Escola de Ativismo

Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Brasileiros estudados

Por Luh Ferreira*

A inventividade e resiliência do brasileiro sempre mereceu as vistas que nem a filosofia explica. Mas à beira da ameaça de golpe, Luh Ferreira se pergunta: quem precisa ser estudado?

Bolsonaro mostra um remédio não efetivo contra a Covid-19 para uma ema. Foto: Reprodução

Sempre achei engraçada a frase “o brasileiro precisa ser estudado”, como se ela falasse de situações que nos colocam como um povo de feitos inéditos e que exige, portanto, algum tipo de estudo para entender o porquê de alguns comportamentos e atitudes nossas se dão.

De fato, nosso povo merece estudo e aplausos, merece carinho, pois toda semana quando a gente abre as redes sociais a gente se depara com uma coisa mais graciosa, criativa, e até mais doida que outra! 

As pessoas por meio do Tiktok, por exemplo, nos trazem um dia a dia cheio de invenções, que vão desde a ensinar dancinhas da moda à inserir palavras desconhecidas em nosso vocabulário – aqueles que fazem um glossário de expressões locais são os meus preferidos! – mas também gente que mostra jeitos múltiplos de fazer coisas – receitas, arrumações, explicações de fórmulas, desvelamento de segredos cosméticos – antes a gente ia pro Google perguntar como faz? Como é? Agora o Tiktok mostra. E com performance!

Até aqui estou tentando crer que o brasileiro precisa ser estudado pela sua capacidade inventiva, pela sua expressão singular, por uma certa engenharia de ações que não se vê por aí, que a ciência desconhece, a filosofia nem tenta explicar — e o santo ajuda por amar esse povo!

Mas, ando desconfiada de algumas coisas que a gente anda fazendo. Me coloco a repensar esta expressão.

Por exemplo, assisti um vídeo esta manhã em que um senhor aparece num posto de gasolina. Ele está abastecendo o seu carro e diz algo do tipo “a gasolina abaixou graças ao Bolsonaro! Pode encher tudo! Pode colocar!” e aí retira a mangueira de abastecimento das mãos do frentista e começa a jorrar gasolina pra todo lado, lavando a roda, lavando o para-choque do veículo. 

Ô gente? 

Mas o que é isso? 

Eu me perguntava…

E comecei a me lembrar de diversos casos em que brasileiros foram à frente das câmeras exacerbar o seu fanatismo por esse sujeito que organiza orçamentos secretos e todo tipo de conchavos, inclusive decretar a exposição dos valores de ICMS sobre os combustiveis pelos postos de gasolina até o mês de DEZEMBRO, furar pela milésima vez o teto de gastos para aumentar o auxilio às famílias de baixa renda, apenas para reverter seu péssimo desempenho nas pesquisas eleitorais.

É… esse tipo de brasileiro, pra mim, precisa ser estudado!

Outro exemplo e este está me deixando mais encafifada, é uma falta de percepção dos riscos, do perigo, que certamente nós brasileiros temos em nosso DNA. 

Se de um lado temos aí uma espécie de cegueira dominando brasileiros que não enxergam o quão nocivo é o governo bozó. Temos de outro lado, brasileiros que não enxergam os movimentos golpistas que assolam o nosso país. Brasileiros que dizem que “as coisas vão se resolver nas urnas”.

Oras, e quem disse que está tudo garantido?

Que vai ter resolução de urna?

Nós imaginávamos que as coisas seriam difíceis, não? 

Mas, imaginávamos que a capacidade de destruição seria tão grave e tão profunda em apenas quatro anos de mandato?

Não. Nós não imaginávamos o quão destrutivo ele seria.

Não prevemos por exemplo que aumentaria em 300% o número de registros de arma de fogo, num país com uma política de desarmamento presente. Hoje temos mais armas nas ruas nas mãos de civis do que nas mãos das forças armadas.

Temos visto na TV, nas redes sociais, nas entrevistas, diferentes declarações de insatisfação tanto do bozó quanto dos milicos, com o processo eleitoral do país. Obviamente sem nenhum precedente — algo típico deste governo. Mas não é isso que preocupa e sim a maneira como esse descontentamento se apresenta — com um tipo de ameaça, com um tom de quem pode sim repetir o que já foi feito no passado.

Ah, mas o bozó não tem apoio da mídia, e o golpe de 1964 tinha mídia e a população com eles.

Ok, brasileiros! 

Record e SBT estão com o governo desde o início. E vimos aumentar as verbas para a Rede Globo de televisão em 75% neste ano. 

Uai? Mas a globo não é lixo? 

Sim! A globo é golpista. E se é golpista bozó quer por perto…

E aí tem duas coisas que poderão nos ajudar ainda mais nessas análises. 

Veremos se depois disso nosso povo que não liga muito pra esse negócio de “sinais” se mantém na mesma. Aí sim, o brasileiro definitivamente precisa ser estudado!

Atenção ao dia 07 de setembro de 2022. 

Quem esteve nas ruas de Brasília ano passado viu a força (e a tragédia estética) e fanatismo do soldados bozónaristas, dispostos a qualquer coisa, foram às ruas como se estivessem indo a uma guerra, para defender os interesses de uma elite e do próprio poder concentrado na imagem do que ocupa a presidência. 

Este ano a convocatória a pretexto de comemorar os 200 anos da independência do Brasil vem com uma proposta de defesa de liberdade que nas palavras de bozó em entrevista ao SBT significa defender o voto em sua reeleição e a audição das urnas. “Eles querem aproveitar a data, do 7 de setembro, pra ter uma grande concentração, por exemplo em São Paulo, nas capitais, aqui em Brasília, que vai ser um 7 de setembro e também um apoio a um possível candidato que esteja disputando”. Na mesma entrevista defendeu que existe uma “sala-cofre” onde o processo eleitoral é definido. 

Inacreditável a confusão que esse sujeito faz com as coisas.

Esse brasileiro precisa sim, ser estudado!

Então querides leitores.

Por favor parem com esse negócio de “ele não é nem louco de me atropelar! Ele está me vendo!”

Sim, o carro vai te atropelar. 

Pare de desconfiar dos sinais, das ameaças. 

Nós brasileiras e brasileiros precisamos ser estudados, precisamos de um pouco de respiro, de vida. E isso não virá sem luta!

A guerra já começou e os alertas estão aí. Bora ver?

 

Nota da autora: Escrevi este texto antes dos eventos da última semana, pois estava aqui matutando sobre a ideia de sinais, de alertas, de intuições, ou apenas de leitura de mundo, de cenários. Muitas vezes quando a gente fala sobre isso, as pessoas nos chamam de paranóicos, de teses conspiratórias. Coisa do nosso povo, são falas do nosso povo, que nós todes já escutamos certamente.

Ocorre que diante deste empasse – ver não ver. Sentir ou não. Crer ou não crer. Posicionar-se pra lá ou pra cá… eis que, uma hora a coisa escancara, chega-se a uma situação limite! 

Situações limites como a morte e omissão do Governo diante da morte de Bruno e Dom, onde todo o desleixo com as políticas públicas de proteção à Amazônia aparecem na cara, em forma de assassinato.

O lamentável e escandaloso assassinato do petista Marcelo Aloizio de Arruda em sua festa de aniversário por um bolsonarista fanático não deixa dúvidas de que não se trata de polarização, discórdia na política ou bebedeira de final de semana como afirmam autoridades do próprio governo brasileiro, não são mais sinais. 

É ódio.

Política de ódio.

É sim estimulo à sociedade de guerra, e não adianta mais uma vez dizer “o que eu tenho a ver”  como na situação do descontrole da pandemia, desta vez, sim, você puxou o pino da granada, bozó!

Os tiros que foram disparados contra a caravana de Lula há quatro anos atrás também no Paraná, podem agora começar a esboçar alguma explicação, são sinais companheirada, e precisamos além de lamentar, estudar tudo isso para que sirva de instrumento pedagógico aos ativismos e a toda militância.

 

marcelovive!

Sim, eu assisto pantanal

Na verdade não só assisto, vivo o Pantanal desde 2017 quando nos somamos à um projeto de defesa dos rios junto aos Comitês Populares da Águas na região do Alto Paraguai.

É uma luta pelas águas, pela existência dos rios como força de vida.

É uma luta por permanência, a mesma que orienta as chuvas, a seca, que localiza os ninhais para os milhares de pássaros se reproduzirem.

É uma luta para afirmar um modo de existência humano e não humano.

Neste final de semana assisti a uma live organizada pelos Comitês Populares que formam a Escola de Militância Pantaneira e o Fórum de Mudanças Climáticas chamada “Direitos da Natureza”.

Professores, pesquisadores, gente com formação em direito apresentaram uma diversidade de declarações, leis, minutas, políticas públicas que colocam o rio, a natureza como um “sujeito de direitos”.

No meio da live comecei a pensar, se a turma dos comitês estava captando a mensagem como eu, e como penso em verso, a coisa saiu assim:

Direito companheirada

não é coisa simples, mas aqui tá dando pra compreender:

É instrumento pra transformar, pra regular a sociedade

pra garantia de um bem-viver!

É jurídico é político

pra gente usar junto com a luta

Tem um montão de textos e declarações

tem letra que não acaba mais nessas minuta…

Mas tudo isso,

todas essas letra do direito à natureza

vale mesmo pra reconhecer

coisas que a gente aqui já sabe, e já põe na mesa!

Que ela, a natureza é soberana

que ela não é objeto e deve ser respeitada

Fica esperto sujeito homem

Capitalismo e agronegócio, tá na hora da virada!

Nós dos comitês populares

reunidos aqui para estudar

para com ações

ao Rio Paraguai nos somar

Nós fazemos isso porque

compreendemos o rio e a natureza

como se fossem um de nós

Um ambiente vivo

e se é vivo tem direito!

Chega de usar

o Rio Paraguai para ganhar, para explorar!

O Rio Paraguai e todos os rios têm direito

estão aqui para reivindicar

Atenção Comitês Populares, convoco todos vocês

a partir deste encontro pensar:

Rio Paraguai é nosso companheiro de luta!

Direitos à vida ele têm.

E assim temos que chamar

Viva o companheiro Rio Paraguai!

Minha intuição primeira é de que o rio nessa perspectiva humanizadora, quando transformado em “sujeito de direitos” precisa ser chamado de companheiro! Pois luta, resiste, insiste em seguir correndo, fazendo curvas diante da imposição, ultrapassando barreiras, quando tentam lhe impor. O rio doa sentido à militância! Dele advêm o alimento e o sustento, nele nos inspiramos, e junto dele, lutamos!

