Por Mario Campagnani 

“Não se conta uma história sobre uma disputa. Se disputa a história que está sendo contada”. Essas frases, que ajudam a ilustrar esse texto, dizem muito sobre como nós, ativistas, devemos pensar na construção das nossas pautas e na forma que vamos comunicar o que queremos. Pode parecer algo simples, porque estamos acostumados a utilizar a linguagem para construir narrativas desde que nascemos. Mas o que faz uma grande diferença é entender que a forma como escolhemos contar uma história faz parte de uma longa tradição, tão antiga quanto o domínio das ferramentas e do fogo. Especialmente quando você quer contar uma história que toque aqueles que estão lendo/vendo/ouvindo, é importante entender mais sobre essa tradição e como ela segue sendo usada — e funcionando muito bem — nos dias de hoje. 

Essas histórias usam elementos que chamamos de arquétipos. A palavra, que talvez você já tenha ouvido, remete a ideias que começaram a ser gestadas na Grécia Antiga, por Platão. Porém, foi no século XX que o termo ganhou a relevância que tem hoje, especialmente pelo trabalho do psicoterapeuta Carl Jung. 

Ele afirmava que pessoas diferentes, de culturas e lugares bem distantes entre si, compartilham certas formas de ver, interpretar e lidar com suas experiências. As pessoas, então, têm esses arquétipos que atravessam sua existência e dos outros e moldam nossas atitudes em relação ao mundo. É importante salientar que, para Jung, esses arquétipos são infinitos, mas, de todo modo, há alguns que são considerados os principais. 

Alguns desses arquétipos receberam nomes meio autoexplicativos: Sábio, rebelde, tolo, herói, mago etc. Esses arquétipos estão presentes não a apenas em nós, mas também nos nossos mitos — e atualmente em diversas histórias da cultura pop. 

O QUE AS HISTÓRIAS ABAIXO TÊM EM COMUM?

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A Jornada do Herói 

 

A partir da influência dos estudos de Jung, o mitologista Joseph Campbell realizou uma ampla pesquisa sobre mitos e religiões de diversas culturas. O trabalho dele, “O Herói de mil faces” foi publicado em 1949, se tornando um marco para o campo da mitologia comparada. 

O estudo de Campbell, todavia, extrapolou bastante o campo acadêmico, sendo referência para a construção de histórias de Hollywood, além de base para muitos cursos de publicidade e marketing. Uma vez que estamos acostumados, ou nas palavras de Jung, uma vez que esses elementos fazem parte do nosso inconsciente coletivo, eles podem ser utilizados para sensibilizar, mudar opiniões, trazer apoiadores para o lado de quem escolhe contar essa história desse modo. 

Para Campbell, essas histórias apresentam como elementos comuns, que resumimos aqui:

Alguém simples que se tornará o herói

O chamado à aventura

O encontro com o mentor

A travessia do primeiro limiar

Provas, aliados e inimigos

A grande provação

A ressureição/ A recompensa

Se você olhar atentamente essas histórias das imagens mais acima, perceberá que todas têm boa parte desses elementos. Em muitos casos, como o de Star Wars, deliberadamente escolhidos para fazer parte. Em outras, essa já é meio que a forma “natural” de como se conta uma história. 

A pesquisa inicial de Campbell seguiu rendendo inspirações para outros pesquisadores se aprofundarem mais em narrativas. Em 1995, o escritor  Kurt Vonnegut, autor do ótimo livro Matadouro 5, fez uma apresentação sobre como há oito formas básicas de contar uma história, que podem ser adaptadas de formas distintas. A ideia do escritor havia sido apresentada décadas antes como tema de mestrado da Universidade de Chicago, mas foi rejeitada “porque era muito simples e também parecia muito divertida”, segundo Vonnegut descreveria décadas depois. 

Outra contribuição importante para essa forma de descrever e entender como as histórias funcionam foi o livro “The seven basic plots”, de Christopher Booker, que partiu das influências das pesquisas dos arquétipos de Jung para um trabalho no qual ele descreve essas sete formas de contar uma história. Foram 31 anos de pesquisa que levaram às seguintes formas, das narrativas históricas cujos autores se perderam no tempo até as novelas mexicanas e os animes: Superação do monstro (como Beowulf, Perseu e a Medusa, Drácula, Naruto); Da miséria até a riqueza (Cinderela, Alladin, Maria do Bairro); A busca (Senhor dos Anéis, A Divina Comédia, indiana Jones); Comédia (Big Lebowski, Diário de Bridget Jones); Tragédia (Cidadão Kane, Macbeth, Anna Karenina); Renascimento (Orgulho e Preconceito, O Conde de Montecristo, Tieta); Viagem e Retorno (Odisseia, O Rei Leão, O épico de Gilgamesh).

