Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
PARA QUE O CÉU SEJA CÉU: o caráter de levante da obra de Davi Kopenawa Yanomami
Ana Lígia Leite e Aguiar
Sujeitos políticos só se constituem a partir da internalização de tais desabamentos.
Vladimir Safatle. O circuito dos afetos.
O céu está pesado, qualquer que seja a maneira pela qual se queira compreender essa expressão.
Didi-Huberman. Levantes.

Como pensar o Outro? Uma vez mais essa indagação é antes o desejo de que uma certa tensão filosófica se instaure do que a necessidade imediata de um retorno para aquilo que, sabemos, não encontra alívio em qualquer que seja a sua resposta. A pergunta, organizada por Roland Barthes em Como viver junto [1], é antes de tudo uma pergunta sobre como se percebe o Outro, se convive com o Outro, uma pergunta sobre o mundo e, em um nível cada vez mais micropolítico, uma pergunta sobre a nação, sobre as nossas diferenças, sobre “mim”. Na impossibilidade de fechamento da questão, o que entendemos é que a alteridade foi e é um exercício de suplemento dos nossos próprios paradigmas de vida (desejamos o Outro não por dependência, mas pela vontade de ser atravessado por ele). A alteridade altera a conta do que somos. Todorov [2] foi assertivo ao compreender, lendo os diários de Cristóvão Colombo, que o não entendimento deste sobre os indígenas incorreu em um grande equívoco não só nos termos da tradução de um modo de aparecer da cultura dos povos originários daquilo que um dia viria a ser a América, como na própria maneira de sobrepor seu gesto narrativo pela lógica de redução do Outro, um gesto de superioridade ainda hoje empregado contra tais povos, mas contra, também, outros tantos grupos colocados em situação de uma vulnerabilidade que se intensifica todos os dias.
1 Roland Barthes. Como viver junto. Martins Fontes, 2013.
2 Tzvetan Todorov. A conquista da América. Martins Fontes, 1983.
Contraditoriamente, quando nego o Outro, nego a mim. No dicionário Houaiss, temos que a alteridade é o “caráter ou estado do que é diferente, distinto, que é outro. Que se opõe à identidade, ao que é próprio e particular (…); condição ou característica que se desenvolve por relações de diferença, de contraste”. [3] É essa oposição à identidade e ao particular que deve ser entendida aqui não como recusa ou negação de si, mas a presença desse contraste como solidariedade absoluta a outras formas de vida. A solidariedade seria, assim, a noção aguda de uma igualdade. Uma igualdade na diferença.
3 Disponível em www.dicio.com.br/alteridade/
Quem talvez mais tenha operado dentro da lógica da diferença, no Brasil, até onde se sabe, foram os povos Tupinambá da costa brasileira. Faz-se evidente: o entendimento acerca da compreensão dessa diferença não pôde ser alcançado pelos cronistas dos 1500/1600, mas pela percepção contracolonial de Eduardo Viveiros de Castro (e de tantos outros historiadores e antropólogos), que ao ler os religiosos e marinheiros viajantes que davam notícias do Novo Mundo, consegue visualizar em sua pesquisa o eixo de uma repetição sobre a antropofagia ritual fornecedora de um modelo sobre como perceber o inimigo: “Guerra mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se”. [4] É que para os nativos, elucida Viveiros de Castro, o que estava em questão era a “afinidade relacional” e não a “identidade substancial”. [5] Isso explica a entrega aparentemente docilizada dos indígenas aos estrangeiros – como se vê na carta de Pero Vaz de Caminha e em outros textos quinhentistas –, assim como a entrega à morte – sem hesitações, diga-se de passagem – na antropofagia ritual. Nos dois casos, os indígenas estavam interessados em conhecer outros mundos, em relacionar-se com a mente do Outro, isso, assim entendido, sem que se precisasse necessariamente abdicar de nada, já que a lógica da alteridade não necessariamente pressuporia qualquer exclusão. Se parece confuso esse “desejo de ser o Outro” “segundo os próprios termos”, para aqueles que creem na identidade substancial – isto é, na crença de um único jeito de perseverar em sociedade –, [6] isso se deve ao fato de os nativos não terem passado, à época, pela colonização de seus desejos.
4 Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. Cosac Naify, 2002, p. 207.
5 Idem, p 206.
6 Idem, p 195.
Como “metamorfoses ambulantes”, para usar a expressão de Raul Seixas, os corpos dos nativos eram como um circuito rizomático, prestes a se ligarem a tudo, mas sem nunca se afastarem de si. Essa imagética é de difícil imaginação, pois eram a própria ideia daquilo que poderíamos vir a ser:
“(…) escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você!” [7]
7 Gilles Deleuze; Félix Guattari. Mil platôs. Editora 34, 1995, p. 36.
Deixar as linhas de fuga da identidade como que “soltas”, ou em um modo de curto-circuito, parece ser a melhor alternativa para não se cair na armadilha do uno. Se a economia de vida dos autóctones era destituída de dogma e de uma fé temerosa àquilo que jamais tinham presenciado, não era porque em nada criam, mas, por sua vez, porque poderiam acreditar em qualquer coisa, a saber, no Outro. [8] No entanto, tal troca ocorreu apenas em uma via de mão única: de acordo com a historiografia oficial, [9] os nativos exercitaram a alteridade, enquanto os europeus fizeram, para dizer o mínimo, uma violenta redução da mesma. Desde Bartholomeu de Las Casas havia sido dado o recado sobre o fato de a razão europeia estar apta a outros tipos de procedimentos:
“Certa vez, os índios vinham ao nosso encontro, para nos receber, à distância de dez léguas de uma grande vila, com víveres e viandas delic as e toda espécie de outras demonstrações de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-nos grande quantidade de peixe, de pão e de outras viandas, assim como tudo quanto puderam dar. Mas eis incontinenti que o Diabo se apodera dos espanhóis e que passam a fio de espada, na minha presença e sem causa alguma, mais de três mil pessoas, homens, mulheres e crianças, que estavam sentadas diante de nós. Eu vi ali tão grandes crueldades que nunca nenhum homem vivo poderá ter visto semelhantes.” [10]
8 Talvez seja desnecessário dizer, mas este pensamento ainda é tributário das ideias de Eduardo Viveiros de Castro.
9 Confira, para tanto, os recortes de Alberto Mussa em sua obra Meu destino é ser onça (Record, 2009). Também são notáveis as contra leituras sobre o modo de se perceber a cultura indígena de Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, Tzvetan Todorov, Enrique Dussel, dentre outros.
10 Bartholomeu de Las Casas. História das Índias Ocidentais. Edições Cultura, 1944, p. 24.
Esse massacre ocorrido em Cuba é relevante em vários aspectos. O primeiro deles é a antecipação daquilo que só séculos depois seria descrito por Hannah Arendt como a “banalização do mal”. [11] É significativo que Las Casas uma hora se dê conta de que, tendo negociado com seus conterrâneos e relatado para a Coroa Espanhola para que interrompessem as torturas e o genocídio aos quais submetiam os nativos, tudo resultasse sem efeito. Coagidos pelo Estado e pela extensão das suas forças, as evidências das “forças do mal” regiam, independentemente do que os nativos fizessem, suas vidas, e fariam suas existências serem condenadas de um modo ou de outro.
11 Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. Companhia das Letras, 1999.
Submetidos à ideia de subalternidade, a resistência dos indígenas fora imediata. Boa parte dos discursos sobre a dizimação dos povos originários é pactuária dos discursos contra a alteridade. Reconfigurados e lançados a outro tipo de sorte, os nativos não só não foram dizimados como retornaram como multidão. É que a alteridade é também uma forma de subversão que sabe se recolher sem se calar.
INSUBMISSÕES
Mas este texto de agora é fruto dos últimos acontecimentos de 2018 e essa data não pode ser desprezada. Somos presas temporais dela. Naquele ano vivemos, no Brasil, um embate fulminante das ideias do indivíduo versus as ideias da coletividade. A eleição presidencial retomou um momento dramático de nossa história comum e regurgitou nas telas dos diversos dispositivos que portávamos os interesses gerais que conclamavam o liberalismo e o individualismo teatralmente em nome da nação. Para caminhar, o Brasil outsider [12] precisaria se reconciliar com o Brasil oficial, aceitando apagar-se, incluir-se, subjugar-se, não se alterar.
12 A lista é longa, mas, ei-la, uma vez mais: indígenas, negros e quilombolas, mulheres, servidores públicos, LGBTQs+, animais, natureza, etc.
Evitando-se olhar para o Outro, os discursos foram se ensurdecendo para o ao redor, um sintoma que nos aparece no intempestivo Junho de 2013, mas que, aos olhares e às reflexões mais atentas, estão presentes desde a primeira operação da máquina colonial. Em 2015, os brasileiros teriam acesso à tradução para o português da obra de Davi Kopenawa Yanomami, que compreendia com lucidez:
“Hoje, os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo. Mas não é o que queremos. Eu aprendi a conhecer seus costumes desde a minha infância e falo um pouco a sua língua. Mas não quero de modo algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami. Sei também que se formos v er em suas cidades, seremos infelizes.” [13]
13 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert. A queda do céu. Companhia das Letras, 2015, p. 75.
“Mas não quero de modo algum ser um deles” se dá justamente porque “só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami”. Em 2018 a resposta para Davi Kopenawa seria: então, nunca. A resposta nas eleições de 2018 foi pela igualdade na igualdade, não na diferença: uma espécie de pensamento em “que o Outro seja igual, que seja um igual sem contraste, sem fricção, sem negação de mim. Não desejo ir a campo, não desejo experiência na diferença, não desejo o Outro, desejo a mim”. Se há algo de previsível no encaminhamento dessa dicção – que conhecemos de longa data dado o seu caráter de repetição –, é que o grande erro das nações continuará sendo a aposta na unidade moralizadora dos corpos e das subjetividades. Seria preciso, antes, compreender as diferentes nações que formamos, atribuir carga sensível a elas para que os outros as vejam e as reconheçam, no sentido mais pathos dessa palavra, a pele dessa existência, e sua afecção, sua paixão, seu excesso, seu sofrimento, sua catástrofe. Só assim, no firmamento dos variados povos que somos, seríamos capazes de visualizar um horizonte de ampla convivência. Mas, novamente, como conviver na diferença? Como perceber o Outro-outro, aquele que será colocado no lugar do inimigo? E afinal, mesmo as amizades, os círculos de philia não seriam embebidos de tensões?