 Longe de querer transformar o rio em um humano para ter direitos, logo me vêm a cabeça o modo como as sociedades indígenas e os povos mais ligados à terra, à floresta nos ensina. Que as fronteiras entre natureza e cultura não existem, todos os seres vivos independentemente de sua forma física compõe e participam da vida social estabelecendo alianças, mas também relações de competição ou hostilidade.

 Não foram poucas as vezes em que ouvi nas aldeias e comunidades ribeirinhas, rurais conversa sobre um ganso que gostava mais de uns do que de outros, um sapo que expressava sentimentos por certa moça… um boi que se abaixava para receber afago de um amigo…

Li recentemente, em um livro do Phillipe Descola, uma história incrível contada por um missionário do Vietnã, de uma senhora que pilava o arroz no quintal de sua casa quando ouviu os rugidos de um tigre se aproximando. O pobre estava com um pedaço de osso entalado em sua garganta e aos pulos tentava se livrar, indo parar na porta da senhora. Ela assustada, largou o pilão que caiu bem na cabeça do tigre, fazendo com que o mesmo num sobressalto, se livrasse do osso que o estrangulava.

Na noite seguinte a senhora reviu o tigre em sonho, que disse a ela “nós teremos uma amizade de pai para filha” ao que a mulher exitou dizendo que não seria digna de tal relação. O tigre insistiu e disse que “não aceitaria um não como resposta!”, trocaram cortesias.

Alguns dias depois, caminhando pela floresta a mulher deu de cara com o tigre carregando um javali. Na mesma hora em que o tigre bateu os olhos na senhora, largou a presa, rasgou-a em dois, lançou-lhe uma metade e seguiu seu caminho. E assim à senhora nunca mais lhe faltou caça, pois o tigre mantinha vivo seu contrato de parentesco com aquela que salvou sua vida.

Também já ouvi de um senhor que mora muito próximo de uma enorme montanha que nos dias em que ela amanhece coberta de neblina, significa que ela não está muito feliz, e por isso melhor evitar subi-la.

Existem pescadores que conhecem muito bem o humor dos rios e do mar e não se arriscam a medir força quando está brabo!

Sem contar as diferentes maneiras de cumprimentar florestas, igarapés, rios, montanhas, arvores, peixes que encontramos Brasil afora!

 Mas tá parecendo conversa de velho do rio?

E é!

 

A novela remake dos anos 1990 (se não assistiu, assista!) está nos conduzindo à este espaço.

Ao invés de carregarmos a natureza pra dentro do campo dos “sujeitos de direitos” os personagens nos apontam o caminho inverso: à experiência de sermos natureza.

Curvando-se à sagacidade de um boi alongado, conhecer seus desejos, entender seus anseios, pressentir com eles a necessidade de liberdade. De uma onça arrodeando uma tapera afim de protegê-la, avançar sobre os agressores instintivamente para defender sua vida e a vida dos seus. De experimentar virar uma sucuri de olhos justiceiros, capaz de engolir alguém e não deixar rastros.

Constituir alianças com o tempo, com o vento, com as águas que sobem e descem.

“A coisa não é de explicar, é de se entender!” Disse o Zé Leôncio, encantado no Guimarães Rosa em uma certa cena, porque o povo da cidade quer explicação pra tudo!

Tem ali os encantados e tem o crambulhão, que no ouvido do Trindade sopra coisa boa… orienta o rumo.

O paradoxo de desenvolver e envolver.

 O velho do rio que vira sucuri, a cobra grande daquelas bandas pantaneiras, é didático em sua abordagem: “Somos filhos de uma mãe gentil e generosa, a quem tentamos há muito tempo escravizar.” “Liberdade é entender que se não tem vento, não tem semente, e se não tem terra ela não finca.”

 O velho é um encantado? Ou seria o pedaço de natureza que habita cada um de nós?

 Nas palavras do poeta português Fernando Pessoa, vemos com nitidez as montanhas, vales, planícies, florestas, flores, riachos, mato, pedras, mas temos dificuldade em perceber que há um todo a qual tudo isso pertence, afinal conhecemos o mundo por partes, jamais como um todo. Mas a partir do momento que nos habituamos a enxergar a natureza como um todo, ela se torna por assim dizer um grande relógio, como qual podemos compreender sua engrenagem, montar, desmontar, acompanhar, aprender e nos somarmos à sua luta por existência.

 

E sendo assim…

 A Juma Marruá que habita em mim, saúda a Juma Marruá que habita em ti!

 Quem nunca sente réiva, só quer ir pra casa, é de poucas palavras e poucos amigos?

Juma é simbolo da autodefesa.

Sente cheiro de gente boa e ruim. Não confia nos homens.

 Aponta a espingarda para a devastação.

 

Dica

O livro: Outras naturezas, outras culturas. Phillipe Descola, 2016. Editora 34

Lambeção

Estive em São Paulo neste final de semana. Fazia um frio impressionante. Vivo há algum tempo numa região de ar quente e úmido, me sinto desacostumada com as temperaturas baixas e com a frieza dos centros urbanos.

Passei pelo centro da cidade e o choque com a quantidade de pessoas dormindo em barracas tipo iglu ou armações de sacos de lixo e lonas foi imensa. Uma armação muito pouco protetiva do frio que fazia, apesar de parecer tudo muito bem feito pelas pessoas que ali estavam. Alguns aglomerados possuem filtros d’água, tapetes, flores e estantes para armazenamento de brinquedos e objetos.

Distribuí nessa caminhada tudo o que tinha nos bolsos, porque também nunca fui tão abordada na rua. Crianças aos montes. Mulheres. Homens. Velhos, jovens. Todo o tipo de gente, na rua. E não era pra se divertir, e não era pra protestar.

Eu só pensava no destrato. Como é que a gente pôde chegar nesse ponto, nesse nível de descaso, de não se importar. Onde é que estava o estado, os direitos humanos, o papa, o diabo?!

Uma instituição se via e muito, a polícia.

Essa não faltava.

Essa ali, estática, armada, cheia de carros, de escudos, estilo robocop – pronta para sei lá o que.

Descendo um pouco mais e buscando algum tipo de proteção do frio, tentando lidar com a indignação, olhava pro alto, tentava encontrar o mundo que tanto me encanta. Buscava ouvir as conversas das pessoas pra ver se encontrava a cidade, alguma cidade que não estivesse enterrada no descaso, no sofrimento, no congelamento.

Lembrei de um texto, A Conversa da Mesa do Lado, de Santiago Alba. Nesse texto ele conta que estava em um restaurante em Barcelona escutando uma conversa na mesa ao lado da sua, um grupo de jovens falava sobre nada. Ele analisa esta pequenez da conversa, achava tudo meio pobre, mas sentia que era algo que movimentava a vida das pessoas. Diz Alba: “a pequenez quase autista do mundo no qual se moviam as suas vidas e as suas conversas”. O mundo para Alba então seria exatamente isso, o que tem significado para nós, para o que nos marca, o que tem significado, o que nos implica, nos complica, faz com que tenhamos sensibilidade para algumas coisas e para outras, não. O mundo então seria o que nos marca, o que marca nossas conversas e o que compartilhamos.

Mundo é isso.

Com este texto em mente, fui olhando, fui explorando as mensagens, as partilhas nas paredes, as conversas entre as pessoas e o que aqueles mundos de um centro urbano, naquela tarde, diziam.

Me chamou atenção a quantidade de lambes que vestia a cidade.

Milhares de mensagens partilhadas: de “trago seu amor…” à “voto antirracista”, anúncios, comércios, serviços… me fez parar.

Nas pilastras do minhocão vi de longe um lambe gigante, muito bem feito, uma foto, ou quase uma miragem, trazia em letras pretas na parte de cima a expressão FODA-SE e mais abaixo, em clima de férias, temperatura alta, um sujeito montado em um jet ski, com o sorriso de quem está quite com suas tarefas, com a tranquilidade de quem mesmo fazendo as maiores atrocidades com a população, com a economia, com a saúde, com a educação, com a politica pública, com a vida, seguia solto e sem risco de ser preso ou pego. O sujeito que está em segundo lugar nas pesquisas para presidente, mesmo com uma lista imensa de denúncias e crimes não apurados.

O lambe se repetia por varias pilastras do minhocão.

Como um filme daqueles quando o diretor quer fixar uma ideia, dar-te uma pista da história, quando ele quer te enredar sobre algo. A foto horrível repetida com as frases em preto traduzia o acontecimento:

CRISE, FOME, TA TUDO CARO, FODA-SE.

Os lambes e as barracas enfileiradas abaixo do viaduto não deixavam duvidas do que acontecia.

Pra bom entendedor meia palavra basta, um risco é francisco.

Não é descaso. Não é pequenez. É projeto de destruição dos mundos.

Por uma história espiralar do movimento LGBTQIA+ no Brasil

Érica Sarmet* propõe uma retrospectiva dos movimentos LGBTQIA+ que supere estrangeirismos e invisibilizações e retrate de fato a busca coletiva da comunidade por “uma vida que valha a pena ser vivida”

IV Encontro Nacional de Travestis e Liberados, 1996: André, Jovanna Cardoso, Indianare Siqueira e Kátia Tapey l Foto: Reprodução

Se você fizer uma busca simples na internet por “história do movimento LGBT no Brasil”, encontrará nos primeiros resultados uma mesma linha do tempo, que tem início com a rebelião de Stonewall. Ocorrida nos Estados Unidos em 28 de junho de 1969, a revolta é considerada o marco inicial da luta pelos direitos civis da população LGBTQIA+ no mundo, sendo por isso a data escolhida para a celebração do Dia Internacional do Orgulho. E como ficam os LGBTs brasileiros que viveram antes e bem longe de Stonewall? Será que nada fizeram para melhorar suas condições de vida? Por que pensamos em Stonewall para falar da resistência LGBTQIA+ no Brasil, e não dos povos indígenas e suas variadas experiências de identidade de gênero e sexualidades pré-colonização? E os homens trans, quando eles entrarão na linha do tempo do orgulho? Por que suas iniciativas não figuram junto às lideradas por homens gays, lésbicas e travestis?

Em grande parte dos sites, reportagens e textos, essa linha do tempo salta do final dos anos 1960 em Nova Iorque para 1978 em São Paulo, na fundação do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual (1978 – 1983), um dos pioneiros na articulação do na época denominado Movimento Homossexual Brasileiro. A ele, somam-se as histórias das publicações Lampião da Esquina (1978-1981) — cuja história virou um documentário homônimo de Livia Perez — e ChanacomChana (1981-1987); e a invasão do Ferro’s Bar (1983) por ativistas do GALF – Grupo de Ação Lésbica Feminista (1981-1990), episódio popularmente conhecido como “Stonewall brasileiro”, a despeito dos distintos contextos históricos, sociais e políticos que separam os dois eventos. 