Uma história patriarcal e heteronormativa

Um elemento importante que o trabalho de Campbell e outros teóricos deixaram de fora é o corte sobre gênero e sexualidade. Especialmente quando se fala das culturas de bases monoteístas, os protagonista das histórias costumam ser sempre homens heterossexuais. Nas últimas décadas surgiram autoras dedicadas a falar sobre o papel das mulheres nas narrativas clássicas. Podemos destacar os trabalhos de  Maureen Murdock e de Victoria Lynn Schmidt, que trabalham sob a perspectiva de criar a “Jornada da Heroína”. Para Murdock, “a jornada feminina é sobre ir fundo na alma, curando e recuperando, enquanto a jornada masculina é para cima e para fora, para o espírito”. O trabalho das duas, ainda que possam trazer também um outro debate sobre o que é feminilidade, serviu como referência e um contraponto ao trabalho de Campbell.

Os computadores entram na história 

 

Os trabalhos desses pesquisadores que citei aqui antes tinham um perfil mais “solitário” e se debruçavam apenas sobre as obras mais conhecidas do cânone clássico; em especial, para as obras publicadas em inglês — que é a língua deles. Com o avanço da tecnologia, surgiu uma forma que permitiu testar essas teorias ampliando seu espectro para incorporar diversas outras línguas e suas culturas. O professor de inglês Matthew Jockers, da Universidade de Nebraska, usou a matemática e os computadores para tentar desvendar a estrutura das histórias. Com esse apoio computacional, sua base de dados foi muito maior: 50 mil livros.

Foi o uso do que hoje chamamos comumente de big data que permitiu essa pesquisa. Só que no lugar de fazerem o que grandes empresas fazem — que é coletar as palavras faladas nas redes sociais para determinar o sentimento que uma história está causando na sociedade —, Jockers e sua equipe do Laboratório de História Computacional da Universidade de Vermont utilizaram isso nos textos dos livros. O nome da técnica inclusive se chama “Análise de sentimento” e pode ter certeza de que, se você tem uma vida ativa e pública em uma rede social, é bem provável que já virou dado nesse tipo de pesquisa. 

A pesquisa de Jockers chegou a uma conclusão muito próxima da que os estudos anteriores demonstravam. “Há seis (tipos de história) em 90% das vezes. Em 10% das vezes, o computador diz que há um sétimo tipo”, afirmou Jockers. Para quem tiver mais interesse em se aprofundar nesse estudo, o próprio pesquisador disponibilizou as ferramentas usadas na pesquisa. Assim, você pode analisar algum livro que não estava na base de dados original. O uso de computadores partiu da presença de palavras específicas e suas repetições durante o livro. O sistema, é claro, tem certas vulnerabilidades, especialmente se usado para trabalhar somente em cima de trechos, mas por meio de um volume grande de dados, pode-se dizer que os resultados são mais confiáveis.  

E o que o ativismo e a política tem a ver com isso?

 

A afirmação de que nossas ricas e tão diversas histórias ao fim são tão poucas causa sempre um desconforto. Afinal, é importante dizer que por mais que essas estruturas básicas possam se repetir, haverá sempre questões mais subjetivas, como o contexto social em que a história foi lançada, o tempo histórico e outras mais, que vão afetar o impacto direto que a narrativa terá naquele momento. Assim, um grande livro não será um grande livro só porque tem os mesmos elementos dos anteriores. Porém, quando nosso objetivo não é criar o novo grande romance que vai ser diferente de tudo e capturar o zeitgeist, mas sim contar uma história que vá gerar identificação rapidamente, saber utilizar essas ferramentas e fazer as pessoas torcerem para nosso “herói/heroína” faz uma enorme diferença. Compreender que o uso desses símbolos de identificação, desafio, inimigos, vitória final etc. tem um impacto imediato nas pessoas com quem você quer falar é importante para conseguirmos apoiadores para nossas causas.

Essa informação, que já é antiga no mundo da publicidade e na indústria cinematográfica, também ocupa um espaço importante no universo político, especialmente quando falamos de política institucional. Aquelas histórias de marqueteiros contratados por milhões para fazer campanhas, sabe? Eles entendem bem o uso dessas ferramentas. Dentro do campo do ativismo, por outro lado, muitas vezes não pensamos de forma estruturada na hora de contar nossa história. E também que ela não precisa ser aplicada apenas na individualização. Um povo, uma comunidade ou um grupo menor pode ocupar esse lugar de protagonista, de ser aquele por quem as pessoas vão torcer. 

 

Mas quer ver como ela funciona bem até os dias de hoje?

