Coletivos de Belo Horizonte unem forças para contornar falta de trabalho e de apoio do Estado

Por Petra Fantini

Fotos de Cadu Passos

“Nós estamos fazendo o trabalho que era para ser feito pelo poder público”. A declaração de Fátima Muniz, a Jade, coordenadora do coletivo Clã das Lobas, ilustra bem como as organizações de mulheres trabalhadoras sexuais estão lidando com a pandemia de Covid-19. As crises sanitária e econômica do período, que se retroalimentam, espantaram quase todos os clientes do circuito de hotéis do centro expandido de Belo Horizonte, conhecido como hipercentro – a estimativa conta que o movimento esteja até 80% menor –, fazendo com que as trabalhadoras precisem contar com sua rede de apoio para subsistência.

Jade explica: “A maior parte dos clientes são o quê? Trabalhadores. A pessoa que tem alguma coisa pra fazer no centro, aproveita e passa nos hotéis. Mas todo mundo tá desempregado, quem tem dinheiro? Os R$ 30 reais que paga em um programa vão fazer falta na casa dele”.

“Não é só alimentação. Você tem aluguel, luz, água. Se sua criança fica doente, é um remédio que você tem que pagar. E, sem renda, você fica sem condições de fazer isso tudo”, alerta Santuzza Alves de Souza, coordenadora do Coletivo Rebu. No início da pandemia, o coletivo fez um folder orientando as trabalhadoras sobre o uso de máscara, como se comportar com o cliente e a importância de trocar de roupa ao chegar em casa, para não contaminar o lar. O kit, que continua a ser distribuído, é composto também por duas máscaras, preservativo, álcool em gel e gel lubrificante.

Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras

A pandemia de coronavírus foi o pontapé inicial de um projeto que servirá de amparo às trabalhadoras sexuais a longo prazo, se o piloto for bem-sucedido. A Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras, em funcionamento há três meses, foi pensada prevendo o fechamento dos hotéis do hipercentro onde as trabalhadoras sexuais atuam. Os estabelecimentos acabaram não fechando, mas a moradia segue acolhendo aquelas impactadas tanto pela falta de trabalho causada pela crise sanitária quanto por quaisquer outros problemas que afetem sua saúde física e mental.

O nome homenageia duas trabalhadoras sexuais. “Penha foi assassinada do meu lado, a duas portas de distância, lá no hotel. E Izadora foi uma mulher trans que foi assassinada também. São duas mulheres que morreram com violência, então queríamos homenagear uma mulher cis e uma mulher trans no nome da Casa”, conta Jade, uma das idealizadoras do projeto.

Santuzza Alves de Souza, do Coletivo Rebu

O apartamento, localizado no bairro Jardim São José, pode abrigar um número não exato de mulheres, quantas forem necessárias no momento. No início, as regras eram mais rígidas: não era permitido sair durante o período de hospedagem, para proteger as demais moradoras do risco de transmissão de Covid-19. O modelo, no entanto, não atendia à realidade das trabalhadoras. Para não as afastar, Jade decidiu ser mais maleável. Hoje, qualquer trabalhadora sexual que precise ficar por alguns dias, ou que precise morar por tempo indeterminado, é bem-vinda. A única condição é não ter filhos, pois a moradia não está preparada para receber crianças.

“Tinham muitas mulheres com a saúde mental precária. Lá elas podem ficar dois, três dias, dormir, descansar, se alimentar melhor. Ao trabalhar em hotel, você acorda pensando na diária. Eu falo isso porque eu trabalho dentro de hotel faz 20 anos. Você já acorda com uma dívida de R$ 120, R$ 170. E não tem movimento, os clientes sumiram. E os donos dos hotéis não amenizaram, não baixaram o valor diária, não”, relata a coordenadora do Clã das Lobas. Também há 20 anos atuando como trabalhadora sexual, Claudineia Mota Vieira é uma dessas mulheres que passam algumas temporadas no local, em busca de descanso e de cuidar da saúde. “A dificuldade lá fora tá muita, pra poder ficar nos hotéis paga muito caro, e não tava dando mesmo”, conta.