Quando chegamos nos anos 1980, é comum que nessa linha do tempo se escolha relatar o esvaziamento do movimento diante da morte de vários militantes para a pandemia do HIV/AIDS, ao invés de destacar eventos marcantes como a realização do I Encontro Brasileiro de Homossexuais (1980), a fundação do Grupo Gay da Bahia (1980) e de diversos outros coletivos pelo Brasil. O movimento organizado de pessoas trans e travestis, quando mencionado – o que muitas vezes não acontece -, geralmente é descrito tendo como ponto de partida a fundação em 1992 da Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL) – sem dúvida um evento fundamental na história da militância trans brasileira. No entanto, será que antes de 1992 nenhuma pessoa trans havia atuado na defesa do direito a uma vida digna para a nossa população? 

Descolonizar nossa história

Esse modo linear, progressivo e centralizado de compreender e relatar a história faz com que assumamos certas narrativas como principais ou únicas, e não é coincidência que essas sejam quase sempre protagonizadas por gays e lésbicas brancos, cisgêneros e de classe média. É bastante simbólico que a cronologia dos movimentos LGBTQIA+ no Brasil tenha como modelo os Estados Unidos, reflexo da extensão do colonialismo nos nossos modos de ver, saber e relatar o mundo. Nossa luta não começou em Stonewall, ela vem de muito, muito antes, formada na resistência dos corpos de figuras como Xica Manicongo, Tibira do Maranhão e Felipa de Sousa. 

Xica Manicongo foi a primeira pessoa documentada como travesti na história do Brasil, devido a uma denúncia feita contra ela no Tribunal do Santo Ofício em 1591. Angolana, foi trazida ao Brasil como escravizada e viveu em Salvador, onde trabalhou como sapateira. Após a denúncia, Xica precisou abrir mão de suas roupas femininas e seu nome para escapar da pena de morte. 

Em 1614, de acordo com o sociólogo e antropólogo Luiz Mott, um índio tupinambá foi executado por um tiro de canhão, com a anuência da Igreja Católica, em razão de sua orientação sexual, na época entendida como prática sodomita. Mott o nomeou de ‘Tibira do Maranhão’ por tibira ser o termo utilizado por indígenas do grupo linguístico tupi-guarani para se referir aos sujeitos de práticas homossexuais. 

Já Felipa de Souza foi uma portuguesa condenada por “práticas nefandas” e “pecado nefando da sodomia entre mulheres” pelo Tribunal do Santo Ofício em 1591. No livro “O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição” (1988), Mott relata que 29 mulheres foram acusadas de “lesbianismo” na Capitania da Bahia, das quais sete foram julgadas e condenadas, entre elas Felipa de Sousa, que teve a punição mais severa. Presa nos calabouços da Casa da Inquisição, ela foi retirada de lá em 26 de janeiro de 1592, quando foi obrigada a fazer um cortejo de humilhação até a Igreja da Sé, onde foi condenada, atada ao pelourinho e açoitada. 

Essas nossas ancestralidades LGBTQIA+ se fazem presentes e vivas na formação de coletivos e organizações políticas, a exemplo do coletivo indígena Tibira. Composto por jovens indígenas LGBTQIA+ das etnias Tuxá, Boe Bororo, Guajajara, Tupinikim e Terena dos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Espírito Santo, Bahia, Pará, São Paulo e Maranhão, o coletivo busca visibilizar narrativas de indígenas gays, lésbicas, bissexuais, trans e travestis. 

Integrantes do Coletivo Tibira l Foto: Reprodução Instagram.

Desinvisibilizar

Apesar de avanços no que tange os direitos civis e de uma relativa ampliação da representação política e midiática, ainda estamos muito aquém do necessário para contemplar a pluraridade de vivências LGBTQIA+ de um território vasto e tão culturalmente complexo como o Brasil. Certas identidades seguem invisíveis, desconhecidas para a maior parte da população e muitas vezes até para si mesmas.

 No clássico artigo Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (2010/1982), a poeta e teórica Adrienne Rich afirma que, diferente das existências judaica ou católica, as lésbicas tem vivido sem acesso a qualquer conhecimento de tradição, continuidade e esteio social. Isso se deve à destruição de seus registros, cartas, documentos, imagens, estratégia de apagamento de um projeto político muito bem sucedido de manutenção da heterossexualidade compulsória sobre as mulheres.

O mesmo se deu com outras existências LGBTQIA+ indígenas, negras, trans, intersexo, não-binárias… A ausência dessas figuras na linha do tempo oficial do “movimento LGBT brasileiro” produz uma ficção colonial segundo a qual apenas homens e mulheres cisgêneros brancos teriam contribuído para o avanço dos nossos direitos civis no país. Sabemos que isso não é verdade, mas o saber é pouco: precisamos cada vez mais conhecer e nomear os sujeitos que se mobilizaram no passado e seguem se mobilizando no presente em defesa de um futuro mais justo, digno e prazeroso de viver.

Quando falamos da luta travesti, por exemplo, é comum reportagens e blogs citarem como marco inicial a fundação da ASTRAL – Associação de Travestis e Liberados, em 15 de maio de 1992, sem contudo mencionarem suas fundadoras – na maioria negras e nordestinas: Jovanna Cardoso, Josy Silva, Elza Lobão, Beatriz Senegal, Raquel Barbosa, Monique do Bavieur e Claudia Pierry France. 

Outro marco é a eleição de Kátia Tapety, travesti, negra, eleita vereadora em 1992 por Colônia do Piauí, município 388 km ao sul de Teresina, capital do estado. A história de Tapety, inclusive, se transformou no documentário KÁTIA (2013), por Karla Holanda. Um ano depois, acontece o Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids – ENTLAIDS, que levou à formação da Rede Nacional de Travestis e Liberados – RENTRAL, posteriormente renomeada de ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, como é conhecida até hoje. 

Se o movimento social organizado das travestis tem início nos anos 1990, isso não significa que antes não houve uma série de tentativas de construí-lo, as quais devemos conhecer. Afinal, o fracasso também faz parte da nossa história.

Resistência na ditadura

De acordo com o pesquisador de memórias LGBTQIA+ Luiz Morando, em setembro de 1966 em Niterói, no Rio de Janeiro, houve a tentativa de realizar o I Congresso Nacional do Terceiro Sexo, impedido pela polícia. Em março de 1968, uma nova tentativa seria feita na cidade serrana de Petrópolis, também frustrada pela polícia; em maio daquele ano seria a vez de João Pessoa, na Paraíba, onde ativistas tentaram realizar o “Congresso de enxutos”, voltado para travestis e homossexuais. Na época, o ‘Diário de Pernambuco’ noticiou a eminência da realização do evento e suas principais pautas: reconhecimento do 3° sexo, permissão para casamento e divórcio entre homossexuais e reivindicação de melhor tratamento por parte da sociedade.

Ainda nos anos 1960, mais precisamente em 1962, foi fundada a primeira instituição LGBTQIA+ brasileira, a Turma OK, no Rio de Janeiro. Ativa até hoje, a história do mais antigo clube social gay da América Latina pode ser apreciada no curta-metragem “O Clube” (2014), de Allan Ribeiro. 

Nos anos 1970, apesar da repressão da ditadura militar, houve tentativas de articulação de grupos e encontros anteriores ao Somos, como o I Congresso de Homossexuais do Nordeste, preparado pelo padre da Igreja Ortodoxa Henrique Monteiro em abril de 1972 em Caruaru, Pernambuco, igualmente barrado pela polícia. É também nos anos 70 que o psicólogo, escritor e ativista João W. Nery torna-se conhecido por ser o primeiro homem trans brasileiro a fazer uma cirurgia de redesignação sexual no país, em 1977. 

Poucos anos depois, em 1982, Anderson Bigode Herzer seria o primeiro autor trans publicado no Brasil, com seu livro de poesias “A Queda para o Alto”. Assolado por uma existência de muita dor e sofrimento, Herzer se suicidaria naquele mesmo ano, mas seu legado permanece vivo e pulsante no CATS – Coletivo de Artistas Transmasculines. Fundado em 2020 pelos artistas homens trans Léo Moreira Sá e Daniel Veiga, o CATS tem o objetivo de gerar mais oportunidades de trabalho para artistas transmasculines, a fim de reverter o cenário de invisibilidade que esse grupo se encontra nas mídias e nas artes no geral. Quando o CATS é criado, já existem algumas instituições dedicadas às demandas e necessidades de homens trans e pessoas transmasculinas como o IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, fundado em 2013, e a ABHT – Associação Brasileira de Homens Trans, fundada em junho de 2012 em São Paulo.

No Rio de Janeiro, em 2001, foi fundada uma organização dedicada aos direitos das lésbicas, em especial das lésbicas negras, chamada Grupo de Mulheres Felipa de Sousa. Em entrevista à BBC News Brasil, a diretora da organização, Rosangela Castro, conta que a entidade recebeu o nome justamente pelo fato de Felipa de Sousa ter sido o primeiro caso de lesbofobia que se tem notícia no Brasil.

Coletivos como CATS, Tibira e Felipa de Sousa são só algumas das centenas de iniciativas voltadas para a defesa dos direitos LGBTQIA+ surgidas no Brasil nos últimos anos. De 2018 para cá também foram criadas a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI) e a Frente Bissexual Brasileira, para ficar em dois exemplos de identidades marginalizadas dentro da própria comunidade, o que só reforça a fragilidade da ideia ilusória e importada de um movimento LGBTQIA+ uno e coeso. Diante de um cenário econômico, político e social devastador promovido por um governo fascista, declaradamente racista e lgbtfóbico, devemos exaltar as construções coletivas, bases fundamentais das histórias de nossos movimentos, inclusive das que estamos criando agora. É através da coletividade que nos fortalecemos, que honramos os que vieram antes de nós e nos mantemos firmes no propósito de viver uma vida que valha a pena ser vivida.

Érica Sarmet* é diretore, roteirista e pesquisadore nascide em Niterói. Com sua produtora, Excesso Filmes, dirigiu e escreveu três curtas: “Latifúndio” (2017),“Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui” (2021) e “Vollúpya” (em produção). Doutorande em Meios e Processos Audiovisuais na USP, é bacharel em Estudos de Mídia e mestre em Comunicação pela UFF. Autore de diversos capítulos de livros e artigos relacionados aos campos dos estudos de gêneros e sexualidades, como “Explosão Feminista” (2018), de Heloísa Buarque de Hollanda, vencedor do Prêmio Cesgranrio de Literatura; e “Feminino Plural: Mulheres do Cinema Brasileiro” (2017), finalista do Prêmio Jabuti, Sarmet também é co-fundadore do Quase Catálogo, cineclube dedicado a filmes dirigidos por mulheres e pessoas trans, da festa Velcro e do coletivo Isoporzinho das Sapatão.

