernos piores do que as prisões para adultos. 

Verônica também morreu naquele dia. Ainda que tenha levado alguns meses para ser enterrada, permaneceu em pé para sepultar os dois filhos com quem morava e que cuidavam de sua saúde debilitada. Depois, deitou na cama e aguardou a morte se compadecer de seu corpo, que por um quadro de diabetes agravado por sessões de hemodiálises e depressão profunda, foi levando ela aos poucos. Primeiro perdeu uma perna, depois outra. Porém, quem a conheceu, como eu, sabe que a primeira coisa que a morte levou dela depois do assassinato dos filhos foi o brilho no olhar. 

B. aguardava o pai para uma comemoração tripla: seu aniversário de seis anos, o da avó e o aniversário de casamento dos pais, todos dia 24 de maio. Ao invés disso, ela teve que enterrar seu pai. Sua avó enterrou o filho, e sua mãe o esposo. Um ano depois, enquanto deixávamos o cemitério ela me disse: “Acho que eu nunca mais vou poder acender vela de aniversário porque agora tenho que acender vela para meu pai, né?”. 

Fernando Araújo dos Santos viu seu namorado ser assassinado ser morto e foi assassinado em janeiro de 2021 l Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil

Fernando não pôde enterrar o namorado assassinado em Pau d’Arco porque ele próprio era um sobrevivente, foi incluído no programa de proteção à testemunhas, abandonou o programa e voltou para a fazenda Santa Lúcia, local do massacre. Lutava contra a morte com bom humor, fazendo piadas e dando risada. A bala disparada contra ele naquele 24 de maio de 2017 era vagarosa, só o alcançou no dia 26 de janeiro de 2021. Ele foi encontrado morto com um tiro na nuca Um dia antes me deixou mensagem falando que mais uma vez estava indo embora da Fazenda Santa Lúcia pois estava com medo de morrer.

Mas a violência do massacre de Pau D’Arco não começou naquela manhã chuvosa de 24 de maio. O assassinato a sangue frio é só uma das formas de violência que o Estado encontra para impor sua vontade, e muitas vezes tem que abrir mão desse expediente outrora enaltecido por causa da perturbação da “turma dos direitos humanos”, como diria um deputado federal que correu para defender os executores do massacre.

Os “mandados de homicídio” de Pau D’Arco foram precedidos por mandados de prisão contra 14 pessoas, dentre elas Jane e Fernando – “vulgo Homossexual”, como consta escrito no mandado, ainda que Fernando nunca tenha carregado esse apelido antes ou depois do massacre. Também foi expedido mandado de prisão contra um pobre diabo que já havia sido morto pela própria polícia meses antes; talvez tenha faltado atualizar o banco de dados de pessoas que o Estado tem alvará para assassinar, e assim saiu a ordem para prender quem já era defunto, assassinado, sepultado e devidamente esquecido.

Meses depois do massacre, o Ministério Público do Estado do Pará concluiria pela obviedade da intenção de matar os ocupantes em vez de prendê-los, pois, segundo a própria denúncia ministerial contra os executores, a maioria dos destinatários dos mandados de prisão “apresentavam, apenas, a indicação de apelidos, sem o registro de qualquer outra característica que os pudessem individualizar enquanto pessoas”.

Na vida, assim como na arte, tragédia e comédia guerreiam pelo mesmo palco e não deixa de ser curioso que todos esses mandados de prisão foram expedidos pelo judiciário com a anuência do mesmo Ministério Público. Só depois do massacre causou estranheza ao órgão que eram mandados de prisão impossíveis de cumprimento?

Meu palpite é que o MP começa a assimilar a lição secular do fim dos castigos corporais e penas de morte sumárias, mas é ainda entusiasta da violência simbólica: a criminalização dos inimigos do Estado. É claro que temos dentro dos quadros do Ministério Público honrosas exceções, inclusive no próprio Ministério Público do Estado do Pará, como a Dra. Ana Cláudia Pinho, mas a estrutura dos Ministérios Públicos brasileiros é servil à estrutura do Estado brasileiro, que por sua vez é servil aos donos do poder, que são racistas, que são misóginos, que dependem da desigualdade social para manterem seus privilégios de classe.

Devo reconhecer que talvez a lógica do Ministério Público, revestida de humanidade e mais moderna, é mais inteligente e efetiva para a defesa dos interesses dos donos do poder do que a lógica da polícia. 

Hoje, mais de 200 famílias ocupam a fazenda Santa Lúcia e o principal combustível para resistir às constantes ameaças de despejo é certamente a história dos mártires que tombaram no massacre. Tivesse a polícia cumprido os mandados de prisão, tal qual a equação tantas vezes usada “Ministério Público + ordem judicial + polícias Civil e Militar = criminalização legal do movimento social”, possivelmente a Fazenda Santa Lúcia estaria regularmente reintegrada ao latifúndio, a líder do movimento que hoje dá nome à ocupação, Jane Júlia, conduzida ao Tribunal do Júri, e os sobreviventes assustados em vez de encorajados.

O advogado José Vargas Júnior denunciou a polícia pelo massacre de Pau D’Arco l Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil

Conseguimos indiciar os executores, mas é notório o desconforto que causa ao Ministério Público local todas as vezes em que é lançada a pergunta: “Doutor, mas e os mandantes?”. A resposta é sempre uma evasiva “não sabemos se existem mandantes”. Ora, os mandantes são os donos do poder. Não reconhecer a hipótese de que este sujeito (ou sujeitos) ainda que indeterminados, tenham cometido um crime já é uma afronta, pois a resposta também poderia ser mais dentro da realidade: “Infelizmente talvez não consigamos alcançar os mandantes”.

Os donos do poder sabem que seu sistema de privilégios está ruindo em todas as suas bases, o meio ambiente não aguenta mais seus assaltos, os camponeses não toleram mais produzir alimentos e passar fome, o trabalhador questiona o porquê de seus impostos que sustentam privilégios em detrimento de políticas públicas de saúde e educação.

Por isso acredito que a vitória só poderá ser nossa. Primeiro porque ou vencemos ou ninguém vencerá porque não haverá sobreviventes,nem vítimas de uma revolução social sangrenta, mas de uma inevitável revolução ambiental. Para além disso, a vitória será nossa porque a vida não desanima nunca para quem luta por justiça, porque aguentamos perseguições com coragem, porque não guardamos esperança na ressureição e sim ressuscitamos a esperança de viver, porque ouve melhor quem não é surdo para as desigualdades do mundo, porque resistir nos faz cada vez mais fortes. É penosa a solidão dos que lutam por um mundo de concentração de riquezas, de privilégios, de muito para poucos. Nada é mais radical do que nos reconhecermos impotentes quando sós, mas quase divinos quando juntos: ombro a ombro, passo a passo, sorriso a sorriso, abraço a abraço e venceremos. “Esperem sentados a rendição, nossa vitória não será por acidente”.

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