Além de um local para dormir e se alimentar, a Casa também oferece cursos de artesanato, aromatizantes, massagem tântrica, serviços de beleza (design de sobrancelhas e alongamento de cílios e unhas), entre outros. O objetivo é, além de entretê-las e trabalhar sua saúde mental, capacitá-las e possibilitar uma fonte de renda extra. Jade é enfática ao garantir que não quer tirar ninguém do trabalho sexual, mas que a pandemia as ensinou sobre suas próprias vulnerabilidades. “Nós temos que ter outro modo de ganhar dinheiro. Nós percebemos que estamos envelhecendo, que nós somos vulneráveis, que ninguém nos ajuda. Somos nós por nós mesmas”, diz.

As professoras das aulas são outras mulheres cis e trans trabalhadoras sexuais. Depois de capacitadas, as ex-alunas, trabalhadoras que estejam hospedadas lá ou não, podem passar o conhecimento adiante para as colegas. Os cursos e demais despesas da Casa, atualmente, são financiados pelo Fundo Elas, investimento social voltado exclusivamente para a promoção do protagonismo das mulheres, e pela Escola de Ativismo.

Dona do bar vizinho ao prédio onde fica a moradia, Maria de Fátima Santos vive uma relação de troca com as acolhidas. “Até eu de vez em quando participo dos cursos. Vou lá bater papo e acabo fazendo junto com elas, faço almoço, ajudo com alguma coisa. É bom porque eu sou sozinha, né, então é uma terapia. Vou ajudar e acabo sendo ajudada”, conta, entre risos. O movimento do seu bar, segundo Fátima, “caiu 99%” durante a pandemia. “Pra mim tá sendo ótimo. Me distrai, não fico pensando só em dívida. Me tranquiliza um pouco”, afirma.

A ilustradora Izadora Flor entrou no início do projeto. “Como todo mundo sabe, na realidade das mulheres trans a prostituição é algo que é imposto. Eu não necessariamente exerço a profissão. É bom deixar isso bem claro, assim, eu não estou com vontade. Eu trabalho com ilustração no Instagram, mais vinculado à saúde mental e sexual de mulheres trans, e tenho outros projetos pessoais voltados para a arte mesmo”, conta Iza, como é conhecida. Hoje, ela já voltou para a casa de sua família. Através do curso de massagem tântrica oferecido pelo projeto, ela ganhou uma bolsa no Kaya Terapias para seguir seus estudos.

Em julho, a participação do Fundo Elas se encerra e entra o Fundo Positivo, Fundo de Sustentabilidade às Organizações que trabalham no campo do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Mobilizado pela Aprosmig, o Fundo Positivo ficará responsável apenas pelo aluguel da Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras, portanto tanto a Associação quanto o Clã da Lobas estão em busca de parcerias e de doações para manter o pleno funcionamento do local. A longo prazo, o objetivo é mudar para um local maior, com mais estrutura, e regulamentar a Casa de Acolhimento.

Jade, trabalhadora sexual, coordenadora do Coletivo Clã das Lobas

Duas mulheres

Penha estava trabalhando em um hotel da rua Guaicurus – rua do baixo Centro de Belo Horizonte conhecida por reunir diversos hotéis onde trabalhadoras sexuais atuam – no dia em que foi assassinada no quarto, por um cliente. Ela tinha mais de 60 anos. “Foi uma dor, uma coisa assim, surreal. Foi o segundo assassinato que eu presenciei, a gente sente um pouco na alma. Pode ser uma de nós. Ela passou pela gente, riu, nos cumprimentou, entrou no quarto e meia hora depois foi morta”, conta Jade. O suspeito, que hoje responde à acusação em liberdade e ainda frequenta os hotéis da região, culpa a vítima, alegando que foi impedido de sair do quarto.

Já Izadora viu o fim de sua vida em um ponto de ônibus perto de casa, a caminho do trabalho. Segundo Jade, não se sabe se o crime foi motivado por transfobia. “Ela fazia parte do Projeto Mina, da Escola de Ativismo” conta. Desde março de 2020 o Projeto Mina realizou uma inciativa que apoia ações coletivas para a promoção da dignidade e visibilidade das reivindicações das trabalhadoras do sexo cisgêneras, transexuais e travestis de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Com a morte da participante decidiram homenageá-la e o processo passou a se chamar Jornada Izadora.

Amiga e colega de trabalho dessas mulheres, hoje homenageadas na Casa, Jade questiona a violência a que são submetidas: “‘Ah a Penha foi assassinada porque estava na zona, não estava em casa, não estava cuidando dos netos’. E a Izadora que estava em casa? Estava indo trabalhar e foi assassinada no ponto de ônibus? É como se nossa vida não nos pertencesse, qualquer pessoa acha que tem o direito de nos tirar a vida”.