Hidrelétricas e barragens impactam gerações de comunidades nas margens do “Velho Chico”

Por Mirela Coelho*

A produção de energia elétrica ameaça a vida do rio São Francisco e a sobrevivência de diversos povos, atravessando histórias de famílias e comunidades

Abertura das comportas da Usina Hidrelétrica Três Marias cuja construção afetou a vida de inúmeras comunidades l Foto: Cbh São Francisco/Youtube/Reprodução

Há cerca de 60 anos, o município de Três Marias, em Minas Gerais, era o lar de seu Pedro e dona Antônia, um casal de ribeirinhos recém-casados. Por ali eles viviam bem e tiravam seu sustento de tudo que o rio São Francisco provia. Em 1963, a primeira filha do casal acabara de nascer quando se iniciaram  as operações da barragem Três Marias, um mega-empreendimento de geração de energia que mudaria para sempre suas vidas.

Seu Pedro até chegou a trabalhar na construção da hidrelétrica. Eles acreditavam na promessa de que, quando  o lago estabilizasse, teriam suas terras de volta. Porém, a história não foi bem assim: os fazendeiros locais se apossaram das áreas que restaram e a família, como muitas outras, foi expulsa e precisou recomeçar a vida rio abaixo, na barra do Formoso. Hoje, Clarindo Pereira, 55 anos, pescador, filho do casal, e que ainda vive no local, teme que a história se repita. 

Em 2020, o governo federal por meio do Diário Oficial da União anunciou a construção de uma nova barragem no rio São Francisco, a usina hidrelétrica (UHE) Formoso. Como aconteceu com seus pais, Clarindo e sua comunidade não foram consultados sobre a construção dessa barragem e as consequências esperadas para o mega-empreendimento causam medo e revolta.

“Não houve consulta prévia. Ninguém chegou e disse: “Olha, o senhor que é um pescador, que é um ribeirinho, o que o senhor acha da gente construir uma barragem aqui?” Não houve nada. Quando abrimos o olho as coisas já estavam além do que a gente previa”, afirma Pereira.

A UHE Formoso integra o Programa de Parcerias de Investimento (PPI) do Governo Federal e a empresa responsável pela hidrelétrica é a Quebec Engenharia. A nova hidrelétrica terá potência instalada de projeto de 306 MW e está projetada para ser implantada no estado de Minas Gerais, a 12 quilômetros da cidade de Pirapora (MG) e a 88 da UHE Três Marias. A área de reservatório invadirá 312 km2 e abrangerá os municípios de Buritizeiro (MG) e Pirapora (MG). O projeto atualmente segue na fase de levantamentos sociambientais prévios ao licenciamento.  

Direito de existência 

Biólogos brasileiros alertam para os perigos da construção de uma nova barragem na região em um estudo publicado no periódico científico “Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems” [Conservação Aquática: Ecossistemas Marinhos e de Água Doce]. As projeções indicam que 8 mil pescadores serão diretamente afetados e uma área de preservação permanente será profundamente alterada, assim como todo o rio São Francisco. Estudos também indicam que mais um barramento pode causar o desaparecimento de espécies de peixes ameaçadas, como o pacamã, que usam os efluentes do rio para reprodução. 

Os moradores das áreas que não forem alagadas, que já vivem assombrados com o risco de rompimento da barragem Três Marias, passarão a conviver com mais uma barragem pendurada em suas cabeças – além de lidarem com todos os impactos ambientais, econômicos, sociais e psicológicos do empreendimento.

“Recebemos a proposta dessa barragem já com todo o desenvolvimento do projeto, pronto para aprovação, com o aval do presidente Bolsonaro e do governador Romeu Zema. Nós defendemos que nenhum mega-projeto, por mais importante que seja, possa retirar o direito à própria existência de um povo!”, diz seu Clarindo.

As barragens alteram a vida do rio e de suas populações l Foto: Cbh São Francisco/Youtube/Reprodução

Remoções

Histórias graves de violação de direitos fundamentais na construção de barragens são comuns no Velho Chico.  Os povos Tuxá, em Rodelas (BA), e Pankararu, entre Petrolândia, Itaparica e Tacaratu (PE),  também tiveram seus territórios e vidas violadas com a chegada da hidrelétrica Luiz Gonzaga (Lago de Itaparica) no norte da Bahia em 1975.

Nos anos 1980, a inundação causada pela barragem de Itaparica levou ao deslocamento de aproximadamente 40 mil pessoas, entre elas, cerca de 200 famílias Tuxá,  aproximadamente 1.200 indígenas. Além dos danos materiais e imateriais produzidos com a submersão dos territórios ancestrais, a demora no reassentamento resultou na separação da população Tuxá, com grupos menores indo procurar abrigo em territórios distantes. 

“Nenhuma das comunidades que saíram do território tradicional e foram para outros espaços vivem um cenário socioeconômico e cultural estável e seguro. Todos vivem processos territoriais por conta do que aconteceu no território tradicional” diz  Ayrumã Tuxá, que mora na aldeia mãe, território D’zorobabé, local ancestral próximo a área que foi inundada. Ela completa:“Hoje eu percebo que foi uma estratégia inteligente do estado, pois não havia interesse de negociar ou conceder os direitos do povo Tuxá. Era mais fácil desagrupar uma comunidade”

Ayrumã  conta que hoje seu povo luta em duas frentes: indenização e autodemarcação. Há quase 40 anos os Tuxás esperam respostas da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) sobre o ocorrido. Além disso, os indígenas da aldeia-mãe enfrentam um árduo processo para reconhecimento de posse das suas terras, em constante ameaça de desapropriação.

Atualmente, existe uma liminar de  reintegração de posse expedida e reconhecida pela justiça federal que está com prazo suspenso até o  julgamento final do Marco Temporal no STF. O Marco Temporal para demarcação de terras indígenas tem como finalidade principal determinar qual data deve ser observada para que aconteça a demarcação de um território indígena. Os ruralistas defendem que apenas as terras ocupadas em 1988 por Povos Indígenas poderão ser demarcadas, o que, por conta de processos de extermínio e expulsão, muitas vezes não acontece, como no caso dos Tuxá. A decisão é de repercussão geral, impacta diretamente  no processo.

“Este é um processo de sérias violações a direitos fundamentais e o Estado está à frente disso, infelizmente. Para nós, resta a esperança de que o Marco Temporal não passe e que possam vir futuros governos que tenham propostas para os territórios indígenas e demarcação dessas terras,” destaca Ayrumã.

Depois da construção da hidrelétrica Luiz Gonzaga, o povo Pankararu viu toda a margem do rio São Francisco ser privatizada, não restando meios  para desenvolvimento de suas atividades de subsistência. Até  o consumo de água foi prejudicado. Para além disso, a cidade de Petrolândia que era de suma importância para as atividade econômicas Pankararu, desapareceu por entre as águas e foi transferida de local, o que impossibilitou a comunidade de vender produtos e tirar seu sustento.  

“À medida que o rio foi privatizado tivemos que nos entender em um novo contexto. Em 1987 houve a nossa demarcação pela Funai e em 2006 conseguimos a extensão das terras, que é o território Entre Serras. A distância de Entre Serras ao São Francisco é de 2 km. O que são 2 quilômetros em uma demarcação? A todo momento o nosso direito ao rio é negado!”, protesta João Pankararu.

Atualmente a comunidade Pankararu não tem abastecimento de água do rio, vivendo de poços, água da chuva, fontes e nascentes. No período de seca, a água chega   em carros pipa, quando o estado oferece, quando não, as famílias, mesmo que sem condições financeiras, são obrigadas a comprar água de longe. Tudo isso com o Velho Chico a poucos quilômetros. 

“Não podemos mais praticar nossos rituais à beira do rio. A gente acredita que os encantados surgiram na cachoeira de Itaparica, que é onde está localizada hoje a barragem. Quando foi construída a barragem, a cachoeira foi destruída. Esse é o primeiro impacto: cultural e espiritual” conta João.

Preocupação com o futuro

Após tantas transformações, o estado atual do rio preocupa João e seu povo. “Passamos por uma seca forte nos últimos cinco anos. A Serra da Canastra, onde o São Francisco nasce, sofreu um incêndio criminoso. Com isso, a nascente diminuiu a vazão e a gente viu a água secando. Hoje o rio está um pouco mais cheio. Por mais que seja uma notícia boa, essas chuvas torrenciais que estão vindo e encheram as barragens são decorrentes das mudanças climáticas. Outros acontecimentos naturais ou provocados irão acontecer. E isso nos preocupa.”

Hoje, coletivos, pastorais, movimentos sociais e outras entidades dos povos do São Francisco se movimentam para que a barragem do Formoso não escreva mais histórias tristes naquelas águas. João afirma que “o desenvolvimento e o progresso ignoram essas histórias, mas são histórias reais, são impactos reais e que perduram por muito tempo.”

Dentre estes coletivos está o “Velho Chico Vive”, onde organizações, moradores e artistas se reuniram para denunciar os impactos da construção da UHE Formoso e defender o Rio São Francisco, através da divulgação da campanha contra a construção da hidrelétrica e ampliação do debate para a população. Eles costumam fazer visitas em campo e grandes rodas de conversa para trocar com o povo ribeirinho, num movimento de acolhimento e unificação para que todos se mantenham firmes diante das promessas que envolvem dinheiro, emprego e desenvolvimento para as comunidades.    

Para Clarindo, a situação revela a “ ganância capitalista com a desculpa de que há necessidade de energia.”  Segundo ele, ”o povo que vive da lamparina, porque a energia não chega aqui, não entende qual é o significado de tanta intolerância para construir uma barragem.” 

Na contra-mão de empresas e governos, os povos do São Francisco pedem que outras formas de geração de energia mais limpas, que não matem bacias inteiras e respeitem as limitações e potencialidades do semiárido  passem a ser consideradas pelo estado. Eles já entenderam que os frutos maduros dos empreendimentos no São Francisco definitivamente não vão para quem vive de suas águas.

“Temos que unir forças e acolher o povo para que esse projeto não passe e se apodere de mais  um território. Onde vão colocar as pessoas retiradas de suas terras santas? Qual o valor para isso? O trunfo deles é ir apagando histórias e arrancando raízes. O impacto das barragens vai muito além da área que eles dizem indenizar”, finaliza  seu Clarindo.

*Mirela Coelho é repórter da Escola de Ativismo.

