Ativista conta sobre seus aprendizados com o conceito da sociocracia aplicado em uma associação canábica

Por Keka Ritchie*

Quando iniciei meus trabalhos voluntários no ativismo canábico, há quase quatro anos, não tinha ideia do tamanho das transformações pessoais, profissionais, relacionais e até espirituais que aconteceriam a partir daquele momento em minha vida. Mesmo sendo usuária de cannabis há quase vinte anos, acho que, naquela época, eu também pré-julgava as pessoas maconheiras a partir daquele perfil que a sociedade desenhou: lesadas, irresponsáveis e menos comprometidas com o trabalho.

A verdade é que eu não só estava totalmente enganada, como me surpreendi ao descobrir que  uma associação de maconha era o lugar mais organizado e motivador em que eu já havia trabalhado na vida. Fora meu trabalho no ativismo, atuo como produtora há mais de dez anos e passei por diversas agências, das menores às maiores do mercado. No entanto, foi ao ver aquela organização feita cem por cento por pessoas voluntárias engajadas somente pelo amor a uma planta, que fiquei realmente encantada e curiosa. Decidi então dedicar um tempo da minha vida para aquela associação e logo fui convidada a assumir o papel de líder de eventos.

Naquela época eu já vinha querendo me envolver com ações que gerassem um impacto positivo na sociedade frente à situação política desastrosa que vinha se desenhando desde o impeachment, mas confesso que toda essa energia densa de disputa que a política gera me causava uma certa repulsa e eu acabava deixando essa ideia pra depois.

Mas o lado bom da vida é que o universo é elegante quando a nossa intenção é boa e ele não só me levou até uma solução extremamente amorosa, bem diferente de como eu imaginava que seria, mas também tinha um detalhe apaixonante: era uma organização onde a maconha era legalaize, afinal, ela nasceu assim, livre! Seria perfeito? Sim! E assim, quando eu menos percebi, eu já tava envolvida até o pescoço em uma organização do terceiro setor. Essa organização é a ACuCa – Associação Cultural Cannábica de São Paulo, onde depois de um tempo ocupei a presidência, num mandato de dois anos, que se encerrou agora em abril de 2021. Hoje, ainda sigo na diretoria, como secretária, além de atuar também como coordenadora institucional suplente na FACT – Federação das Associações de Cannabis Terapêutica, fundada também em abril de 2021, tendo a ACuCa como uma de suas membro-fundadoras.

Na ACuca, me sentia realizando o desejo de contribuir ativamente para a reparação social histórica e para a construção de uma sociedade melhor. Isso porque acredito que a luta pela legalização da maconha é extremamente necessária em um país violentamente racista e desigual como o nosso. Mas teve outro fator que me encantou – e ainda encanta – na ACuCa: o sistema organizacional que ela adotou pra fazer sua gestão: a Sociocracia 3.0. E é sobre essa tal de Sociocracia 3.0 que a gente vai levar a prosa a partir daqui.

Foto: Keka Ritchie/Arquivo Pessoal

Modos de fazer

Bem, o associativismo é a união de pessoas trabalhando juntas em prol de um objetivo em comum, mas isso não significa que ter esse objetivo faça com que todas as pessoas que compõem aquele coletivo pensem sobre tudo da mesma maneira. A realidade é bem diferente disso, na verdade. Sabemos que onde há um grupo de pessoas, há divergência de opiniões. Mas isso é bom, afinal a diversidade é a grande riqueza de um coletivo. Todavia, como é possível usar essa riqueza a nosso favor, organizando todas essas ideias diversas – muitas vezes até opostas – chegando num senso comum que permita ao coletivo tomar decisões onde todas as pessoas se sintam seguras com elas? Essa é justamente a proposta da Sociocracia 3.0. Vou tentar exemplificar usando as eleições presidenciais do Brasil:

Bolsonaro ganhou as eleições com 55% dos votos. Isso significa que ele foi eleito pelo desejo da maioria. Mas eu pergunto: e o que acontece com o desejo de 45% das pessoas que, embora componham a minoria, ainda representa uma parcela muito grande e considerável do todo? As vontades e desejos dessas pessoas são totalmente ignoradas por essa pessoa escolhida para representá-las? Infelizmente, na democracia exercida hoje no Brasil, sim. 

Bem, embora a gente não perca oportunidades de criticar o atual (des)governo, a gente não tá aqui pra falar sobre isso. Mas esse exemplo serve para mostrar como a sociocracia ajuda um coletivo a se organizar para deixar não só 55% dele satisfeito.