Vamos a um exemplo das últimas eleições

Aqui é importante  salientar que por mais que seja possível ter um controle sobre a narrativa, não se pode afirmar que todos os fatos são premeditados.

A “Jornada de Bolsonaro” em 2018 teve vários elementos que tentaram  — e conseguiram — colocá-lo nessa posição de herói, daquele com o qual vamos nos identificar. Mesmo sendo político há mais de 30 anos e ocupando o cargo mais importante do país, ele ainda tenta se vender como o anti-sistema, aquele que é “um de nós” que está batalhando contra um “império do mal”. A chegada de Paulo Guedes, lá em 2018, foi o mentor que precisava para que o mercado financeiro confiasse a apostasse em seu nome. O atentado mostra sua fragilidade, seu drama e superação para seguir na luta. Seus inimigos, a esquerda e qualquer um que tenha um pensamento mais progressista, precisam ser eliminados, pois esse é o caminho que o “escolhido” precisa seguir, sua missão sagrada.  

É interessante, contudo, ressaltar que a História, ao contrário das estórias, segue caminhos muito tortuosos e surpreendentes. Se a “Jornada de Bolsonaro” funcionou em 2018 — porque, apesar de suas próprias críticas, ele realmente teve mais votos naquela eleição — o papel que ele ocupa em 2022 já é diferente. O mesmo pode-se dizer de Lula, cuja história poderia terminar como uma tragédia se fosse contada no contexto do golpe contra Dilma Rousseff e sua prisão. Em 2022, ela já pode ser interpretada como uma história de ressurreição, o homem inocente que foi preso injustamente e volta a ser presidente (ao que tudo indica, caso a tentativa de golpe não seja bem-sucedida).   

Como aplicar essas ferramentas nas nossas lutas

 

Apesar de ter uma escala macro no exemplo acima, o uso estratégico da narrativa é útil em diversos casos. Ela, por si só, não é a solução para a vitória, mas certamente é uma ferramenta que, bem aplicada, pode fazer com que nossas causas ganhem mais relevância e apoio popular.

Antes de mais nada, é importante pensar que praticamente toda história que vivemos pode ser contada dessa forma, especialmente se estamos falando de lutas sociais. Podemos falar de coisas bem simples, como a luta para a preservação de uma pracinha que vai ser destruída num bairro qualquer. Como seria a elaboração dessa história?

 

A luta pela pracinha

 

O caso: Moradores se unem em um grupo contra a destruição das árvores e da pracinha no bairro, para a construção de um estacionamento. A prefeitura já cortou quatro árvores (e vai cortar as outras 15 que restam). Foi assim que descobriram a ameaça. A próxima etapa será a retirada de bancos, brinquedos e da iluminação pública.

O desafio: os moradores não sabem como impedir a obra. Já ligaram para a prefeitura, reclamaram com os funcionários, mas a obra está acontecendo de forma arbitrária, sem nenhum tipo de consulta prévia. Não há muitas informações e o tempo é curto para agir.

Os meios: para contar nossa história e conquistar a vitória desejada, devemos pensar também nos meios que utilizaremos para isso. Neste exemplo, vamos nos voltar mais para a elaboração da narrativa do que sobre as formas, mas no caso da pracinha podemos pensar em formas como: uso das redes sociais, denúncia na imprensa, ações de protesto na própria praça ou na prefeitura, faixas, músicas, depoimentos, cartazes e lambes colados na cidade, entre outros.

 

Definindo os papéis

 

O herói/heroína: Nesse caso, podemos trabalhar com exemplos de pessoas reais, já envolvidas na luta. As pessoas vão se solidarizar com a história a partir do momento em que veem os rostos, as vidas que “dependem” daquela pracinha. Poderíamos definir dois perfis básicos: o dos pais que estão com seus filhos todos os dias na pracinha, o único espaço que elas têm para brincar com seus amigos; os idosos que usam a pracinha como socialização. É importante que essas pessoas apareçam, que sejam vistas, em postagens nas redes sociais ou na imprensa, por exemplo. Tem sempre pessoas mais hábeis do que outras para serem a cara pública da história. É bom reconhecê-las e trabalhar essa imagem. A identificação surge daí.

O chamado: A vida era boa antes da destruição começar. Usar imagens de como era a pracinha antes da derrubada das primeiras árvores. Crianças brincado, pessoas felizes. “É isso que teremos que preservar, por isso nós fomos para a luta. Nós não queríamos isso. Só queríamos estar tranquilos em nossa praça”.

A primeira prova: Já em relação ao “chamado” e os “heróis/heroínas”, nós mostramos o primeiro ataque, as árvores derrubadas. Ela é a denúncia que a ameaça é concreta, já está acontecendo.