Como é ser uma adolescente crescendo num Brasil que encolhe

A ativista Vitória Rodrigues reflete sobre crescer e se tornar adulta durante os anos de Bolsonaro e organizando, na linha de frente, a resistência climática

As últimas semanas estão sendo caoticamente dolorosas para qualquer pessoa que saiba e reconheça a gravidade do que está acontecendo. Ignorância, negligência, mentira. Eu tenho a expectativa de conseguir, algum dia, mudar realidades através da vida pública, mas como é possível permanecer com essa visão no clima de Bolsonaro?

Nas escolas que passei durante o fundamental, achei que chegar ao ensino médio seria sinônimo de, exclusivamente, curtir a vida e ver no estudo a chave pra mudar de vida. Mas, todavia, entretanto, eu comecei essa parte da minha vida junto com o governo Bolsonaro. O resto a gente já sabe muito bem o que houve, mas aqui quero falar da perspectiva da Vitória.

O meu ensino médio foi e está sendo completamente diferente do que eu imaginava: eu trampo com projetos sociais, faço iniciação científica por cem reais ao mês e estágio sem remuneração. Sendo mais específica, falo bastante do mínimo, que é trocar ideias sobre periferia, segurança, saúde pública e educação de impacto social. Porém é aí que o buraco fica mais embaixo: que é quando eu preciso afirmar que a crise climática tá em curso — e se não tem mundo, não tem mais problema algum.

Eu vou nos cantos falando que desenvolvimento sustentável é o caralho, que a mudança é estrutural, é como um todo: é preciso naturalizar a radicalidade. Essa preocupação com o presente – não é futuro, gente – do mundo não é só minha, mas também de muitos adolescentes, como a Hyally Carvalho e a Heloíse Almeida, que estão se desdobrando para comunicar que as coisas não podem continuar como estão.

 

Daí na hora de repensar diariamente tudo o que faço, me pergunto: por que eu preciso fazer isso?

 

Sei muito bem que a gente precisa de gente que movimenta espaços na cara e na coragem. Eu sei. Fazer isso me conecta com pessoas, histórias e experiências que jamais teria se só estivesse conformada com a realidade, mas eu realmente tinha que estar passando a maior parte do meu tempo lutando contra toda essa correnteza que vai desde o montante de lixo que é incinerado na porta da minha casa até a indústria que tá poluindo a Baía de Guanabara?

Todo esse processo é doloroso: faz o corpo gritar seja na dor de cabeça ou na ecoansiedade. Crescer no clima de Bolsonaro é ver que a sua vida e a sua luta não tem valor algum, porque a política deste crápula é a de atacar o ser ativista de tudo que é forma, ao ponto de dar aval ao fim da nossa existência. Comecei falando que essa semana está uma merda e está. Mais uma vez, estamos vendo o governo brasileiro – que é o de Bolsonaro, precisamos dar nome aos criminosos – falar que tá tudo bem ver ativistas como Bruno Pereira e Dom Phillips desaparecerem.

É aterrorizante ver que você vai começar a sua vida adulta num país que simplesmente não liga pra sua vida, pro que você fala. Viver no clima de Bolsonaro é andar lado a lado do medo e com a consciência de que o que você representa só importa quando você é um dos alvos dos poderosos.

Isso é um desabafo. Isso é um grito de desespero. Isso é uma expressão do meu medo. Mas isso também é uma forma de dizer que precisamos dar as nossas mãos não apenas entre a gente que tá nos projetos, mas entre todo mundo. A Anna Paula Salles, da Associação de Moradores do Engenho de Itaguaí, costuma dizer que a gente precisa é andar em bonde.

Convido quem me lê aqui a pensar formas de proteger ativistas, sejam aqueles que já foram, os que estão na luta e os que estão por vir. Como fazer tudo isso eu ainda não sei, mas a Escola de Ativismo é um bom caminho. Vamos pensar em outros coletivamente também?

Como publicou Andréa Pachá, “quero viver em um país que não mata e que não naturaliza a morte. Não aceito um Brasil que vive de perguntar quem mandou matar.”  

Vitória Rodrigues é moradora de São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Está terminando o ensino médio técnico de Gerência em Saúde na EPSJV/Fiocruz. É Diretora Executiva do Projeto Ini.se.ativa e inventa arte nas horas preenchidas. Fala bastante de violência urbana, racismo ambiental e educação crítica de impacto social.

As mudanças climáticas impactam a população LGBTQIA+. De que maneira podemos nos proteger?

Populações vulnerabilizadas serão as mais afetadas pelas mudanças climáticas, cada uma com sua particularidade. Gabriela Borges reflete nesse texto sobre como isso afetará as pessoas LGBTQIA+ e o que aliades e a própria comunidade podem fazer.

Por Gabriela Borges*

Durante a minha infância, eu não sabia  direito o que era ser uma pessoa trans. Não entendia se as motivações vinham da disforia de gênero que sentia ou se era a desconformidade com o padrão binário enrijecido. Com o passar dos anos, compreendi a libertação do sistema que prende o sujeito em existências que nos foram propostas por um sistema colonizador. Porém, sentia que pensar nessa identidade era quase um privilégio, já que as ameaças ambientais batiam na porta, desde o esgoto a céu aberto na rua de casa até o perigo de desabamento morando em áreas de risco. 

Mal sabia eu que, de lá pra cá, estaria lutando diariamente pela minha vida enquanto pessoa trans no ativismo ambiental. Um lugar que por vezes desaparece em uma silenciosa solidão repleta de perguntas: Quantas pessoas trans você já viu em lugares de tomada de decisão? Quem foi a última travesti televisionada falando sobre os efeitos climáticos que nos atingem? Enquanto isso, quantas pessoas cisgênero você conhece ocupando espaços de liderança? Finalmente, o último questionamento que rasga o peito é de que forma podemos levantar uma bandeira colorida quando a cor que mais se destaca para pessoas como eu é sempre o vermelho?

Jarda Araújo, travesti negra anticolonial, ativista, que trabalha na Secretaria Executiva de Juventude do Recife, aponta a necessidade de olhar para a exposição de pessoas trans em desastres ambientais. Segundo a comunicadora, “sem sombra de dúvidas os mais vulnerabilizados são os mais impactados. É impossível pensar a população LGBTQIA+ no Brasil desassociada dessa triste realidade, sobretudo quando analisamos o recorte de pessoas trans.”

Mesmo com todos os noticiários que escancaram os efeitos das mudanças climáticas presentes cotidianamente, ainda existe um imaginário social de que o Brasil não é um país atingido por grandes grandes desastres ambientais devido a ausência momentânea de desastres naturais como furacões, terremotos, vulcões e tsunamis, gerando um distanciamento da população do entendimento da magnitude dos problemas ambientais. Porém, a crise climática tem apresentado cada vez mais sintomas, com uma frequência ainda maior do que o comum. 

Nenhum país, ainda que permaneça em negação, conseguirá escapar das mudanças climáticas.   Lidar com elas requer estratégias de prevenção, o que traz a necessidade de pensar no cuidado voltado para grupos que já são vulnerabilizados, como lugares seguros para a população trans

Para Jarda, não há possibilidade de pensarmos na eficácia de qualquer iniciativa voltada para a população T, sem pensarmos na prevenção. “É investimento em educação, viabilização dos meios de vida e subsídio, entendimento da própria estrutura e de como as agências atuam dentro de nosso território, para só a partir disso, criarmos um enfrentamento eficaz”, diz a ativista.

Por mais que o mundo esteja falando sobre as políticas de mitigação das mudanças climáticas, no Brasil esse ainda é um tema pouco desenvolvido, inclusive por conta do negacionismo climático por parte do governo, que desarticulou órgãos e secretarias de formulação de políticas sobre o tema. Tudo isso pode gerar ainda mais insegurança e dificultar as possibilidades de prevenção por falta de investimento. Nessa realidade, quando os desastres, naturais ou não, se aproximarem, os mais atingidos serão também as populações trans, principalmente aquelas não-brancas, com alguma deficiência e pobres.

Artista, travesti e profissional do sexo, Kundaline dança na praça da Sé l Foto: Pedro Stropasolas

De que forma especificamente essa população é atingida?

De acordo com um estudo recente do Chapin Hall na Universidade de Chicago, os jovens LGBTQIA+ são 120% mais propensos a viver sem-teto do que os jovens não-LGBTQIA+. Ainda segundo outra pesquisa de 2015, feita pelo Williams Institute, 40% dos jovens sem-teto nos Estados Unidos são LGBTQIA+. A situação coloca esses indivíduos na linha de frente das mudanças climáticas, sendo os primeiros impactados pelo calor ou frio extremos, chuvas, seca, poluição e outros riscos.

Na realidade brasileira, pesquisas regionais têm apontado para o crescimento da população LGBTQIA+ nas ruas. Todavia, há uma ausência estatística realizada por órgãos oficiais para o levantamento e monitoramento de dados sobre essa população. Isso limita a elaboração de qual é o perfil econômico, geográfico, social e o nível de escolaridade dessas pessoas. Com essa demanda, na última semana a Justiça finalmente acolheu o pedido do Ministério Público Federal ordenando que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclua campos sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo 2022.

Outro ponto importante para a discussão acerca da violência de gênero e sexualidade dentro da pauta climática é o descuido já presenciado em outros países com a população LGBTQIA+ em desastres. Segundo  uma análise de Dale Dominey-Howes et al. em Gender, Place, and Culture, a população queer geralmente não recebe um aviso adequado antes, durante e depois de grandes chuvas. A informação correta sobre formas de cuidado e recuperação é crucial para a sobrevivência dessa população em períodos de crise climática. 

Além disso, a marginalização de pessoas queer ao redor do mundo também afeta lugares que deveriam trazer segurança, como abrigos climáticos. Assim como a temperatura, eventos extremos como furacões, ciclones, tsunamis e outros mostram ainda mais as vulnerabilidades de grupos LGBTQIA+. Por exemplo, durante o furacão Katrina em 2005, pessoas trans foram discriminadas em abrigos de emergência, sendo algumas delas até rejeitadas. Outro caso também aconteceu no terremoto haitiano de 2010, em que pessoas e famílias LGBTQIA+ sofreram violência de gênero.  O que você acredita que poderia acontecer com pessoas LGBTQIA+ dentro de abrigos climáticos em um país que ateia fogo em uma mulher trans a plena praça pública? 

As agressões diretas ou indiretas não terminam aí, já que em alguns países após esses desastres, as populações LGBTQIA+ podem passar por perseguição. Um caso que representa a situação aconteceu após esse mesmo furacão Katrina,  em que a pessoas queer, ainda fragilizadas pela tragédia, se depararem com relatos feitos por grupos religiosos que culparam a comunidade LGBTQIA+ por atrair a ira de Deus com seus “pecados”.