Vamos fazer uma recapitulação histórica para contextualizar a origem desse sistema: A sociocracia clássica nasceu em 1851, com três regras básicas: os interesses de todas as pessoas deveriam ser considerados e indivídues deveriam respeitar o interesse do todo; Nenhuma ação poderia ser tomada sem uma solução que todes pudessem aceitar; Todas as pessoas deveriam aceitar as decisões de forma unânime, e se um grupo não fosse capaz de tomar uma decisão, a decisão deveria ser tomada pelo nível mais alto de representantes escolhides pelo grupo.

Ao longo dos anos, embora haja registros, a sociocracia foi pouco explorada até que no começo dos anos 2000 começou a se ouvir falar um pouco mais sobre Holocracia, que é um modelo de gestão com ideias semelhantes às da sociocracia, onde não há um sistema rígido de hierarquia, e o poder e a tomada de decisões é dividido entre todas as pessoas da entidade em questão. Em 2015 então, a Sociocracia 3.0 foi desenvolvida a partir da evolução da Sociocracia Clássica ao integrar influências da Holocracia e também da queridinha Comunicação Não-Violenta.

Princípios

Mas de que forma essa tal da Sociocracia 3.0 consegue organizar uma instituição, permitindo que pessoas trabalhem bem juntas, da forma mais eficiente possível? Respondendo objetivamente: nesse sistema, o poder e a soberania são exercidos pelo coletivo, que possui uma inteligência coletiva, sendo capaz de se auto-organizar e tomar decisões em grupo sem critérios hierárquicos, mas tendo agentes facilitadores que tomam decisões com base no consentimento do todo. Na sociocracia, as decisões são tomadas com base na opinião popular, de acordo com seus sete princípios:

Princípio da eficácia, que sugere que o tempo deve ser dedicado apenas naquilo que nos aproxima de nossos objetivos. Ou seja, reuniões desnecessárias que não geram insights são descartadas, o que é um grande incentivo para que as as pessoas aprendam a priorizar suas atividades; 

Princípio do empirismo, que entende que mais importante que discutir hipóteses é nos pautar em evidências. Assim, tudo deve ser testado e avaliado de acordo com a realidade, e somente são consideradas as informações concretas da sua eficácia; 

Princípio do consentimento, que sugere que as decisões sejam tomadas através de boas argumentações, ou seja: o poder está nas mãos dos bons argumentos, e não de líderes. Em suma, não é preciso que 100% do grupo esteja de acordo, mas após muita argumentação e esclarecimento de dúvidas, é possível chegar a uma conclusão que, embora não seja a preferência de algumas pessoas, pode ser tolerada por elas por ser coesa e não ameaçar a organização. Dessa forma, muito menos energia é gasta com discussões sobre preferências pessoais;  

Princípio de melhoria contínua, que sugere que a organização é um organismo vivo e sua evolução é adaptável, ou seja, é necessário ter abertura para mudanças, se moldando conforme o tempo. Assim, é possível incorporar aprendizados, evitando falhas com a repetição de padrões antigos que deixaram de ser eficazes;

Princípio da equivalência, que garante o envolvimento de todas as pessoas que serão afetadas por aquela decisão. Afinal, se uma pessoa será afetada, isso significa que ela é a pessoa ideal para ser ouvida sobre aquele assunto; 

Princípio da transparência total, que é um dos principais valores da Sociocracia 3.0, pede para que todas as informações sejam compartilhadas e estejam 100% acessíveis, porque só assim é possível que todas as pessoas possam contribuir positivamente com as decisões;  

E, por fim, o princípio da responsabilidade, que entende que em um coletivo orgânico sem pessoas soberanas, só funciona com base na responsabilidade individual. Ou seja, cada pessoa precisa estar completamente ciente das suas funções para cumprir os próprios acordos e fazer a gestão de si mesma;  

E, para garantir que esses princípios funcionem pra além da teoria, existe uma característica especial da sociocracia 3.0 que é a estrutura em círculos. Ou seja, ao invés de departamentos organizados através de uma estrutura hierárquica vertical/horizontal, como a gente costuma ver no organograma das instituições, a proposta aqui é que cada departamento seja um círculo – que pode ter ou não outros círculos dentro – que compõem o grande círculo que é a organização. E não existe uma hierarquia estabelecida entre esses círculos. Todos são fundamentais para o funcionamento do todo, exatamente como um organismo vivo. Pra exemplificar, abaixo a gente pode ver como uma instituição se organiza em círculos:

Os círculos existem pra organizar “o que”, “onde” e “por quem” as decisões são tomadas, sendo formados por grupos de pessoas com uma meta em comum, que deliberam pra tomar decisões sobre as mais diversas questões dentro do coletivo. Eles são autogestionáveis, ou seja, as pessoas que integram cada círculo estão ali porque são especialistas sobre aquela questão e, portanto, são as melhores pessoas para tomar uma decisão sobre. Isso é ótimo e otimiza demais o tempo, já que não faz sentido levar a tomada de decisão pro círculo principal, a não ser que isso vá influenciar no caminhar do coletivo como um todo.

