O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Rebeca Lerer

Sem salvador

Hoje, eu trabalho a partir do reconhecimento dos privilégios estruturais e das oportunidades que gerei usando esses privilégios. Isso é você escapar da “síndrome do salvador”, de praticar uma pegada assistencialista no ativismo. Ao invés de focar apenas em fazer uma carreira (ou abrir minha própria ONG etc), o meu caminho é de volta: quero pegar tudo isso que pessoas como eu têm e criar oportunidades para quem não tem. Meu rolê está focado em fazer as conexões para que as pessoas que estão na ponta consigam ocupar esses espaços e fazer a transição para um movimento social e ativista mais diverso e representativo.

Atitude

O ativismo é você fazer o que pode, com a ferramenta que tem à mão naquele momento – senão a gente fica muito inerte frente ao tamanho dos desafios. Uma atitude de vida ativista é ter sempre em mente o que dá para fazer agora e o que vai nos levar, mais à frente, a realizar coisas maiores.

Ativismo orgânico

Há muita gente que virou ativista por força da realidade. Por exemplo: as mães de jovens assassinados pela polícia. É a partir do crime, do terrorismo de Estado cometido contra o filho delas (geralmente são jovens negros) que se tornam ativistas. Essas mulheres nunca passaram por uma formação de advocacy, estratégias, media training para dar entrevistas. Muitas delas nunca tinham sentado numa mesa de debate antes. De repente, na vida delas, passam do luto à luta e acabam se tornando ativistas das mais aguerridas e importantes que há hoje no país. O mesmo acontece nas comunidades de assentamentos rurais de campesinos que acabam virando lideranças locais e ativistas do direito à terra para poder sobreviver. Ou midiativistas em favelas, que são pessoas ameaçadas pelas dinâmicas locais de violência e acabam virando ativistas da comunicação livre porque precisam de um canal para se expressar, ter alguma visibilidade e segurança. Para mim a grande força vem desse ativismo orgânico que está surgindo, que se encontra com o da galera nova que passou pelo processo das cotas nas universidades, das oportunidades de primeiro emprego, das escolas técnicas e que, com o fator internet, tem acesso a todo tipo de informação. Há outros níveis de conexão e diálogo nessa juventude; uma parcela dela está mobilizada, está disputando narrativa nas redes e nas ruas, está forjando uma nova forma de fazer ativismo.

Ruptura sistêmica

Estamos vivendo os efeitos daquela grande onda de junho de 2013 que ressignificou a luta de muita gente. Conheço gente que militou a vida inteira em juventude partidária e que, a partir desses eventos, começou a atuar mais em rede, passou a ocupar os espaços públicos e privados de outra forma, passou a buscar mais autonomia na sua militância. Para mim o ativismo é um compromisso além do institucional, é uma lente de vida, uma forma de se relacionar com os outros e com o meio em que você vive, de priorizar o coletivo acima do privado. Pelo fato de a militância geralmente estar atrelada a uma agenda institucional, não é exatamente autônoma. O ativismo real é autônomo. O ativismo para mim está ligado a uma dimensão de ruptura sistêmica. A militância é mais reformista.

Vida de ativista

Você tem de ser muito teimosa e otimista para insistir em viver dessa forma. O ativismo é um canal de expressão de revolta. Não é um processo confortável ou simples, e muitas vezes é bem solitário. Entendo que muita gente que tenha lampejos na juventude depois de um tempo vá se acomodando. Viver de acordo com o ativismo exige um nível de entrega, de assumir certos riscos. É inerente à função social do ativismo ser uma pessoa provocadora, que produz desconfortos e rupturas para o mundo poder avançar. As pessoas às vezes têm a leitura de essa ser uma pessoa mal humorada, arrogante. Não é isso. Não quero impor nada para ninguém. Mas se isso provoca a pensar as coisas de modo diferente, estou cumprindo o meu papel.