Ainda com todos os indícios que justificam a urgência de construir políticas públicas de cuidado para a comunidade queer no Brasil, não possuímos nenhuma medida de adaptação ou de mitigação das mudanças climáticas voltadas para populações LGBTQIA+. O motivo principal ainda é o preconceito, pois segundo um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, há um medo em contribuir para a ‘naturalização’ da identidade gay, mostrando o grande estigma social voltado para a população queer. 

Como a luta climática pode ser construída junto à pauta LGBTQIA+?

Durante as chuvas que causaram a morte de 129 pessoas até o momento região metropolitana do Recife, não tivemos nenhum investimento no cuidado específico para as necessidades da população queer, o que  faz com que estratégias tenham que ser construídas pelos próprios atingidos, como coloca Araújo. “[Ações governamentais] voltadas para a população LGBTQIA+ especificamente, desconheço. Já organizações não governamentais, temos a AMOTRANS e a NATRAPE, ambas atuando com a população T em vulnerabilidade, desde o início do período pandêmico”. 

Diante disso, é possível visualizar a força que a essa comunidade possui para a união em momentos de emergência. Isso somado a nossa forma de olhar para o outro de maneira cuidadosa, com respeito e empatia sobre a diversidade que compõe a história de cada um, pode ser uma ferramenta essencial para construir pontes, ao invés de muros e mudar o curso da crise climática que assola o nosso planeta. 

Mask Oakland é um grupo de base trans e deficientes que distribuiu mais de 100000 máscaras N95 em todo o norte da Califórnia nos últimos dois anos. l Foto: Quinn J. Redwoods.

As iniciativas nesse sentido já começaram a se espalhar pelo mundo, em que se destaca a intersecção da pauta LGBTQIA+ junto à luta de Pessoas Com Deficiência (PCDs). Para exemplificar, trazemos as organizações compostas por PCDs queers que estiveram presentes durante incêndios e inundações de 2017, na área da baía de São Francisco, compartilhando máscaras e filtros de ar uns com os outros. Esses movimentos também se espalham pelo mundo. Em Porto Rico, as comunidades se uniram para compartilhar geradores para refrigerar insulina durante momentos de crise climática. 

Outras formas de ação possível é a do grupo trans Latinx- que, com base em experiências passadas de incêndios causados por eventos de calor extremo, levaram oficinas de cuidado para pessoas queer e trans de cor. A atividade aconteceu na Cúpula de Solidariedade e Soluções de 2018, realizada ao lado da Cúpula Global de Ação Climática organizada pelo governo. Essa ação serviu como um convite para ativistas climáticos da comunidade LGBTQIA ao redor do mundo se conectarem com o objetivo de partilhar experiências. 

Todas as formas de atuação desses grupos são pouco disseminadas, mas representam um pouco da potência que nós temos. Quando os corpos de pessoas queer passam por transição, o mundo precisa transicionar com a gente.Ee isso serve, especialmente, para a luta climática e socioambiental nesse momento. Nós estamos aqui e precisamos ganhar mais espaço! 

Qual é o seu papel nessa história?

Não existe uma fórmula mágica para reparar uma violência que foi – e ainda é – reproduzida durante gerações. Assim como essa ferida foi aberta e mexida por anos, também serão décadas até que possamos cuidar dela. 

O primeiro passo começa na representatividade! O nosso desejo é que a referência de pessoas queer não seja a pobreza, o sofrimento e a morte, feito as que denunciamos em todo o corpo deste texto.

Por isso, volto para a infância que abriu este texto, pois cresci em um mundo sem representações sobre as delícias que também podem compor a identidade diversa da nossa comunidade para um lembrete pessoal, sensível e indispensável: a falta dessa população dentro de espaços de tomada de decisões climáticas como a COP, Cúpulas e eventos propostos para as discussões ambientais reforçam esse sistema violento e apagam a nossa existência dentro do ativismo. 

Cresci acreditando que teria que lutar sozinhe por mim mesme e hoje escrevo palavras neste artigo para essa adolescente que poderia ter sido poupade dessa solidão, mas também para que as gerações posteriores à mim possam se lembrar da nossa existência. No final das contas, acredito que só com a interseccionalidade entre lutas teremos uma chance de salvar o planeta!

*Gabriela Borges é não binárie, branca, graduanda em Psicologia, ativista e pesquisadore. Atua nas mídias sociais da Uma Gota no Oceano e como comunicadora no GT de Gênero da ONG Engajamundo.

de.sa.pa.re.cer, verbo intransitivo

Luh Ferreira, da Escola de Ativismo, reflete sobre esse verbo tão ecoado dentro do meio ativista, à sombra da ausência de Dom Phillips e Bruno Pereira

de.sa.pa.re.cer

“verbo intransitivo, deixar de ser visível, sumir”

Sentimento que se repete no meio ativista, entre professores, entre trabalhadores, escuto cada dia mais gente dizendo – quero sumir daqui.

Talvez por termos vivido situações tão difíceis nos últimos anos? Talvez porque as coisas vão mal no país? Violência, crise econômica, fakenews, polarização, morte, mortes, pandemia que não passa… excessos, insônia, ansiedade…

Tudo isso fazendo parte da nossa vida.

E viver ainda é o que nos resta.

Mas e quando você não quer sumir?

E quando você quer permanecer, lutar. Quando você quer comunicar, dizer ao mundo que algo precisa ser feito por um território e isso se torna um impulso para viver.

Aqui ao contrário de sumir, de desaparecer, se quer afirmar, permanecer. Lutar.

Bruno Araújo, indigenista e Dom Phillips, jornalista. Parceiros de expedição pelo Vale do Javari, segundo maior território indígena do país, mais de 8 milhões de hectares DE.MAR.CA.DOS; maior concentração de povos isolados – isolados minha gente, é por opção! Indígenas que preferem não fazer contato com essa coisa que chamamos de civilização -; acesso extremamente restrito, pelo rio Javari ou Jutaí e pelo ar; território riquíssimo de isolados, marubos, korubos, kanamaris, matis, e tantos mais, fronteira com o Peru e Colômbia. É palco de diferentes conflitos, tráfico, desmatamento, pesca e caça ilegal, invasões de terras indígenas. Conflito armado.

Então onde estão Bruno e Phillips? É o que nos perguntamos desde domingo, quando soubemos que eles não haviam retornado de mais uma expedição para que Phillips pudesse concluir seu livro sobre ideias para salvar e proteger a Amazônia.

Governo Federal? Ministério da Justiça? Funai?

Este lugar está ou deveria estar sob a vossa proteção!

Não podem simplesmente de.sa.pa.re.cer.

Vocês são sim responsáveis por tudo o que acontece em uma região de fronteira e nos territórios indígenas.

A pergunta segue no dia de hoje:

Onde estão Bruno e Phillips?

Onde está o Governo Federal?

É guerra! Não leitoras-es, não aquela constitutiva dos povos indígenas, a guerra que forma um guerreiro, que luta pelo seu povo, pela sua cultura, por seu território, para ser indígena e assim seguir.

A Amazônia vive uma guerra armada, desigual, suja. É pelas costas, é com aliciamento, na base da ameaça, é imagem e semelhança do sujeito, que governa pelo medo, pela confusão, do banditismo.

Sabemos nesta batalha quem precisa desaparecer. Não sabemos?

Ilustração de @crisvector

Território é cultura e fé: como a intolerância religiosa anti-indígena é instrumentalizada em disputas de terra

Território é cultura e fé: como a intolerância religiosa anti-indígena é instrumentalizada em disputas de terra

Queimas de casas de reza cresceram em territórios em disputa enquanto a evangelização avança nas aldeias no Mato Grosso do Sul

Entre 2019 e 2021, sete casas de reza foram queimadas em territórios Guarani Kaiowá

Foto: Tereza Amaral/GrisLab

“Em 2020, minha avó Roberta Ximenes, de 82 anos, uma liderança religiosa do meu povo, teve sua casa de reza incendiada. Nela, minha avó protegia objetos sagrados do meu povo que tinham mais de 200 anos”, denunciou Tatiane Sanches, do Povo Guarani Kaiowá, durante a 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH 49).

Ela qualificou essas ações e a invasão de igrejas evangélicas nos territórios como parte de um extermínio cultural. “Queimar uma casa de reza representa uma violência tão profunda que atinge nosso corpo, mente e alma”, disse a indígena.

Segundo dados da Aty Guasu – Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani –, entre 2019 e 2021 foram pelo menos sete casas de rezas incendiadas. Segundo organizações, há um avanço do racismo religioso contra os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

Mas isso não é novidade.

A violência secular aos povos indígenas se efetiva de diversas formas. Desde a invasão dos colonizadores europeus, há uma luta constante por (sobre)vivência por parte dos povos indígenas. E a resistência se dá, de maneira conectada, entre a luta pelo território, por sua religião e por sua existência.

Ódio no poder

Cinzas da casa de reza de seu Getúlio e dona Alda, na reserva de Dourados

Foto: povo Guarani Kaiowá via Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aponta como uma das causas deste aumento a legitimação do atual presidente da República Jair Bolsonaro que, segundo o CIMI, atua diretamente contra os povos indígenas.

Uma das ações que impactou a situação dos conflitos no campo foi o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), gerando mais conflitos em territórios demarcados e não-demarcados. Entidades indígenas denunciam que hoje, o órgão que os deveria proteger, é um balcão de negócios que atende ao interesse de garimpeiros e empresariado ligado ao agronegócio.

O biólogo Daniel Cangassu explicou esse processo de desestruturação da Funai que ocorreu no governo de Jair Bolsonaro. Ele ficou no cargo de coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai, entre os anos de 2010 e 2019. Sua função seria a de localizar, proteger os povos indígenas isolados e de recente contato no sul do Amazonas.

No entanto, de acordo com o biólogo, entre 2018 e 2019 ele começou a ser pressionado a desenvolver expedições de missionários evangélicos em territórios indígenas.

Cangussu afirmou que as missões evangélicas com a finalidade de converter povos originários ao cristianismo aumentaram com a nomeação de Damares Alves, que esteve à frente do Ministério de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019-2022. Ele afirmou que teve conflitos com Damares, que hoje concorre ao Senado, durante anos por conta desse tipo de investida em áreas de indígenas isolados.