DO QUE EU FALO QUANDO EU FALO DE ALTERIDADE [14]
O exemplo de Davi Kopenawa, em A queda do céu, mistura de “relato pessoal e destino coletivo”, é um dos grandes exercícios com o qual nos deparamos em meio às proposições que podemos ter para o grande desamparo em que nos encontramos.
14 Este subtítulo é tributário da obra de Haruki Murakami de 2010, Do que eu falo quando eu falo de corrida (Alfaguara, 2010).
A data aproximada do seu nascimento é o ano de 1956. Desde os anos 1970 ele teria reconfigurado a sua existência para exercer seu direito à vida e à preservação do território onde se localiza seu povo. Desde os anos 1970, conhecidas fotos de Claudia Andujar têm carregado notícia de como o contato e a devastação do território indígena Yanomami, via abertura de estradas (a Perimetral Norte é epígrafe do massacre iniciado pela ditadura civil e militar da época) e mediante a proximidade ‘forçada’ com os trabalhadores das obras, promovem e acentuam o extermínio de tais povos. Garimpo e mineração, no presente, ampliam o campo dos napë, que é “o Outro sem mais, o inimigo por excelência e por essência, é o Branco”. [15] Inimigo, estrangeiro, forasteiro, o mundo da episteme branca em que vivemos corrobora para que a alteridade encontre a hostilidade.
“Os rapazes gastam o seu tempo rondando os postos dos brancos. Eu, ao contrário, cresci na floresta, bebendo mel selvagem o tempo todo. Foi isso que tornou meu pensamento reto e permitiu que ele se ampliasse.” [16]
15 Eduardo Viveiros de Castro. Prefácio. Publicado em: A queda do céu. Companhia das Letras, 2015, p. 13.
16 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 239.
Mas o que a obra de Kopenawa vem contra-acentuar para nós, suas leitoras e leitores? Denúncia, raiva, estigmatização dos missionários, a enorme diferença entre brasileiros e povos indígenas, a imagem de que os brancos eram ladrões de crianças indígenas e veiculadores de epidemias (pneumonia, sarampo, tuberculose, gripes), e, além de tudo, de que os brancos têm o pensamento fixo em mercadorias. Davi Kopenawa apresenta nessa obra fronteiriça suas memórias, sua cosmogonia, sua relação com os xapiri [17] desde criança, narra seu mundo, ocupa um lugar disputado no mundo da escrita, questiona o fato de os brancos não atrelarem sua conduta à fala – falam do pecado, mas o cometem, falam das palavras de seu Teosi, [18] mas as desrespeitam repetidamente.
17 Osxapiri são “seres-imagens (‘espíritos’) descritos como humanóides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos e coloridos”. Idem, p. 610. Nota 9.
18 Teosi vem do português ”Deus“. Idem, p. 610.
Ao longo da obra, acessamos a trajetória de Davi, mas entendemos que se trata de uma insurgência sem ilusões. Sendo contra o pensamento colonial, instaura outros mitos de fundação, outra ideia de origem, mas realiza sua narrativa de modo pouco ou nada messiânico. Não se trata de palavras que pretendem salvação. Como um xamã, Kopenawa compreende que as relações produzem um trabalho de chamado e de escuta incessantes, mas está nas mãos de cada um como proceder com suas próprias sensibilidades e afetos.
“Só existe um céu e é preciso cuidar dele, porque, se ficar doente, tudo vai se acabar. Talvez não aconteça agora, mas pode acontecer mais tarde. Então, vão ser nossos filhos, seus filhos e os filhos de seus filhos a morrer. É por isso que eu quero transmitir aos brancos essas palavras de alerta que recebi de nossos grandes xamãs. Através delas, quero fazer com que compreendam que deviam sonhar mais longe e prestar atenção na voz dos espíritos da floresta. Mas bem sei que a maioria deles vai continuar surda às minhas falas. São gente outra. Não nos entendem ou não querem nos escutar. Pensam que esse aviso é pura mentira. Não é. Nossas palavras são muito antigas. Se fôssemos ignorantes, ficaríamos calados. Temos certeza, ao contrário, de que o pensamento dos brancos, que não sabem nada dos xapiri e da floresta, está cheio de esquecimento.” [19]
“Para isso são necessárias pessoas valentes, antropólogos corajosos que não se contentam em fazer pesquisa e depois ir embora. Nós, índios, precisamos de antropólogos que tenham coragem, antropólogos que falem nossa língua.” [20]
19 Idem, p. 498.
20 Idem, p. 530.
Ante o tremendo desamparo diante do Estado brasileiro, que entende que os povos originários são inimigos da nação (basta escutar o discurso das mineradoras, da bancada do agronegócio, dos cidadãos de bem da classe média brasileira, da classe alta, ou mesmo das classes C e D que se identifiquem com os valores das classes mais ricas), Kopenawa assumiu o medo não como paralisia, mas como potência. Vladimir Safatle pontua: “(…) há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. (…) há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício de liberdade”. [21]
21 Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. Autêntica, 2016, p. 31.
Contudo, num mix paradoxal muito benéfico, próprio das comunidades onde não predomina a razão branca, a obra Yanomami recusa a aposta no mundo branco, lugar que não pretende mais ocupar, pois os povos precisamos entender quais seriam os “desejos desejáveis”, e Kopenawa, em uma série de exemplos, demonstra o quão traiçoeira e subalternizante a razão branca pode ser. Sem desejar nada de um universo que só dialoga com eles nos termos de sua destruição, os Yanomami, como outras centenas de povos indígenas, optam por reconhecer que estão desamparados na cena nacional – que os trata ora como estrangeiros, ora como invasores –, e mantêm a crença na tradição milenar, evidenciando que alguns povos estão amparados por Omama, [22] mesmo que o céu desabe.
22 Omama é o demiurgo da mitologia Yanomami. Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 610.
Notavelmente interessado em impedir que o céu caia sobre nossas cabeças, Davi se abre ao diálogo, insiste na transmissão de sua história, compartilha os presságios. Se sabe dos avisos dos antigos e dos espíritos da floresta, insiste na crença – paradoxal que seja – de desconhecer, afinal, o que pode o Outro. Alteridade é ausência de previsão. E, nesse sentido, Davi Kopenawa Yanomami não só se lança ao Outro como se levanta. Sua narrativa é definitivamente séria, pautada, como diz Viveiros de Castro por “lampejos de lucidez política e poética”. [23] Esse acontecimento, esse corpo que se joga no front da luta, de modo combatente, acaba por desenhar uma espécie de levante. “O levante se dá com uma determinação que um dia vai pôr fim a uma condição comum por tempo demais suportada”, escrevera Judith Butler, [24] mostrando que o levante não é apenas uma situação em que apenas eu sofro, mas você também, e isso se tornaria um “nós”, um acolhimento, um desejo de colocar fim à sujeição que nos aprisiona por um tempo desmedido. (A pergunta freudiana resumida por Safatle: por que tanta sujeição e recalque?).
23 Eduardo Viveiros de Castro, 2015, p. 15.
24 Judith Butler. Levante. Publicado em: Georges Didi-Huberman (Org.). Levantes. Edições Sesc, 2017, p. 25.
Mas um levante, continua Butler, “é geralmente um acontecimento pontual”. [25] O que Butler apresenta em suas reflexões, em suma, é que levantes geralmente têm começo, meio e fim, e, em geral, fracassam. O dia seguinte ao fracasso de um levante é também quando sua história se torna narrável. Ora, justamente porque os povos indígenas viram o “fim do mundo” com a chegada dos primeiros colonos é que as palavras de Kopenawa surgem nesse tom de rememorar acontecimentos, fazendo apostas em um futuro incerto. Lúcido, o pensamento dele se afina com o de Butler, quando ele diz: “sabemos que as palavras dos brancos só iriam sumir (…) de nossa mente se eles parassem de se aproximar de nós e de destruir a floresta. (…) Nosso espírito se aquietaria e voltaria a ser tão tranquilo quanto o de nossos ancestrais no primeiro tempo. Mas é claro que isso não vai mais acontecer”. [26] Butler, em reflexão semelhante, rememora que:
“em 1832, na Jamaica, escravos entraram em greve, exigindo pagamento por seu salário. Diante da recusa dos proprietários, eles incendiaram as casas e os depósitos de cana-de-açúcar, causando grandes prejuízos. Sob a liderança de Samuel Sharp, 20 mil escravos assumiram o controle de mais de 200 plantações, e, ainda que dominados no final, presos e, muitos, executados, estima-se que o movimento contribuiu para o fim, em 1834, da escravidão imposta pelos britânicos. Todos os levantes fracassaram, mas, conjuntamente, tiveram sucesso.” [27]
25 Idem, p. 31.
26 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 227.
27 Judith Butler, 2017, p. 36.
O fracasso pontual desses gestos pode ter algo a ver com as alterações rizomáticas que a voz de Davi Kopenawa provoca naqueles que a leem. Reparem como o circuito estabelecido por ele retoma, em outros termos, o famigerado movimento inicial de alterar-se exercido pelos Tupinambá. Significativo notar as maneiras de repetição – na diferença – de chamamento, de abertura para o diálogo, de uma aposta naquilo que cada um de nós pode ter de um devir índio, uma aposta aguda no porvir. Vale ressaltar que não é mais a troca, contudo, o que está em jogo, e essa alteração no diálogo proposto é crucial para o entendimento do que pretende a política narrativa dessa liderança Yanomami no presente. A ideia de alteridade, nesse sentido, acabou por sofrer uma espécie de corrosão. Tornar-se Outro é medida que deve ser exercitada unicamente pela episteme branca, tendo em vista o pouco ou quase nenhum deslocamento feito por essa mesma episteme ao longo de mais de cinco séculos no Brasil; portanto, é a ela que cabe qualquer ideia de transfiguração para se construir uma outra afinidade relacional. E se os indígenas necessitam ou desejam os apetrechos do mundo do homem branco, claro está que não confundem mais a ideia de presente com a de mercadoria. [28]
28 Eduardo Viveiros de Castro. Equívocos da identidade. Publicado em: Gondar & Dobedei (Org.). O que é memória social? Contracapa, 2006.
