Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Um ano de genocídio em Gaza: caminhos para organização e solidariedade
Um ano de genocídio em Gaza: caminhos para organização e solidariedade
No marco de um ano do massacre continuado do povo palestino em Gaza, Juliana Muniz, do coletivo Vozes Judaicas por Libertação fala sobre a guerra e sobre a atuação de coletivos diante da barbárie
Protestos contra o massacre na Faixa de Gaza aconteceram por todo o mundo desde outubro de 2023 l Foto: Brasil de Fato/Renascença/Colagem
Chegar no mês de outubro de 2024 é encarar o amargo marco de um ano do genocídio ainda em curso contra o povo palestino na Faixa de Gaza, perpetrado pelo Estado de Israel. A contagem oficial chega a mais de 40 mil pessoas mortas, 1,8 milhões deslocadas forçadamente e centenas de milhares feridas, e não comunica a totalidade do horror vivenciado pela população palestina. Tampouco as imagens, que fazem deste genocídio o mais hipervisível da história, parecem sensibilizar o mundo sobre o tamanho da destruição e fazer com que ela cesse. Como se não bastasse Gaza, a escalada da violência israelense se expandiu para a Cisjordânia e há poucas semanas faz ataques no Líbano sem precedentes na história. Israel segue impunemente suas atrocidades e crimes contra a humanidade, protegido pelos estandartes do sionismo, do colonialismo, do imperialismo e do neoliberalismo.
Outubro de 2023 não marca um início, mas a continuação de um projeto de 76 anos de colonização, configurado em um sistema de apartheid e ocupação no que se compreende como os territórios de Israel e Palestina. Se no fim do século XIX o debate sionista circulava em torno da questão da autodeterminação judaica e de possíveis resoluções para perseguições históricas, com o tempo concretizou-se como um projeto colonial para a criação de um Estado fundado sobre a expropriação dos palestinos em 1948. Esse processo ficou conhecido como Nakba (catástrofe em árabe).
O poeta libanês Elias Khoury, falecido há poucos dias, foi um dos primeiros a ler a Nakba não como um evento localizado, mas como catástrofe contínua que se estende até hoje: seja na apropriação dos territórios em 1967, no confisco em curso de terras através dos assentamentos, no apagamento de memórias, na militarização da vida cotidiana e no extermínio do povo palestino. Se para muitos Israel significaria a conquista da segurança e liberdade para o povo judeu, para nós do Vozes Judaicas por Libertação, coletivo que integro, foi um sinônimo definitivo de muitas rupturas e reconstruções.
Entro então nessa nefasta linha do tempo a partir de uma pergunta que movimenta muito a trajetória do coletivo: como podem conviver percepções em escala mundial tão opostas em torno do mesmo fato, quando olhamos especificamente para o 07 de outubro? Por um lado, foi imediatamente massificada a informação de que a ação do Hamas foi o “maior ataque contra judeus desde o Holocausto”. Nessa perspectiva, tal fato inédito autorizaria toda e qualquer ação do exército israelense como “direito de defesa” que teria por “consequência natural” o massacre a que assistimos. Essa inclusive é uma das principais égides sionistas, que nomeia o exército como “Forças de Defesa de Israel”. Nessa percepção, tanto o Hamas como os palestinos em geral, além de estamparem exclusivamente as vestes do terrorismo, são eternamente responsabilizados por sua própria catástrofe.
Por outro lado, como comenta o jornalista Antony Loewenstein (2024), o 07 de outubro foi um golpe contra a crença tão consolidada em Israel que os 2,3 milhões de palestinos habitantes de Gaza poderiam ser confinados para sempre na maior prisão a céu aberto do mundo sem haver qualquer tipo de consequências. Sem justificar absolutamente os ataques do Hamas, muito menos desprezar as vidas ceifadas neste contexto, interessa aqui um olhar que faça distinção entre as estruturas e seus sintomas. Desmanchando possíveis armadilhas comparativas dessa linha do tempo, o que se dá como “resposta” a partir do dia 08/10 foi, é e sempre será injustificável. Na compreensão de que há mais leituras do que estas sublinhadas, nos colocamos um desafio enquanto grupo de tentar dissolver perspectivas binárias, desestabilizar e confrontar as narrativas que insistem em normalizar a situação palestina.
Surgimos a público enquanto coletivo a partir da inevitabilidade da revolta e de algo mínimo que ainda não era dito de forma coletiva aqui: um genocídio não será praticado em nosso nome, o Estado de Israel não representa a todos os judeus e deve ser freado em suas políticas e ações constantes de violação dos direitos dos palestinos. A criação do grupo concretizou a possibilidade de um lugar novo em que pudéssemos publicamente manifestar nossa solidariedade à luta palestina e, ao mesmo tempo, afirmar e solidificar uma judeidade antirracista, anticolonial e antiapartheid, uma judeidade não sionista.
A partir do encontro de trajetórias e origens diversas, partilhamos a ruptura com um papel muito bem desempenhado pelas instituições sionistas que convivemos ao firmarem um vínculo indissociável entre judaísmo, judeidade e o Estado de Israel. É importante marcar que não somos “judeus bons” muito menos superiores por isso. Tampouco sofremos de “auto ódio” como muitos também nos acusam, pois nosso posicionamento não se dá apesar de nossas identidades, mas a partir delas. O que cabe aqui é explicitar que a construção sionista, mais do que uma escolha racional por um posicionamento que sustenta a legitimação do que vemos hoje, é um mosaico de manipulação de traumas coletivos e do uso de perseguições históricas para direcionar a aprovação que Israel exista a todo e qualquer custo.
Nos últimos anos, diversas transformações e disputas têm ocorrido dentro e fora da comunidade judaica em relação à Israel-Palestina. Há tanto um fortalecimento de uma direita sionista explicitamente alinhada ao bolsonarismo e ao fascismo, como também manifestações que reproduzem paradigmas datados e crenças como “Dois Estados para Dois Povos” como forma de “resolução” para a questão palestina. Repudiando o sionismo abertamente fascista e desafiando um “sionismo de esquerda” que buscar falar da Palestina sem levantar palavras como “direito de retorno”, “reparação”, “apartheid” e “genocídio”, nos vemos sem lugar nessa comunidade judaica. Nesse cenário, se desenhou a tarefa não só de romper, mas de construir um lugar através da coletividade capaz de se fundar numa outra ética e política, seja na Palestina ou no Brasil.
Ao perfurar o aparentemente inabalável pacto entre sionismo e judaísmo, percorremos esse primeiro ano com muitos desafios, tendo sempre no horizonte que não protagonizamos a luta e a resistência palestinas. Entendemos nossas ações como oportunidades de visibilizar no cenário brasilero um posicionamento solidário desde o lugar que cavamos para ocupar, dialogando e colaborando com os movimentos palestinos. Desse lugar, questionamos as narrativas hegemônicas sionistas e suas representantes, constantemente acionadas como porta-vozes da comunidade judaica, que instrumentalizam o conceito de antissemitismo para silenciar críticas à Israel, dificultando inclusive o combate ao antissemitismo real, que é a discriminação contra judeus pelo fato de serem judeus.
Além disso, impossível não pautar junto de vários outros movimentos e ativistas no país a relação entre Brasil e Israel desde seu lado mais perverso: ambos experimentam as mesmas tecnologias em seus genocídios. Israel exporta sua tecnologia de ocupação e tornou-se ‘referência’ na produção de armas e sistemas de vigilância e monitoramento para o mundo, sem nenhum constrangimento de inflamar conflitos, guerras e a violência de Estado em países por todo o globo. O Brasil, sendo um de seus maiores compradores, além de investir na opressão e extermínio das populações negras, periféricas, indígenas e tantas outras subalternizadas no país, torna-se cúmplice no genocídio do povo palestino.
como agir, o que saber
- – Movimento BDS (Boicote, desinvestimento e sanções)
- – Adesão a Campanha pelo Embargo Militar
- – Página Juventude Sanaúd
- – Desorientalismos
- – Desoriente-se
- – RNEAP – Rede Nacional de Estudantes em Apoio a Palestina
– Introdução a Palestina (inglês) - – Palestinian Youth Movement
- – Jewish Voice for Peace (inglês)
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Como forma de apoio concreto, defendemos o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), uma forma de resistência não violenta lançada pela sociedade civil palestina em 2006 como um apelo à comunidade internacional à não cooperação com um Estado de apartheid. É de vital importância convocar o rompimento de relações com governos, empresas e insituições dentro e fora de Israel que contribuem com a ocupação e o massacre do povo palestino. Através da campanha pelo Embargo Militar lançada esse ano, mais de 100 organizações exigiram o rompimento dos acordos militares entre Brasil-Israel, uma relação que se iniciou nos anos 2000, e que foi encontrando maior espaço em especial nos últimos anos pelas gestões dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro. Tais acordos foram aprovados pela Câmara dos Deputados no dia 18 de Outubro de 2023, enquanto assistíamos ao vivo o início do maior massacre contra o povo palestino já perpetrado na história.
Sobre o chegar no mês de outubro, não há complexidade no assunto que nos impeça de caminhar pelo solo firme da solidariedade por uma Palestina livre. Se as formas de exploração, dominação e opressão nesse momento do capitalismo compartilham suas tecnologias e se sofisticam cada vez mais, precisamos criar pontes que conectem nossas noções e práticas de solidariedade e luta. Entendemos o conceito de solidariedade não como uma ideia passiva, mas junto do historiador Rafael Domingos (2024) como uma tecnologia de emancipação do mundo, e isso requer nossa implicação.
Nosso ativismo se mobiliza na certeza de que é através da coletividade que encontramos sentido na luta e no impacto que nossos posicionamentos e ações podem ter, habitando o horizonte universal da resistência contra a opressão e o esquecimento. Que esse horror cesse e que a libertação Palestina chegue junto do direito de retorno, da desocupação e de um processo verdadeiro de justiça e reparação. Que a sumud, essa palavra palestina que representa permanecer firme, de profundo valor de resiliência, nos acompanhe na luta contra a discriminação, pela descolonização e direito à terra, por justiça e vida digna para todos os povos do mundo.
Referências:
HAASZ, et.al. Judias e judeus tornando-se solidários à causa palestina. Publicado em: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível
em:<https://diplomatique.org.br/judias-e-judeus-solidarios-causa-palestina/> Acesso 20 set. 2024.
JABR, Samah. Sumud em tempos de genocídio. Ed. Tabla, São Paulo, 2024.
KHOURY, Elias. Rethinking The Nakba. Critical Inquiry, [S. l.], v. 38, n. 2, p. 250-266, inverno, 2012. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/662741. Acesso em: 01 out. 2024.
LOWESTEIN, Antony. Laboratório Palestina: como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo. Ed. Elefante, São Paulo, 2024.
MARTINS, Gizele. Da Palestina à Maré: a luta pelo direito à vida (relato). Disponível em:<https://wikifavelas.com.br/index.php/Da_Palestina_%C3%A0_Mar%C3%A9_-_a_luta_pelo_direito_%C3%A0_vida_(relato).> Acesso 30 set. 2024
OLIVEIRA, Rafael Domingos. Introdução. In “Gaza no coração: História, resistência e solidariedade na Palestina”. Org. Rafael Domingos. Ed. Elefante, São Paulo, 2024.
SAID, Edward. A questão da Palestina. Ed. Unesp, São Paulo, 2012.
VERGÈS, Françoise. A medida do que somos capazes de fazer para mudar o mundo.
In “Gaza no coração: História, resistência e solidariedade na Palestina”. Org. Rafael Domingos. Ed. Elefante, São Paulo, 2024.
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Entender para combater: uma breve história da violência política de gênero
Entender para combater: uma breve história da violência política de gênero contra as mulheres
Luka Franca analisa o histórico de violência política de gênero como um impeditivo para efetivação de uma democracia plena e quais os caminhos para sua superação
“Eu não vou sucumbir
Eu não vou sucumbir
Avisa na hora que tremer o chão
Amiga é agora
Segura a minha mão” (Elza Soares)
A violência política de gênero é uma faceta cruel da misoginia com a qual nós mulheres nos deparamos ao ocupar um espaço público. Espaços estes que são historicamente dominados por homens e por um jeito de fazer política. A violência é estrutural: no Brasil, o direito de votar e ser votada só foi reconhecido em 1932 e teve sua incorporação à Constituição em 1934 e ainda enfrenta inúmeros desafios para ser plenamente efetivado – não custa lembrar que o número de mulheres candidatas em 2024 é de 33% do total, mesmo representando 52% do eleitorado. Além disso, somente em 2024, até 29 de setembro, 130 mulheres foram alvo de violência política de gênero.
