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Vanda Aparecida dos Santos: Fé, esperança e luta definem o projeto de educação popular ambiental no pantanal brasileiro

"A democracia acontece quando as pessoas vão para a rua, se organizam e se formam na luta", diz a educadora Vanda na série Ativismos e Democracia da Tuíra #04

Por um jeito artista de ser educadora

Minha militância tem início num convento das irmãs de São Vicente de Paula, nos anos 1980. Meu noviciado (1) aconteceu em São Paulo num tempo de grandes lutas na praça da Sé e na Candelária no Rio de Janeiro, no período da redemocratização do Brasil, entre caminhadas e greves de fome, sempre na luta social pela libertação com mestres como Leonardo Boff, Carlos Mester, o bispo Dom Angélico Sândalo Bernardino, Dom Luciano Mendes, Dom Paulo Evaristo Arns.

Em Goiás, fui professora na pré-escola e no ensino médio. Organizei grupos de jovens tanto na paróquia quanto na região – quando organizamos uma inesquecível caminhada carregando caixões de defunto com mensagens de interesse da juventude até a praça central de Goiânia. Em 1987, com o desastre provocado pelo vazamento do Césio 137, os jovens passaram a cantar durante um encontro de juventude no Rio de Janeiro: “Eu amo Goiânia, Goiânia me ama”… Foi quando o estudante de teologia Isidoro Salomão pediu apoio para animação do grupo de jovens do Mato Grosso, já que eu “tocava violão e cantava muito bem”. Aos 23 anos, contra a vontade do bispo de Goiânia, fui transferida para Campo Grande (MS), minha terra natal.

Nos anos 1990, agora em Ponta Porã (MS), eu lecionava em dois períodos e lutava junto com a juventude na realidade complexa da fronteira do Brasil com o Paraguai. Convidada para tocar na ordenação de Isidoro Salomão (2), fui a primeira jovem mulher a tocar violão e cantar publicamente em Rio Branco (AC). Mais tarde, inspirados na experiência de dom Pedro Casaldáliga em São Félix do Araguaia (MT), que reunia irmãs religiosas, padres e leigos, passei a integrar a equipe pastoral em Cáceres (MT). Ali, passei a dar aulas de ensino religioso e educação artística na rede estadual, além de aulas particulares de violão. Com a equipe de pastoral do Núcleo Missionário Cristo Trabalhador, organizamos o mutirão para construção da sede da Paróquia que aglutinava 35 comunidades rurais e urbanas. A Paróquia Cristo Trabalhador era uma igreja de pé no chão, igreja dos excluídos, igreja de enfrentamento e sem medo, uma igreja libertadora e de lutas: 1º de maio, dia da mulher, grito dos excluídos, dia do agricultor, dia dos direitos humanos etc. Uma paróquia que acolhia os sem-terra que chegavam na região em sua luta pela reforma agrária e o povo Chiquitano (3). Neste momento tem início o trabalho cultural com os povos do pantanal no esforço de celebrar a cultura pantaneira: o grupo Raízes com música, danças, arte e cultura local num exercício de partilha de alimentos e saberes. O grupo Raízes mobilizava muita gente.

Da ruptura com a Igreja à Escola de Militância

Essa agenda de lutas, que envolvia as comunidades e o trabalho na base, formou o  FLEC – Fórum de Lutas das Entidades de Cáceres. Em 2009, num processo de diálogo com as comunidades, veio a grande decisão: romper com a Igreja e transformar o FLEC numa associação orientada pelo mesmo Cristo Libertador. Entre uma certa Igreja e o povo, ficamos com o povo! Nasceu assim a Sociedade Fé e Vida numa assembleia com 150 pessoas em 2010, mantendo as lutas de base nas comunidades de Laranjeiras, Paiol, Sadia e Facão e fortalecendo a luta do rio Paraguai, que já havia começado no início dos anos 2000 (4).

