O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC1

1 O primeiro encontro com Werá Jeguaka Mirim foi em Rio Claro, SP, em 2010, quando tinha 9 anos e participou com a família do 3º Bate-papo na Floresta, organizado pelo Arquivo Público e Histórico, na Floresta Estadual, com as crianças do 4º ano da Escola Djiliah Camargo de Souza. Em 2018, nos reencontramos no SESC Vila Mariana, e aquela criança agora era o rapper Kunumi MC, mais desenvolto no português e confiante de seu ativismo pela causa indígena.

Protesto

Eu sou ativista pela demarcação das terras do povo indígena. Quando eu estava com 13 anos, em 2014, aconteceu a Copa do Mundo. Os caras da FIFA vieram para convidar duas pessoas da Aldeia Krukutu2 para participar e as lideranças daqui escolheram [quem seria]. Uma semana depois, vieram pedir para escolher mais um para a abertura, para representar o povo indígena e soltar a pomba da paz. Meu pai, Olívio Jekupé, me indicou, e eu aceitei. Fizemos o ensaio e ficou bom, só que, dois dias antes da abertura, o cacique teve ideia de alguém fazer um protesto, e ele pensou que na hora alguém poderia soltar uma faixa escrita Demarcação já. Levamos a faixa pra ver o que ia dar, só que levamos escondido. Foi aí que o outro menino que estava aparecendo na TV não fez o protesto e sobrou pra mim. Se eu não fizesse aquilo já era, eu sabia que o futuro dos povos indígenas estava nas minhas mãos. Eu sabia que era importante, e eu fiz no meio do campo do Itaquerão. Muita gente me viu, muita gente. Quando saí do campo os jogadores pegaram a faixa e eu deixei, fui ver o jogo lá em cima e voltamos para casa. Contei pro meu pai, que achou estranho, disse que não viu nada, só o menino soltando a pomba da paz. A TV não mostrou o protesto que eu fiz. No outro dia vieram europeus, muita gente de fora do Brasil para saber o que é demarcação e porque eu fiz aquilo. Vieram pra me conhecer, saber quem eu sou e para que servia aquela faixa. No outro dia a gente viu a foto, repercutiu muito.

Infância

Quando eu era mais pequeno eu sempre viajei com meu pai pra vários lugares pra falar como é a vida de um menino na aldeia, só que eu não sabia falar direito na época. Hoje desenvolvi mais um pouco.

Aos 9 anos de idade eu fiz o contrato com a editora FTD e a Panda Books. Depois de 4 anos, quando eu estava com 14 anos, saiu meu primeiro livro que é junto com meu irmão, Os Contos dos Kunumi Guarani, e o segundo livro, Kunumi Guarani, que é quase uma autobiografia, falando de um menino que vive na aldeia. Foi ali que eu gostei de escrever literatura, continuei, e até agora eu estou escrevendo.

Rap indígena

Eu escolhi a literatura para minha vida. Um dia eu estava escrevendo, lendo os livros do meu pai e eu gostei muito – são poesias, e foi ali que tentei escrever poesia e transformar em música. Eu não sabia que aquilo era rap, mas já tinha ouvido os Brô MC’s, que é o primeiro grupo de rap indígena. Eu vi que eram letras de luta, muitas rimas, e eu percebi que tinha feito um rap. Escolhi essa literatura depois da copa do mundo. Quando comecei a cantar rap eu não sabia muito de qual tema falar. Só que eu sempre me lembrava do protesto que fiz na época na Copa do Mundo e me dava inspiração. Então, escrevo só sobre o tema, questão indígena, saúde, a importância de demarcar a terra indígena”.

Sangue vermelho

Quando comecei, muita gente me criticava, falava que o rap não é da nossa cultura, que a gente estava roubando essa cultura. Hoje mostrei pra muita gente que o rap é uma forma de defesa, de luta, para tentar salvar nosso povo através da escrita, pela música. Muita gente ouviu meu rap e gostou. Lancei em 2016 meu primeiro disco,que se chama Meu Sangue é Vermelho, com cinco faixas. Uma delas, a faixa com a música que eu mais gosto, é para os Guarani Kaiowás, em homenagem ao povo do Mato Grosso do Sul que mais sofre aqui no Brasil, que ninguém conhece, ninguém sabe. Pensam que eles vivem bem, ninguém mostra, a mídia não mostra. Eu escrevi essa letra em homenagem a eles, para dar visibilidade, porque estão passando por necessidade. Os fazendeiros estão matando eles toda hora, mas isso a TV brasileira não mostra.

Também tem o segundo disco que lancei em abril, dia 19, bem no Dia do Índio. O nome do álbum é Todo Dia é Dia de Índio, para falar pra muita gente que todo dia é o dia do índio, dia de luta e de vitória. Muita gente tentou nos massacrar, mas estamos de pé.

Cinema

Eu tive um privilégio de fazer um filme média metragem falando sobre meu povo, nossa luta, sobre mim, meus livros, a literatura nativa, meu rap e sobre a minha carreira: o filme Kunumi, o raio nativo, que foi premiado3.

3 O filme foi premiado no concurso Minha Vez, conquistou o segundo lugar no Youth Jury do Prix Jeunesse International 2016 [Alemanha] e venceu como Melhor Documentário e Menção Especial do Júri do prêmio SIGNIS, do festival Divercine [Uruguai].

E agora tem um novo filme, de um inglês, que veio pra cá direto no ano passado para fazer várias gravações. Em breve vai sair e se chama Meu Sangue é Vermelho. Eu viajei para muitos lugares para fazer gravações desse filme. Foi assim que eu conheci os Brô MC’s de perto, conheci como um artista conversando com outro artista. Fizemos gravações, conversamos sobre o rap, a importância do rap e como eles vivem. Foi ali que surgiu a letra Guarani Kaiowá.

Com essa filmagem fomos para o Maranhão. Me surpreendi muito: tem muitos povos indígenas no Maranhão. Cada aldeia tem uma terra, mas é pequena para muita gente. Estão sofrendo muito porque os fazendeiros estão sempre metendo bala neles. Fui conhecer pessoas que foram atacadas brutalmente, facada, tiro nas costas, muita coisa. Fiquei muito triste por ver um parente ser atacado pelos fazendeiros. Esse filme conta um pouco sobre a nossa luta.

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

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