Se retornarmos ao evento da antropofagia ritual, qual seria o motivo de devoração de um sujeito que permanece sempre o mesmo? Se a razão branca não se cansou de não se alterar, logo, devorá-la seria devorar o inalterável, uma espécie de repetição de algo que não só não apresenta diferença como já fora experienciado na esfera da morte inglória, sem qualquer resquício de saldo positivo para os ameríndios nessa relação. Mas os animais humanos não somos sempre os mesmos e esse dado não deve ser ignorado. Mesmo que o mundo da razão branca permaneça voltado para a mercadoria e sem se importar com os direitos da terra, há sobreviventes, dissidentes, os que se importam, pessoas que correm o risco de falar a língua do Outro, a língua menor a qual Deleuze e Guattari [29] se referiam para falar de uma literatura dos recônditos. É essa literatura de um Kafka, de uma Carolina Maria de Jesus, de um Davi Kopenawa Yanomami – que somente pode ser alcançada pelos leitores e leitoras da razão hegemônica por meio de um corpo que aceita revolucionar-se – que altera o Outro, multiplica o seu leque de leituras, provoca os corpos para uma poética política: o sonho dessa narrativa menor nos oferece uma estética de mundo que também é uma política. Nesse caminho, as leis da antropofagia são reinventadas pelos seus próprios fabricantes: o “só me interessa o que não é meu”, com o qual Oswald de Andrade inicia seu Manifesto Antropófago em 1928, retém o fato de a terra ser de todos. Continua-se como um devorador do Outro, mas são as próprias ideias de posse e de comum que necessitam ser reelaboradas. A primeira lei do antropófago contemporâneo seria a de começar a entender a profunda tensão entre aquilo que entendo ser meu e aquilo que entendo ser do Outro. Davi Kopenawa chama a atenção para a questão do ouro nos garimpos: um pó que brilha na terra – como podemos matar um homem por conta disso? [30] Quem sabe olhando juntos o mesmo céu a gente não consiga se interessar realmente por ele, combatendo a premissa de que o mundo já acabou e a ardilosa ideologia de que a persistência do inalterado prevalece sobre a potência da transfiguração, o que torna as diferentes guerras no mundo atual por um outro mundo possível irresolutas. Para que o céu não caia teremos, insistentemente, de continuar nossa aposta no Outro. Outras e novas formas de epistemes brancas haverão de surgir, novos contatos, novas formas de afecção, novos formatos de humanos e de descobrimento, e a obra de Kopenawa é um grande passo para um futuro que se deseja presente. Sem niilismo e sem falsas ilusões, bem ao modo de Kopenawa em sua proposição-levante ao escrever uma obra entre o sonho e a lucidez para que o céu não caia. [31] Para que o céu continue sendo céu.
29 Refiro-me à obra Kafka: Por uma literatura menor, dos autores, de 1975.
30 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 10.
31 Impossível não referenciar aqui o título do espetáculo-manifesto da Companhia de Dança de Lia Rodrigues, “Para que o céu não caia”, de 2016, baseada na obra A queda do céu.
Política e natureza: uma apresentação

Este bloco emergiu de algumas inquietações. A primeira delas é a reverberação de nosso contato com Tuíra, com sua luta em defesa da floresta e com os diversos enfrentamentos realizados pelos povos indígenas desde que o “céu deixou de ser céu”, como afirma Davi Kopenawa. Some-se a desafiadora necessidade de arejar o pensamento político, hoje em processo de ataque pelos totalitarismos, ávidos por sufocar tudo que ouse pensar. Por fim, por acreditar que teoria e prática não se dividem, são relação, e se expandem quando postas em contato.
Encontramos algumas pessoas que se colocam em movimento para a criação de um pensamento político. Um pensamento político inspirado e inventivo, baseado na relação com a terra, com as plantas, com seres que escapam às lógicas ocidentais, modernas, capitalistas. Pensares que explicitam o que é obvio para os povos originários: todos os modos de existir possuem valor e não são meros recursos. Pensares que põem em xeque as crenças de um dos seres mais frágeis da natureza: o ser humano.
Procuramos por Jean Tible, militante e professor de Ciência Política na USP, que prontamente se dispôs a criar algo, como ele mesmo descreveu, “mais solar” sobre a política. Quando trevas e obscurantismo dominam o imaginário político institucional, isso nos pareceu tentador. Em seguida buscamos Luciano da Silva, jovem-experiente, agricultor agroecológico e técnico agrícola formado pelo Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), ligado ao Movimento dos Trabalhadores, Assentados e Quilombolas (CETA) e que, na posse de alguns hectares de terra e ao lado de pessoas dispostas a produzir agroecologicamente, vem participando de um processo de transformação político-econômica-autonomista em um assentamento na região Sul da Bahia.

Para um pedimos um texto: o quê? Para o outro pedimos uma prática: como?
E foi nesta busca, entre papos, viagens, idas e vindas, que descobrimos algo interessante neste bloco: a real conexão entre um conjunto de pensamentos e um conjunto de ações. Diria o antropólogo Jeremy Narby que “a prática é a mais avançada das teorias”. Nossa tentativa aqui foi de fazer falar o texto de Jean Tible nas práticas de Luciano da Silva e assim conectar mundos.
Em seu texto, Jean nos transporta para uma grande viagem do mundo animal ao vegetal, explorando povos, corpos, filosofias, artes, paradigmas. Revela para nós o modo como o pensamento foi estruturado seguindo uma linha predatória e, na sequência, nos mostra um mundo de plantas, conexões, adaptabilidade e força. Descobrimos o quão pouco conhecemos deste universo. Fica explícita uma necessidade, em nome da sobrevivência, de realizarmos adaptações e alianças. Tal como podemos ler na feliz citação que Jean faz de Anna Tsing: “permanecer vivo – para todas as espécies – requer colaborações vivíveis. Colaborações significam trabalhar através da diferença, que leva à contaminação. Sem colaborações, todos morremos”.
Encontramos, no trabalho dos assentados de Dois Riachões e de Luciano, uma verdadeira arte do cultivo. Conhecemos diversas facetas da cultura da Theobroma Cacao, nome científico da planta que nos oferece o “fruto de ouro”, o cacau: desde seu quase desaparecimento no final dos anos 1980, em decorrência de pragas, até seu renascimento atual, a partir de uma nova forma de produção, comercialização e articulação política feita em seu entorno. Segundo Luciano, “muito mais do que um conjunto de técnicas, agroecologia é um modo de vida junto ao campo e à natureza”.
Ao observar tamanha pluralidade na vida das plantas e conversar com um agricultor é possível compreender que, como diria Jean, eles não são simples selecionadores de espécies: são colecionadores de relíquias! Uma variedade imensa de feijões, mandiocas, batatas, milhos e sementes originárias que enriquecem a nossa saúde e a nossa cultura com os diversos esquemas, modos e práticas produtivas.
É preciso imitar a natureza ao máximo! Observar sua composição, os tamanhos das árvores, extratos de uma floresta que se organiza a partir da queda de folhas, galhos, cipós, sempre em busca de sol ou de sombra, e construir plantações que permitam essa paisagem movente, não uma plantação toda retilizada, igual em cor e tamanho. As folhas que caem realizam uma função importantíssima na cobertura do solo que, úmido, se protege e se nutre. A diversidade de plantas na floresta também oferece a possibilidade da energização pela diferença: há ali alimento para todos, animais, microrganismos, insetos e até parasitas. A disputa por nutrientes do solo, luz e água é menor. É uma orquestra, cada um tocando no seu ritmo, seu tom, mas todos em plena sintonia. Lá embaixo, no solo, ocorre a trama de raízes que penetram o solo de maneira desigual buscando nutrientes, água e oxigenação em diferentes camadas. As plantas realizam, ainda, um tremendo processo de comunicação entre si pelas raízes. Quem diz que planta não fala se engana completamente!
Com os povos indígenas e originários aprendemos que é preciso observar a natureza e aprender com ela. Hoje estes conhecimentos estão disseminados em diversos meios pela agroecologia. Sim, as plantas ensinam. Suas palavras e suas pedagogias parecem ter sido ouvidas por poucos. Luciano dá testemunho do quanto foram capazes de ouvir estes ensinamentos no Assentamento Dois Riachões. No Território Quilombola do Vão Grande, aqueles que conhecerem Tio Antônio [1], também testemunharão estas aprendizagens. Ali encontramos aquele “cultivo de comunidades” instaurado textualmente por Jean: “Um cultivo de comunidades onde dormir, acolher quem chega, se reunir, cozinhar e comer, plantar e se cuidar em espaços construídos coletivamente”.
1 Para conhecer mais dessas aprendizagens, visite o texto de Tio Antônio, do Território Quilombola do Vão Grande
E por que tudo isso é importante?
Basta olhar para esta vida inspirada na terra, na arte de observar a natureza, suas reações, seu cosmo, para pensarmos que uma política inventiva, produtora de mais vida, energizada pelos minerais, pelo Sol, pelas fases da Lua se faz urgente e necessária.
Por uma Política do Cultivo!
POLÍTICA E NATUREZA
Muitas outras mediações da relação entre ser humano e natureza são possíveis – e, com elas, podem emergir novos modos de existir e conviver, novas cosmopolíticas e lutas floresta
Jean Tible

“O homem é o lobo do homem”. Esse antigo provérbio romano tornado célebre por Thomas Hobbes sintetiza uma poderosa narrativa sobre o homem, a natureza e a política. O filósofo elabora um relato extremamente influente de uma saída do estado de natureza – e sua guerra de todos contra todos – para a constituição de um estado civil. O medo hobbesiano essencial, da morte violenta (ele escreve no contexto de uma guerra civil), seria, assim, evitado. Os homens deixariam a violência fratricida pela celebração da concórdia, ao renunciarem à natural liberdade absoluta e pondo fim à “guerra perpétua de cada homem contra o seu vizinho”. [1]
[1] Thomas Hobbes. Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common-Wealth Ecclesiasticall and Civil. Yale University Press, 2010 [1651].