Dentro de cada círculo existem os papéis que são energizados pelas pessoas especialistas pra executar as tarefas competentes a cada círculo. O que é diferente de um cargo, por exemplo. Na sociocracia, nada impede que uma pessoa que exerça um papel de liderança execute uma tarefa que, dentro de uma organização hierárquica, pode ser considerada simples demais. Nesse caso, é interessante observar que deixar de lado o ego do “cargo alto” faz com que o coletivo fique muito mais conectado e eficaz. Mas isso é, infelizmente, a razão pela qual é tão difícil implementar a sociocracia em grandes organizações já estabelecidas e, principalmente, nas privadas. Porque as lideranças que compõem os mais altos cargos não querem estar no mesmo nível das outras pessoas funcionárias e, como elas são as tomadoras da decisão final, acabam desistindo do processo de sociocratização no meio do caminho. O que não parece ser uma decisão muito eficaz, já que são nítidos os benefícios que a sociocracia oferece pra uma organização.

Engrenagens para ativistas

Listar todos esses benefícios deixaria esse texto muito extenso, mas acho válido destacar alguns. O primeiro deles é a governança inclusiva, que considera com profundidade os conceitos da democracia (poder do povo), trazendo a sensação de pertencimento a todes envolvides. Outra coisa muito legal de se destacar é que a sociocracia trabalha a flexibilidade das pessoas ao convidá-las a sair da preferência pessoal e decidir pelo que for tolerável, bom e suficiente por agora, sem botar a entidade em risco. Outro benefício incrível é que a sociocracia desenvolve o espírito empreendedor individual e da equipe porque estimula a criatividade, trazendo assim soluções muito mais inovadoras.

Esse sistema melhora também o tempo e a qualidade da entrega porque, segundo o princípio da eficácia, não perdemos mais tempo com atividades desnecessárias, o que nos deixa com mais tempo para executar as tarefas com maior atenção e também antes do prazo, aumentando muito mais a produtividade. Por fim, o meu favorito: através das técnicas da comunicação não-violenta (CNV) ela, naturalmente, estimula a escuta ativa das pessoas, aumentando a confiança, a motivação e o comprometimento das pessoas que se sentem valorizadas ao terem suas opiniões, dores e necessidades ouvidas pelo coletivo. Mais que isso, a CNV melhora as relações interpessoais dentro do coletivo, tornando o ambiente muito mais humanizado e amoroso.

Parece incrível, né? E é! Na minha humilde opinião, a Sociocracia 3.0 deveria ser peça fundamental da engrenagem de organizações sociais ativistas, garantindo transparência e equidade nas suas decisões, ações e intenções, de forma humanizada e amorosa. 

E o mais legal disso tudo foi quando me veio a sacada que eu podia aplicar a sociocracia em todas as relações da minha vida, fossem elas profissionais ou não. Eu me perguntei: quanto tempo eu já perdi na vida tensionando uma situação buscando a perfeição, ao invés de relaxar e aplicar o mantra da sociocracia, que diz: “isso é bom e seguro o suficiente para ser testado agora?”. E tudo bem se o teste der errado! Porque a vida, assim como as organizações, é esse grande organismo vivo que está constantemente nos convidando a nos adaptar e aprender com os erros em busca do melhor, mas não da perfeição.

Te convido então a carregar esse poderoso mantra com você e passar a observar as maravilhas que podem acontecer toda vez que ele for entoado.

(E, pra quem quiser navegar mais pelos mares da sociocracia, indico o livro “Muitas Vozes Uma Canção – Autogestão por meio da Sociocracia” de Ted J. Rau e Jerry Koch-Gonzalez.)

Viva a sociocracia! Viva a maconha! E que nada nos distraia do amor. <3

* @kekaritchie é ativista pela regulamentação da maconha, usuária e paciente de cannabis terapêutica

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