“Num ambiente político de desconstrução de direitos, a antipolítica mantém vínculos estreitos com as ações intransigentes e intolerantes de igrejas neopentecostais. Tornaram-se ferramentas para promover o descrédito à vacinação, a desestimular as comunidades que lutam por seus direitos fundamentais e a propagar o divisionismo interno, demonizando as religiões e crenças dos povos e comunidades originárias e tradicionais”, disse a vice-presidenta do CIMI, Irmã Lúcia Gianesin. 

Um relatório divulgado pelo CIMI em 2020 demonstrou que o aumento preocupante de violência contra os povos originários ocorreu logo no primeiro ano da gestão de Bolsonaro.

O documento aponta que em 2020 o aumento nos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” dos povos originários. De acordo com o texto, a violência foi ainda maior do que o número alarmante registrado em 2019, primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro.

Foram 263 casos registrados em 2020 e em 2019, 256, o que um acréscimo de 141% em relação a 2018, com 109 registros. Os números de 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

“O segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da Covid-19 – e pela omissão do governo federal em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas”, acrescenta o relatório.

Evangelização

Kaiowa entre instrumentos tradicionais guarani e uma cruz do cristianismo

Foto: Egon Shaden, 1949 via PIB/Socioambiental

As queimadas nas casas de rezas, que envolvem invasão, danos ao patrimônio e outros tipos de ataque, expressam a violência contra os povos originários. Desde o período colonial, as tentativas de evangelizar os povos indígenas buscam enfraquecer o modo que estes povos têm de professar suas diversas fés. Atualmente, o avanço das igrejas neopentecostais em territórios indígenas, gera um alerta da imposição do cristianismo.

De acordo com o relatório de “Intolerância religiosa, racismo religioso e casa de rezas queimadas em comunidades Kaiowá e Guarani”, elaborado pela Kuñangue Aty Guasu e pelo Observatório da Kuñangue Aty Guasu (O.K.A), missões de evangelização tem avançado em territórios indígenas. Igrejas como a Pentecostal Deus é Amor estão cada vez mais presentes nos territórios, causando, de acordo com o relatório, danos físicos, espirituais, psicológicos e materiais contra os guardiões da ancestralidade dos povos originários.

O documento de Kuñangue Aty Guasu também evidencia os grandes riscos que rezadores e rezadoras sofrem por conta do crescimento dessas igrejas nestes territórios. A denúncia também destaca perseguições, torturas, espancamentos contra as anciãs nhandesys — termo utilizado pelos Guarani e Kaiowá se referindo às rezadoras e curandeiras tradicionais. Segundo o relato, as violências são praticadas por homens vestidos de “crentes”. E que “as nhandesys torturadas, em sua maioria, são mulheres idosas e suas filhas têm pouco contato com o espaço urbano.”

Ex-pajés

Em 2018, o documentário “Ex-Pajé” tratou da evangelização de indígenas no Brasil. A narrativa conta a história de Perpera, um pajé que se sentiu obrigado a se converter ao cristianismo por causa do racismo religioso. “Antes as pessoas buscavam o pajé, agora elas tomam aspirina”, disse Perpera no documentário.

O historiador Diego Rogério, professor e mestrando em Ensino em História pela UNIRIO, explica que o racismo religioso teve um papel central no processo de colonização, desde o Século 16. Segundo ele, esse tipo de intolerância e prática de conversão foi usada como justificativa das ações dos colonizadores no continente americano. Nesse sentido, o cristianismo foi utilizado como meio de “civilizar” os povos originários, demonizando as práticas culturais e de fé dos indígenas.

“O racismo religioso atual possui raízes históricas trazidas por quem via povos indígenas e africanos como incivilizados, forçando-os a falarem suas línguas, vestirem suas roupas e negarem seus deuses enquanto eram exterminados e escravizados”, disse.

No livro “A Conquista da América: a Questão do Outro”, de Tzvetan Todorov, que apresenta diálogos entre Cristóvão Colombo e a Coroa Espanhola, há uma firme convicção de Colombo sobre como a colonização da América seria uma missão dada por Deus, visando o recolhimento de recursos para a “conquista” de Jerusalém.

Feridas coletivas

O rezador Cassiano Romero em frente à uma casa de reza

Foto: Funai

O relatório de Kuñangue Aty Guasu, detalha as consequências desta perseguição religiosa. Segundo a entidade, as violências atingem, coletivamente, os corpos físicos, espirituais e psicológicos dos povos. Também contribuem para o extermínio da medicina ancestral e das práticas tradicionais realizadas pelas parteiras, rezadeiras, e anciãs Kaiowá e Guarani.

As invasões nos territórios, envolvendo garimpeiros e fazendeiros ligados ao agronegócio, se beneficiam das queimas das casas de reza e da evangelização, afinal, para os povos indígenas, cultura e território são sinônimo e os rezadores e rezadoras têm ligação com as lideranças mais ativas na luta pela demarcação de terras.

Em 2019, houve uma tentativa da Procuradoria de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, de retirar igrejas evangélicas da denominação “Deus é Amor” da Terra Indígena Jaguapiré. No entanto, a Procuradora Geral da República, em Brasília, julgou que a medida poderia provocar ainda mais conflitos.

Enquanto isso, o documento de Kunãngue Aty Guasu é categórico: “É urgente a proteção, o fortalecimento e a valorização das anciãs Nhandesys, parteiras, Jarys, mulheres indígenas Kaiowá e Guarani defensoras de direitos humanos, frente aos projetos de extermínios anti-indígenas que vem sendo executado contra os nossos corpos, contra o nosso modo de ser Guarani e Kaiowá.”

Danielle Louise é jornalista de São Luís/MA. Atua diretamente como comunicadora popular em questões sociais, de direitos humanos, política e esportes. Atualmente trabalha na Agência Tambor e na Federação de Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA)

Movimentos cristãos progressistas: quando a fé é impulso na luta por justiça social

Movimentos cristãos progressistas: quando a fé é impulso na luta por justiça social

A teologia da libertação, evangélicos de esquerda e pela diversidade e feministas cristãs compõe movimentos sociais e lutam Ccontra a desigualdade

Mural de Mino Cerezo Barredo para simbolizar a teologia da libertação

Foto: Reprodução

Na tradição católica, a hóstia representa o corpo de Jesus Cristo vivo entre os homens. Quando lhe foi negada a comunhão com o alimento cristão, o estudante Jair Lima, à época com apenas 15 anos, viu que era hora de abandonar a pequena cidade de Bom Jardim, localizada no sertão de Pernambuco, com destino ao Recife.

  “Eu sofria muito preconceito na paróquia que frequentava, por ser gay e socialista. Achava que iria para o inferno até conhecer um grupo de franciscanos que atuava oferecendo apoio à pessoas LGBTQUIA+. Ser militante era tão importante quanto ser católico”, lembra Jair.

 Três anos depois, o caminho do acolhimento pela luta política conduziu o jovem à coordenação do grupo Diversidade Cristã do Recife,um dos muitos movimentos sociais brasileiros que levantam bandeiras progressistas no campo religioso cristão. 

“Nosso movimento surgiu em 2019, não apenas como um grupo de oração, mas de luta contra a exclusão e o preconceito dentro da Igreja. A Igreja de Jesus Cristo precisa ser a Igreja do acolhimento e do amor. Somos a ovelha colorida Dele”, brinca.

De acordo com Jair, ainda é comum que a Igreja perca pessoas LGBTQUIA+ para a discriminação. “Não podemos mudar a Igreja de Cristo, mas as pessoas que fazem parte dela e têm um pensamento conservador. A Igreja precisa se lembrar de seus mártires, como Padre Henrique, que morreu pelas mãos da ditadura militar por defender as minorias, e os santos Sérgio e Baco, que eram namorados e foram executados por Roma porque se converteram ao cristianismo”, completa.

 

Pastoral da Juventude do Meio Popular no Brasil em manifestação

Foto: Reprodução

Teologias da libertação

Para o secretário nacional da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), Filipe Xavier, o grande referencial revolucionário dos movimentos progressistas identificados com o cristianismo segue sendo a teologia da libertação, isto é, uma corrente teológica que considera os ensinamentos cristãos como norteadores para a libertação de injustiças sociais, econômicas, políticas ou sociais. 

“A teologia da libertação nos leva a buscar o compromisso social, aprendemos a fazer uma relação entre fé e vida, entre evangelho e justiça social. Fé não é ir à Igreja e se fechar em uma bolha, evitando as ‘coisas do mundo’, como dizem alguns neopentecostais. O papel da gente é justamente o de se inserir no mundo, ocupando nossas profissões, partidos e sindicatos. Jesus se sacrificou para que o povo não passe fome”, afirma. 

Voltada para jovens de periferia com idades entre 16 anos e 28 anos, a pastoral é uma organização ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que não a impede de travar embates constantes com a Igreja Católica.

 “Somos uma organização das juventudes para as juventudes, que lida com os ônus e bônus de possuir uma ligação com a Igreja. Fazemos parte dela, mas brigamos muito com sua estrutura, porque temos a missão de atualizá-la”, comenta Filipe Xavier. 

De acordo com o secretário, a CNBB já chegou a interferir para que ações voltadas para o público LGBTQUIA+, por exemplo, não acontecessem. 

“Mesmo assim, a gente faz. Além disso, já defendemos a consagração de homens casados, em regiões em que não a população não conta com um padre. Também reconhecemos o papel das mulheres na Igreja, afinal, a maior parte das pastorais é liderada por elas. Por que não reconhecer essa participação com o sacramento?”, acrescenta o secretário.

Apesar de provocar tensões no campo religioso, a pastoral não costuma desfrutar do reconhecimento político de outros movimentos sociais “De forma nacional, estamos dentro da Plataforma pela Reforma Política e do Grito dos Excluídos, mas cada estado possui suas particularidades e articulações. Quando a juventude se aglutina e se mobiliza, ela tem um poder transformador gigante.”, lamenta. 

PJMP realiza apresentação teatral

Foto: Reprodução

Evangélicos antirracistas

Em seu mestrado em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), o cientista social Vítor Queiroz de Medeiros se dedicou a estudar o ativismo negro evangélico no Brasil contemporâneo. Para o pesquisador, esses grupos são duplamente minoritários.

 “São minoritários como evangélicos no meio dos progressistas e minoritários como progressistas entre os evangélicos, o que os coloca em um limbo de legitimidade. Uma das coisas que condiciona esses ativismos evangélicos progressistas é que eles precisam se orientar tanto pela aquisição de status como movimento quanto de evangélicos legítimos”, pontua. 

De acordo com o pesquisador, esses grupos se pautam por um repertório de ações que inclui a realização de ações ditas de acolhimento, a tentativa de intervenção em canais alternativos de imprensa, a participação nas redes sociais e em atos organizados pela esquerda, além da produção bibliográfica literária de teologias progressistas. 