Torna-se, para isso, necessário produzir uma desigualdade, uma assimetria incontornável. O autor resgata então a imagem de um monstro bíblico, o Leviatã. Disciplinado por este, o súdito hobbesiano desfrutaria do banimento da guerra. Brotaria a paz e seria instaurado um mundo de ordem: surge, via contrato social, um Estado forte, comandado por um Rei ou uma Assembleia. A obediência será agora a métrica da política, já que somente com um organismo estatal absoluto, que faça valer a lei punindo o dissenso, haveria paz civil – trata-se do preço da autopreservação, da manutenção da vida dos homens.
O lobo mau. A natureza selvagem. Imagens recorrentes, figuras fortes que nos interpelam constantemente até hoje – ambos devem ser domesticados.O homem é o lobo do homem. A ausência do Estado indica o estado de natureza, a anarquia, a guerra, o caos, a desordem. De forma sintomática, esse estado de natureza subsistia, para Hobbes, em algumas áreas do planeta, onde vivem os “povos selvagens” presentes na América. São decisivos, aponta Carolyn Merchant, [2] os elos entre submissão da natureza e das mulheres no programa científico dito moderno (no qual Hobbes se encaixa), assim como dos povos considerados inferiores (inclusive os camponeses europeus).
[2] Carolyn Merchant. The death of nature: women, ecology, and the scientific revolution. San Francisco, Harper & Row, 1980.
O surgimento deste modelo de conhecimento hipermasculinizado busca “uma relação epistemológica com o mundo mais limpa, mais pura, mais objetiva e disciplinada”. [3] A quem se opõe essa nova ciência? Como já dizia em 1893 Matilda Joslyn Gage, existem “provas abundantes que as pretensas ‘bruxas’ estavam entre as pessoas mais profundamente científicas do seu tempo”. [4] Gage defende que o sentido original de “bruxa” era de mulher sábia e os primeiros médicos da Europa cristã eram mulheres que possuíam o domínio das ervas. O alquimista e físico Paracelso, considerado um dos fundadores da medicina, compilou, como o admitiu, esses conhecimentos (das bruxas) em suas obras. O ataque desse emergente aparelho estatal foi também contra as organizações comunais das quais esses conhecimentos eram parte. Um ataque contra sua autonomia (inclusive a sua ciência). Bruxa, feiticeira, curandeira, mágica – esses xingamentos atravessaram os séculos e ainda são usados hoje. Seu objetivo? Controlar a desordem expressa pelos corpos rebeldes, seus saberes e suas alianças. Dominar as mulheres, a natureza e os lobos. Na caça às bruxas que marca o início desse período histórico, uma minoria de condenados era de homens. Qual era a acusação? Eram lobisomens! [5]
[3] Mona Chollet. Sorcières: la puissance invaincue des femmes. La Découverte, 2018, p. 190.
[4] Matilda Joslyn Gage. Woman, Church and State. The original exposé of male against female sex. 1893, p. 100.
[5] Janaina Wagner. Licantropia, 2019.https://vimeo.com/344611234/3a84b5cf6b
Rosa Luxemburgo enfatizava o papel subversivo da Antropologia, ao afirmar que, no decorrer do século XIX, “uma abundante documentação surgiu, abalando de forma séria a velha noção do caráter eterno da propriedade privada e de sua existência desde o começo do mundo, para logo a destruir completamente”. [6] Essas pesquisas ajudaram a derrubar certas verdades eternas do momento (como a família, o Estado e a propriedade), já que muitos povos não as conheciam em sua forma burguesa. Abre-se, aqui, um paralelo com certa biologia contemporânea: a famosa frase, já citada duas vezes, não só compõe uma imagem equivocada do lobo, como também “insulta um dos mais gregários e leais cooperadores do reino animal. Tão leal, de fato, que nossos ancestrais sabiamente o domesticaram. Os lobos sobrevivem derrubando presas maiores do que eles, animais como renas e alces, e fazem isso com trabalho em equipe”. Esses distribuem a caça, “regurgitam a carne para as mães lactantes, os filhotes e às vezes os velhos e doentes que ficaram para trás”. Em seu meio, “a competição existe, mas os lobos não podem se dar ao luxo de permitir que ela siga seu curso. Lealdade e confiança vêm primeiro. Comportamentos que solapam o alicerce da cooperação são reprimidos para impedir a erosão da harmonia, a base da sobrevivência”. [7]
[6] Rosa Luxemburgo. Introduction à l’économie politique. Smolny, 2008 [1925], p. 189.
[7] Frans de Waal. Eu, primata: por que somos o que somos. Companhia das Letras, 2005, p. 266
Um contra-Hobbes foi elaborado por autores malditos do pensamento político (La Boétie, Espinosa, Marx, Clastres) e, sobretudo, por uma multiplicidade de práticas. E essas não constituem um privilégio humano, atingindo também as amplas esferas do dito não humano. Uma política animal, uma política vegetal. Ara Reté no barco pirata em Para-ty pensa o que pode ser a política (palavra que não existiria em Guarani) e fala de aty guasu – grande conversa. [8] Assembleia com mulheres, homens, pessoas trans, mas também espíritos, fungos, árvores, polvos, grandes primatas e muitas outras. Frente à política convencional depurada, mas também redutora, falsa e conservadora, um diálogo com a biologia, que vem contribuindo para enriquecer concepções de política, como Piotr Kropotkin, [9] mais de um século atrás já havia elaborado.
[8] Ara Reté Guarani Nhandewa. Debate “A descolonização do poder” com Zé Celso (Teatro Oficina) e Ara Reté (-Paraty). Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, 13 de julho de 2019.https://www.youtube.com/watch?v=UEBmSTvxdME
[9] Piotr Kropotkin. Mutual aid: a factor of evolution. Freedom Press, 1987 [1902].
Isso sustentou a compreensão de que os “processos da Terra eram tão vastos e poderosos que nenhuma força poderia modificá-los. Que as cronologias humanas eram insignificantes comparadas ao vasto tempo geológico”. [10] Mas conseguimos e nos tornamos, destruindo as florestas e queimando combustíveis fosseis, agentes geológicos. Fundamos o antropoceno, ou, de forma mais precisa, o modo de produção tornou-se agente geológico: emerge o capitaloceno. Esse predomínio do Homem sobre a Natureza põe em risco a vida humana e sua sobrevivência depende agora de ouvir os antes considerados não modernos cujos relatos sempre levaram em conta as atividades de todos os seres vivos, humanos e não humanos. Muitas das que estavam fora do estatuto de Homem impuseram sua presença; pelas lutas, passam a ser imprescindíveis e, agora que estamos nos livrando do Homem e da Natureza, os “entrelaçamentos inter espécies que pareciam coisa de fábulas são agora material para debate sério entre biólogos e ecologistas, que mostram como a vida requer a interação de vários tipos de seres. Humanos não podem sobreviver pisoteando todos os outros”. [11]
[10] Déborah Danovski e Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Instituto Socioambiental, 2014, p. 26
[11] Anna Lowenhaupt Tsing The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins. Princeton University Press, 2015, p. vii.
Um planeta mais vivo e bem mais interessante. Esses novos ventos adentram os debates científicos e políticos e uma ampla literatura sobre esses temas irrompe. Uma questão óbvia para tantos povos passou a ser considerada: “para nós, que, retrospectivamente, nunca fomos modernos, o estado de natureza já não é o que era”. Dessa forma, “a lei da competição teve de se curvar perante uma saudável dose de cooperação, cujas contribuições cruciais para a evolução são agora amplamente conhecidas, com a simbiose sendo aceita como a origem da vida multicelular”. Logo, “colocar a simpatia em igualdade de condições com a agressão como um fator na natureza não é mais algo impensável”. [12]
[12] Brian Massumi. O que os animais nos ensinam sobre política. N-1 edições, 2017, p. 9.
Se antes tínhamos um estado de natureza hobbesiano onipresente, agora imagens mais justas ganham eco. Olhávamos sobretudo para o chimpanzé como nossa herança biológica, apesar de Charles Darwin já ter colocado que “nossas características humanitárias [solidariedade e empatia] baseiam-se em instintos sociais que temos em comum com outros animais”. Essa poderosa compreensão do animal egoísta e avesso à cooperação – em suma, a lei da selva – se liga a uma determinada perspectiva política e econômica. Concomitante aos tempos de “Ronald Reagan e Margaret Thatcher pregando que a ganância era benéfica à sociedade, à economia”, a biologia entrou na onda em “O gene egoísta, de Richard Dawkins, [que] ensinava como a evolução ajuda quem se ajuda”, argumentando que “o egoísmo devia ser visto como uma força indutora de mudança, e não uma falha que nos arrasta ladeira abaixo. Podemos ser primatas perversos, mas isso é explicável e benéfico para o mundo”. [13] Daí leituras reiteradamente equivocadas sobre Darwin e a teoria da seleção natural, pois este não era darwinista social…
[13] Frans de Waal, 2005, p. 35-36.

A ciência contemporânea tem, assim, desmontado esse relato ideológico, falso. De Waal testemunha os conflitos violentos e de sangue entre os chimpanzés, mas também faz referência a outros como os bem mais pacíficos, solidários e sexuais bonobos, “descobertos” somente no século XX. E se tivéssemos, pergunta o primatólogo, conhecido antes o bonobo que ignora a guerra letal e o predomínio do macho? Isso se liga, também, às “últimas descobertas da neurociência. Especialistas examinaram imagens do cérebro de pessoas enquanto elas resolviam problemas morais propostos por eles” e perceberam “que tais dilemas ativam centros emocionais antigos, profundamente embutidos no cérebro. Em vez de ser um fenômeno superficial em nosso neocórtex expandido, a tomada de decisões morais parece ter por base milhões de anos de evolução social”. [14]
[14] Idem, p. 48.
O que nos dizem nossos parentes próximos, os grandes primatas? Que “a compaixão não é uma fraqueza recente que contraria a natureza, mas um poder formidável, um poder que, assim como as tendências competitivas que a compaixão procura superar, é parte de quem e do que somos”. Os humanos teriam tanto facetas de chimpanzés quanto de bonobos, aliás, acentuando ambas – nossas guerras excedem as dos primeiros em violência e morte e nossas relações de empatia seriam mais elaboradas e ricas que as dos segundos. Mais brutais e mais cooperativos: não faz sentido, assim, “a tentativa de considerar apenas um pólo em detrimento do outro. No entanto, é o que o Ocidente tem feito há séculos, retratando nosso lado competitivo como mais autêntico do que nosso lado social”. [15]
[15] Idem, p. 209; 265.
Isso se manifesta na organização política dos grandes primatas e um ponto lhe chama a atenção: “entre os chimpanzés, a hierarquia permeia tudo”. Em contraponto a estes, liderados por machos, nos bonobos, “uma longa história de vínculos entre fêmeas, expressos em muitas sessões de grooming e sexo, fez mais do que minar a supremacia dos machos: virou a mesa. O resultado é uma ordem fundamentalmente diferente”, pois “as fêmeas bonobos aperfeiçoaram a solidariedade feminina latente em todos os grandes primatas africanos”. De Waal relaciona essa diferença fundamental ao que os psicólogos definem como a “personalidade HE (hierarchy-enhancing, acentuadora da hierarquia) [que] apoia a lei e a ordem e defende medidas drásticas para manter todos sob controle” e a “personalidade HA (hierarchy-attenuating, atenuadora da hierarquia) [que], por sua vez, procura nivelar as posições de todos”. [16]
[16] Idem, p. 72; 83; 290.
Haveria, assim, um confronto antigo entre hierarquias e suas subversões. O que de Waal sustenta a respeito das políticas dos grandes primatas, a partir de um longo trabalho de investigação, Peter Wohlleben faz de modo similar tendo como base sua experiência de engenheiro florestal na Alemanha. As árvores são seres sociais e compartilham nutrientes com outras, suas eventuais concorrentes. Isso permite a existência de um ecossistema com temperatura e umidade reguladas, além de proteção contra o vento e tempestades. Apesar de cada espécie desejar sua própria sobrevivência e poder ser impiedosa, se produz uma certa igualdade: “não importa se têm o tronco grosso ou fino: todos os espécimes produzem a mesma quantidade de açúcar por folha. Esse nivelamento acontece nas raízes. No subterrâneo ocorre uma troca ativa, segundo a qual que tem muito cede e quem tem pouco recebe ajuda”, [17] via fungos e sua extensa rede que redistribui os nutrientes; esses atuam, assim, como “assistentes sociais” e “mecanismos de proteção” ao temperarem possíveis desigualdades perigosas para a coletividade.
[17] Peter Wohlleben. A vida secreta das árvores: o que elas sentem e como se comunicam. Sextante, 2017 [2015], p. 20.

Stefano Mancuso vai além ao elaborar uma democracia vegetal. Desprezadas, as plantas, nossas parentes antiquíssimas (o último ancestral comum seria encontrado nas águas há 600 milhões de anos), apresentam outras (e engenhosas) políticas. Para o neurobiólogo, “nossa única ideia de vida complexa e inteligente corresponde à vida animal”. Ao não encontrar “nas plantas as características típicas dos animais, nós as catalogamos como passivas (justamente, ‘vegetais’), negando-lhes quaisquer habilidades típicas de animais, do movimento à cognição”. Entretanto, as plantas são um sucesso – “não há ambiente neste planeta que não seja colonizado por plantas”, sendo que “pelo menos 80% do peso de tudo que está vivo na Terra é composto de vegetais”. [18]
[18] Stefano Mancuso. “Democracias verdes: as plantas podem ensinar aos seres humanos como agir de maneira cooperativa, descentralizada e não hierárquica”. Revista Piauí, n.154, julho de 2019.
Tomamos – plantas e animais – caminhos opostos. Aquelas não têm órgãos únicos ou duplos e “distribuem por todo o corpo as funções que os animais concentram em órgãos específicos”. Uma tecnologia cuja palavra-chave é a descentralização: “as plantas respiram com todo o corpo, veem com todo o corpo, sentem com todo o corpo, calculam com todo o corpo e assim por diante”. Isso as torna extremamente
resistentes à predação, pois suportam perder parte do corpo e seguir vivendo. Tampouco existe um cérebro como sistema central; sua “arquitetura [é] modular, cooperativa e distribuída, sem centros de comando, capaz de suportar perfeitamente predações catastróficas e repetidas”. Uma política distribuída na qual “as oligarquias são raras, as hierarquias, imaginárias e a chamada lei da floresta, um reles disparate”. Além disso, e ponto fundamental, essas organizações “sem centros de controle, são sempre as mais eficientes. Os recentes avanços da biologia no estudo dos comportamentos grupais indicam, sem sombra de dúvida, que as decisões tomadas por um grande número de indivíduos são quase sempre melhores que as adotadas por poucos”.
Conclui, Mancuso, colocando que a “ideia de que a democracia é uma instituição contrária à natureza, portanto, permanece apenas como uma das mais sedutoras mentiras inventadas pelo homem para justificar a sua antinatural sede de poder individual”. Também somos plantas, em seu potencial subversivo e criatividade democrática? Essa democracia das plantas pode se conectar a toda uma democracia dos corpos coletivos e suas organizações dissidentes, historicamente reprimidas pelos poderes (aldeias, quilombos, conselho de trabalhadores, círculos feministas, coletivos artísticos, embarcações piratas e muitas outras). Em diálogo com essa entrada em cena dos não humanos em certos debates, tenta-se pensar uma política do cultivo, percorrendo uma ciência selvagem, traçando uma presença vegetal em 1968 e um devir-indígena de certas lutas-vidas contemporâneas.

CIÊNCIA SELVAGEM
Pensar, investigar, buscar, experimentar nos termos trabalhados acima envolve ouvir e ler, dialogar e aprender de outras cientistas, habitualmente excluídas desse âmbito. Um caminho possível é retomar o acontecimento ainda em curso – para a ciência e a política –, provocado pela aparição de duas moléculas e suas implicações revolucionárias.
A primeira, a dietilamida do ácido lisérgico (LSD, na sigla em alemão), sintetizada por Albert Hofmann, em 1938, quando trabalhava para a farmacêutica suíça Sandoz. Não foi aproveitada naquele momento, mas ficou armazenada. Cinco anos depois, o químico volta a essa molécula psicoativa extraída do esporão-de-centeio (fungo usado por muito tempo por parteiras); num dia de abril de 1943, em plena segunda guerra mundial, Hoffman teve um “pressentimento particular”, simpatizou com a “estrutura da molécula do LSD” e resolveu repetir o experimento. Ao fazê-lo, deve ter absorvido algo da substância pela pele, pois passou a ser tomado por sensações inabituais. Foi pra casa, deitou e fez a primeira viagem de LSD. Dias depois repetiu o procedimento e, por conta da altíssima dosagem, viveu a primeira bad trip – “Hofmann voltou da viagem convencido, em primeiro lugar, de que o LSD o havia encontrado e não o contrário, e, em segundo lugar, de que o LSD um dia teria grande valor medicinal, em especial na psiquiatria”. [19]
[19] Michael Pollan. Como mudar sua mente: o que a nova ciência das substâncias psicodélicas pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios, depressão e transcendência. Intrínseca, 2018, p. 31-33.
O segundo composto químico, conhecido há milhares de anos por vários povos do México e da América Central na forma de um cogumelo marrom, sendo usado em ritos religiosos (chamado em Azteca de carne dos deuses), será posteriormente conhecido como psilocibina. Em 1955, Gordon Wasson, banqueiro e micologista amador norte-americano, o experimentou em Oaxaca, no sul do México, publicando dois anos mais tarde um longo relato na revista Life. Pela primeira vez, a notícia de sua existência e efeitos chegava a um grande público (a descoberta anterior de Hofmann ainda estava restrita a pequenos setores da comunidade científica).
Na mesma década, cientistas ligam a composição química de alucinógenos à serotonina, que cumpre o papel de mensageiro entre células do cérebro, sendo também um dos principais hormônios. Desse modo, “o advento do LSD pode ser ligado à revolução na neurociência”, com a descoberta tanto de “receptores cerebrais” quanto “da substância química endógena (a serotonina) que os ativa com uma chave-mestra”. [20] Duas décadas depois, será descoberto que a dimetiltriptamina (DMT) é segregada naturalmente pelo cérebro, sendo produzida pela glândula pineal e cumprindo um papel de ansiolítico. O DMT está também presente no leite materno, no sangue e outras partes do corpo e é ativado em alguns momentos particularmente importantes da vida humana: ao nascer de parto “normal”, ao morrer e, mais quotidianamente, ao sonhar.
[20] Michael Pollan, 2018, p. 12; 32.
Certas plantas (ou fungos) e a serotonina são como chaves que logram abrir uma mesma fechadura no interior do cérebro humano. O corpo está preparado para isso – são substâncias que ele próprio produz – psilocibina e serotonina (neurotransmissor natural) são muito parecidos – regulam o humor, produzem sensação de bem-estar. Essas descobertas na neurologia levaram até a uma especulação e reinterpretação da evolução a saber que o “consumo de cogumelos contendo triptaminas por hominídeos ancestrais foi uma das forças evolutivas que forjaram o desenvolvimento do neocórtex”. [21] Chamada igualmente de “teoria do macaco chapado”, teria um papel potencialmente decisivo na evolução e no desenvolvimento da linguagem e imaginação.
[21] Pedro Luz. Carta psiconáutica. Rio de Janeiro, Dantes, 2015.