Mas o que é violência política de gênero? É quando mulheres são atacadas, ameaçadas, violentadas, caluniadas e constrangidas em seu fazer político por serem mulheres. A definição da Lei n. 14.192, no entanto, deixa de fora uma parcela significativa de ativistas que não se enquadram como candidatas ou eleitas, como veremos mais adiante.
Uma história de resistência
Marielle Franco foi vitimada pela violência política de gênero por conta de sua atenção. l Foto: Mídia Ninja/Fabio Possebon-Agência Brasil/Montagem
Os caminhos de lutas por direitos políticos das mulheres não se deram sem percalços, muito menos sem dura violência contra as que os reivindicavam ao longo da história. Temos como parte infeliz da nossa história no Brasil a Ditadura Empresarial-Militar e a violência estatal que se imprimiu nos chamados anos de chumbo, responsável por tratar com especial violência as mulheres que assumiram a luta contra o regime. “O aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelos torturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros.” Durante a ditadura também tivemos o emblemático assassinato de Margarida Alves em 1983 por latifundiários, o crime foi motivado pela ação política de uma das primeiras líderes sindicais do país na região do município de Alagoa Grande na Paraíba.
Já no Brasil da pós-redemocratização há dois grandes marcos da violência política de gênero. O primeiro resultou no golpe contra a primeira mulher presidente do país. A campanha para o impeachment de Dilma Rousseff teve um material de marketing que demonstrava todo o motor da misoginia no país: um adesivo para colocar em cima do local de abastecimento de automóveis em que uma caricatura da ex-presidente aparecia de pernas abertas e o meio delas estava o bocal de abastecimento dos veículos, simulando assim um estupro. O segundo episódio é a execução da vereadora Marielle Franco, em 2018, que também vitimou o motorista Anderson Gomes e ao longo destes anos tem se demonstrado um crime político dos mais imbricados do Rio de Janeiro.
Dando um salto para o passado, nos deparamos na Revolução Francesa com um processo que impede as francesas de serem reconhecidas como cidadãs, inclusive tendo suas imagens degradadas junto à sociedade no pós-Revolução, saindo de heroínas para figurarem como traiçoeiras e violentas. O caso mais emblemático desta época é o de Olympe de Gouges que publicou a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” como forma de apontar a ausência dos direitos das mulheres na Constituição francesa de 1791. Gouges além de ter publicado tal declaração também se colocava abertamente contra a escravidão nas colônias francesas e chegou a se indispor frontalmente com Robespierre, chamando-o de “algoz impiedoso” em panfletos escritos e assinados. Gouges foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793.
Durante a 1ª onda do movimento feminista no mundo, comumente representada na luta pelo direito ao voto, nos deparamos com o enfretamento por parte do movimento sufragista contra diversas formas de violência, especialmente a tortura. Um dos métodos não-violentos adotados pelo movimento sufragista na Inglaterra, por exemplo, foi a greve de fome e algumas vezes as forças policiais recorriam à alimentação forçada para que as sufragistas enfraquecessem suas manifestações em prol do voto igualitário.
Respostas insuficientes
Sim, as mulheres sempre sofreram violência ao se colocarem na luta política e por direitos. O impacto da violência política de gênero retira atrizes do cenário político e assim coloca em xeque o próprio Estado Democrático de Direito. Mas a resposta deste mesmo Estado foi insuficiente.
De fato, em 2021, foi promulgada a lei nº 14.192/2021, que trata da violência política de gênero. Mas ela é limitada: olha apenas para candidatas, parlamentares e membras do poder executivo.
E esse é um ponto fundamental quando falamos de violência política de gênero. É claro que as parlamentares, candidatas ou membras de poder executivo acabam se expondo mais a esse tipo de agressão pela natureza de suas atribuições, porém o fazer político das mulheres na sociedade é bem mais amplo que isso e necessita de proteção.
Inclusive, essa diversidade de atuações está prevista na Lei modelo Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres na vida política, ou seja, é possível pensar uma proteção mais global aos direitos políticos das mulheres em nosso país ao olharmos o que há acumulado sobre o debate na América Latina.
A história da ocupação por mulheres do espaço público de debate para defender seus direitos é uma história de violência. No momento atual, vivemos um avanço na ocupação política feminina e nas conquistas de direitos. Mas também temos um Estado patriarcal que impõe que não consigamos proteger os direitos políticos das mulheres de forma global e não apenas aquelas de maior evidência política.
Caso emblemático é a da ex-deputada federal Manuela D’Ávila que sofreu reiteradamente violência política de gênero nos momentos em que era candidata e parlamentar, mas ao deixar a política institucional continuou a ser alvo de violência política de gênero em espaços diferentes e não apenas ela como a filha dela também sofreu ataques.
É fundamental compreendermos que as mulheres irão exercer atividade política dentro ou fora de partidos políticos, cumprindo ou não tarefa de candidatas ou parlamentares. Restringir a proteção contra a violência política de gênero como acontece no Brasil é não proteger o conjunto dos direitos políticos assegurados na Constituição Federal para as mulheres.
A garantia de direitos políticos para mulheres demorou séculos para ser consolidada e universalizada para além de mulheres brancas com renda própria. Mas ainda falta muito. A falta de uma proteção abrangente para mulheres que enfrentam a violência de gênero e a desigualdade patriarcal é um impeditivo nada acidental à luta contra a desigualdade de gênero, classe e raça. Só com muita organização social e política conseguiremos seguir avançando. Afinal, a igualdade é algo que, apesar de ser propagado pela Revolução Francesa, só poderá ser atingido pela luta das mulheres.
TEXTO
Luka Franca
Jornalista formada pela PUC-SP, bacharela em Direito pela USJT e coordenadora de organização estadual do MNU-SP
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O que pode um corpo em retomada?
Foto: Tiriri Rayo/Cortesia
O que pode um corpo em retomada?
Raquel Kariri* refaz os rastros de uma mulher cabocla em retomada para propor um antídoto para memoricídio e um caminho para o reencantamento das palavras
Há um toré do povo Kiriri, habitante do território conhecido por Bahia, que diz assim:
“Naquela mata tem uma pedra que abalei. Abalei, vou voltar abalar. Sou eu, índio caboclo índio, eu vim da mata para trabalhar”.
Nesses anos de retomada me sinto assim, abalando diversas pedras que foram alicerçadas dentro e fora do meu espírito para me afirmar uma “índia cabocla índia”. Acho muito bonito que no toré os parentes se afirmam três vezes, afinal, para um bom encanto funcionar, as palavras tem que acompanhar a força da intenção.
Uma das coisas mais bonitas das retomadas no Nordeste é a ressignificação da identidade “cabocla”, antes sinônimo de apagamento étnico, hoje é signo de força e resiliência nativa de quem se mantém alegre e tenaz na defesa de sua ancestralidade.
Bastante presente no vocabulário das gentes das zonas rurais, a caboclagem segue firme no propósito de dar de ombros às categorias raciais criadas pela colonização. Se inventa, reinventa, hackeia e come tudo com farinha na hora do almoço.
Gosto de me pensar como uma mulher cabocla, uma mestiça como o milho crioulo multicolorido que nasce dos andes à Chapada do Araripe. Uma mestiza “tenaz, firmemente amarrada às cascas de sua cultura”, como disse certa vez a cabocla Glória Anzaldúa. Ela também compartilhava essa experiência de pertencimento, de estar agarrada “ao sabugo como os grãos; com caules grossos e raízes fortes”. Essa experiência do espírito que a gente tenta traduzir em palavras, emerge em meu corpo como uma uma vasta floresta cósmica plantada por muitas mãos. Parecem apenas palavras bonitas? Não são.
Reconhecer e dar passagem para essas energias dentro de si não é fácil, há muitas pedras para se abalar, às vezes, pedreiras inteiras. Quando eu fui despertada, havia muita dor no início. O aperto no peito é irmão da desorientação. Algumas se perguntam: “Não é melhor continuar a dormir, seguir o coma colonial?”. Afinal, muitas de nós não é aldeada, – talvez a maioria? – isso deixa a caminhante ainda mais temerosa. Mas retomada não é feita de lógica.
Foto: Tiriri Rayo
As pedras são abaladas em cada território que habita um corpo caboclo e, uma a uma, as mestiças são despertadas pela força do território, dos rios, plantas, bichos e encantados. As mestiças sabem que retomadas são transmitidas pelo espírito. Foi assim antes de nós e continuará muito depois que nos despedirmos desse céu.
“Pisada bonita só tem caboclo/ Oh, pisa caboclo no rastro do outro”
– Pisada bonita só tem caboclo – Toré do povo Kiriri
Não tenho na memória, meu pai e tias mais velhas, usando a palavra índio ou indígena para determinar-se, e isso me causou muita confusão. Na época, não entendia nada sobre o Nordeste ser um território de primeiro contato e o que isso significa para a interrupção de nossas vidas, culturas e memórias. Havia um grande vácuo narrativo em minha família, as memórias sobre minhas/meus ancestrais simplesmente acabavam muito cedo.
Foi observando os costumes, curas, jeitos de nos relacionarmos com a mata e nosso modo de habitar a Terra que passei a cismar, estranhar o que me diziam ser natural. Até então éramos “do sítio” e não havia nada demais estar rodeada de rezadeiras, pessoas que sabiam prever chuvas, anciãs que receitavam plantas para cura, assombrações e encantados que vagavam pela mata, acender fogueira e passar a noite contando histórias… Foi muito depois, quando perguntei à minha tia Rita Alves Rocha, se nossa família é indígena, que pude ouvir a resposta ligeira: “Sim”.
Para mim, dar passagem à minha ancestralidade é uma experiência de amor e carinho profundos, tanto que não sei traduzir. É também fazer justiça para quem foi tão desrespeitado, aviltado, violentado. Quando penso nisso, minhas presas e garras aumentam de tamanho e exigem respeito.
"E, assim, as palavras encantadas estão retornando, a ancestralidade sendo convocada por seu nome, as lutas sendo travadas para a defesa das plantas, bichos e encantados, todas e todos que não falam como os homens."
Raiva e indignação irrompem do meu peito e eclodem em força para enfrentar a violência do etnocídio. Uma violência tão brutal que apagou a memória da minha família tal qual lavou o urucum de nossas peles. Por isso, entre vacilante e destemida, me pinto, defumo, firmo meu ponto, e sigo afirmando que os povos que dão nome ao meu território nunca foram extintos. O povo Kariri e Kariú, não são fantasmas do passado, somos presente e estamos reflorestando com nossas culturas nativas essa imensa monocultura branca.
E, assim, as palavras encantadas estão retornando, a ancestralidade sendo convocada por seu nome, as lutas sendo travadas para a defesa das plantas, bichos e encantados, todas e todos que não falam como os homens.
Quando eu vi o sete estrelo se alumiar no céu/Tive certeza meu povo, Kariri bebeu no mel/ Oh, abelha nativa/ Oh, meu chão é Caatinga
– Toré recebido da encantaria por João Kariri
Quem observa o chão da Chapada do Araripe percebe que ele tem muitas camadas, cada uma com sua função, até aquela que vai tocar as fontes d’água. Esse é o chão que piso: caatingueiro, nativo, do sítio, que me leva cada vez mais profundo e ao encontro dessa e das outras índias caboclas índias. Esse chão se move e deságua em universidades, congressos, reportagens e textos como esse. No meu chão tem toré e passinho de tecno brega, cheiro de futurismo e de pequi da Chapada do Araripe. Tem angústia, indignação e alegria. Meu chão é meu corpo, meu espírito, meu retorno. É pulsão de vida nativa.
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Quer compartilhar olhares e lutas no site da Escola de Ativismo? Inscreva-se no Edital ‘Habla, Comunidade’
Edital "Habla, Comunidade" - o novo site da Escola é de todo mundo
A Escola de Ativismo lança um edital exclusivo para quem é da Comunidade Ativista e/ou participou das formações do ciclo "Democracia e combate à extrema-direita"
O edital “Habla, Comunidade” tem como objetivo abrir espaço para a participação ativa da Comunidade Ativista na produção de conteúdo para o site e redes sociais da Escola de Ativismo. O edital também é parte da frente “Democracia e Combate à Extrema Direita” da Escola de Ativismo, que desde julho vem promovendo oficinas e debates sobre temas emergentes dentro do escopo da democracia.
Agora, após diversas oficinas temáticas e muita troca de ideias entre palestrantes, membros da comunidade e colaboradores da Escola, chegou a hora de transformar estes bate-papos em conteúdo.
Esse edital também é um convite para a Comunidade fazer parte do lançamento do novo site da Escola de Ativismo. Este momento significa um marco para a organização, com uma página muito mais moderna e com algumas editorias inéditas. Nós acreditamos que esse espaço só faz sentido se todo mundo com quem caminhamos nesses anos estejam presentes também.
Serão selecionadas sete propostas de conteúdos de opinião e de análise sobre Ativismo. As propostas aprovadas recebem apoio no valor de R$1.000 (mil reais). Serão aceitas propostas de artigos de opinião, reportagens, ensaios, entrevistas, materiais pedagógicos ou qualquer outra modalidade de material escrito.
As inscrições foram prorrogadas até o dia 14 de outubro!
Do conteúdo
Os conteúdos precisam ser inéditos e trabalhar com o tema da “Defesa da Democracia e Combate à Extrema Direita”. O escopo é amplo, mas os textos podem tocar em diversos assuntos, como eleições municipais, mudanças climáticas, ativismos, lutas pela terra ou pela água, enfrentamento de preconceitos em geral, etc.
Eles podem tratar desde experiências locais até análises macro da situação mundial de enfrentamento desse problema. O importante é que você, membro da Comunidade Ativista, traga o seu olhar sobre essa questão.
Os debates e conteúdos apresentados nos encontros da Escola de Ativismo podem servir de base também, mas sinta-se à vontade para trazer novas ideias e abordagens sobre o tema.
Vamos deixar algumas pautas mais específicas para te inspirar:
Como sua cidade está lidando com a questão da Tarifa Zero para o transporte público
Titulação de terras quilombolas, quais as principais dificuldades hoje?
Tinha uma hidrelétrica no meu caminho: como territórios estão sendo ameaçados pelo desenvolvimentismo
E aí, se inspirou?
Requisitos:
– Pelo menos um dos autores deve integrar a comunidade da Escola de Ativismo ou ter participado de uma das atividades da Comunidade Ativista do ano de 2024.
– Ser em língua portuguesa
– Ter de 6 mil a 12 mil caracteres
– Ao final do texto é necessário citar a bibliografia/referências caso elas sejam utilizadas
– Se for entrevista, citar as fontes
– Abordar o tema “Defesa da Democracia e Combate à Extrema Direita”
– Não ter trechos gerados através de ferramentas de inteligência artificial, como ChatGPT
– É importante que, na entrega do texto, sejam enviadas imagens/fotos que acompanhem a divulgação
– Para a divulgação do material nas redes sociais, será solicitado a/o autor/a indicações de materiais (fotos, vídeos, trechos do texto) que podem auxiliar, com liberação de uso.
Sobre o procedimento de produção dos textos:
– Serão selecionados sete textos
– A Escola de Ativismo entrará em contato com os selecionados para uma reunião de pauta e, caso haja necessidade, adequar a proposta à linha editorial da organização;
– A Escola de Ativismo se reserva o direito de não publicar textos que não estejam dentro da linha política da organização;
– O valor será pago após a entrega do material;
– O conteúdo será divulgado no novo site da Escola de Ativismo, com os devidos créditos e legendas sob licença creative commons
FORMULÁRIO PARA INSCRIÇÕES AQUI
E leia o pequeno manual que ajuda a construir a proposta para ser enviada!
FAQ:
Posso fazer junto com meu coletivo ou com outras pessoas?
Sim, claro! Mas o prêmio de R$1.000 será pago ao proponente do edital, que será responsável por dividir o recurso com as outras pessoas.
Posso usar um conteúdo que já está pronto e nunca divulguei?
Conteúdos institucionais, que possam colocar pessoas em risco ou materiais que não dialoguem com a proposta do edital não serão aceitos! Idealmente, um conteúdo feito “do zero” e exclusivo para a Escola de Ativismo tem mais chances de ganhar, mas se há algum material que já estava sendo feito e só precisava de recursos para ser concluído, ele pode sim concorrer.
Vou receber os créditos pelo trabalho?
Sim, todos os materiais receberão os créditos indicados pelos proponentes.
A Escola de Ativismo vai participar da produção do conteúdo?
Não. O trabalho da Escola de Ativismo é selecionar as melhores propostas de materiais e acompanhar a realização. Isso será feito por meio de uma reunião prévia, para definir e dar mais nitidez à proposta selecionada, e depois da entrega da primeira versão, pedindo ajustes caso seja necessário.
Como vai ser realizado o pagamento?
Para receber o valor será necessário emitir nota fiscal no valor total da proposta. O valor será depositado na conta do emissor da nota.
CALENDÁRIO: DATAS IMPORTANTES
Período de inscrição no edital |
De 24 de setembro a 14 de outubro |
Seleção das candidaturas |
De 08 de outubro a 15 de outubro |
Contato com as candidaturas |
Entre 16 e 18 de outubro |
Período para escrita e entrega dos textos |
Entre 21 de outubro e 11 de novembro |
Postagem dos textos no site da Escola de Ativismo |
A partir do momento em que eles forem entregues até março de 2025, seguindo a linha editorial da página |
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Leia o “Dez por Cento”: box com 6 livros debate Paulo Freire, aprendizagens e militâncias
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Os dez anos de Escola de Ativismo, por uma feliz coincidência, foi comemorado no mesmo ano do centenário do nascimento de Paulo Freire, em 2021.
Para celebrar tal coincidência, a Escola de Ativismo promoveu a série de encontros, agora transformadas em livros, batizados de “Dez por Cento – 10 anos de Escola de Ativismo, 100 anos de Paulo Freire”. Neles, convidamos, educadores, pesquisadores e ativistas para pensar as relações entre ativismo e educação. Foram seis conversas, que foram transcritas, revisadas por suas autoras e seus autores e publicadas em um box especial.
Ainda que Paulo Freire tenha sido o motor que dinamizou o processo, as companheiras e os companheiros trouxeram contribuições e perspectivas muito próprias. Com isso, pudemos ouvir um número elevado de referências, de práticas, de pensamentos que multiplicaram, e muito, as nossas formas de pensar e agir.
De forma que é um prazer compartilhar isso com vocês agora. Quem quiser acessar, pode clicar aqui abaixo e fazer o download de cada um dos livros:
- Romualdo Dias, com Influências de Paulo Freire em nossas trajetórias
- Jorge Larrosa, com Educação, Estudo e Ativismo
- Alessandra Munduruku, com Onde tem a sombra de uma árvore, está a Escola de Ativismo
- Madalena Freire, com Entre Escolas e Ativismos, uma aula com Madalena Freire
- Silvio Gallo, com O professor militante
- Dyarley Vianna, com Paulo Freire: por uma pedagogia preta
Ah, e todas estas falas e conversas estão disponíveis no canal do YouTube da Escola de Ativismo (que você pode acessar clicando aqui). Os livros também estão disponíveis para venda online e em livrarias!
Bons aprendizados, boas ensinanças, boas lutas e boas leituras!
Áurea Carolina: “Todo mundo tem que virar ativista climático”
Áurea Carolina: “Todo mundo tem que virar ativista climático”
A ativista e ex-deputada federal fala sobre sua trajetória, os desafios do presente e a necessidade de mobilização por justiça climática
É um evento parar para escutar Áurea Carolina. A fala é ligeira e bem humorada, o pensamento rápido e acolhedor. Ela oferta uma capacidade de formulação política e uma compreensão sistêmica que flutua entre a esperança, a raiva, o cansaço, o amor e a luta — as duas últimas leva tatuada na pele e mostra com orgulho. Escutar ela nomear as coisas como elas são é conseguir nomear também, é encontrar o eco de tantas subjetividades ativistas que vivem, escrevem, lutam e agem sob nuvens de fumaça e ameaças de trogloditas.
As quebradas de Belo Horizonte, o movimento hip hop, a capital mineira e depois o país foram entendendo isso aos poucos. Muita gente ouviu também quando uma das deputadas federais de maior destaque nacional abriu mão de seguir na carreira política, com um texto bonito, triste e cortante sobre ser uma mulher negra no branco palácio da política patriarcal tradicional brasileira. Ela fala sobre as experiências, algumas vezes violentas, de trabalhar na institucionalidade, e também a sua mudança de interpretação sobre o que é e o papel do ativismo, que, em suas palavras, não pode ser um lugar de consumo.
Para quem não conhece, ela é ativista, educadora popular e mestra em ciência política. Foi vereadora em Belo Horizonte e deputada federal em Minas Gerais pelo PSOL. Fez parte do projeto Gabinetona, Muitxs e rede Ocupa Política. É diretora executiva do NOSSAS e atua nas lutas de mulheres, negritude, juventude, povos e comunidades tradicionais e populações periféricas.
Eu tive a felicidade de escutá-la em 2016, quando estava em campanha para se tornar vereadora em BH. Eu segui ouvindo a distância, acompanhando como podia seus passos. A Escola também ouviu Áurea e a conversa continua a inspirar nossos passos.
Quisemos, nesse momento, ouvi-la de novo. E ela topou. Nessa conversa, fui acompanhado da Vitória Rodrigues, uma jovem comunicadora e ativista da Escola. Ela perguntou sobre o que Áurea teria a dizer para um jovem que sonha como ela. Eu perguntei sobre a vida dela, a trajetória, o cenário político, e a noção de legado. E pedi para que ela fabulasse também como seria uma política outra, em que todo mundo pudesse permanecer. Também quisemos saber como ela pensa a crise climática. E usamos essa frase dela no título para chamar vocês para esse papo.
Áurea, eu tive a oportunidade de te entrevistar em 2016, quando você estava concorrendo à vereança em BH. Também retomei um texto-diálogo que você teve com a Escola em 2018 e pude acompanhar sua trajetória. Aí chego hoje com vontade de te perguntar: o que que é ativismo, o que que é luta social, que que é militância para você hoje passado por todas essas transformações?
Áurea Carolina: Ah, que delícia responder isso com você, pensando também no meu laço com a Escola de Ativismo. É muito especial parar para pensar nisso, sabe? A entrevista de 2018 com Cássio [Martinho], mas foi um dia muito marcante, inesquecível, porque foi no 14 de Março de 2018 [dia em que a vereadora carioca Marielle Franco foi executada]. A gente não imaginava o que estava por acontecer, assim os desdobramentos são inacreditáveis. Cresceu muito a violência política. Mas também as sementes por Marielle são uma força que só se expande, cresce.
Naquele dia eu fiquei numa peleia em que eu falava que não sou ativista não, sou lutadora. Me parecia que ativista era abrandado. Mas isso é algo que eu revisei um pouco. Essa posição na linha de frente, muito combativa, me custou muito. Nunca abri mão, né? Tenho tatuado aqui “Amor e Luta”. Acho que são partes indissociáveis.
Mas o ativismo é mais flexível, comporta muita coisa. Várias formas de ser que são válidas também para construir cidadania, espaço crítico de mobilização e eu acho que isso hoje me interessa mais também: formas menos rígidas e mais dialógicas.
Eu acho que naquele momento fazia muito sentido para mim colocar naqueles termos porque também a gente estava constituindo um mandato coletivo numa esteira de muita inovação, né? Sem muito parâmetro, tinha uma coisa de construção coletiva que era muito potente baseada nas lutas populares. E esse termo é importante: lutas populares. Porque são movimentos e formas de construção de poder popular. E eu continuo achando importante afirmá-lo. Porque a gente não quer também ficar reiterando qualquer tipo de ativismo, embora eu goste da abrangência da amplitude. Acaba tendo uma coisa às vezes mais superficial, né?
"Questiono o ativismo quando ele aparece como um lugar de consumo. A gente tem que sempre estar pensando em criá-lo em formas mais robustas de organização, de um engajamento com consequência para que as causas avancem. "
Não quero aqui descartar algo que desperta as pessoas. Cada um se engaja individualmente. Mas questiono o ativismo quando ele aparece como um lugar de consumo. A gente tem que sempre estar pensando em criá-lo em formas mais robustas de organização, de um engajamento com consequência para que as causas avancem.
Nisso eu vejo a necessidade das formulações feministas, anti-racistas, dos povos tradicionais. Um entendimento da prática da interseccionalidade. E o que é interseccionalidade? São formas de colaboração que são a vida por inteiro, são modos de vida, são culturas, são práticas nos territórios. E é isso que dá cancha para a mudança. Eu não acredito em nada que não passe pelos sujeitos e pelo território. Eu acho que as elaborações mais interessantes, mais criativas e mais poderosas são mesmo a partir desses grupos. E eu fui aprendendo e me moldando.
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Áurea Carolina – quando a pessoa se torna ativista
Eu passei muitos anos no partido, mas nunca fui uma pessoa de partido. Nunca tive muita paciência, apesar de respeitar e valorizar, como um lugar importante desse ecossistema da transformação. Eu acho que os partidos estão mudando na medida que sujeitas como nós estamos ocupando esses espaços e quebrando formas muito estabelecidas e rígidas também, de teorias e de métodos que eu acho que às vezes são muito violentos e totalizantes.
Mas eu estou muito mais interessada em espaços que vão olhar para as vidas como elas estão acontecendo, sabe? Então eu tô muito mais na cultura popular, colando com quem está lidando com dilemas ali à quente, com as contradições à quente, com as encruzilhadas, com soluções para o dia a dia. Resolutividade, né? Que é uma palavra que eu aprendi com o Nego Bispo e é muito importante na vida assim como na ação política. Tenho pensado e experimentado por aí, depois de ter a experiência da campanha, da candidatura coletiva, do mandato. É sobre poder criar e ir montando o quebra-cabeça. Política como abertura de possibilidades.
"Acho que a gente não pode reproduzir esse carreirismo de tantos mandatos consecutivos no nosso campo"
Quando te entrevistei, em 2016, na época você estava se lançando vereadora pelo Muitxs. Você disse: “Nossa intenção é ocupar a eleição com cidadania e ousadia, para construir mandatos coletivos radicalmente democráticos, que irão transformar a lógica da carreira e do benefício próprio. Queremos criar espaços de resistência e fazer a diferença em políticas públicas, dizendo que é possível conquistar direitos para os grupos subalternizados, construir projetos colaborativamente e denunciar violações nessa arena coletiva que iremos chamar de mandato. Estamos indo para ganhar e não estamos de brincadeira.”. Passados oito anos, como você avalia essa missão que você enunciou naquela época?
Fico feliz de ouvir isso assim porque se mantém quase todo sentido ainda, né? Como algo muito genuíno que, claro, eu estava ali verbalizando mas vinha de muitos lugares de muita gente. E eu pude honrar isso. A comunidade LGBTQIAP+ e o Movimento Negro falam muito da importância do orgulho e eu acho que essas realizações são valiosas e contribuem para processos maiores. A gente não pode subestimar. É quem somos, é nosso poder e isso é muito lindo.
Essa parte do benefício próprio da carreira é uma coisa muito séria para mim. Eu nunca me adaptei naquele ambiente da política institucional, por mais que tenha feito muita coisa ali. Tem um sentimento de realização, mas eu vivia desajustada, adoeci de fato, tive um colapso emocional e entendi que é passagem, não projeto para permanecer indefinidamente.
Acho que foi um trajetória sonhada, experimentada mas que também tem que caducar. Toda geração passa por isso. Tem que ter fim. Não permanecer tanto tempo. Acho que a gente não pode reproduzir esse carreirismo de tantos mandatos consecutivos no nosso campo. Eu senti que a gente deu o que tinha que dar e claro que é um contexto complicado, de luta contra a extrema-direita, mas enfim, entendi que eu tinha dado o que tinha para dar como pessoa e como projeto.
Mas isso sou eu, sou muito inquieta e ninguém precisa ser desse jeito. Penso que durar também não é ruim. Temos mulheres como a Luísa Erundina e a Benedita da Silva que são inspiração e patrimônio para a gente. Uma coisa esplendorosa de aprendizado e inspiração. Uma integridade acima da trajetória. Mas para durar tem que preservar coisas que valem a pena.
Eu tinha uma crise muito grande que era assim: tem uma profecia de que nós não damos conta, né? Uma mulher negra com a minha origem já tem uma expectativa de fracasso. Então se eu não continuo, será que eu não tô alimentando esse ciclo também? Mas aí depois de muito pensar entendi que investindo, por exemplo, na candidatura da Célia Xakriabá, eleita deputada federal em 2022, que foi do mandato, era uma expansão. Existem muitas formas de lidar com essa desistência.
Áurea Carolina durante sua atuação como deputada federal
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Vitória Rodrigues l Escola de Ativismo: Te ouvir me trouxe muitas coisas. Eu participei no ensino médio do parlamento jovem e entendi que queria estar na política institucional em algum momento. Ver alguém como eu com a caneta na mão. E essa parte da finitude do projeto é muito importante para mim. Eu achei muito honesto quando li seu texto sobre sua saída da política institucional. Aí queria te perguntar o que você diria para uma pessoa jovem como eu, que quer chegar lá um dia e um dia sair também.
AC: Que legal isso, Vitória. Eu sempre botei muito valor nesses projetos de educação política, sempre parava minha agenda para atender, porque a gente nunca sabe quando vai inspirar uma Vitória e isso é lindo demais.
Eu entendo que temos mudanças geracionais. A geração anterior tinha uma coisa maior de estabilidade, de permanecer numa determinada coisa. Meu palpite é que hoje tudo está mais fluido. A vida acelerou e gerou outra dinâmica com a tecnologia, as redes sociais, a precarização do mundo do trabalho. São coisas que vão moldando nossa subjetividade e passam para a política. E essas gerações mais jovens, de lideranças e ativistas, ocupando a política institucional trazem um frescor. Conjugam e desaguam muitas experiências, de organização comunitária, de projetos da sociedade civil ou até de lugar mais acadêmico. Um mosaico potente, diverso, criativo e colaborativo.
Então mete bala, viu? Eu tô acompanhando mais o movimento aqui no Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense e tô vendo um despertar de muita coisa legal, de lideranças periféricas, de criação de agenda, de gente que tá no território com sangue nos olhos e disposição de construir.
E acho que pensando na política institucional precisamos de gente para candidaturas, mas também para assessoria de mandato, de interlocução com a cidadania. São todas válidas e necessárias. Eu fazia muita questão de ressaltar isso, de tentar tirar o foco de mim, porque tinha muita gente incrível fazendo um trabalho de excelência no mandato, até adoecendo, porque as condições são adversas e a gente tem que cuidar de todo mundo.
Eu fico te ouvindo e lembrando dessa energia dos movimentos, de hackear a política, de ocupar que a gente trouxe dos anos 2010 e como ela foi se colocando na política e realmente trazendo muita coisa nova e importante. Por outro lado, a gente viu nesses últimos anos uma perda importante de bancadas de centro-esquerda e um crescimento da ultra-direita. Como você enxerga esses processos?
AC: Eu vejo tudo com entusiasmo ainda, apesar de tudo, a era das trevas taí, mas essas coisas coexistem, né? Acho que vamos levar uma lapada nessas eleições [municipais de 2024] porque a extrema-direita está se organizando e a gente está pecando nessa parte. A galera não está ligada em planejamento, gestão, interiorização, implementação. E tem a estrutura partidária. Conheci muitas mulheres negras, lideranças populares que tiveram que se filiar nesses partidos de centrão porque era o que tinha na cidade delas. E a gente nunca conseguiu encarar esse quadro de frente, mesmo com a montanha de recurso que existe para financiar a política institucional e o sistema partidário.
E eu estou muito cansada nesse aspecto. Tenho muita raiva ainda não processada porque a gente tem muita responsabilidade nisso, não tudo, mas temos nossa parcela. Ao mesmo tempo, eu acho que os mandatos ativistas são uma coisa incrível também cheia de nuances, potências, limites, contradições e dificuldades, mas que estão fazendo grandes coisas. Quando eu finalizei o mandato de deputada federal, eu meio que prometi para mim assim, “cara, eu vou de alguma forma contribuir com esses mandatos porque eu sei como que é foda”.
E eu propus que a gente fizesse uma espécie de diagnóstico sobre a real desses mandatos, o que que tá acontecendo com eles? Por que eu acho que todo mundo tem que se corresponsabilizar um pouco para sustentar esse trabalho que é de fazer uma mediação com a cidadania dentro do sistema político. Não dá pra ser só uma relação de consumo.
"Eu ando movida pela imagem e pelo sentimento do ecossistema. De entender a insuficiência das partes, de prezar pela independência e de colaborar. E colaborar não é só palavrinha. É trabalho, tem uma ética e uma forma de construir política e coalizões."
A gente precisa tornar esses mandatos mais sustentáveis porque é de interesse público que eles deem certo. Mas o que a gente mais encontra é a galera pirando e adoecendo. Então como a gente vai dar conta da demanda de saúde mental? E mais: pensando que são processos finitos, como vamos sistematizar nossas práticas para quem vem depois? Porque a gente está falando de Brasil onde a produção de memória é sistematicamente sabotada. A gente precisa deixar essas mensagens na garrafa para o futuro, para se tornarem coisas remixáveis, replicáveis, adaptáveis.
E quais as principais ferramentas que você enxerga para o campo da luta popular, da sociedade civil, do ativismo, daqui para 2026?
AC: Eu ando movida pela imagem e pelo sentimento do ecossistema. De entender a insuficiência das partes, de prezar pela independência e de colaborar.
E colaborar não é só palavrinha. É trabalho, tem uma ética e uma forma de construir política e coalizões. Coalizões é uma termo que ficou muito na moda, mas que eu vejo que tem uma força muito importante . De juntar organizações distintas em prol de causas comuns. De pensar essa heterogeneidade absurda do Brasil numa perspectiva de compartilhamento de conhecimento.
Temos iniciativas importantes nesse campo, o Pacto pela Democracia é uma, houve a campanha pela ministra negra no Supremo Tribunal Federal (STF) que foi bem sucedida apesar de não termos tido essa conquista, mas elevou o debate público e abriu uma discussão sobre racismo institucional no judiciário.
E eu acho que a chave está por aí, nas redes e coalizões, e numa sociedade civil movida pela resolutividade, como um valor mesmo. Eu sou neta de nego Bispo e acho que a gente não pode cochilar mesmo, que a vida acontece. A resolutividade é um senso de entrega, não afobação, mas um jeito de olhar os problemas, as adversidades, os conflitos. Como encarar passos que nem sempre serão os mais acertados mas acontecem pautados por uma ética, uma honestidade e uma ousadia. Porque se não fica uma coisa paralisada demais. E essa é uma das minhas críticas à esquerda convencional do Século 20.
Que exemplos você traz dessa resolutividade?
AC: Estamos com uma construção bem bonita de formação de Agentes Populares para Gestão de Risco Climático em comunidades. E aí passa por mobilização, comunicação estratégica, tecnologias cívicas e isso só pode acontecer num sistema de muita colaboração porque tem muita gente fazendo.
E é difícil porque são resultados pontuais e a gente precisa de algo escalável porque a urgência tá ali. É evento extremo atrás de evento extremo, então não vamos ficar perdendo tempo com o que não interessa.
Também me inspiro muito vendo iniciativas como Acampamento Terra Livre, a organização das mulheres indígenas que têm formulações maravilhosas e elas se propuseram ocupar a política institucional e estão botando para rachar com uma visão estratégica de constituir parcerias que é muito mais generosa e perspicaz do que a do mundo branco, do mundo não-indígena.
Teve uma Marcha das Mulheres Indígenas que aconteceu com um lema que dizia “O território é nosso corpo e nosso espírito”. E isso é o que? É matéria prima de tudo que a gente pode realizar, sentir e sonhar.
"Todo mundo tem que virar ativista climático, não tem para onde ir. Não é possível mais modular cidadania sem a dimensão climática. Não existe."
Falando em urgências e nesses movimentos, queria te escutar falando sobre sua visão da questão da crise climática e o que pode ser feito.
Estou aprendendo muito. Assim, eu venho lá do hip hop, o negócio era urbano. Eu não tava nem aí, não fazia parte do meu repertório a questão socioambiental climática. Até que aconteceu o crime da Vale em Brumadinho e nós tivemos que abraçar a luta dos atingidos.
E enfim, a questão climática vai afetar questões globais, financeiras, modos de produção, tudo. E a gente precisa fazer um entrelaçamento de pautas. Essa confluência interseccional que está sendo dita por pessoas há décadas, mas é isso, eu acho que a água bateu na bunda e todo mundo tem que virar ativista climático, não tem para onde ir. Não é possível mais modular cidadania sem a dimensão climática. Não existe.
A nossa vida está sob pressão, nós estamos vivendo sob uma guerra, né? Como diz a Eliane Brum, é guerra climática. Então vou entendendo isso com dor, angústia, ansiedade, mas também com esperança da possibilidade de ter caminho, de cuidar da vida.
E hoje a gente tem um movimento climático pautando esse impacto nas periferias das cidades. E é uma coisa revolucionária. Eu fico escutando a galera e penso “nossa, benzadeus, o tanto de trabalho que foi feito por tanta gente para ter esses meninos ai de vinte e poucos anos que estão arregaçando nessa pauta”. Que tão pensando em como a gente se prepara para viver essa guerra climática, na diversidade de formas de construir, de ter um espírito comum, de juntar e espalhar as habilidades e ferramentas que a gente vai precisar para se proteger.
Eu li uma entrevista sua no qual você falava sobre a incompatibilidade dos espaços da política institucional com vidas que não sejam de homens brancos e ricos. Sobre como não é um espaço preparado para pessoas que cuidam de outras pessoas. De como é um espaço violento. E aí queria te pedir para você fabular com a gente aqui o que seria uma arquitetura de espaços democráticos para todas as pessoas?
AC: Eu acho que a chave está nos cuidados. Eu tenho visto assim uma revolução pelos cuidados dentro de uma formulação cada vez mais consistente. Não só políticas de cuidados, mas de como se constrói a prática do cuidado. E isso vem de construções feministas, pelo Bem Viver, dos povos tradicionais, da agroecologia. Temos lugares dedicados a essa dimensão, mas os cuidados precisam estar em todos os lugares.
Eu sou mãe solo e estou voltando para Belo Horizonte porque lá tem minha rede. E é muito estruturante na minha vida isso, eu não abro mão por nada dessa dimensão. Respeito ao máximo meus horários de trabalho e faço questão de mostrar isso para equipe sendo diretora-executiva de uma organização, nessa perspectiva de dar o exemplo.
Depois da pandemia, todo mundo ficou meio dodói, né? Não só por Covid, mas saúde mental assim, eu acho que algumas coisas que já estavam sendo ditas sobre cuidados ficaram mais nítidas. E é muito possível essa transformação, um mundo assim não é nada metafísico, é bastante concreto.
Acho que a dimensão do cuidado, que é compartilhada, está muito fraturada. E sermos radicalmente diferentes de tudo que nos trouxe até aqui passa por isso mesmo.
AC: Sim, e eu acredito muito no encontro. Porque as posições são uma coisa. Mas o sujeito é diferente. O sujeito é interpelável. A não ser que seja assim um cara muito sem escuta e aí você larga mão. Mas eu sou educadora popular. Eu acredito muito nos processos.
Porque essa coisa de rede social cansa. Fica uma subjetividade muito burra. Um beco sem saída. Mas fora delas é sempre muito possível. O encontro é uma coisa formidável.
TEXTO
publicado em
24/09/2024
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Pensamentos e comportamentos dos ultraconservadores ficam mais explícitos durante campanhas políticas. Mas e quando eles vêm do vizinho da rua?
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Foto: Ravi Kotecha / Edição: Vitória Rodrigues
A derrota nas urnas em 2022 e toda a visibilidade e repercussão sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro não foram suficientes para pôr fim à extrema-direita. Isso fica ainda mais explícito com a chegada de um novo período eleitoral. É justamente nessa época que as condutas de extremistas ganham palco e chamam atenção para com quem estamos lidando. Pesquisadores da área política afirmam que é necessário saber identificar quem pode representar algum tipo de risco em cada um dos mais de 5.500 municípios brasileiros. Além dos candidatos ultraconservadores, parte do eleitorado também deve ser observado, já que, em muitos casos, ele pode ser o vizinho do lado. O que gera a pergunta, como lidar quando esse discurso não está na televisão, mas vindo pela janela?
O perigo é real, não apenas retórico
Maíra Berutti, comunicóloga e diretora de inteligência da Quid – laboratório de comunicação para a disputa de opinião pública na defesa de valores democráticos e progressistas – diz que é impossível ignorar os efeitos perigosos do voto em figuras da extrema-direita, que colocam a vida em risco.
“Temos o exemplo da postura negacionista frente à ciência, que reduziu os índices de vacinação no Brasil no pós Bolsonaro, ou como a guerra às drogas legitima o uso excessivo de força e cria um ambiente em que a violência policial é vista como necessária e justificável, causando o genocídio de jovens negros”, explicou.
Para ela, a extrema-direita continua sendo um movimento que aposta em discursos que colocam em risco a vida de determinados grupos na sociedade, gerando um ambiente de discriminação e violência. Por isso, é preciso ter cuidado com quem se autodefine bolsonarista. Se a relação com um vizinho, por exemplo, não for das melhores por conta de divergência política, durante as eleições é preciso evitar contato e principalmente não entrar em assuntos sobre política, partidos e agendas.
“O desgaste é certo e a mudança no ponteiro praticamente nula. É importante identificá-los e encontrar temáticas em que haja consenso, para que a partir dessas pautas se possa viabilizar um diálogo possível", explica Maíra.
Apesar de tudo isso, a pesquisadora acredita que é possível manter uma relação respeitosa e pacífica com um vizinho mais conservador. “O que observamos é que para além da bolha mais radical, há muito espaço para encontrar consenso principalmente em conversas mais relacionadas a políticas públicas. A polarização, ainda que seja uma realidade ao falarmos de eleições, não se materializa para temáticas relacionadas à saúde, educação ou meio ambiente, onde é possível e necessário fazer o debate de ideias”, afirma Maíra.
Mas quando as opiniões são muito diferentes e os dois lados defendem pautas totalmente opostas, o cenário é outro. “Assim é difícil. Quando falamos de discursos que colocam em risco a vida de determinados grupos na sociedade, gerando um ambiente de discriminação e violência, a situação fica ainda mais grave”, disse.
O doutor em Antropologia Social e Babalawó de Ifá Orlando Calheiros é também escritor e costuma refletir sobre os efeitos do bolsonarismo. Ele explica que nem todas as pessoas que votaram em Bolsonaro são extremistas. Há eleitores que tiveram motivações distintas, como insatisfações anteriores e promessas. Além disso, ele afirma que é preciso compreender que a verdadeira face de Bolsonaro não chega para todo mundo e que muitas pessoas estão ‘presas’ em redes que impedem essas informações de chegar até elas. Há quem acredite que as informações sobre seu verdadeiro comportamento sejam ‘propagandas’ dos opositores políticos.
“Os setores progressistas tendem a ver essas pessoas como uma massa hegemônica, quando as pesquisas mostram que não o são. Inclusive, é importante identificar as diferentes parcelas desse eleitorado para elaborar estratégias para que eles não sejam tragados para esse lado mais extremo do campo conservador”, afirma Calheiros.
Apesar de pensarmos instantaneamente que o adesivo no carro indique que a pessoa reproduz discursos extremistas, racistas, LGBTfóbicos e machistas, essa não é uma regra. Calheiros explica que há situações em que é possível ter uma convivência segura e tranquila.
“Existem pessoas que, apesar de conservadoras, estão mais abertas ao diálogo, mas também existem aquelas que irão te ver como um inimigo. É importante saber diferenciar, entender se é possível se aproximar e como é possível se aproximar. Entender o motivo que leva aquela pessoa a votar nesse ou naquele candidato e elaborar uma resposta para aquilo”.
E se a relação permitir e o eleitor da direita for alguém mais íntimo – conhecido, amigo, parente ou colega de trabalho – ainda é possível tentar virar não só o voto, mas também os ideais. “Quando estamos falando desse “núcleo duro” da extrema-direita estamos falando de pessoas que talvez estejam para além do nosso alcance imediato. É importante compreender isso. E nos focarmos não apenas nos indecisos, mas também nos eleitores que ainda podem ser influenciados pelos ideais progressistas”, afirmou Calheiros.
De uma forma ou de outra, essas pessoas colaboraram com o fortalecimento da direita ou da extrema direita. O antropólogo acredita que quatro aspectos são fundamentais para explicar esse crescimento no Brasil e a sua consolidação como um campo.
“O primeiro deles é a forma como o Brasil ‘escolheu’ promover a cidadania ao longo das últimas décadas. Cidadania pelo consumo. Estimulando a criação e consolidação de uma classe média. Essa classe média não é apenas um recorte econômico, ela é um grupo da sociedade que acaba tendo interesses muito próprios e alinhados com o projeto ultraliberal que rapidamente se alinha com a extrema-direita. O segundo é justamente o crescimento de algumas vertentes evangélicas alinhadas com essa cosmologia ultraliberal. O terceiro é justamente os interesses de alguns setores, como o agro, que se financiam a promoção dessas ideias. O último aspecto é a explosão das redes sociais, a forma como elas foram incorporadas pela população brasileira. Especialmente as redes de feed oculto, como o Whatsapp”, explicou.
Nesse contexto, Calheiros aponta que é importante que o campo progressista também cresça com organização e pensando em retomar campanhas de ocupação e produção de presença nos territórios. Por exemplo, apoiando comitês populares, fazendo ações contínuas nas periferias. O famoso trabalho de base.
Tentativa e golpe em janeiro de 2023 / Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Extremistas no grupo do zap do bairro
Quando é preciso lidar com extremistas nas redes sociais, também é preciso ter cuidado. Se considerarmos que o WhatsApp é uma das principais ferramentas de debate político, chegamos ao ponto de que, no lugar de discutir com alguém a milhares de quilômetros, pode ser alguém que está no grupo da sua rua, bairro ou outro lugar bem próximo fisicamente. Verdadeiras campanhas de desinformação foram usadas durante as eleições de 2018 e a cena se repetiu de forma mais intensa em 2022. E agora volta à tona em 2024.
Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo, não esconde que precisa de cortes estratégicos de vídeos para chegar da forma que preferir em seus seguidores. Isso mostra que, para alguns candidatos, gerar situações e manipular eleitores durante a campanha faz parte do jogo. Marçal conta com um exército de pessoas contratadas para fazer esses cortes, já denunciadas pela Justiça Eleitoral.
De todo modo, ele e outros candidatos extremistas seguem inundando as redes como essas mentiras, na certeza de que ganharão visibilidade, mesmo que seja falando mal. A própria imprensa, que por um lado critica as ações do coach, vê o número de cliques e acessos das matérias aumentar quando embarcam nas polêmicas. Assim, por mais que haja um discurso de reprovação, fazem o serviço de catapultar o nome dos candidatos a um público que talvez ainda não os conheça.
O dilema para os ativistas é se vale ou não debater quando esses conteúdos chegam. Uma estratégia é denunciar os usuários ou perfis disseminadores de discurso de ódio, e em caso de perfis profissionais, ocultar os comentários. Sabendo, porém, que as redes sociais – assim como parte da imprensa – estão mais preocupadas com o fluxo, acesso e permanência do que com a veracidade das informações. Então a exclusão de perfis nunca segue a velocidade de propagação das mentiras.
“É importante lembrar que a dinâmica de engajamento em conteúdos assim pode inclusive resultar em seu maior impulsionamento e visibilidade na rede, portanto, evitar interagir é de fato uma estratégia não só para saúde mental mas para diminuir o alcance dos conteúdos”, disse Maíra.
Combater a desinformação e mensagens de ódio também cria o problema de que, com isso, perdemos o foco que deveria ser levar nossas mensagens para mais e mais pessoas. “Muitas vezes olhamos apenas para os nossos ‘inimigos’ e nos esquecemos que eles crescem, justamente, na nossa incapacidade de propagar as nossas mensagens”, afirmou Calheiros.
Extrema-direita reconfigurada
A ascensão da extrema-direita no Brasil ainda é sentida e a sociedade carrega nas costas a pressão e os impactos de uma grande ameaça à democracia. Mas Maíra, pesquisadora da Quid, acredita que o bolsonarismo já não é o mesmo. O movimento precisou se reconfigurar para continuar existindo. Antes centrado em em uma figura única, tornou-se descentralizado. É o que também mostra o fenômeno Pablo Marçal.
“Isso sinaliza um contexto de ruptura no bolsonarismo, com um candidato que tem atraído os eleitores mesmo sem o apoio formal de sua principal liderança. O que sugere que o bolsonarismo não se limita mais a Bolsonaro, mas se torna um espectro de ideais conservadores que pode ser representado por novas lideranças que não compartilham necessariamente do estilo ou das atitudes de Bolsonaro”, afirmou Maíra.
Calheiros concorda que outras faces carregam o nome do movimento e já escreveu que a extrema direita não precisa de Jair Bolsonaro para espalhar suas ideias. Mas para ele, o bolsonarismo chega em 2024 enfraquecido e lutando desesperadamente para manter a hegemonia da direita.
“Bolsonaro foi antes de tudo um sintoma. Passamos os últimos anos tentando identificar as causas desse vírus, como esse vírus infecta outras pessoas e conseguimos estabelecer algumas respostas. Digo no sentido prático mesmo. Eles perderam a eleição, não é mesmo? O problema é que a doença está se transformando, produzindo outros sintomas, como Marçal, como Nikolas. E talvez ainda não tenhamos respostas para eles”.
A verdade é que apagar completamente o bolsonarismo pode ser improvável, mas é possível reduzir sua influência. Só por meio de um esforço coletivo, que inclui a população brasileira e os setores da sociedade, será possível construir um futuro mais justo e igualitário e com convívio amistoso.
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Além da nossa resistência territorial, há maneiras estratégicas e criativas de protestar contra a inação de governos diante da crise do clima. Que tal usar a criatividade como ferramenta de resistência e meios alternativos de mobilização? Veja cinco dicas criativas de táticas de ação direta que já foram usadas por ativistas em protestos no Brasil.
Fazer críticas à condução da política ambiental brasileira de forma descontraída e sarcástica pode ser um caminho de garantir que sejamos vistos e ouvidos. E, se quiser realizar uma ação direta de sucesso, veja o nosso guia especial “Ação direta, como planejar e fazer”.
Mas a mobilização não é só sobre protestos e manifestações públicas. Existe um trabalho de base muito importante acontecendo dentro das comunidades. E quem precisa lutar pelo seu território precisa resistir de várias formas. Resistir não é apenas se fortalecer como indivíduo, é também se fortalecer coletivamente, seja por meio de organizações estruturadas, artivismo, comunicação popular. É respeitar também quem veio antes e usar esse conhecimento que foi passado para proteger os de agora e os que vem depois. Ou seja, é quando pensamos não apenas nas nossas florestas, mas nas vidas que estão nelas e no entorno, temos a compreensão do que é o meio ambiente e como resistir diante de tantas violências.
Estratégias no campo e em áreas urbanas
Mesmo em áreas urbanas é possível e necessário pensar em meio ambiente. Usar técnicas de reflorestamento e plantar enquanto nossos inimigos queimam e desmatam faz toda a diferença.
Foi o que fizeram grupos de pessoas em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Convidadas pelo Instituto EAE (Educação Ambiental e Ecoturismo), que faz trabalhos para promover a preservação do meio ambiente, do patrimônio cultural e natural da conhecida Serra do Vulcão, pessoas entusiasmadas se reuniram em uma grande ação em prol da vida: um plantio de árvores. A ação faz parte da ação #ElesQueimamNósPlantamos.
A comunidade local acredita que é fundamental que as novas gerações olhem para a preservação com cuidado. Uma das pessoas que também foram atraídas para fazer plantios na Serra é a guia de turismo Raimunda Delanda, de 86 anos. Para ela, as gerações atuais devem ser atuantes pela preservação daquilo que já existe e pela reparação do que foi destruído. “Eu falo pro mais jovem pra ele tomar conta do seu espaço. Tomar conta dele, cuidar do meio ambiente, porque o jovem vai precisar muito mais do que eu. Eu ainda estou construindo hoje para vocês, mais jovens. Só que eu estou indo. E alguém tem que ficar cuidando”, disse.
Ativistas e comunidades têm mantido rios vivos, plantado árvores e inclusive mostrando que é possível fazer uma transição energética popular. O projeto Veredas Sol e Lares, uma usina solar fotovoltaica desenvolvida no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, foi uma proposta pelo Movimento Atingidos por Barragens e parceiros, a usina foi desenvolvida com protagonismo das comunidades em todas as etapas. Mais do que um projeto energético, a iniciativa é uma experiência de desenvolvimento comunitário, no qual foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina.
Mantendo rios vivos
A experiência do Vão Grande, região que reúne cinco comunidades quilombolas no Pantanal mato-grossense, mostra que a relação entre povo e rios é intensa. Em 2021, os quilombolas conseguiram barrar na Justiça a construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH), tipo de usina que, apesar do porte, causa grandes impactos biológicos e sociais na região onde é construída. Para proteger o Rio Jauquara, cujas margens servem de refúgio e subsistência desde a fuga de seus ancestrais escravizados, uma das táticas usadas foi criar, no dia 28 de abril, o Dia do Rio Jauquara, que valoriza a relação dos quilombolas com o rio, o que serviu de base também para a Justiça impedir a construção que acabaria com esse modo de vida.
Cultura como ponto de partida
Pense que existem formas variadas de fazer resistência. A cultura, por exemplo, tem a ver com a crise climática e pode ser uma estratégia de mobilização. Marcele Oliveira, produtora cultural, comunicadora e ativista climática, refletiu sobre como cultura pode, de forma efetiva, ser aliada no combate à emergência climática.
Ela explica que utilizar o discurso ‘cancele o evento cultural’ para contestar as consequências das mudanças climáticas que nos atingem não é eficiente. E se formos falar em eventos, ecobag e copo eco já não são as inovações do momento. “Sustentável mesmo é envolver cooperativas de resíduos sólidos e visibilizá-las ao público, valorizar trabalhos feitos por comunidades que protegem o bioma onde aquele encontro se realiza, alocar o discurso de solidariedade ao discurso de emergência, cobrança e mobilização em torno de um apoio governamental para adaptar os editais culturais considerando medidas alternativas para ondas de calor ou de chuvas excessivas. É necessário prevenir, conscientizar e politizar sim o debate nesse âmbito, onde o encontro e união de pessoas para a diversão também as sensibiliza para olhar além da tragédia em si”, afirma Marcelle.
A cultura para fomentar a luta em defesa dos territórios e fortalecer narrativas. No Pará, um projeto leva, de barco, filmes regionais para comunidades à beira do rio. A ação itinerante do Instituto Regatão Amazônia exibe curtas e longa-metragens em aldeias e comunidades ribeirinhas da Amazônia com objetivo de popularizar o cinema e torná-lo um instrumento democrático para manter viva as culturas amazônicas e fomentar a luta em defesa dos territórios da floresta. “Os filmes apresentam conexões com o fazer cultural das comunidades ribeirinhas, o que contribui para preservar nossa biodiversidade. São promovidos diálogos com as comunidades desses filmes que abordam o cotidiano e a cultura das comunidades locais”, diz Marlena Soares, presidenta do Instituto.
A força do ativismo ancestral
O que pode ter mais força do que o ativismo ancestral? Povos quilombolas provam que o afeto, a identidade, autocuidado e educação são bases da resistência principalmente entre as mulheres. Os modos de vida dentro dos territórios são fundamentais para o fortalecimento da luta contra diversas desigualdades. Esse movimento tem despertado as novas gerações para o empoderado e para a luta
A luta pelo território, pela natureza e pela vida leva comunidades a outras discussões importantes, entre elas, a liberdade estética. Apesar das violações de direitos que ainda afetam os quilombos, o ativismo ancestral acendeu uma nova geração: a de mulheres e meninas quilombolas empoderadas e orgulhosas da aparência e da identidade ancestral.
“Cresci me achando linda graças às mulheres do meu quilombo, à luta do movimento quilombola e à construção matriarcal da minha comunidade. Em nenhum momento da vida fui ensinada que eu teria que me adequar aos espaços. Pelo contrário. Eu cresci ouvindo que os espaços teriam que se adequar à minha presença e a tudo que sou, desde o meu tom de pele a todas as formas que gosto de usar meu cabelo. O amor próprio se constrói e, como eu cresci nesse processo, sempre fui instigada a me amar”, disse Lorena Bezerra, quilombola da comunidade Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE).
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Resistência climática: rememorando táticas de ação direta criativa
GUIA: Ação Direta - como planejar e fazer
Resistência climática nos territórios: o que é e como fazer
Eles queimam, nós plantamos: a resistência ambiental na Baixada Fluminense (RJ)
Moradores fazem mutirões de plantio para reflorestar áreas degradadas na Serra do Vulcão, em Nova Iguaçu. No entorno da Serra, é possível ver como Nova Iguaçu é grande: de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população iguaçuana conta com 785.867 pessoas. Em um lugar tão bonito e potente, o racismo ambiental também reina — o último Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense mostra que 93% foi o percentual de negros internados por doenças transmitidas pela água em relação ao total de internados. LEIA AQUI
É possível pensar em uma transição energética popular? Uma experiência brasileira diz que sim
Como uma comunidade pode comemorar o aniversário de um rio e impedir sua destruição
E se a cultura fosse estratégia de mobilização para o enfrentamento à crise climática?
Um barco chamado cinema: projeto leva filmes paraenses para comunidades à beira do rio
Ativismo ancestral: identidade, autocuidado e educação são bases da resistência das mulheres quilombolas
OS MAIS IMPACTADOS PELA CRISE CLIMÁTICA
Frente às mudanças climáticas, as pessoas não são afetadas da mesma forma. Quem mais sofre com os impactos das mudanças climáticas são as pessoas mais preocupadas em não poluir. Fatores como raça, gênero e classe evidenciam essas injustiças climáticas e ambientais e tornam algumas pessoas e lugares mais suscetíveis a sofrerem grandes perdas. Não é segredo para ninguém que o aumento da frequência dos eventos climáticos extremos têm deslocado e vulnerabilizado cada vez mais pessoas no Brasil.
Por isso, o texto escrito por pesquisadoras da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (RESAMA) discute termos como “refugiado climática”, explica como os efeitos adversos da mudança climática colocam em risco os direitos humanos e aponta que os desastres são resultados de escolhas humanas e decisões políticas. Os eventos escancaram o despreparo das cidades brasileiras em prevenir, responder e se adaptar aos eventos climáticos, especialmente no que diz respeito aos grupos e comunidades mais expostas.
“Aos milhares de desalojados e desabrigados em caráter temporário, somam-se os indivíduos e comunidades que foram deslocadas pelo desastre ou que agora planejam migrar. Ao perderem suas casas, territórios e meios de subsistência, as pessoas que já estavam em uma situação de vulnerabilidade, ficam ainda mais expostas à violações de direitos humanos e nem sempre conseguem retornar ao seu lugar. Assim, pessoas desabrigadas ou desalojadas podem se tornar deslocadas à medida que o cenário do desastre ou efeito da mudança climática se desenrola; da mesma forma como os deslocamentos temporários podem se prolongar no tempo e se tornarem permanentes”.
Infâncias impactadas
Os eventos climáticos extremos também têm aumentado a vulnerabilidade infantil e prejudicado o desenvolvimento das crianças, principalmente de meninas. Os motivos para a violação vão desde a desigualdade econômica até a violência de gênero.
O casamento infantil no país é uma das violências que as meninas já sofrem, mas que é — e pode ser ainda mais — agravada pela crise climática. A falta de acesso à água, inundações, falta de abrigo, secas… são situações que ocasionam um aumento da miséria dentro desses contextos. Diante de tanta instabilidade, famílias podem ver vantagem em casar uma filha para reduzir o número de pessoas na casa e fugir da pobreza extrema.
A UNICEF relata que, em 2021, um bilhão de crianças e adolescentes foram expostos a pelo menos um risco climático, sejam secas, inundações, poluição do ar e ondas de calor. No mundo inteiro, isso gera fome, desnutrição, doenças respiratórias, perda de patrimônios socioculturais, rompimento de vínculos familiares e até mesmo mortes.
População LGBTQIA+ entre as mais afetadas
Lidar com as mudanças climáticas requer estratégias de prevenção, o que traz a necessidade de pensar no cuidado voltado para grupos que já são vulnerabilizados, como lugares seguros para a população trans. De acordo com um estudo do Chapin Hall na Universidade de Chicago, os jovens LGBTQIA+ são 120% mais propensos a viver sem-teto do que os jovens não-LGBTQIA+. Na realidade brasileira, pesquisas regionais têm apontado para o crescimento da população LGBTQIA+ nas ruas. A situação coloca essas pessoas na linha de frente das mudanças climáticas, sendo as primeiras impactadas pelo calor ou frio extremos, chuvas, seca, poluição e outros riscos.
Mas a luta climática pode ser construída junto à pauta LGBTQIA +. É possível visualizar a força que a essa comunidade possui para a união em momentos de emergência. Isso somado a nossa forma de olhar para o outro de maneira cuidadosa, com respeito e empatia sobre a diversidade que compõe a história de cada um, pode ser uma ferramenta essencial para construir pontes, ao invés de muros e mudar o curso da crise climática que assola o nosso planeta.
Na linha de frente
Quem se coloca na linha de frente para a defesa do planeta acaba sendo atacado. Ativistas climáticos, defensores do meio ambiente e lideranças indígenas e quilombolas estão em situação de risco.
Um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 2.203 conflitos no campo no ano passado, uma média de seis por dia – o maior número registrado em uma década, desde o início da pesquisa. O aumento foi de mais de 7% se comparado com 2022. As ocorrências envolvem povos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, assentados e outras comunidades tradicionais. 31 pessoas foram mortas no período.
A lentidão em resolver processos de regularização territorial é um dos fatores de ameaça para as comunidades quilombolas. Em todo o Brasil a luta pela titulação de territórios quilombolas é um ato de resistência, principalmente contra a mercantilização da terra ancestral.
Lideranças, ativistas e defensores de territórios tradicionais cobram celeridade nas titulações. É o mínimo, já que o Estado Brasileiro age rapidamente para liberar licenças ambientais que permitem grandes desmatamentos, mas demora séculos para titular os territórios quilombolas em que vivem famílias em situação de perigo, vulnerabilidade e sem acesso a políticas públicas.
Tentativa de silenciamento
Defender os biomas e seus territórios no país costuma ter um preço muito alto, que ficou ainda mais caro nos últimos anos por conta de uma política agressiva e de não inclusão de pautas ambientais nos seus projetos. Quem fala sobre essas injustiças fica na mira. Comunicadores da Amazônia vivem sob ameaças e perseguições porque trabalham denunciando e dando visibilidade às invasões de territórios indígenas, garimpo ilegal, exploração de madeira e outras irregularidades que resumem uma disputa brutal por territórios e recursos.
O relatório “Fronteiras da Informação” do Instituto Vladimir Herzog, divulgou informações sobre jornalismo e violência na região. A pesquisa mostra que as apurações que envolvem crimes na Amazônia motivam ameaças, agressões e mortes, como as do jornalista Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, assassinados em junho de 2022 enquanto apuravam crimes ambientais na região do Vale do Javari, no Amazonas.
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Desastres, migração e deslocamento: a luta por direitos das pessoas e comunidades afetadas pela crise climática no Brasil
Clima e infância: crise climática aumenta vulnerabilidade e violência contra as meninas
As mudanças climáticas impactam a população LGBTQIA+. De que maneira podemos nos proteger?
Conflitos no campo batem recorde em 2023; CPT aponta aumento de ações de resistência territorial
Violência contra comunicadores na Amazônia atinge 230 casos em dez anos; leia relatório
CUIDADOS COM O CORPO, MENTE E ALMA
As comunidades originárias e tradicionais, ativistas e defensores precisam estar em segurança para continuar na luta. É impressindível ter estratégias para segurança integral e ter camadas extras de proteção. Construir protocolos e contar com medidas de segurança podem estimular e fortalecer o processo de luta política por direitos no Brasil.
A responsabilidade da garantia de segurança às vítimas é do Estado, mas com tantas falhas, é importante que as pessoas que vivem em condições de vulnerabilidade também se auto protejam e participem de todo o processo da elaboração da sua própria estratégia de segurança. Por isso, a Escola de Ativismo desenvolveu o “Guia de Avaliação de Riscos e Medidas de Segurança”. Isso mitiga perigos e permite que os grupos possam continuar fazendo seus trabalhos mesmo sabendo que o governo não proporciona toda a segurança esperada.
No seu ativismo, cuide também da saúde mental, por isso mostramos como ativistas lidam com a ansiedade a angústia de viver a crise do clima. Não existe tranquilidade quando o território está em perigo. O medo, apagamento de modos de vida tradicionais e sensação de impotência fazem parte da ansiedade climática. Para combatê-la busque apoio e acolhimento nos movimentos dos quais faz parte. Entender a ansiedade climática como uma questão coletiva é fundamental para atravessá-la. Por isso temos um caderno de cuidado específico sobre o tema da ansiedade. Do mesmo modo, sabemos o quanto é importante pensar nas noites tranquilas, e a necessidade de pensar sobre a insônia. Também faça exercícios físicos e tenha hobbies paralelos à luta. Cuide do corpo e da mente.
A proteção espiritual
O trabalho da Escola de Ativismo abarca várias dimensões da segurança, como a digital, de informação, física, patrimonial e organizacional. Nesse campo, a Escola atua com toda a diversidade de povos e comunidades tradicionais, assim como com as organizações e movimentos populares que os apoiam. “Na trajetória da Escola, atuamos muito com oficinas, em espaços de escuta das demandas das comunidades e das organizações, e, nesse processo, entendemos que os aspectos psicossociais e espirituais são fundamentais para como esses povos se organizam. Por entender essa importância, é algo que temos incorporado em nossas oficinas de segurança integral”, contextualiza Márcia Maria Nóbrega, a Escola
Márcia explica que tem ouvido muito nas oficinas que nunca alguém ou algo está seguro se não há uma proteção espiritual. “Por isso temos tentado entender como podemos trazer essa sabedoria dos povos tradicionais para os processos formativos e para os planos de ação e segurança elaborados junto às organizações e comunidades. A proteção espiritual é algo novo para nós, e ancestral para os povos.” Por isso, busque também proteção espiritual. É sempre bom fazer orações, preces, rezas… Pedir proteção às forças ancestrais, à natureza e ao que você acredita também é tática de defesa.
E não esqueça da parte digital
Hoje é praticamente impossível realizar alguma luta política sem o uso de tecnologia. Seja no monitoramento territorial de terras indígenas até no uso das redes sociais, os coletivos ativistas têm na internet um forte aliado, mas também uma grande vulnerabilidade.
Pensado nisso, a Escola de Ativismo tem uma página especial sobre segurança digital, com mais de 20 conteúdos específicos sobre o tema. Vai desde como usar navegadores e aplicativos de conversas mais seguros, passando também por como podemos proteger nossos dados e apagar nossos rastros quando estamos sendo espionados. Conheça a página especial aqui.
“Pessoas em exposição constante são alvos mais visíveis, tanto para seus inimigos diretos, quanto para golpistas no geral. Ao mesmo tempo que ativistas do interior que lutam por demarcação de território, enfrentam latifundiários, empresários, garimpeiros, também colocam seu rosto e sua identidade na internet ou viram alvo para tentativas de extorsões a partir do sequestro de dados de organizações que estes ativistas participam ou são aliados. Não somente a pessoa ativista é alvo, mas sua comunidade e seus principais companheiros e companheiras de luta”, afirma Rafael Ramires, da Escola de Ativismo.
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Guia para uma avaliação de risco e medidas de segurança
Leia o guia completo da Escola de Ativismo sobre como adotar medidas de segurança, construindo um plano para você e para seu coletivo.
Veja também a matéria que mostra outros materiais que podem ajudar a fortalecer sua proteção.
Como ativistas lidam com as angústias e ansiedades de viver a crise do clima
LabCuidados - Insônia
Proteção espiritual é segurança integral na defesa de povos e seus territórios
Conheça nossa página especial sobre CUIDADOS DIGITAIS
Foto: Vitória Rodrigues
COMO ENTENDER NOSSOS INIMIGOS E LUTAR CONTRA ELES
Não é porque a extrema-direita nega a importância da pauta do clima que ela não se movimenta 24 horas por dia contra essas políticas. Parte da estratégia é exatamente essa.
Graziela Souza, cientista social e coordenadora de relações governamentais no Instituto Clima de Eleição, explica que as consequências das mudanças climáticas acentuarão todos os tipos de desigualdade e injustiça, incluindo a política. Ela pontua que é preciso avaliar atentamente a postura dos candidatos nessas eleições municipais e tomar cuidado com o greenwashing, principalmente da extrema-direita, já que a narrativa do negacionismo climático ainda é forte e um inimigo a ser combatido, e provavelmente estará bastante presente no período eleitoral.
“O principal objetivo da extrema direita é manter o status quo, ou seja, garantir a continuidade do modelo de produção capitalista baseado na emissão de carbono”, afirma.
Para começar, as emissões de dióxido de carbono (CO2) são desiguais entre países ricos e pobres e, se nada for feito, essa situação tende a piorar. “O paradoxo é que, se a extrema direita não se opuser a esse modelo de produção, não haverá futuro para ela, pois a degradação ambiental causada por esse sistema afetará a vida no planeta como um todo”, diz Graziela.
Redes de desinformação
Nessa batalha, temos que lutar também contra a disseminação de notícias falsas. A pesquisadora Lori Regattier explicou como redes de desinformação têm destruído o meio ambiente. A consultora em tecnologias justas e sustentáveis e fundadora da plataforma Eco-mídia afirma: “Através da propagação de narrativas falsas, atores políticos e econômicos podem minar os esforços de conservação, restauração e de respeito aos direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. E ela não se limita apenas à comunicação de mensagens falsas: envolve a manipulação das intensidades emocionais e psicológicas das pessoas”.
O objetivo não é só negar as mudanças climáticas, mas também prejudicar a conscientização da população sobre o tema para conseguir alcançar interesses próprios.
“A desinformação socioambiental é frequentemente disseminada por interesses comerciais e políticos que negam as mudanças climáticas ou minimizam sua gravidade, cria confusão e ceticismo entre o público em geral. Isso resulta em uma divisão na sociedade, com parte da população duvidando da existência das mudanças climáticas e da necessidade de ação urgente. Isso também prejudica a mobilização da sociedade civil e a conscientização sobre a importância da justiça climática. Quando informações errôneas são disseminadas, aqueles que estão buscando criar uma mudança positiva muitas vezes têm que gastar tempo e recursos consideráveis desmentindo falsidades e educando o público sobre os fatos científicos reais. Isso desvia o foco das ações concretas necessárias para lidar com as mudanças climáticas e cria um ambiente de desconfiança em relação à informação legítima” – Lori Regattier
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Crise climática ampliará desigualdade política e impactará democracia, diz especialista
Como redes de desinformação têm destruído o meio ambiente e o que podemos fazer
De onde surgiu – e como se move – a nova onda de extrema-direita no Brasil e no mundo
Leituras, escutas e materiais para entender – e enfrentar – a extrema-direita
De Jesus a Bolsonaro – Por que as histórias de jornadas funcionam e como podemos utilizá-las ao nosso favor
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Ativismo, a palavra – a origem e a disputa pelo sentido do termo
Ativismo, a palavra – a origem e a disputa pelo sentido do termo
Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro afirmava que daria “um ponto final” em todos os ativismos no país. Em maio de 2021, é a vez do delegado Oliveira, que é subsecretário operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro, chamar de “ativismo judicial” o conjunto de críticas da sociedade civil organizada em relação à desastrosa operação policial na região do Jacarezinho, que resultou em 28 mortes. São exemplos que dão a tônica de como o assunto é entendido – e reprendido – em nosso país. Evidentemente, diversos grupos e organizações (aqui e aqui, por exemplo), além de algumas vozes na imprensa (aqui e aqui) responderam à bravata. O que é seguro dizer é que a vida do ativista no Brasil, assim como em larga parte do planeta, não é fácil, tolerada ou até mesmo criminalizada.
Críticas não são exatamente novidades. Se dominação, perseguições e desigualdade cortaram a história da humanidade por milhares de anos, a luta contra elas também. Diversos exemplos de revoltas e revoluções ao longo da história representam a necessidade humana de fazer suas próprias escolhas, de se libertar da opressão em todas as formas e também de ter uma voz. É essa necessidade humana que produz @ ativista.
O ativismo encontra respaldo legal no artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos, que diz que “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui o de não ser incomodado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões, e o de difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão”. Além disso, no Brasil, temos dois artigos constitucionais que amparam o ativismo:
“Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” – Artigo 5° da Constituição Federal.
“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” – Artigo 220 da Constituição Federal.
O ativismo – aqui e no mundo
Vale procurarmos as origens do ativismo no mundo para nos aproximarmos dos usos e história do termo no Brasil. Ativismo se refere à ação direta em apoio ou oposição a uma política social ou política de maneira ampla. O Online Etymology Dictionary diz que as raízes da palavra remontam a 1915, quando “ativistas” suecos pediram o fim da neutralidade daquele país na Primeira Guerra Mundial. Há quem diga que os termos “ativismo” e “ativista” foram usados pela primeira vez pela imprensa belga, em 1916, referindo-se ao Movimento Flamingant: que lutava para que fossem reconhecidas oficialmente duas línguas oficiais no país, o neerlandês (ao norte) e o francês (ao sul) – o que aconteceu somente em 1930.
Sufragistas marcham pelo direito ao voto na Inglaterra. 23 de outubro de 1915
No mundo anglo-saxão mesmo há divergências sobre sua origem: as feministas reivindicam as sufragettes na virada do século XX como pioneiras no uso do termo, e uma exposição no Museu da Cidade de Nova Iorque com o título “Nova Iorque ativista” busca origens na luta pela tolerância religiosa na Nova Holanda de 1650 a 1664, incluindo imagens do documento “Flushing Remonstrance”, escrito em 1657 por um grupo de colonos protestantes que se opunham à expulsão dos quacres da cidade.
Com um pouco de imaginação política, poderíamos encarar os abolicionistas ou até mesmo os quilombolas como ativistas avant la lettre no Brasil da mesma forma como no Norte global identificam Espártaco, que liderou uma rebelião de escravos durante o Império Romano como o primeiro ativista da História. Por fim, a diferença de como ativismo é encarado no mundo anglo-saxão e no Brasil é bem exemplificado no verbete “ativismo” na Wikipedia em português e no mesmo termo em sua versão em inglês: enquanto no primeiro é uma breve menção pouco embasada, no segundo é um robusto verbete recheado de hiperlinks.
A morte de Espartacus.
Foto: Gravura de Hermann Vogel
No Norte global, foi somente após o fim da década de 1960, com a erupção de novos movimentos sociais – feminismo, liberação gay, ecológico entre outros – que os ativistas realmente começaram a proliferar. Nos anos oitenta e noventa, o termo já era amplamente utilizado. Esses movimentos sociais realizaram muito em um período de tempo notavelmente curto, muitas vezes desenvolvendo e adaptando técnicas de organização mais antigas, ao mesmo tempo que inventavam procedimentos abertos, democráticos e não hierárquicos.
Os ativistas emergiram a partir do momento em que as pessoas se afastaram do que consideravam ideologias políticas antiquadas e abraçaram identidades radicais que surgiam naquele momento. No rastro dos anos 1960, as pessoas também, compreensivelmente, queriam ser menos devedoras à liderança carismática, que colocava os movimentos em risco de sabotagem quando figuras de proa eram assassinadas; Martin Luther King Jr., por exemplo.
Manifestação pela Amazônia – Lisboa
Caminhos do ativismo no Brasil
A tarefa de um ativista, em um país com pouca tradição em manter seu estado democrático de direito, nunca é simples. O depoimento da ativista ambiental Miriam Prochnow é exemplar sobre este tema:
“Eu sou ativista ambiental. Minha causa é o bem comum, é a conservação da natureza, da qual tod@s somos dependentes. Da qual depende a sobrevivência da espécie humana. Meu lema sempre foi ‘boca no trombone e mão na massa’, denunciando as agressões ao meio ambiente, mas dando exemplos de como as coisas podem ser feitas de forma sustentável e com diálogo.
Nos meus mais de 30 anos de ativismo, encontrei milhares de pessoas que também abraçaram a causa e por conta disso conseguimos inúmeros avanços que garantem qualidade de vida para tod@s e a proteção mínima da biodiversidade. Já recebi inúmeros prêmios de reconhecimento.
Mas também por conta do meu trabalho, já sofri muitas ameaças, inclusive de morte, fui perseguida e até agredida, física e moralmente, por aqueles que se acharam no direito de impedir que a guerreira verde trabalhasse pelo bem comum”.
O ativismo ambiental, não por acaso, é particularmente visado em nosso país. Bolsonaro foi enfático em 2018, quando era ainda candidato à presidência: “vamos acabar com o ativismo ambiental”. Além da perseguição pública, ações como o rompimento com os acordos do Fundo Amazônia, cujo recurso era dividido especialmente entre o Estado, com 60%, e organizações socioambientais, com 38%.
Se o trabalho dos ativistas já era importante antes, o vácuo se torna ainda maior uma vez que o ataque também ocorre sobre a institucionalidade. O corte em abril no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, quebrando inclusive promessa feita por Bolsonaro na Cúpula do Clima, inviabiliza operações de fiscalização pelo país e soa bem coerente com a afirmação de 2018. Os R$ 83 milhões destinados pelo orçamento oferecido estão abaixo dos mínimos R$ 110 milhões essenciais, garante Suely Araujo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
Não bastasse as circunstâncias nefastas da atual presidência, vale lembrar que o Brasil é um dos campeões mundiais de assassinatos de ativistas que lidam com a questão ambiental no planeta. País é o terceiro mais letal, segundo relatório da ONG Global Witness, que contabilizou 24 mortes em 2019, quatro a mais que no ano anterior. 90% dos casos ocorreram na Amazônia, onde a destruição de terras indígenas vem se acelerando. A região amazônica inteira assistiu a 33 mortes, 90% delas no território brasileiro. Paulo Paulinho Guajajara, assassinado a tiros em novembro do ano passado no Maranhão, foi um dos casos mais lembrados na região. Ele tinha 26 anos e era uma importante liderança dos indígenas Guajajara. Ainda segundo o relatório, “as políticas agressivas do presidente [Jair] Bolsonaro para estimular a mineração em escala industrial e o agronegócio na Amazônia vêm gerando graves consequências para a população indígena, assim como para o clima global”.
Atividades caracterizadas como “ativismo” no Brasil podem ter suas raízes históricas nas lutas do movimento operário do final do século XIX, por exemplo, mas só ganharam este nome com o surgimento do próprio movimento ecológico e ambientalista, a partir das décadas de 1970 e 80. Entretanto, se o conceito de ativista abarcar figuras históricas como Espartaco, não é possível deixar de fora Zumbi dos Palmares, Cunhambebe – líder das Confederação dos Tamoios – e tantos outros que se organizaram na luta contra a opressão.
Hoje, segundo o Greenpeace, organização mundial que é uma das maiores responsáveis pela popularização do termo, o ativismo é “exercitado em rede e nas redes, ele é o meio em que pessoas praticam sua cidadania política para transformar não só o lugar onde vivem como a si próprias”. Uma boa parte do ativismo no país, por exemplo, muitas vezes recebendo pouca atenção midiática, busca “dar voz às pessoas invisíveis” e fatalmente são os que estão sujeitos a sofrerem violências múltiplas. E há quem critique o termo para além dos inimigos conservadores.
Crítica e autocrítica
Há quem critique o termo ativismo/ativista porque “contestar o poder não é um hobby ou uma subcultura – é um projeto coletivo que permeia todas as facetas de nossas vidas”, lidando com um aspecto individualista associado ao termo ou porque “ativistas são tipos que, por alguma peculiaridade de personalidade, gostam de longas reuniões, gritar slogans e passar uma ou duas noites na prisão” ou ainda porque “parecem saborear sua marginalização, interpretando seu pequeno número como evidência de sua especialidade”. Mesmo dentre os anarquistas, tão associados ao ativismo, há críticas contundentes, como a que diz que o ativismo “por sua composição ideológica e organizativa, e procedência de classe, tende, em determinado momento do seu desenvolvimento, a se converter num verdadeiro obstáculo à luta revolucionária e a resistência da classe trabalhadora” e que em razão de suas predileções de classe média, tende a “a formação de uma contracultura sectária fechada em si mesma, inútil para as lutas dos trabalhadores”.
Em alguns casos, o uso da palavra militante é preferível por muitos grupos – lembrando que esse próprio termo também é alvo de críticas por sua origem e correspondência com a ideia de forças armadas e guerras – que veem no ativismo um “nome importado”.
A questão, talvez, seja compreender que termos como democracia, anarquia e ativismo estão vivos e passando por constantes transformações. Lideranças indígenas como Sônia Guajajara afirmam “as pessoas me perguntam como me descobri ativista. Eu não me descobri. Eu nasci. Sempre fui de luta”, deixando claro que aquelas e aqueles que se identificam com a palavra não correspondem necessariamente ao corte de classe e raça que a palavra pode suscitar por seu uso amplo na Europa e nos Estados Unidos.
Um pensamento de esquerda clássico é de que a prática é o critério da verdade. Se é assim, o real sentido do que significa ser ativista não está no dicionário ou numa enciclopédia. A história é sim importante, mas é no caminhar, no fazer que o ativista e o ativismo se moldam e se declaram. Uns nascem, outros se descobrem, outros se tornam, alguns podem até renegar o termo. Seja como for, é a reflexão, a organização e a ação contra opressões e injustiças o ponto importante que une a todas e todos, independentemente de como se queira nominar.
TEXTO
Velot Wamba e Mario Campagnani
PUBLICADO EM
08/02/2023
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Por que um site ativista é urgente
Por que um site ativista é urgente
Um editorial da Escola de Ativismo
A resposta curta para a pergunta é: porque não temos tempo a perder. Ativistas raramente têm. Os territórios dos povos tradicionais estão ameaçados. De Norte a Sul do Brasil, nossos biomas queimam, nossos olhos ardem, sufocamos em fumaça, veneno e fogo ou nos afogamos em tempestades. As previsões sobre a crise climática não apenas confirmam-se como são, em inúmeros casos, o pior cenário imaginado. A desigualdade cresce, o agroextrativismo avança em labaredas, junto com a extrema-direita, que muda sem parar as regras do jogo e ameaça os avanços conquistados, a democracia e a sobrevivência do nosso planeta, com negacionismo e um modo de produção inviável, pautado pelo crescimento infinito. A fumaça cobre o país. Rios morrem. Estamos sob urgência e ameaça.
Precisamos de uma comunicação que amplie nossas demandas, que denuncie, que impacte, que fortaleça.
Mas somos Escola. E gostamos de ziguezague, de pintar e bordar, de percurso e de pensar junto. Então a resposta mais longa é: porque acreditamos que seja na paz ou na guerra só é possível caminhar e aprender se for junto com outras pessoas ativistas. A colaboração e o trabalho conjunto nunca foi perda de tempo, muito pelo contrário.
É comum que na militância, na vida ativista, na construção política certas frases se tornem carimbos indiscutíveis em qualquer argumento sobre o fazer político. “Precisamos fazer trabalho de base”, “nosso campo precisa aprender a se comunicar”, “precisamos de mais ação direta” etc. etc. Nós não discordamos de nenhuma dessas. Um dos problema dessas frases é justamente que elas fazem sentido. Mas queríamos falar de uma delas: “Precisamos furar a bolha”.
E olha, realmente, muitas bolhas precisam ser furadas. Faz parte da tarefa de pessoas envolvidas na luta social de amplificar o alcance de suas vozes, reunir apoiadores e conseguir com mobilização social efetivar mudanças na sociedade. Mas fomos entendendo também, no processo de construção de uma comunicação para uma escola de ativismo, o que quer que ela seja, que precisamos cuidar da nossa bolha.
E essa noção faz muito sentido para a Escola. Fundada em 2012, ela já foi muitas escolas. E segue sendo. Mas sempre trabalhando com algumas chaves muito importantes: educação e comunicação popular, justiça ambiental e climática e segurança e cuidado integral. Ela é uma organização pautada por aprendizagens e pelo fortalecimento das dimensões organizacionais, físicas, estruturais, psicossociais, subjetivas, comunicacionais de ativistas, coletivos e organizações.
Queremos ser começo, meio e começo de novo, como ensinou Nego Bispo. De forma que a Escola sempre fez uma escolha política de ficar nos bastidores. Nos territórios. Na vida concreta. O protagonismo não é nosso. Nunca foi. E a vigilância e a repressão exigem que nos mantenhamos, ainda que transparentes, difusos e disfarçados.
Como ativistas que um dia já tiveram dúvidas sobre os caminhos a percorrer na luta, que já erraram muito, acertaram demais também, mas ,sobretudo, aprenderam coisas inesperadas e incríveis no caminho, chegamos aqui nesse site.
Calma, não queremos dar conselhos arrogantes que ninguém pediu – e nem vamos. Aqui nos propomos a articular a experiência, os sentimentos, a intuição, as invenções e tecnologias ancestrais já inventadas do campo ativista para fazer a roda girar. Traremos o que tem sido visto e escutado. Experiências Sistematizadas. Proposições de percursos de cuidado e bem viver. Partilha de táticas, estratégias, invenções e subversões. A diversidade das lutas. Provocação, desobediência, Reflexão, Análise, Pensamento e aquilo que fica entre o dito e o não dito nas conversas.
Não importa se você é uma pessoa que já nasceu ativista, ou se você se tornou ativista em algum momento ou se você está nesse processo intenso e complexo de se comprometer com a luta por direitos humanos e socioambientais. A gente tá aqui pra fortalecer você que nos lê na sua briga pelo seu sonho.
Então, é por isso que estamos lançando um site de ativistas para ativistas.
Aqui você vai encontrar notícias ativistas, com denúncias e também contação de histórias que nos inspiram. Material de aprendizagem e reflexão para pensar juntos caminhos de enfrentamento dos desafios que compartilhamos. Vídeos que falam da luta ou transmitem saberes. Olhares ativistas para nos inspirar. Vozes ativistas para mantermos a fala alta e a escuta aberta.
E tudo mais que conseguirmos inventar juntos no caminho. Afinal, não temos tempo a perder. Mas ninguém nunca perdeu tempo cuidando de si, de alguém ou do mundo.
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