No caminho do corpo-ativista-que-se-inventa não há nem ponto de partida nem ponto de chegada definidos. A invenção caminha junto com a experimentação

Silvio Munari

Quando ou como uma pessoa se torna ativista? Rascunhei muitas respostas: narrar alguns filmes em que ocorrem processos dessa natureza (Diários de Motocicleta; O Clube da Luta); contar minha própria trajetória (quando um colega, aos dez anos de idade, me pergunta: “você é punk ou metal?”); quebrar a frase e pensar cada palavra (“quando”, “como”, “pessoa”, “se torna”, “ativista”). Todos continuam me parecendo adequados, correndo o risco de dizer o óbvio: não há um único tempo ou um único modo para uma pessoa se tornar ativista.

O que me parece mais importante na pergunta são dois pressupostos implícitos em “se torna” e “ativista”. A expressão “se torna” aponta para pelo menos duas direções: 1) que alguém deixa de ser algo e passa a ser outra coisa; 2) que já sabemos que coisa é esta – ativista. De forma complementar, temos o problema de que todos já parecem saber o que é “uma pessoa que se tornou ativista”.

Talvez o mais difícil seja o “se torna”. Ao mesmo tempo em que permite, de imediato, pensar que alguém se torna algo diferente do que era, também abre caminho para pensar que alguém tão somente realiza seu destino. O exemplo aqui seria a semente e a árvore: a árvore já estaria virtualmente contida na semente; esta, se cultivada de forma adequada, germina e finalmente se torna aquilo que estava pré-destinada a ser: uma árvore. No caso de nossa pergunta: alguém se torna ativista porque já contém todas as características necessárias, bastando uma circunstância, um instante, um método para que finalmente realize, que traga para a realidade sua essência mais profunda: a de ativista.

Uma outra questão que o “se torna” suscita: a da conversão. É um tema um tanto quanto místico que se rastreia na biografia de santos (a conversão de São Paulo, o apóstolo e, segundo Alain Badiou1, um militante, um ativista), de filósofos (Pascal, Descartes, Rousseau passaram por um “hápax existencial”, uma conversão, segundo texto de Michel Onfray2), de personagens literários (o homem que acorda metamorfoseado em barata, de Franz Kafka3) etc. Assim, entender o “se torna” como uma conversão nos coloca diante de uma rota definitiva: uma vez convertida, “uma pessoa se torna ativista” de uma vez e para sempre.

1 Alain Badiou. São Paulo: a fundação do universalismo. Tradução de Wanda Caldeira Brant. Boitempo, 2009.
2 Michel Onfray: A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. Tradução de Monica Stahel. Martins Fontes, 1999.
3 Franz Kafka. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. Editora Brasiliense, 1994.

Por fim, a expressão “se torna” puxa uma terceira linha no emaranhado de sensações e pensamentos que produzem esta escrita: nem uma pessoa que alcança sua essência mais profunda, nem uma pessoa que passa por uma conversão, mas um corpo que se inventa ativista. Obviamente que este é um pensamento de matilha: já Friedrich Nietzsche, pensador alemão do século XIX, havia subtitulado um de seus mais provocadores escritos de “como alguém se torna o que é”4!E diversos outros pensadores contemporâneos seguem essa esteira, tais como Deleuze5, Onfray6, Foucault7, para pensar a “estética da existência”, a “escultura de si”, o “cuidado de si” como processos pelos quais passam os corpos que habitam esse mundo.

4 Friedrich Nietzsche. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. Companhia das Letras, 1995.
5 Gilles Deleuze. Conversações: 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Editora 34, 1992.
6 Michel Onfray. A escultura de si: a moral estética. Tradução de Mauro Pinheiro. Rocco, 1995.
7 Michel Foucault. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982).

Estamos aqui em terreno pantanoso, aquele que identificamos como um segundo pressuposto na pergunta: todo mundo sabe o que é “ativista”. E não estamos aqui querendo fazer um apelo à fuga dos estereótipos. Aqui estamos tentando criar uma fissura no bloco que pode bloquear os processos de invenção, ou seja, a produção de um ideal de ativista que funcionaria como modelo a partir do qual todos os demais ativistas seriam comparados. E mais: a depender de quanto um corpo-ativista-qualquer é mais ou menos idêntico à ideia-ativista-modelo, também mais ou menos ativista ele será. E as ideias, já escreveu Oswald de Andrade8, “queimam gente nas praças públicas”. Por isso: “Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas”.

8 Oswald de Andrade. Manifesto Antropófago. Publicado em: Benedito Nunes. A utopia antropofágica. Globo, 2011.

No caminho do corpo-ativista-que-se-inventa não há nem ponto de partida (fundamento), nem ponto de chegada (finalidade, intencionalidade) definidos. A invenção caminha junto com a experimentação e o corpo que se torna ativista pode não ter nenhuma identidade com o ativista-modelo, Ativista com “A” maiúsculo. No processo de se produzir, de se fabricar, de se montar ativista, este corpo vai se transformando, se inventando nos encontros que vai fazendo.

Talvez nos faça bem estabelecer um ajuntamento com aquilo que Gilles Deleuze escreveu a respeito da aprendizagem. Em seu livro sobre Proust, há um pequeno parágrafo em que aparecem a questão do tempo (quando) e do método (como). Podemos ler: “nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos”9. E ainda neste pequeno parágrafo ele toca na questão dos modelos: “Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende”.

9 Gilles Deleuze. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Forense-Universitária, 1987, p. 22.

“Quem sabe como um estudante pode tornar-se ‘bom em latim’” ou “quem sabe como se tornar um grande escritor” são perguntas que o pensador coloca no mesmo parágrafo. No caso do estudante de latim, Deleuze dirá que pode até mesmo se tratar de amor, pode até mesmo se tratar de algo inconfessável. No caso do escritor, ele cita um personagem de Proust, que tem certeza de que um grande escritor não terá saído de uma educação do tipo acadêmica, mas sim do contato com os grandes bares.

Quando ou como? Por amor. Mas também por amizade, como quando um colega ou um professor de escola nos convida para ir a um protesto. Por acaso. Como quando em uma viagem de férias encontramos alguém que nos coloca num caminho do qual já não se pode voltar. Pela dor. Como quando nossos pais, mães, filhos, amigos são mortos cotidianamente devido à cor de sua pele, devido ao local onde moram, devido ao modo como produzem seu corpo, pelo modo como conduzem uma luta. Pelo não-humano. Como quando lutamos pelos rios, pelas florestas, pelos bichos, pelo direito de cada forma de vida existir. _

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