Em meados dos anos 1980, um jovem cientista canadense vai fazer um trabalho de campo com os Ashaninka na Amazônia peruana. Jeremy Narby quer estudar a questão do território e fazer uma análise econômica, cultural e política, pretendendo indicar o uso racional, pelos Ashaninka, da floresta. Pensando em sua pesquisa como constituindo um apoio às lutas pelo reconhecimento de suas terras, ele acaba, no entanto, confrontado pela presença constante (e que ia contundentemente contra seu argumento) dos alucinógenos. Ao ouvir pela primeira vez que o conhecimento das propriedades medicinais das plantas se faz ao consumir um bebida psicoativa, pensa se tratar de uma brincadeira. No entanto, os Ashaninka insistem que seu aprendizado vem da ayahuasca, que constitui a principal fonte de saber. Narby acaba sendo, assim, crescentemente interpelado por uma ciência selvagem e esta passa a ser o tema de sua investigação antropológica.
Os conhecimentos dos povos indígenas acerca das plantas espantam os etnobotânicos. A composição química da ayahuasca indica a combinação de duas plantas: uma contém DMT, que é habitualmente inibido por uma enzima do aparelho digestivo se consumida por via oral, e outra, possui substâncias que impedem esse ataque da enzima. Daí o efeito alucinógeno poder durar algumas horas em vez de poucos minutos. Como os Ashaninka sabem disso se não possuem conhecimentos químicos para encontrar uma solução de ativação de um alcaloide, pergunta Narby. Por tentativa e erro? Mas existem oitenta mil espécies de plantas. Como juntar duas que se combinam de forma tão eficaz (permitindo o bloqueio de uma enzima específica)? Ele também narra o exemplo do curare – um paralisante muscular que mata sem envenenar a carne. Essa anestesia é obtida depois de sofisticado trabalho químico, que modifica sua estrutura molecular. Os Ashaninka conhecem 40 tipos de curare, compostos por 70 espécies vegetais diferentes. Para seu preparo, é necessário combinar várias espécies e cozinhá-las por três dias e não respirar seus vapores. Tem-se como resultado uma pasta, que se ativa somente por via subcutânea (caso toque a pele ou seja engolido, não faz efeito). Como caçadores da floresta desenvolveram essa solução intravenosa? Ao serem questionados, invariavelmente as origens são míticas – o criador do universo inventou e ofereceu a eles essa substância.
É esse ponto-cego que Narby vai buscar desatar, trabalhando a dificuldade para a Antropologia de aceitar uma origem do saber não racional, não científica nos seus moldes clássicos. É possível levar a sério que certas plantas são seres inteligentes, capazes de se comunicar e de ensinar? Para os Ashaninka, seres invisíveis, osmaninkari, se encontram nos animais, plantas, montanhas, rios e certos cristais. Esses seres, que podem ser vistos após ingestão de tabaco ou ayahuasca, também constituem fontes de conhecimento. Narby confessa que, para ele, inicialmente, se tratava somente de uma mitologia inútil mesmo se, ao mesmo tempo, o impressionava o saber empírico Ashaninka.
Esse dilema se relaciona com certa hipocrisia tanto de muitas empresas quanto de parte da ciência, já que “74% dos remédios ou das drogas de origem vegetal utilizados na farmacopeia moderna foram descobertos por sociedades ‘tradicionais’”. [22] Pode-se contar uma longa (e sinistra) história da expropriação de conhecimentos e riquezas amazônicos, mantidos ao longo de séculos pelos povos indígenas (e seus cientistas). Na cadeia dos produtos advindos dessa ciência selvagem, tudo é remunerado, salvo o desenvolvimento original. Narby cita o exemplo do extrato de um arbusto que serviu para um remédio para tratar de glaucoma. Um saque profundamente injusto de saberes e existências, mais perverso ainda pelo desprezo de suas origens, que seriam “irracionais” e “extravagantes”.
[22] Jeremy Narby. A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber. Rio de Janeiro, Dantes, 2018 [1995], p. 45.
Daí se produz um belo momento de ruptura para o antropólogo ao perceber que, para investigar esse contra-senso, seria preciso inverter um adágio: não mais ver para crer, mas crer para ver– “foi provavelmente uma das coisas mais importantes que aprendi ao longo do meu trabalho: vemos aquilo em que acreditamos, mas não o seu contrário. Para mudar o que vemos, às vezes é preciso alterar nossas crenças”. [23] Admitir a possibilidade de outros mundos e corpos para compreender o que os Ashaninka insistiam em compartilhar; para estes, não havia nem mistério e tampouco contradição entre a realidade prática e o mundo invisível dos ayahuasqueros. O estado alucinatório de consciência é “normal” e dissolve o (suposto) impasse. Tais pesquisadores acessam informações empiricamente verificáveis sobre as plantas e seus usos e possíveis funções, que são adquiridas em uma longa formação científica (xamânica), semelhante à universitária, com largos períodos de estudos (sonhos controlados, jejuns prolongados, isolamento na floresta, ingestão de plantas), especialistas e escolas de pensamento, transmitidas desde tempos imemoriais.
[23] Idem, p. 143-144.

Ao seguir esse caminho, Narby vai perceber surpreendentes confluências entre laboratórios da floresta e dos centros urbanos, entre perspectivas Ashaninka e a ponta da biologia molecular. Se os xamãs insistem a respeito da existência de essências animadas comuns a todas as formas de vida, “isso foi posteriormente corroborado pelo DNA. A molécula da vida é a mesma para todas as espécies e a informação genética necessária à elaboração de uma rosa, bactéria ou ser humano está codificada numa linguagem universal de quatro letras A, G, C e T”, esses “quatro compostos químicos formando a dupla hélice do DNA”. [24] O que em várias cosmologias ameríndias é visto como a serpente emplumada, o gêmeo magnífico ou a corda entrelaçada (temas xamânicos por excelência) se conecta à dupla hélice do DNA. Quando Narby mostra pinturas de visões de ayahuasqueros(para estes, escadarias em zigue-zague, cipós entrelaçados, serpentes retorcidas) a um pesquisador de biologia molecular, este enxerga colágeno, DNA, cromossomo…
[24] Idem, p. 68.
Relacionando-se com o que vimos acima, de uma ciência moderna atrelada à certa perspectiva de masculinidade, Narby cita Joseph Campbell que propõe ter havido “duas quebras na trajetória mitológica da serpente cósmica”. A primeira durante o “patriarcado dos hebreus, no jardim do Éden: a serpente antes venerada vira vilã e árvore”; e a segunda na “Mitologia grega com Zeus” que submete a serpente Tífon, filha de Gaia e que encarna as forças da natureza, derrotada com ajuda de Atenas, a razão. Desse modo, uma opção por Deuses patriarcais e masculinos rompeu com o princípio vital. Porém, a “parte da humanidade que se separou da serpente cósmica a reencontrou depois de três mil anos pela ciência, em laboratório”. [25]
[25] Jeremy Narby, p. 72-73.
Michael Pollan lembra de uma frase de William Blake que “concilia bem o caminho do cientista com o do místico: ‘o verdadeiro método do conhecimento é a experiência’”. [26] Xamã e cientista. Essa ciência menor dialoga com um antigo protocolo de pesquisa – o princípio de auto-cobaia. Paul B. Preciado conta que “até o final do século XVIII, (…) o pesquisador devia, por preceito ético, correr o risco de sofrer efeitos desconhecidos no próprio corpo antes de ordenar qualquer teste sobre o corpo de outro ser humano”. Isso vai mudar quando, “apoiando-se na retórica da objetividade, o sujeito do saber científico buscará progressivamente gerar conhecimento exterior a si, livrando o próprio corpo das agonias da autoexperimentação”. [27] O inventor da homeopatia, Samuel Hahnemann, tomou doses altas de quinino em seu percurso inventivo. Sigmund Freud e Walter Benjamin, por sua vez, ingeriam cocaína e haxixe no contexto de suas pesquisas (embora isso tenha sido um tanto apagado de suas trajetórias).
[26] Michael Pollan, 2018, p. 92.
[27] Paul B. Preciado. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. N-1 edições, 2018 [2008], p. 368.
Preciado se engajou nesse caminho de pesquisa consumindo testosterona e insiste que um pensamento “que não utiliza seu corpo como plataforma ativa de transformação tecnovital está pisando em falso. Ideias não bastam”. Nesse sentido, “toda filosofia é forçosamente uma forma de autovivissecção – quando não de dissecação do outro. É uma prática de corte de si, de autocorte, de incisão na própria subjetividade”. No momento em que “os entusiastas da vivisecção escapam dos próprios corpos e cabeças para os corpos dos outros, o corpo da coletividade, o corpo da Terra, o corpo do Universo, a filosofia torna-se política”. Essa, então, “pode tomar a forma de uma gestão tanatológica da espécie (como no caso da proliferação das tecnologias da guerra) ou de uma terapia universal utópica autoimune (religiosa, democrática ou científica)”. [28]
[28] Idem, p. 377.
Uma compreensão supostamente predominante e sempre reiterada nos diz que universal é querer um Estado e ser governado, ser individualista e obcecado pela competição. Como disse, há quase quarenta anos, Carolyn Merchant, criticando a transição do organismo para a máquina como a metáfora dominante que relaciona cosmos, sociedade e pessoas, “o mundo precisa novamente ser virado de ponta-cabeça”. [29] O uso de psicoativos é tão antigo quanto a história humana (e de vários de seus parentes: primatas e outros mamíferos, até insetos). Não há registro de povo que não usasse substâncias para alterar a consciência, com exceção dos Inuit (nenhuma substância cresce no Ártico, depois conheceram alguma e passaram a consumir). Esse desejo é então sim universal, embora os usos variem no tempo e no espaço e todos os povos escolham pelo menos uma substância e repilam outras.
[29] Carolyn Merchant, 1980, p. 295.