Trajetória 1

Com 11 anos de idade eu falava que iria ser repórter de guerra. Eu tinha a vontade de entender como as coisas aconteciam no lugar onde elas estavam acontecendo. Minha família vem da Rússia (fugindo da Primeira Guerra) e da Polônia (fugindo da Segunda). O antissemitismo e o Holocausto, a narrativa de violação de direitos, de genocídio, de guerra, de sofrimento, de trauma psicológico, sempre foram muito presentes na minha família. Eu fui politizada, nesse sentido, bem cedo, por conta da carga que isso traz. Aos 18 anos fiquei um ano em Israel e lá eu conheci palestinos e o movimento de direitos humanos de israelenses pró-palestinos (o que me impressionou muito, e contrariou toda uma história que tinham me contado). Fui para Londres, morei num albergue de imigrantes, conheci muitas pessoas que naquela época (1995) estavam fugindo da guerra nos Bálcãs, e ouvi as histórias da guerra e da limpeza étnica. Eu, que não havia sofrido preconceito no Brasil, sofri preconceito lá por ser brasileira e imigrante. Tive acesso a outras culturas e outras formas de lidar com a questão das drogas e isso foi a semente para o trabalho que eu faço hoje em dia.

Trajetória 2

Quando eu voltei para o Brasil, fui trabalhar como estagiária na Fundação SOS Mata Atlântica. Morei um tempo no Parque Nacional do Superagui, no Paraná, onde fiz meu trabalho de conclusão de curso de jornalismo. Juntei com um caiçara, morei na ilha sem eletricidade, tive uma vivência comunitária pela primeira vez na vida. Depois fui morar na Amazônia e trabalhar no Greenpeace, numa época em que ele fazia um ativismo raiz mesmo. Tive o privilégio de navegar com pessoas que haviam participado de campanhas clássicas e estavam na organização há muito tempo. Fiz uma indução na ação direta não violenta, toda a cultura de ocupações, invasões, bloqueios, de como se faz um scouting, de como se pensa a parte jurídica. Trabalhei no Greenpeace até 2009 e saí quando era coordenadora da campanha de Clima e Energia com foco no Programa Nuclear Brasileiro. Depois atuei na Matilha Cultural, um centro de cultura e ativismo independente no centro de São Paulo, e lá sou voluntária até hoje. Em 2011, fui trabalhar na Comissão Global de Política sobre Drogas, que é um projeto independente (não é governamental nem da ONU) que reúne 22 lideranças internacionais (ex-presidentes como Fernando Henrique Cardoso, o ex-ONU Kofi Annan, grandes empresários como Richard Branson etc). Foi, digamos, meu MBA em políticas públicas, relações internacionais e advocacy, e, por conta da pauta, que era a legalização das drogas, eu era bastante ativa, ficava na linha de frente de representar os usuários de drogas junto a vários stakeholders de alto nível. Eu estava na Comissão Global em 2013, mas continuava na Matilha, quando então veio Junho.

Junho/2013

A Matilha acompanhava os atos do Movimento Passe Livre (MPL) desde 2011. Rapidamente, vimos o que estava acontecendo e montamos uma base de primeiros socorros. No dia 13, o dia daquele massacre na [Rua] Maria Antônia com a [Rua da] Consolação, a Matilha era a única base de atendimento médico no centro de São Paulo. Não havia uma ambulância por lá. Descolamos uns médicos e enfermeiros voluntários. A gente atendeu mais de 50 feridos naquela noite, encaminhamos três pessoas para o hospital. A Matilha fez o que podia naquele momento, enquanto muitas instituições e espaços se omitiram quanto à repressão e à violência policial que estava rolando ali. A gente se posicionou – e isso é ativismo. Mesmo trabalhando naquela época com o FHC na Comissão Global de Política sobre Drogas, eu permaneci nas ruas, levando gás e fazendo primeiros socorros. O fato de estar vinculada a qualquer instituição nunca me impediu de ser ativista.

Autonomia

Acompanho o coletivo da Marcha da Maconha desde 2008 e atuei “escondida” antes, porque nos lugares em que eu trabalhava isso não pegava bem (inclusive no Greenpeace). Meu ativismo na pauta da maconha é, acima de tudo, autônomo, individual, pessoal. Quando eu saí da Comissão Global, ajudei a formar a Aliança pela Água (momento de crise hídrica no estado de São Paulo em 2015), e depois a Anistia Internacional me chamou para ajudar a estruturar a campanha Jovem Negro Vivo, contra o genocídio da juventude negra periférica, principalmente em função das mortes decorrentes das operações policiais. Fizemos uma campanha sobre a violência no Rio de Janeiro durante os jogos e lançamos o aplicativo Fogo Cruzado, que é um laboratório de dados sobre tiroteios alimentado por celular, fontes livres da imprensa e boletins policiais – um projeto que hoje é independente.