“Eles reproduzem em grande medida boa parte das mesmas ações de movimentos sociais mais tradicionais, mas, às vezes, fazem coisas a partir da linguagem religiosa. Uma característica importante desses ativismos é uma ativação flexível dos marcadores religiosos, ou seja, fazer coisas mais para o grupo do que para fora, uma espécie de ‘ativismo para si’ diz o sociólogo.”

Segundo ele, são cultos, seminários, encontros de acolhimento, discipulados de estudos bíblicos e ações em geral “que tem como função principal a socialização deles”,Medeiros, trata-se também de um campo político de ativismo de baixa institucionalidade.” 

Em geral, os movimentos cristãos progressistas não dispõem de recursos e estrutura sólida. Através de um agenciamento de recursos relativamente precário, tais grupos costumam realizar seus encontros em espaços de igrejas progressistas, locais cedidos por movimentos de esquerda ou em praça pública. Todo esse esforço se dá em em função de um anseio de influenciar, através de uma disputa de valores, outros evangélicos a se aproximarem do campo da esquerda. 

“Eles conseguem? Pouco, porque têm dificuldade de acessar diretamente as igrejas. O acesso a elas é controlado pelos pastores e tem uma coisa da conjuntura atual que é de uma polarização política ideológica muito forte, que contribui para interditar o acesso deles às igrejas. Um momento de polarização política ideológica é um momento que oferece muito mais um monólogo do que um diálogo”, pontua. 

O esforço político de setores progressistas evangélicos, contudo, não é novo. “O que nós estamos vendo agora no caso dos ativismos evangélicos progressistas é o que coloco como uma reemergência pública. Não é que isso está surgindo agora, há momentos de irrupção de visibilidade e retração. No fim do século XIX, protestantes foram favoráveis à abolição da escravidão, à laicidade do estado e a ideias republicanas”, comenta Vítor.

Entre os anos 1950 e 1960, sob influência da teologia da libertação, o teólogo Richard Shull articulou a Conferência do Nordeste. “Ela reuniu intelectuais, teólogos e pastores para discutir como os evangélicos deveriam se portar para contribuir com a revolução brasileira. Alguns desses setores apoiaram as reformas de base de Jango [Goulart]”, completa.

Pastor Henrique Vieira prega o amor com respeito à diversidade.

Foto: Reprodução

“Ação política amorosa”

Pastor da Igreja Batista do Caminho, ator, poeta, professor, ex-vereador e militante de direitos humanos, Henrique Vieira tornou-se nacionalmente conhecido em razão de discursos contundentes em palanques políticos de esquerda, bem como da divulgação de seu trabalho religioso nas redes sociais e plataformas digitais.

Embora reconheça a existência de uma base evangélica que dá sustentação a uma política reacionária, o pastor frisa que a maior parte dos praticantes da religião no Brasil é composta por trabalhadores e trabalhadoras, pessoas pobres, periféricas e negras. 

 “O conservadorismo não é exclusivo do campo evangélico. É verdade que o cristianismo hegemônico foi parte central do projeto colonizador no Brasil. O cristianismo, enquanto religião hegemônica institucional, carrega fortes traços conservadores. Agora é preciso fazer duas observações: o Evangelho de Jesus não tem nada a ver com esse conservadorismo e existem ‘cristianismos’, no plural”, coloca.

É nesse sentido que o pastor organizou e mediou a Jornada da Teologia Negra entre os dias 3 e 8 de março. Dentre os convidados para os três dias de encontro, estiveram o ator Lázaro Ramos, a filósofa Katiúscia Ribeiro, bem como os pastores Ronilso Pacheco e Ras André Guimarães

 “A teologia negra dentro do cristianismo é um esforço teórico, mas sobretudo prático de resgatar a dimensão popular libertadora da bíblia. Existe um cristianismo eurocêntrico colonizador que tira da bíblia seu potencial popular, que dela se apropria para manter estruturas de opressão e violência, dentre elas, a branquitude”, explica. Na interpretação do pastor, a bíblia apresenta um Deus comprometido com os oprimidos e que os convoca à organização e à liberdade. 

 “No Brasil marcado pela escravidão e pelo racismo estrutural, se quisermos ser fiéis à bíblia precisamos entender a centralidade da experiência negra em sua interpretação e na vivência do evangelho. Historicamente, a bíblia vem sendo lida pela lente e pelos interesses da Casa Grande. O que a teologia negra faz é ler a bíblia pela lente e pela experiência do quilombo, então a teologia negra busca descolonizar a bíblia, devolvê-la ao seu chão histórico”, acrescenta.

Assim, Vieira ressalta que fé e política são indissociáveis. “O problema é quando a fé é tomada pelo fundamentalismo e fanatismo, tenta se apropriar do estado para impor ao conjunto da sociedade uma determinada visão religiosa e comportamental. Isso é violento, desrespeita a democracia, a diversidade, a pluralidade de crenças religiosas e também desrespeita a não crença religiosa.

“Agora, quando a fé estimula a busca pelo bem comum, busca por justiça social, defesa pela causa dos pobres e dos oprimidos, quando a fé se coloca em diálogo num espírito de pluralidade e respeito isso é positivo. Então, a fé pode estimular uma ação política amorosa, generosa, comprometida com a democracia, a justiça social e a pluralidade”, conclui.

Católicas pelo Direito de Decidir defendem a autonomia da mulher sobre o próprio corpo

Foto: Reprodução

Feminismo cristão

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Datafolha em 2020, pessoas negras e mulheres representam a maior parte dos cristãos brasileiros. Enquanto o público feminino corresponde a 58% dos frequentadores de Igrejas evangélicas e a 51% dos fiéis católicos, pretos e pardos respondem por 59% e 55%, respectivamente. As demandas específicas de ambos os recortes estão associadas às lutas históricas do cristianismo e encontram representatividade em movimentos feministas de caráter cristão. 

Fundada no dia 8 de março de 1993, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) surgiu em um contexto de ampla realização de conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) na América Latina, em que eram evidenciadas questões relativas às mulheres negras, pessoas com deficiência, crianças, idosos e pessoas LGBTQUIA+. 

“Venho de uma família totalmente católica e tive uma ligação direta com a Igreja através das pastorais de juventude e das Comunidades Eclesiais de Base. Descobri sobre as Católicas na universidade, onde pesquisava sobre mulheres no catolicismo. Me chamaram muita atenção os discursos subversivos desse grupo, que iam de encontro ao que eu questionava na Igreja, como a submissão das mulheres na instituição”, comenta Letícia Rocha, graduada e mestra em Ciências da Religião e integrante da equipe das Católicas há cerca de três anos. 

Voltada para a luta antirracista com uma abordagem interseccional, a CDD é reconhecida por instigar o debate da justiça reprodutiva dentro da Igreja. Dentre as principais bandeiras encampadas pelo movimento social estão tanto a luta pelo direito à maternidade desejada e segura para a mulher quanto pela possibilidade de escolha da não-maternidade.

 De acordo com Rocha, certos fundamentos da tradição católica cedem espaço para uma reflexão aberta sobre o direito ao aborto. “Não houve um único pensamento sobre o aborto na história dessa Igreja milenar, que nunca teve clareza em confirmar essa questão do aborto como algo inadmissível e pecaminoso. É importante dizer que o aborto não é uma questão de dogma, mas uma matéria disciplinar que a Igreja assume como discussão”, prossegue. 

Ela lembra que o aborto só passa a ser deliberadamente repudiado pela Igreja no século XIX, durante o papado de Pio IX. “Isso é relativamente novo e coincidentemente acontece em um período em que a igreja clama o dogma da Imaculada Conceição e no qual ocorre a revolução industrial. Nele, as mulheres começam, em certa medida, a sair de casa e trabalhar. Então, esse dogma vem para dizer qual é o lugar da mulher, que a maternidade, a procriação, estar em casa e cuidar dos filhos é importante”, explica.

Em 2012, a CNBB chegou a publicar uma nota desaprovando as posturas adotadas pela CDD. No posicionamento, a organização diz que “o grupo tem defendido publicamente o aborto e distorcido o ensinamento católico sobre o respeito e a proteção devidos à vida do nascituro indefeso; é contrário a muitos ensinamentos do Magistério da Igreja; não é uma organização católica e não fala pela Igreja Católica”. 

A cientista da religião frisa que a Igreja sempre teve uma tendência de rechaçar o feminismo. “A gente recebe esse tipo de coisa, estamos cientes da nossa luta, do nosso papel na sociedade e nós seguimos. Esse tipo de repúdio já aconteceu e pode acontecer, no entanto, estamos firmes naquilo que acreditamos e do que podemos fazer na sociedade. Nota de repúdio não muda nossa luta”, acrescenta. 

Rede de Mulheres Negras Evangélicas é outro movimento social que incorpora a agenda feminista em seu cotidiano. O movimento surgiu em 2018, durante o Primeiro Encontro de Negras Cristãs, realizado pelo Movimento Negro Evangélico de Pernambuco, no Recife, em torno do tema “Resistência, Espiritualidade e Incidência Pública”. 

“Hoje a organização tem repercussão nacional, com representação nas cinco regiões do Brasil e mais de 110 mulheres inscritas. Temos esse propósito de ser um espaço da sociedade civil, em defesa dos direitos humanos e das mulheres, com esse olhar especial para as mulheres negras”, contextualiza Vanessa Barboza, coordenadora executiva da Rede e integrante do Movimento Negro Evangélico.

Vanessa considera que a atuação política da Rede é um desafio narrativo e historicamente posto, que encontra resistência mesmo quando tenta penetrar espaços políticos ditos progressistas. “As pautas racial, das mulheres e da diversidade acabam encontrando um lugar de ‘desprioridade’ de urgência de suas respostas a demandas, que são históricas. São reflexos das relações sociais de maneira geral, que acabam se refletindo no meio evangélico mais fundamentalista, com um discurso de ódio mais marcado, e também entre nossos ditos pares, no sentido de existir uma indiferença ou não reconhecimento da prioridade do que está sendo colocado”, crítica. 

A coordenadora da Rede lembra que o racismo e o machismo são estruturais na sociedade brasileira e, portanto, presentes em todos os espaços políticos que nela estão inseridos. “A gente pode pensar que em alguns espaços temos rigidez e refreamento dessas estruturas mais ou menos possíveis para cada grupo. A mudança social é possível porque os seres humanos são capazes de mudar e acho que é nessa esperança de mudança e igualdade que a Rede de Mulheres Negras e o Movimento Negro Evangélico caminham. São movimentos progressistas que têm esse intuito de dizer o que parece óbvio: todas as pessoas merecem viver plenamente sua dignidade humana”, conclui.

Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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