Em 2006, foi criado o Comitê Popular do Rio Paraguai. E a Sociedade Fé e Vida amplia a luta pela terra para a luta permanente pela água (e pela vida) em vários municípios, territórios e comunidades. Em 2019 criamos a Escola de Militância Pantaneira, com o objetivo de formar militantes de cada um dos 13 Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima (5) dos afluentes do rio Paraguai nos temas do nosso projeto e para que esses militantes formem outros militantes em seus territórios, em seus assentamentos, em suas comunidades, em seus Comitês.

A Escola de Militância Pantaneira é um espaço de reflexão do dia a dia, um ensinando o outro no sentido de fortalecer, de dar as bases para enfrentar as lutas. É formação sócio-político-ambiental e engajamento. Sinto que vamos ganhar força em breve. Já fomos mais fortes, depois amorteceu. O povo vai para a rua quando a necessidade é grande. A reforma agrária parou? É povo nas ruas, é povo ocupando terra que força o governo a fazer reforma agrária. Dei o exemplo da reforma agrária, mas isso serve para as outras lutas também.

Ativismo e militância

A democracia acontece quando as pessoas vão para a rua, se organizam, se formam na luta. A Escola de Militância Pantaneira tem esse papel de abrir os olhos para a luta, para a defesa do território, para a defesa de seu povo, para as suas bandeiras de luta. A mudança vem do chão, vem da base, vem do povo organizado que atua, que luta, que milita. O ativismo é pontual, a militância é permanente. O ativista ajuda nas ações pontuais, que são importantes. Tem pessoas que vão para a luta como funcionários – o caso de alguns sindicatos, por exemplo. Já a figura do militante, por sua vez, está na luta, faz da vida uma grande luta por aquilo que acredita, pela transformação da sociedade. O militante está na luta, habita esse território que é a luta. O militante não espera um projeto, não espera ter financiamento, o militante vive sua luta o tempo todo. As ações militantes são experiência e acontecimento, o ativismo nos ajuda a executar com qualidade. O ativismo necessita de um grupo de militantes para executar ações.

A agenda conta com oito pilares essenciais à integridade do sistema democrático brasileiro. São elas:

Governo vai e vem

Durante os governos Lula, a democracia esteve mais viva e isso favorecia as lutas. Foi um tempo de ascensão dos movimentos: o povo organizado ia para Brasília participar das conferências e das grandes assembleias, ia de avião, tinha condições de acesso e permanência nos espaços de construção das políticas públicas. Percebemos também que durante os governos Lula muita gente se dedicou aos espaços institucionais e descuidou da formação de novas lideranças. Os que lutaram pela conquista da presidência ajudaram a tocar o governo e ficou um espaço vago, faltou continuidade no trabalho de formação de base. Os militantes se formam na labuta, no dia-a-dia do trabalho, nessa formação que é espaço de pensamento e reflexão diante dos problemas da realidade, que é nacional, estadual, mas também local e territorial.

Já durante o governo repressor de Jair Bolsonaro, havia músicas antigas que cantamos novamente, músicas que falam do povo excluído, da luta por direitos. Os nossos trabalhos não pararam, a luta continuou, mas sob forte repressão. Era aquele momento de dar cada passo com cuidado redobrado porque era necessário saber onde estávamos pisando.

A vitória de Lula nas eleições de 2022 foi a gota de esperança para o povo brasileiro que deseja mudança, esse povo mais lascado. Com o novo governo Lula, com todas as limitações e alianças eleitorais, com todas as amarras, o povo vai respirar um pouco, vai ter um pão para comer, cesta básica mais acessível, poder viver. Não está fácil para o nosso povo viver hoje, não!

Na questão ambiental também. O governo anterior aproveitou a pandemia para passar a boiada; trocou o ministro, manteve porteiras escancaradas e a boiada foi passando… Foram os grupos organizados, resistentes, grupos acreditando que o ambiente deve ser o lugar do bem viver e da casa comum, esses grupos de resistência lutando, a catástrofe ambiental seria ainda pior. Talvez a boiada tivesse pisoteado tudo. Aqui no Pantanal, por exemplo, é hidrovia, é PCH (6), é ocupação das APPs (7), o poder econômico tomando tudo, acabando com tudo; o vale-tudo do agronegócio, da mineração; a destruição ambiental…

Nos dias de hoje, resistir já é muita coisa. Aqui no rio Paraguai, o Lourival (8) fala assim: “quando lerem os relatórios no futuro, verão que os votos da Sociedade do Fé e Vida foram a favor da natureza, portanto foram contra a ocupação das áreas úmidas com soja e gado, foram votos contra a hidrovia e etc. Fomos voto vencido, mas fomos resistência”.

Participação e democratização

A nossa luta tem sido também por democratizar as instituições. Nós lutamos na Igreja, nós lutamos na Câmara de Vereadores com o mandato coletivo do companheiro Alonso (9) quando nem se falava em mandato coletivo, nós lutamos por democracia na sociedade. Se a democracia acontece nessas instâncias, a vida vai fluindo.

É preciso entrar nos espaços institucionais. Em 2009 nós entramos no legislativo municipal por meio do mandato coletivo do companheiro Alonso. Foi uma campanha muito bonita, fizemos bandeiras no lambe-lambe, arrecadamos donativos para produzir o material de campanha, para fazer as visitas e levar a mensagem do nosso programa político. Para chegar a uma candidatura unificada, foi preciso um processo de escolha a partir da base. A posse foi muito bonita, e trabalhamos coletivamente entre 2009 e 2012. Andávamos na Câmara Municipal de cabeça erguida. O Alonso era militante dos direitos humanos, com passagem pelo Incra (10), dava de 10 a zero no parlamento. Trabalhamos firme na produção da Lei do Zoneamento, e o mandato coletivo dava o suporte para a atuação parlamentar do companheiro Alonso. Criamos a Semana do Meio Ambiente e o Dia do rio Paraguai. Até o salário do Alonso era partilhado no sentido de financiar as ações do mandato e os trabalhos de base. Na avaliação final do mandato, percebemos os limites dos espaços políticos institucionalizados.

Atuar nos conselhos

Os conselhos são lugares de luta pela democracia também. A composição dos conselhos é um ponto a ser repensado. A maioria é representante do governo, gente que atua nos conselhos em horário de trabalho, que tem estrutura de apoio, gente que representa associações que igualmente têm estrutura. Como atuam os representantes do movimento social e popular? Nós vamos com boa vontade e com a nossa militância. Eu já fui conselheira também, mas com o quê, com que tempo, com qual estrutura? Como fundamentar um voto? São processos administrativos de centenas e milhares de páginas. Tantos enfrentamentos pesados nós já fizemos no Condema (11), no Consema (12)… Tem toda uma parte jurídica muito pesada para ser vista.

Tem democracias com cara de democracia, mas que no fundo não dão espaço. Os comitês de bacias hidrográficas não querem nem saber o impacto que um empreendimento terá na base, ali onde mora o pescador, a comunidade. Impera o interesse dos órgãos estaduais de meio ambiente e os interesses dos empresários do setor da energia, da água, das hidrovias e tal. Mas se a gente não estiver lá, não aprendemos, não ficamos sabendo o que está rolando, não posicionamos o voto que representa os interesses dos movimentos sociais. Essa conjuntura tem afastado os movimentos sociais dos conselhos, pelo menos é o que observamos aqui no Mato Grosso. Alguns ainda resistem, mas está bem difícil.

Apesar das dificuldades de atuação nos conselhos, não ocupar os conselhos é abrir mão do direito à voz, é não ter vez. Mas é claro que tem que mudar os conselhos tanto na forma quanto no funcionamento. Imagina o movimento popular pagando advogados para apoiar nossos votos, para apoiar nossa participação, para nos ajudar a entender os processos e a legislação. Sem saber as regras do jogo, como nós podemos participar com qualidade? Mas isso não é justo, nossa participação no conselho é voluntária, não estamos em horário de trabalho, estamos doando nosso tempo e nosso trabalho para o interesse público, é um absurdo ter custos com isso. É preciso repensar isso, esses custos devem vir do governo, é o mínimo.

Arte

A arte é fundamental. Sem a arte a gente não consegue atingir as pessoas. Com a arte você atinge, você vai entrando, vai encontrando as brechas e entra. Cáceres era governada por grandes fazendeiros, nem pensar em reforma agrária. A música, a dança, a poesia, o teatro, a arte foi a forma de sermos ouvidos, as pessoas (principalmente a juventude) nos escutavam. E escutando, a mensagem vai entrando, vai passando, vai sendo memorizada, passa pelo coração até chegar nos braços e nas pernas e nos pés e dá energia para a caminhada na rua e na luta. A arte é fundamental, particularmente a música. A gente cantava. Não entrava nas rádios, mas a gente cantava nas comunidades. Cantar é cantar, é livre, todo mundo pode cantar.

Eu parei com as aulas de educação artística nas escolas para dedicar meu tempo a trabalhar com as comunidades. Tento dar dinâmica, animar os encontros, fazer com que sejam gostosos, prazerosos, que as pessoas entendam o que estão fazendo. TEM UM JEITO ARTISTA DE SER EDUCADORA. Me considero uma educadora popular ambiental.

TEXTO

Vanda Aparecida dos Santos

Educadora popular ambiental

publicado em

Temas

Escuta com o coração

O mandato coletivo do (vereador) Alonso ocupou a câmara municipal com dança, com siriri e cururu, com o grupo Raízes, com as nossas faixas. Ocupamos a Câmara de Vereadores também com nossa arte e nossa cultura. Isso vai modificando os espaços também. Por exemplo, depois que ocupamos a Câmara com dança no Dia do Rio Paraguai, outra vereadora passou a convidar grupos de dança afro para atividades também.

A gente fazia jantar e servia refeições na Câmara durante o mandato do Alonso. As laives populares são uma forma de ocupar, de democratizar os quadradinhos das telas. É ocupar as laives (13), as câmaras, os conselhos, as telas. O povo dos comitês esteve nas laives com seus territórios, chás, ervas, mel. São formas criativas e isso também é arte. Arte é criação.

Um dia, um ano

Certa vez, num curso de verão em São Paulo, dom Pedro Casaldáliga disse assim: “Todo revolucionário tem que ter disciplina, tem que ter organização.” É preciso organização, articulação, envolvimento e convencimento, sem isso você não consegue juntar gente. O Dia do Rio Paraguai é um bom exemplo desse processo que alimenta, um pouquinho por dia, a vontade e o interesse, que mantém vivo o compromisso, que cultiva o envolvimento um pouquinho por dia. É sempre assim: um ano inteiro de trabalho para cada Dia do Rio Paraguai (14). Animar a luta vai por aí.

Notas:
1. Tempo de preparação.
2. Ver Revista Tuíra 01.
3. Indígenas habitantes da fronteira Brasil – Bolívia.
4. Com destaque para as atividades do Dia do Rio Paraguai em 2000 que impediram o então governador do Mato Grosso, Dante de Oliveira de chegar para o licenciamento ambiental do Porto de Morrinhos, que marcaria o início da Hidrovia Paraguai-Paraná.
5. Trata-se de uma rede de comitês populares obedecendo a rede de drenagem na bacia do rio Paraguai. Uma rede que tece redes de luta, águas e afetos na fluidez dos rios de vida..
6. PCH: pequena central hidrelétrica.
7. APPs – áreas de preservação permanente.
8. Lourival Vasconcelos. Conselheiro representando a Sociedade Fé e Vida, enfrentou no CONSEMA a tramitação dos dois portos de Cáceres, Barranco Vermelho e Paratudal, sempre pedindo vistas e se posicionando contra a implantação destes portos do Tramo Norte. Foi servidor da Secretaria Estadual de Meio Ambiente.
9. Alonso Batista foi vereador à Câmara Municipal de Cáceres pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na legislatura 2009-2012.
10. INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
11. COMDEMA – Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente.
12. CONSEMA – Conselho Estadual de Meio Ambiente.
13. Se refere ao jeito de lutar durante o isolamento social provocado pela pandemia do Covid. Uma metodologia criada que denominaram “laive popular”.
14. Todo dia 14 de novembro.

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