A luta e o pertencimento quilombola, nas palavras de Nathalia Purificação da CONAQ, e nos passos da história de resistência de sua família

Por Nathalia Purificação*

 

A família de Vó Zezinha, de Joseílton, de Nathalia: “Construo, juntamente com minha família, pontes que nos aproximam mais do lugar onde nossos antepassados saíram” l Foto: Arquivo Pessoal

A consciência e identidade são componentes intrínsecos da luta dos movimentos sociais. É, por exemplo, a partir do meu reconhecimento como mulher negra que construo minha contribuição para a luta do povo preto desse país, a luta para o reconhecimento de territórios quilombolas, para reparação dos diversos direitos humanos que foram atravessados e atropelados pelo sistema capitalista e pela sociedade racista e adoecida com uma ideia colonial e elitista. No entanto, o caminho para alcançar essa identidade foi longo – mas também veio de longe.

A minha formação começa no berço. Na verdade, ela começa ainda antes com meus antepassados. Ela apenas me foi passada no berço, enquanto eu observava meu pai, Joseilton Purificação, se aproximar do movimento negro da Bahia por influencia do seu irmão mais vellho, Josemar Purificação, que também observou a minha avó paterna, Ivanildes de Oliveira Purificação se aproximar e atuar na luta pela educação na cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e liderar a escola que construiu para garantir seu sustento e dos seus filhos, por amor ao magistério e por um lugar mais justo e confortável com os seus. 

As minhas andanças pelas comunidades negras rurais quilombolas se iniciaram antes mesmo de me reconhecer como uma mulher quilombola, enquanto acompanhava meu pai em sua militância. O meu bisavô paterno nasceu e cresceu num quilombo, mas para garantir acesso à educação para os seus filhos, a sua esposa, minha bisavó Lindaura,  insistiu para que ele saísse da zona rural para a cidade mais próxima, Bom Jesus da Lapa, no oeste da Bahia. A comunidade quilombola Lagoa das Piranhas, que atualmente abriga 77 famílias, pertence ao território Velho Chico e fica a 18km da cidade de Bom Jesus da Lapa-BA, distante 778 quilômetros de Salvador. Sua maior fonte de renda advém de uma lagoa, abastecida pelo rio São Francisco.

De acordo com os relatos da minha avó Zezinha, foi uma boa escolha, mas não foi fácil. Eles se mudaram para um bairro periférico da cidade e o básico não chegava lá. Para consumir água precisavam abastecer as bacias e latas a alguns metros de distância da sua rua, no Velho Chico. O bairro Nova Brasília fica na região que beira o rio São Francisco e abriga centenas de famílias pobres e majoritariamente negras da cidade.

Foi ali que minha avó iniciou sua caminhada para a luta da educação. Se propôs a alfabetizar algumas crianças ali do bairro mesmo sem ter uma formação adequada. Quarenta anos depois ela é a proprietária do Centro Educacional 13 de Maio, onde seus filhos, netos e bisnetos já passaram e atuam na direção da escola. 

Ela criou 11 filhos e se propôs a educar todos os conscientizando sempre do seu lugar. Foi a partir dos aprendizados dela que seu filho mais velho, Josemar Purificação, dedicou sua vida para a acadêmia e, posteriormente, para o movimento social. Ela apresentou a realidade de nosso povo para meu pai, que foi o grande responsável por me introduzir na luta. Eu o acompanhei por essas andanças e territórios e conheci a realidade dos quilombolas da zona rural e eu não tive muita escolha: precisava somar dali em diante e sentia que estava retornando às minhas origens. Construo, juntamente com minha família, pontes que nos aproximam mais do lugar onde nossos antepassados saíram para tentar uma vida melhor e que não retornaram para lá por falta de condições adequadas.

Conheça a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ)

A CONAQ é uma organização de âmbito nacional, sem fins lucrativos que representa a grande maioria dos (as) quilombolas do Brasil. Da CONAQ participam representantes das comunidades quilombolas de 23 estados da federação.

Os objetivos da CONAQ são: lutar pela garantia de uso coletivo do território, pela implantação de projetos de desenvolvimento sustentável, pela implementação de políticas públicas levando em consideração a organização das comunidades de quilombo; por educação de qualidade e coerente com o modo de viver nos quilombos; o protagonismo e autonomia das mulheres quilombolas; pela permanência do (a) jovem no quilombo e acima de tudo pelo uso comum do Território, dos recursos naturais e pela em harmonia com o meio ambiente.

Voltar ao território

Por crescer em espaços de construção de políticas públicas e de movimentos sociais, meu acesso às discussões que permeiam temáticas relacionadas a gênero, raça, classe e território aconteceu muito cedo.

Foi assim que percebi e me descobri como mulher negra e quilombola e, consequentemente, passei a entender meus princípios a partir dessas percepções. O ambiente social construído pela minha família foi parte essencial da minha consciência. 

Através de conversas e observações com meus familiares, pude compreender como é ser negro nessa sociedade.

Percebi que essa condição demanda muito mais que uma declaração de cor e raça e que, para além do reconhecimento, é preciso resistir a todo um sistema racista que se faz presente a cada dia em nosso cotidiano. A necessidade de traçar um tipo de organização veio com o tempo, depois de muito observar meus familiares. Também veio acompanhada de experiências desagradáveis que envolviam um racismo escancarado e cruel que sempre batia à minha porta. 

Me mantenho em posição de defesa: do território, da vida, da segurança, saúde e educação do meu povo, para que mais nenhum sinta a necessidade de sair e não mais voltar para para o seu quilombo, assim como minha família precisou fazer tempos atrás. 

Retorno para meu quilombo hoje com a sensação de estar cumprindo uma missão pelo meu bisavô e trago boas novas. Se não fosse a sua “ousadia”, não estaria aqui me formando em uma faculdade de comunicação e compartilhando o meu conhecimento para lutar na linha de frente e lado a lado com nosso povo, então em forma de gratidão, me mantenho em posição de defesa do meu quilombo.

Hoje escrevo sobre ancestralidade, mas por muito tempo não foi assim. Não é fácil lidar com o racismo tão cedo, ainda mais quando se tem parte da sua família branca. Por isso a necessidade de me formar. Acredito que por ser fruto de um relaciomento interracial, estive exposta a uma série de violências “sutis”, mas nunca estive inconsciente. Minha mãe é uma mulher branca e é uma grande parceira na luta anti-racista, sua contribuição vem da segurança e apoio que me dá sempre que me proponho a bater de frente com o racismo. Meu pai é um homem negro e que me ensinou a me proteger e a me formar nesses espaços de luta.

É de extrema importância elucidar que os meus passos vieram de longe e vêm mesmo! Aliás, a exatamente 18 km de onde habito. Os meus passos vieram do quilombo e eu luto todos os dias para que eles possam retornar para lá.

*Nathalia Purificação é mulher quilombola de Lagoa das Piranhas – Território Velho Chico. Assessora de Comunicação da CONAQ e Graduanda em Comunicação Social pela UESB.

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