O adversário: Não adianta ficar falando da prefeitura de uma forma genérica. Para que a gente consiga incomodar e fazer com que o outro lado sinta que há uma resistência, é importante nomear. Os jedis, afinal, lutavam contra Darth Vader, por mais que ele fosse representante do Império Galáctico. No exemplo, descobrimos que foi o secretário de obras do município que está por trás da autorização. Seu nome passa a ser vinculado, é dele que vamos cobrar que volte atrás, que mude a decisão, retire a concessão da empresa X (que também passa a ser nomeada) de construir um estacionamento onde fica a pracinha. Seus nomes estarão presentes nas faixas, nos posts nas redes, na entrevista com a imprensa, em todos os lugares. 

Mentores e aliados: Uma luta dessas precisa de apoios de grupos que já estão estrategicamente organizados. No caso da pracinha podemos pensar em diversos grupos que serão nossos aliados: movimentos e organizações que são contra derrubadas de árvores em cidades onde já existem tão poucas; grupos simpatizantes de animais (ali é também espaço para levar os pets); influencers (mães famosas que falam de maternidade nas redes, por exemplo), entre outros. No caso dos “mentores” podemos aqui interpretar como aqueles grupos que trarão um conhecimento técnico ou um alcance que a comunidade envolvida na luta não possui por conta própria: o Ministério Público que vai entrar com um ação ou uma vereadora que é contra a derrubada e vai interferir podem ser exemplos, um advogado que vai processar a empresa.

A grande provação: Já tivemos as primeiras árvores derrubadas e agora sabemos o que vem por aí. Divulgamos a data de quando está prevista a derrubada das árvores restantes e também dos equipamentos de lazer. É preciso criar o sentimento de alerta, uma necessidade de urgência para que tudo não seja destruído. “Uma cidade com tão poucas árvores e espaços de lazer, agora está perdendo mais um se não fizermos nada”. As pessoas já nos conhecem, já sabem quem é o adversário e o que ele fez, agora é preciso agir.

A recompensa: No caso da luta política, a recompensa é algo que atravessa toda a história. Não é algo que as pessoas vão “ler”, mas sim aquilo que entendemos que será o resultado final. No caso, estamos falando da pracinha preservada, as pessoas voltando a ser felizes, as crianças brincando, os cachorros passeando. Essa imagem é que deve ficar na cabeça das pessoas como a meta, aquilo pelo qual elas tão lutando. É essa diferença entre o estado atual (de alerta, de medo) e  a nossa “vitória final” na história, que é o desejo coletivo.

 

Conclusões

 

Esses elementos e essa forma de contar a história é mais uma base interna, obviamente. Ao preparar sua estratégia de comunicação, você não se deve colocar em materiais públicos “conheça nossos heróis”, “veja a primeira provação” ou qualquer outra coisa desse tipo. Até porque, na luta real, ao contrário das narrativas ficcionais, os estágios e os papéis podem ser sempre reinterpretados. Pode acontecer, por exemplo, de o secretário ficar tão acuado que volte atrás, tente limpar a imagem com um pedido de desculpas e afirmar que a praça continua, que foi um erro do qual não tem culpa (por mais que isso não seja verdade) e que vai paralisar tudo e rever o contrato com a empresa. Então, na nossa estratégia, o foco pode sair do secretário e ir para a empresa somente. 

Além de poderem ser reinterpretados, esses momentos também não seguem um script, como um filme de Hollywood no qual temos primeiro, segundo e terceiro ato. Aqui as estratégias vão caminhar de alguma forma juntas (Bolsonaro segue tomando café da manhã com camisa de time de futebol, vendendo a imagem de homem comum), pois essa mensagem estará constantemente chegando a novos públicos ou pessoas que já conhecem a história, mas buscam novos elementos para seguir acompanhando — e apoiando.

Se você está em alguma luta, pode ser interessante fazer essa experiência por conta própria. Pense nos elementos já presentes na história, veja o que cria identificação com as pessoas, veja o que estimula nelas o desejo (todos queremos finais felizes). Sabemos que essas estruturas podem simplificar questões complexas, então é sempre preciso ter cuidado. A questão, então, é saber mais estrategicamente com quem e por qual motivo você quer fazer essa comunicação. Um debate dentro da própria comunidade onde fica a pracinha, por exemplo, não pode ser reduzida apenas a esses elementos narrativos, mas como eles podem ser aproveitados para divulgar a um público mais amplo e gerar apoio. No final, cabe mais a você e seu coletivo terem consciência do funcionamento dessa estrutura e utilizá-la da forma como acharem melhor em sua luta.

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