Fazer uma “história natural da religião iria mostrar que a experiência humana do divino tem raízes profundas em fungos e plantas psicoativas (Karl Marx teria acertado em outro sentido ao chamar a religião de ópio do povo)”. Por sua vez, uma “história natural da literatura e da filosofia” indicaria também a influência do ópio, cannabis e outras mais, desde os filósofos gregos aos românticos europeus, passando por várias vanguardas artísticas. [30] Curar-se, descobrir-se, transformar-se – enriquecer a imaginação coletiva. Foi disso que tratou a explosão mundial de 1968, que colocou a urgência de “transformar esse conhecimento minoritário [feminismo, libertação negra, teoria queer e transgênero] em experimentação coletiva, em prática coletiva, em prática física, em modos de vida e formas de convivência”. [31]
[30] Michael Pollan. The botany of desire: a plant's-eye view of the world. New York, Random House, 2002, p. 144-145.
[31] Paul B. Preciado, 2018 [2008], p. 367.
Um vírus da desobediência contagiou todo o planeta: Paris, Senegal, Japão, Vietnã, Cidade do México, Praga, Estados Unidos, Palestina, Itália, dentre outros pedaços. Uma explosão de vida. A palavra-chave: experimentação. Novos desejos, aspirações e conexões brotam e desabrocham em todos os cantos do mundo. Um novo espírito do tempo, tempo do mundo. O que parecia sólido se desmanchou no ar, o que parecia estável vazou (ainda que somente por alguns dias, semanas, meses – mas os efeitos ainda nos atingem).
Colonialismo, patriarcado, supremacia branca, capitalismo e socialismo autoritário bambearam. Ou pereceram ou se reorganizaram – e continuam sendo questionados por inúmeras ações. Apesar da diversidade de situações e países, um elemento comum: o anticonformismo – seja encarando uma ditadura militar, poderes coloniais, sociedades capitalista ou socialista. Tratou-se de uma irrupção em defesa do direito de discordar, da multiplicação de vozes, da polifonia.
1968 é também, e sobretudo, uma insubordinação anticolonial nos países da periferia (Argélia, Vietnã, Angola, Cuba…) e nos do centro (panteras negras e muitas outras nos EUA e outras partes). O Vietnã (e sua heroica resistência de camponeses pobres contra o maior Império) constituiu um poderoso catalisador das imaginações subversivas. Abrir as portas dos asilos, das prisões e das escolas foi outro lema-pixo forte. Ninguém mais quis cumprir seu papel social habitual, embarcando num êxodo de libertação e busca de novas vias: operários (ocupando fábricas e locais de trabalho), estudantes (tomando universidades), artistas e criadores (dando outros significados para seus espaços e práticas), camponeses (se levantando), negros (se sublevando), mulheres, gays, lésbicas e trans (afirmando novos corpos). Fuga do trabalho e busca da vida. Isso tudo já vinha ocorrendo, mas em 68 se acelerou e se reforçou, encontrou e produziu novos caminhos, pessoas, coletividades. Todas as autoridades foram questionadas e hierarquias postas em xeque: patrões, professores, pais, chefes, tiranos, colonizadores, padres, pastores, rabinos, imãs, representantes culturais e midiáticos… Uma viralidade do dissenso, um deslocamento das dominações e opressões e uma afirmação das singularidades. Desejos de autonomia, de novas vidas: o levante de uma nova geração político-existencial. Político e existencial: quem separou um dia essas esferas? Política e vida. Política e jogo, política e humor, política e festa, política e prazer, política e psicoativos. [32]
[32] Esses dois parágrafos retomam trechos do artigo 1968, revoltas no Brasil e no mundo: a barricada fecha a rua, mas abre caminhos, publicado no Blog do Dragão (3 de maio de 2018).
Ocorre uma dissolução de relações arraigadas – mudanças antes impensáveis passam à esfera do possível. Tudo pode se transformar. E já. Poderiam certas substâncias “inverter hierarquias na mente, promover pensamento não-convencional e potencial para remodelar as atitudes dos usuários em relação a autoridades de todos os tipos; isto é, os compostos ter um efeito político?” [33] Alguns apostam que o LSD cumpriu essa função nos subversivos anos 1960. É nesse contexto que Timothy Leary vai defender a entrada, no rol dos direitos humanos, do direito de expansão da mente. O professor de psicologia de Harvard fazia um trabalho nos presídios administrando LSD aos encarcerados, com resultados iniciais promissores (mas que será criminalizado a partir de 1966). Como o cérebro é uma rede bio-químico-elétrica, haveria a possibilidade de receber e criar uma série de realidades adaptativas e o LSD poderia auxiliar num tipo de reprogramação das mentes. De acordo com Leary, “a real revolução dos anos 1960 foi neurológica – informação, comunicação, cibernética”, [34] com questionamento das instituições e princípios morais.
[33] Michael Pollan, 2018, p. 324.
[34] Timothy Leary. Neuropolitique. New Falcon Publications, 1977.
Essa ruptura tem uma faceta político-existencial, de mudar a si mesmo e sua percepção de mundo: as viagens psicodélicas geram uma dissolução do ego, relacionando-se, por exemplo, com concepções budistas de “que há muito mais na consciência além do ego, e que podemos enxergar isso se ao menos conseguirmos calá-lo”. Isso traz variadas consequências políticas. Pode, por um lado, ter se refletido na emergência do movimento ambientalista por meio de reelaboração por parte de uma geração do que seria a natureza, já que a dissolução do ego refuta a tese de que estamos separados do ambiente. Ganha força, nesse contexto, a perspectiva de que a Terra constitui um organismo vivo (também às vezes chamada de hipótese de Gaia); uma concepção óbvia para muitos povos, mas então com pouca ressonância em determinadas sociedades. Acompanha essa dissolução, por outro lado, “invariavelmente uma noção mais ampla, sincera e altruísta daquilo que importa na vida” e se liga ao que vimos acima acerca dos grandes primatas e certa ideologia. Pollan compartilha, assim, uma mudança vivida a partir das suas pesquisas: se antes, ele pensava que o espiritual se opunha ao material, pensando-os numa chave metafísica, agora ele situa o antônimo de espiritual no egoísmo. [35]
[35] Michael Pollan, 2018, p. 399.
Isso dialoga com uma talvez surpreendente percepção da espiritualidade por Michel Foucault, que argumenta se tratar de uma “prática pela qual o homem é deslocado, transformado, transtornado, até a renúncia da sua própria individualidade, da sua própria posição de sujeito”. Este não seria mais um “sujeito em relação a um poder político, mas sujeito de um saber, sujeito de uma experiência, sujeito também de uma crença”. Para o filósofo, pensando isso a partir da revolução iraniana do fim da década seguinte, isso se vincula a um “tornar-se outro do que se é, outro do que si mesmo”, compreendendo as mudanças e levantes, em geral, “a partir de um movimento que foi um movimento de espiritualidade”. [36] Judith Butler, ao pensar a vulnerabilidade no contexto atual, aproxima-se dessa abordagem, na medida em que esta “pode ser uma função da abertura, ou seja, de estar aberto a um mundo que não é completamente conhecido ou previsível”. Tal postura envolve, influenciada por Espinosa e sua leitura por Deleuze, “se abrir para o corpo de outra pessoa, ou de um conjunto de outras pessoas, e por essa razão os corpos não são o tipo de entidades fechadas em si mesmas”. [37]
[36] Michel Foucault. O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. N-1 edições, 2019, p. 21.
[37] Judith Butler. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para um teoria performativa de assembleia. Civilização Brasileira, 2018 [2015], p. 163.
Não se está falando, evidentemente, de um novo individualismo (embora haja tentativas da perspectiva dominante de se reapropriar disso, por exemplo na atual onda – empresarial – de mindfulness [38] ), mas de outras relações. “Não é um sinal de boa saúde estar adaptado a uma sociedade doente”, nos diz Krishnamurti – essa revolução psicodélica inverte outra compreensão habitual de curar os “doentes e desajustados”. Trata-se, na contramão, de empregar essas drogas para “tratar a sociedade em si como se ela estivesse doente e transformar os pretensamente saudáveis em indivíduos rebeldes”. Isso é de uma atualidade ainda mais contundente atualmente, se pensarmos que estamos vivendo uma epidemia de doenças mentais; a depressão atinge quase um em cada dez estadunidenses e é a principal causa de afastamento do trabalho. Além disso, o número de suicídios alcança o número de 40 mil por ano nos EUA. [39] A sociedade pode ser compreendida como enferma, numa crítica ao capitalismo que se aproxima da antropologia reversa de Davi Kopenawa – somos o povo da mercadoria, enfeitiçados por elas. [40]
[38] Mindfulness, ou a prática da “atenção plena” da mente ao momento presente, por meio do uso da meditação e de outras técnicas.
[39] Michael Pollan, 2018, p. 224; 344.
[40] Esse ponto está mais trabalhado no livro Marx selvagem(Editora Autonomia Literária, 2019, 4a edição) e no cordel marx indígena, preto, feminista, indígena, operário, camponês, cigano, palestino, trans. selvagem (n-1, 2019).
Conectado ao que vimos acima, o médico Robin Carhart-Harris coloca que “um cérebro feliz é um cérebro elástico e flexível (…); depressão, ansiedade, obsessão e as vontades do vício são o resultado de um cérebro que se tornou excessivamente rígido ou que tem caminhos e ligações muito arraigados – um cérebro com um grau maior de ordem do que seria saudável”. Têm desabrochado hoje, numa segunda onda (após a dos anos 1960), tratamentos com compostos psicodélicos – com sucesso, no Brasil e no mundo. Isso tem a ver com sua “capacidade de temporariamente aumentar a entropia num cérebro inflexível, tirando o sistema de seus padrões usuais”. Numa “metáfora do recozimento na metalurgia: os psicodélicos introduzem energia no sistema, dando a flexibilidade necessária para que ele possa ser moldado e, assim, se modifique”, [41] permitindo o florescimento de novas possibilidades de pensar e agir.
[41] Michael Pollan, 2018, p. 398.
A revolução global de 1968 se relaciona com uma experiência de setores (sobretudo da juventude) com plantas e substâncias antes desconhecidas nas sociedades não indígenas, sendo um marco de uma política do cultivo. [42] Em suma, “O LSD era de fato um ácido, dissolvendo quase tudo aquilo com que entrou em contato, começando com as hierarquias da mente (superego, ego e inconsciente) e seguindo para as várias estruturas de autoridade da sociedade e para limites de todo tipo inimaginável: entre pacientes e terapeutas, pesquisa e lazer, doença e saúde, eu e outro, sujeito e objeto, espiritual e material”. [43] Os psicodélicos como parte de um amplo movimento de contestação (contracultura, levante negro, rebelião feminista, revoltas operárias, manifestações dos pacifistas), que, em seu conjunto e confluências, estavam minando o consenso estadunidense do ponto de vista dos negócios, do controle político, mas também dos valores. Essas substâncias liberaram elementos dionisíacos e ingovernáveis que questionaram as tradições apolíneas das sociedades com suas hierarquias, dualidades, conservadorismos.
[42] É interessante notar que boa parte dos problemas relacionados ao mau uso dessas substâncias poderia ter sido evitado caso consultados os especialistas indígenas cujas “sociedades tinham uma longa e produtiva experiência com os compostos psicodélicos”, aprendendo com eles, já que “remédios poderosos são perigosos – tanto para o indivíduo quanto para a sociedade – quando não têm um recipiente social robusto: um conjunto definido de rituais e regras – protocolos – governando seu uso, e o envolvimento crucial de um guia, a figura que se costuma chamar de xamã” (Michael Pollan, 2018, p. 225). Leary mesmo alertou contra a heroína e pregava um uso responsável de LSD e maconha, pensando em possíveis licenças para uso – a repressão impediu sua elaboração e concretização.
[43] Michael Pollan, 2018, p. 224.
Foi, assim, percebida como ameaça aos bons costumes (puritanos, fortes desde o início da colonização estadunidense) – de dominação e opressão. Essa disrupção é, então, seguida por violentas reações, com repressão por todos os lados. No fim da década, os alucinógenos são declarados ilegais (até então as pesquisas eram absolutamente legais nos EUA, contando inclusive com suporte público). Richard Nixon lidera a contrarrevolução para reimpor a velha autoridade pelos meios do poder de polícia: chama, em 1971, Timothy Leary de “o homem mais perigoso dos Estados Unidos” e vai “debelar a contracultura atacando sua infraestrutura neuroquímica”, [44] avaliando que essa criou (ou incentivou) a rebelião. Como coloca Daniel Vidart, uma droga “é uma substância que o Estado define como tal”, [45] recordando que na Roma antiga o vinho era proibido para homens de menos de 30 anos e para todas as mulheres, que o czar determinou ser um crime tomar café na Rússia e os jesuítas na Região das Missões, que a erva mate era coisa do diabo.
[44] Michael Pollan, 2018, p. 68.
[45] Daniel Vidart. Marihuana, la flor del cáñamo: un alegato contra el poder. Ediciones B, 2014, p. 18.


INFRAESTRUTURAS DA VIDA E DEVIR-INDÍGENA DAS LUTAS
Os poderes constituídos viram um excesso de democracia (onde ela existia minimamente) e de demandas sociais e existenciais que comprometiam os arranjos do pós-Segunda Guerra Mundial. A economia, também se reorganizou, buscando capturar a inventividade expressada (a Apple sendo um dos inúmeros exemplos). A partir desses dois movimentos articulados, as desigualdades entraram numa perigosa espiral de aumento generalizado, tendo o Chile como o primeiro laboratório desse novo modelo (neoliberalismo). Hoje vivemos num planeta de desigualdades gritantes e aberrantes sob qualquer ponto de vista ético (a renda de 8 pessoas sendo equivalente à metade da população do planeta mais pobre – segundo a Oxfam) e é nesse contexto (e da maior crise financeira desde os anos 1930), que estoura um novo ciclo de lutas.
Judith Butler reflete sobre nosso momento político-econômico sob o signo da precariedade. Esta é compreendida como a “situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte”. Desse modo – e relacionando-se com o que vimos antes – ocorre “uma guerra contra a ideia de interdependência, contra (…) uma rede social de mãos que busca minimizar a impossibilidade de viver uma vida vivível”. [46] As lutas presentes, essa década de insurreições democráticas, buscam o revés dessa precariedade, ou seja, a constituição dessa interpendência – das infraestruturas da vida contra essas políticas da morte.
[46] Judith Butler, 2018, p. 40; 76.
Tais movimentos frutificam, concretamente, numa forma-ocupação territorial dessas insurgências contemporâneas nas praças: ocupar, dormir e garantir a vida em seus mais variados aspectos. No coração das cidades, levantar barracas, organizar assembleias para deliberação coletiva, biblioteca, segurança e proteção, centro de mídia, cozinha e alimentação, tenda médica e limpeza. A ocupação como prática do viver juntos em outra chave, ocorrendo uma aproximação com o cotidiano, economia doméstica, cuidado e a chamada esfera da reprodução. Esses corpos presentes, coletivamente, expressam eloquentes declarações políticas e é nesse sentido que Butler pensa a performatividade – “agir a partir da precariedade e contra ela”, [47] buscando uma reformação das redes de interdependência dos organismos vivos.
[47] Idem, 2018, p. 65.
Criação de espaços libertos; omnia sunt communia, [48] cujo lema nos remete ao período de transição trabalhado no início. Além dos protestos de rua e de ocupações mais “fugazes”, existem e são fundamentais as mais “perenes”. Pode-se apreender essas mobilizações como criadoras de elos coletivos, como a ZAD (zona a defender) de Notre-Dame-des-Landes (NDDL), que derrotou o projeto de aeroporto no Oeste francês e agora busca as formas de viver junto nesse novo contexto, e o No Tav no Vale de Susa no norte italiano, combatendo um projeto de linha de trem de alta velocidade que vai rasgar o vale onde já existem estradas e linha de trem. Um cultivo de comunidades onde dormir, acolher quem chega, se reunir, cozinhar e comer, plantar e se cuidar em espaços construídos coletivamente. Existe uma outra cartografia mundial que percorre o bairro anarquista de Exarcheia em Atenas (ameaçado de aniquilação pelo novo governo grego), centro sociais italianos e na península ibérica, nas comunidades curdas e zapatistas e numa miríade de retomadas por toda parte, inclusive no Brasil (territórios indígenas, ocupações rurais e urbanas, terreiros e quilombos, escolas livres, articulações mil, teatros e espaços culturais).
[48] “Tudo é comum” ou “Tudo é de todos”.
Infraestruturas coletivas fortes, nas quais a noção e prática de habitar territórios é chave. A floresta emerge como inspiração, essa sendo compreendida como “um povo que se insurge, uma defesa que se organiza, imaginários que se intensificam”. [49] Luta como criação, construção de lugares permeados de cumplicidades e composições. A expropriação dos comuns, citada antes, não é somente material, mas ética, da vida, das suas condições, dos vínculos existenciais costurados, das vidas em comum, o território é constituído pela “tecitura mesmo dos elos”. [50] Pensando nessa questão dos cercamentos (enclosures), condição do surgimento do capitalismo, a destruição que estas causam não se situa unicamente no meio de vida e subsistência dos muitos povos, mas principalmente numa “inteligência coletiva concreta, ligada a esse comum do qual todos dependiam”, [51] numa riqueza comum de criações coletivas.
[49] Jean-Baptiste Vidalou. Être forêts: habiter des territoires en lutte. La Découverte, 2017, p. 13.
[50] Asaradura. Notes de voyage contre le TAV: été 2011-printemps 2015. s/e, 2015, p. 10.
[51] Isabelle Stengers. Au temps des catastrophes: résister à la barbarie qui vient. La Découverte, 2009, p. 108.
Essas lutas contemporâneas não são somente políticas, mas também cósmicas, cosmopolíticas. São lutas-floresta, que manifestam um devir-indígena de práticas coletivas contra o Estado, uma política das plantas e do cultivo, política dos ritos e cuidados. Em sua primeira grande manifestação em março de 1996, os No Tav se auto-intitulam os “indígenas do vale”, pois tal “projeto representa a extinção do seu modo de vida”. Curiosamente, os habitantes da NDDL vão se chamar de povo da lama (por conta da vegetação da região, o bocage), [52] remetendo à declaração zapatista ao fim de histórica marcha vinda do sudeste mexicano até o Zócalo na capital: somos a cor da terra. [53] Não por acaso, um consultor estadunidense em estratégia militar vai dizer em dezembro de 2006 que “historicamente, os polos mais tenazes de resistência à civilização (e não falo somente da civilização ocidental) e das cruzadas religiosas (jihad no Oriente) se constituíram num quadro que sempre evocou a tradição e a magia, falo da floresta”. Nesse contexto, continua o especialista, “temo fortemente que, de Karachi a Marselha, as zonas urbanas onde se concentram populações humilhadas e com raiva, onde se juntam estrangeiros e indesejáveis, tenham se tornado as novas florestas do mundo”. [54]
[52] collectif mauvaise troupe. Contrées: histoires croisées de la zad de Notre-Dame-des-Landes et de la lutte No Tav dans le Val Susa. l’éclat, 2016, p. 57; 109.
[53] “Palabras del EZLN el día 11 de marzo de 2001 em el Zócalo de la Ciudad de México”. Disponível em:http://submarcos.org/zocalo.html
[54] Jean-Baptiste Vidalou, 2017, p. 135.
Voltemos aos lobos. Baptiste Morizot reflete, no contexto de volta dos lobos selvagens à França (onde tinham sido extintos) e seus debates, sobre “o que pensamos ser nossas florestas e nossas montanhas são habitadas por grandes predadores que colocam em questão nosso sentimento e certeza de sermos proprietários desses espaços”. O que nos dizem os lobos nesse âmbito? “Que devemos reaprender quem somos e nossas relações constitutivas em relação ao vivo em nós e fora da gente”. O lobo é, assim, um “whistleblower[denunciante] a respeito das estruturas ecológicas e ontológicas mais arquitetônicas dos Modernos” [55] e nos indicam uma mudança de tempos.
[55] Baptiste Morizot. Les diplomates: cohabiter avec les loups sur une autre carte du vivant. Wildproject, 2016, p. 303-304.
Uma política do cultivo envolve, também, alianças e contaminações para sobreviver e re-existir. