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Miguel Reis Afonso – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista?

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Miguel Reis Afonso

O início

Comecei minha militância aos 20 anos de idade, no movimento estudantil, com o ingresso no curso de direito em 1978. Tive a felicidade de estar na PUC num período de grande efervescência política. A partir de 1978 e 79, a PUC muda um pouco sua atuação: ao ir para a periferia, ganha um fluxo que é de fora para dentro. Isso acontecia em várias áreas: na Pedagogia, no Serviço Social, no Direito. Naquele momento o centro acadêmico atuava na periferia de São Paulo junto com a cúria metropolitana, oferecendo assistência jurídica em sete pontos da capital – inicialmente um trabalho assistencialista. Eu trabalhava como estagiário de direito. Mas, em São Matheus, existia um movimento sindical muito forte porque o pessoal que foi demitido no ABC [região metropolitana de São Paulo] em 1976 comprou terreno no parque São Rafael, em Sapopemba. Era uma região muito politizada, onde já existiam favelas. Então, o trabalho de assessoria jurídica foi se voltando para os loteamentos clandestinos e favelas.

A Prefeitura tinha uma política de reintegração de posse nas favelas e, assim, nossa relação com as lideranças do movimento de moradia foi se construindo. Em 1979, vem o fundo de greve e nosso envolvimento vai se fortalecendo. Em 1980, surge o PT. O salto de qualidade foi quando, em 1981 e 82, logo depois da eleição, chega uma crise muito forte nas locações – tanto que a lei mudou em 1983 porque tinha muita gente sendo despejada. Os movimentos começaram a se reunir nas igrejas da Zona Leste, particularmente em São Miguel. Foi daí que surgiu o movimento de moradia, quando o pessoal começou a ocupar vastas [áreas] e a gente estava lá dando o suporte jurídico para isso. Participei da organização de favelas e da organização do movimento de loteamentos irregulares e clandestinos, em um grupo de advogados e estagiários que se reunia mensalmente com os representantes de loteamentos clandestinos. Vinha gente de todas as regiões de São Paulo. Assim se constituiu o movimento naquela oportunidade: juntando essa capacidade técnica, ideológica, e a militância concreta de ocupação de terras e ao mesmo tempo de criação de alternativas.

Movimento e Estado

Eu tinha um amigo médico, do curso de Saúde, lá no Eldorado em Diadema. Isso era antes de 1982. Conversando com os pacientes, fazendo reunião, meu amigo médico descobriu a hipótese de que perder a casa causava adoecimento e muito medo nas pessoas: grande parte dos seus pacientes tinha problema de pressão alta por falta de documentação das casas. Ele me chamou para ajudar nesta situação e fizemos um trabalho lá. Em 1984, recém-formado e aos 26 anos de idade, eu sou convidado para trabalhar com a regularização fundiária e vou para o governo. Começo a trabalhar da mesma forma que atuava no movimento fazendo as reuniões à noite, aos sábados e tal. Isso cria problemas tanto dentro do governo quanto junto à comunidade. Sempre fica a pergunta: mas o que esse cara quer aqui? Quer ser liderança também? Vai ser candidato? Mas eu nunca deixei minha militância na zona Leste. Eu saí da prefeitura de Diadema, fiquei um ano desempregado e, quando a Erundina assumiu a prefeitura de São Paulo, aconteceu minha indicação do movimento popular de moradia para assumir na prefeitura. O movimento queria muito mais de mim do que eu poderia oferecer e mesmo assim a gente conseguia fazer muitas coisas. Isso é, para mim, uma postura coerente: estar no governo e estar no movimento. Normalmente as pessoas vão do movimento para os governos, percebem os limites de estar no governo e, quando saem do governo falam mal daquilo que não conseguiram fazer. Eu mantenho minha coerência. Sofro com isso, mas prefiro assim.

Se você deixar o movimento quando assume um cargo público, isso aponta para uma certa concepção. É comum isso acontecer. Quando o sujeito entra na administração pública, aprende que não pode fazer isso ou aquilo. No meu caso, eu nunca saí do movimento e isso sempre tem consequências. Por exemplo, fui demitido do governo Luiza Erundina por ser “muito voltado para os movimentos populares”. Na época, a prefeita deu uma entrevista dizendo que precisava de um perfil mais profissional, mais empresarial na COHAB [Companhia de Habitação]. Eu tenho o jornal com essa entrevista guardado até hoje, onde ela dizia mais ou menos assim: “o Miguel trabalha muito com os movimentos sociais”.

Do direito à luta pela terra

Inicialmente a luta não era pela terra: era por questão contratual. As pessoas compravam os imóveis mas nunca tinham documento, certeza ou segurança jurídica. A situação era muito difícil. Naquela época não havia ainda a lei do parcelamento do solo, de 1979. Meu trabalho é anterior à lei e, sem ela era muito difícil preservar direitos. Naquela época era comum a pessoa não fazer o documento porque não estava a fim, e a situação ficava daquele jeito, irregular. Os loteamentos eram vendidos sem nenhuma garantia, tanto que se o comprador/morador atrasasse duas ou três parcelas, o vendedor simplesmente tirava a casa na mão grande. Era um grande desafio fazer a população entender que tinha tais direitos.

Nosso embate com as imobiliárias era muito grande. Muitas vezes, eles não davam nem um recibo. Certa vez, lá em São Mateus, o pessoal não tinha recibo de compra e venda. A imobiliária enrolava: “passa amanhã, não vou dar o recibo hoje”, ou o preço do recibo era um salário mínimo – olha só o absurdo. Um dia colocamos todo mundo num ônibus e fizemos uma manifestação na porta da imobiliária. Para azar do dono, alguém chamou a televisão. A reportagem passou na hora do almoço e o dono da imobiliária passou a receber telefonemas dos parentes do interior: “O que está acontecendo com você, que sempre foi um cara honesto?”. O cara me ligou no dia seguinte e disse que faria os documentos. Ou seja, era mais ou menos assim.

A luta pela terra vem depois de uma certa compreensão política: o povo vai percebendo o que quer. E era muita terra vazia na periferia servindo à especulação. São áreas construídas ou livres esperando a valorização enquanto tem gente precisando de terra e de casa. As pessoas vão percebendo. Entre 1983 e 1988 aconteceram muitas ocupações de terra em São Paulo e o pessoal está lá até hoje.

Formação

Dentro do movimento de moradia muita gente se capacitou, teve uma época em que procuravam as faculdades de direito. Evidente que estudar direito é muito diferente de advogar. Mas tem gente que hoje está advogando e militando, fazendo seu ativismo junto ao movimento e sua carreira profissional. Fico satisfeito em ver esse processo de formação dos quadros e colaboro sempre que posso.

Favela

Hoje, a luta por moradia continua muito ligada a uma determinada conquista. Depois da conquista vem uma certa desmobilização – exceto quando uma liderança é muito ativa, não vive sem lutar, procura outras lutas. No caso das favelas, houve muito avanço, mas ainda há muita luta. Há uma contaminação midiática que pretende confundir favela com comunidade, por exemplo. Não: você mora numa favela! Favela tem uma história, tem uma origem na exclusão. Foram os negros expulsos do centro e mandados para os arredores das grandes cidades. Apesar se ser esquecida pelo poder público, a favela resiste, supera as crises. É impressionante o poder público não resolver o problema da falta de moradia.

Hoje

O movimento hoje é institucional. Tem uma faceta de luta e uma faceta de produção de unidades habitacionais. Vejo isso como uma conquista. Ao longo dos anos, o pessoal fez ativismo e também propôs fortemente as políticas habitacionais, os mutirões, a autogestão. A política do Fundo Nacional de Moradia Popular e o Minha Casa Minha Vida são fruto desta luta.

São 40 anos de luta. E o que motiva as pessoas a continuar? Conversando com contemporâneos de luta, concluímos tratar-se de fé. Não uma fé religiosa, mas um acreditar nas coisas, acreditar na luta. O que me faz sair da cama muito cedo num domingo e seguir para uma reunião longe da minha casa? Você chega lá e tem gente acordando, tem gente ainda sonolenta, e quando a reunião ameaça de começar chega alguém distribuindo cesta básica… O que me motiva? Acreditar na luta, acreditar nas pessoas, acreditar que a vida pode ser melhor. O que eu ganho com isso? Organização. Não tem benefício próprio: é acreditar num benefício coletivo.

Tem gente que me pergunta: o que eu deixarei para os meus filhos? Deixarei para eles coisas que o dinheiro não compra. Por exemplo, o meu filho mais novo, aos 17 anos, percebeu a realidade por si mesmo numa favela, quando foi num grupo na Vila Prudente para conhecer um grupo de jovens. Agora que ele está na faculdade, essa experiência influencia muito a atuação dele.

Terra

Não somos movimento de sem teto, somos Movimento de Luta pela Terra. Sempre discutimos isso no movimento, tanto que era Movimento dos Sem Terra da Leste I. Entendíamos que o problema está na terra, e não no teto. O problema da moradia você resolve, o da terra é muito mais complicado. Eu cheguei a trabalhar na CPT [Comissão Pastoral da Terra], numa época que a luta estava mais voltada à questão trabalhista em função dos boias-frias. Bebíamos muito na experiência do movimento rural. A terra vem, mesmo no urbano.

Peregrinação

Nunca fiz nada para mim, nunca tirei férias. Fazia seis anos que eu não viajava. Sempre tinha um motivo: doença, falta de dinheiro e tal. Nunca fui um espiritualista, sempre fui concreto apesar de trabalhar muitos anos com a igreja. Fiz o caminho de Santiago de forma a chegar a Compostela no dia do meu aniversário [de 60 anos].. Com a camisa do Santos, aproveitei para pedir uma Libertadores… resumo da viagem: na volta, em Vila Nova do Gaia, entrei na igreja de Nossa Senhora do Pilar, ouvi: “você se prepara muito para estabelecer uma jornada. Ela vai acontecer de qualquer jeito esteja bem preparado ou não. E ela acontece.” E isso resumiu minha caminhada. Foram 11 dias caminhando sozinho, sem distração… para uma pessoa que viveu a vida toda em trabalhos coletivos, todo este tempo pensando na vida, refletindo, foi muito instrutivo.
“Lembrei de uma música.. Como é mesmo aquela do Chico?”

Quando eu morrer / Cansado de guerra
Morro de bem / Com a minha terra:
Cana, caqui / Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim / Vamos embora
(Chico Buarque/1997)

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

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