360 graus

A primeira expedição de navio do Greenpeace de que participei lutava contra a poluição química industrial de rios e mares. O último protesto daquela expedição aconteceu em Porto Alegre. Eu estava toda animada, vestida de macacão para a linha de frente, me achando a pessoa mais corajosa do mundo. Eu era estagiária de comunicação e me mandaram ficar na sala de rádio do navio, com uns celulares gigantes, o telefone do barco e os rádios. Eu ouvia a comunicação de toda a equipe e, se tivesse alguém ferido ou se a polícia chegasse, eu precisaria acionar o protocolo de segurança. Era um papel crítico, mas naquela hora, eu, jovem, achava que o importante mesmo era estar na linha de frente. Fiquei revoltada, trancada sozinha na salinha de rádio, perdendo toda a emoção. Só que, no final da ação, deu treta. Aí eu precisei agir, disparar os releases, fazer o que tinha de fazer, e eu fiz direito, fiz rápido, foi super importante. Caiu então a ficha: o ativismo real não tem glamour, não é só o cara que está lá acorrentado, existe toda uma engrenagem que está em volta, em cima, em baixo, 360 graus em torno daquelas pessoas que estão na linha de frente. Ninguém faz nada sozinho. O que faz o ativismo se tornar uma força de mudança é quando outras pessoas, com outros perfis, talentos e reconhecimentos diversos, se juntam para realizar alguma coisa. Mesmo que você só possa ficar em casa, monitorando as redes enquanto a gente está na rua levando porrada, é importante.

Escolhas

É um processo de autoconhecimento você se entender ativista, porque permanecer nesse lugar é uma escolha diária. Quando eu engravidei, me perguntei se eu iria conseguir prover o dinheiro para pagar as contas de uma casa com uma criança. Quando minha filha tinha 13 meses e estava sendo desmamada, eu fiz a primeira viagem para uma ação direta do Greenpeace em Santarém. Aluguei um barco para a imprensa, para filmar a ação, e nosso barco foi invadido por uns ruralistas. Me bateram, queriam jogar a câmera na água. Foi todo um estresse para conseguir mandar a fita para Belém para sair no Jornal Nacional daquela noite. Todo mundo acabou detido, havia 500 ruralistas do lado de fora da delegacia. Lembro que durante o dia eu estava tão adrenada, nervosa, que não senti a dor dos machucados. Eu “esqueci” por um tempo que eu tinha uma neném em casa. No final, todo mundo foi liberado, o Jornal Nacional exibiu a reportagem do protesto. Quando fui embora naquela madrugada, às quatro da manhã, eu sofri uma crise de pânico, porque me caiu outra ficha, a de que eu teria de achar uma nova forma de ser ativista enquanto a minha filha fosse criança, e que eu não poderia mais me colocar numa situação de tanto risco sem saber se voltaria inteira para casa ou quanto tempo demoraria para voltar. Foi outro momento de repactuação com o meu ativismo. Então eu passei a fazer mais coordenação de campanhas, o trabalho de negociar com os advogados e com a polícia, menos na linha de frente e mais nos bastidores. Em uma sociedade machista, para uma mulher ativista, especialmente que é mãe-solo como eu, existem essas outras questões: quem está cuidando da sua filha para você estar aqui protestando? Você não tem medo de apanhar ou de ser presa e deixar sua filha sozinha em casa? Acho que nunca devem ter perguntado isso para um pai ativista, ou perguntam muito menos do que para uma mãe. Então há vários momentos em que você se redescobre e escolhe novamente seguir nesse caminho.

Rebeldia

A gente sabe todas as pressões que a idade traz. Você vai ficando um pouco mais cética com a idade. As pessoas cansam, se desiludem, trocam as prioridades, querem ter vidas mais estáveis. Há esse lado do peso que a vida vai trazendo e as pessoas passam por traumas, elas perdem, passam por lutos, vivem crises financeiras, têm desejos e sonhos frustrados. Vejo pessoas próximas a mim, a amargura em que essas pessoas entraram. Para mim o ativismo é um antídoto anti-amargura. A luta te salva da inércia da derrota. Enquanto você está lutando, você está vivo, está ativo socialmente, está produzindo inspiração, ideias, amor, afeto, empatia.

Bizarrice

Eu só vou parar de lutar pela legalização da maconha quando legalizar ou quando eu morrer. Porque é muito errado. Não é porque eu tenho mania com isso; é uma questão civilizatória acabar com essa guerra às drogas. É uma guerra contra a gente mesmo. Não dá para falar em século 21 e inovação e, ao mesmo tempo, continuar carregando essa herança bizarra do século 20. É uma enganação. Não vou desistir.

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Áurea Carolina
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