 

Guerra psicológica

Izadora Flor, ilustradora, acolhida pela Casa

Na medida do possível, as notícias sobre as mulheres da Guaicurus são “boas”: Jade não sabe de nenhum caso de morte por Covid-19. O assunto da infecção por coronavírus é muito delicado nos hotéis. Afinal, os estabelecimentos estão em constante risco de serem fechados por medidas de segurança sanitária. “Nós tivemos que ter jogo de cintura para não criar inimizade, não fechar as portas e a gente conseguir atender e acolher as trabalhadoras. Foi uma guerra psicológica com dono de hotel”, relata a coordenadora do coletivo Clã das Lobas.

A desconfiança dos proprietários do hipercentro também se estendeu à abertura da própria Casa de Acolhimento para Penhas e Izadoras, inicialmente visto como um local de concorrência na prostituição. “Durante meu trabalho na Guaicurus já fiquei doente e já vi mulheres ficarem doentes dentro dos quartos, porque não tinham para onde ir. A grande maioria delas são de outros estados, elas vão pra onde? Trabalham doente, o dono não quer saber, quer a diária dele. A gente não tinha esse suporte, mas agora, com a Casa, vai ter”, comemora.

O apoio do Estado é mínimo

Por parte do governo federal, as trabalhadoras sexuais e demais trabalhadores brasileiros prejudicados pela pandemia contam apenas com o auxílio emergencial que, se já não era ideal no valor de R$ 600, se tornou praticamente irrisório no valor de R$ 150. Voltado às famílias consideradas em situação de extrema pobreza, está para ser sancionado pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema, o Força Família. O auxílio emergencial pagará uma parcela única de R$ 600 para chefes de família registrados no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CADúnico).

Ajude a casa para Penhas e Izadoras

As doações e ofertas de parceria para a Casa de Acolhimento Provisório podem ser feitas para Jade ou Taís, também membra do Clã das Lobas. Entre em contato através dos telefones abaixo:

Jade: (31) 99549-5368

Taís Leão: (31) 97542-5392

Já a prefeitura de Belo Horizonte distribui, mensalmente, cestas básicas e kits de higiene para diversos grupos sociais enquanto durar a situação de Emergência em Saúde Pública por causa da pandemia. A Secretaria Municipal de Saúde mantém o Programa BH de Mãos Dadas Contra a AIDS com ações voltadas às profissionais do sexo. Desde março de 2020, o programa faz ações diárias de conscientização sobre as medidas de prevenção como uso de máscaras, distanciamento social e higienização constante das mãos, com abordagens nos hotéis, casas e pontos de prostituição em vias públicas. Foram distribuídas 16.691 máscaras até 21 de maio, quando a Secretaria foi contatada pela reportagem.

O Programa realizou ainda 228 testes em trabalhadores sexuais interessados, apenas no período de 17 a 31 de agosto de 2020. Atualmente, o BH de Mãos Dadas também busca por sintomáticos respiratórios em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de encaminhá-los para avaliação clínica nas unidades de saúde e posteriormente para o Serviço de Acolhimento Emergencial para isolamento social. O serviço é focado em infectados que não conseguem fazer o distanciamento social nos hotéis ou nas suas residências.

Assim, a Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), comandada por Cida Vieira; o Clã das Lobas, representada por Jade e o Coletivo Rebu, através da figura de Santuzza, são as principais organizações de trabalhadoras sexuais responsáveis pela assistência dessas mulheres e arrecadação de doações, que incluem fraldas e itens de higiene para as que são mães. Elas contam ainda com uma rede de apoio mais ampla de movimentos sociais, como o Projeto Compaixão, comandado por Delma Soares de Souza; o Projeto Mina, da Escola de Ativismo; e o Diálogos pela Liberdade, da Pastoral da Mulher.

Quando o baque da pandemia veio, Jade já estava preparada. Ainda em março de 2020, ela conduziu uma série de reuniões com a Pastoral e Secretarias Municipais, como de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, tentando cobrir todas as frentes de assistência a mulheres, pessoas LGBT e imigrantes. “Todas as frentes foram cobertas, porque nós nos dividimos. Nós nos fortalecemos, isso foi bom pro movimento”, garante Jade.

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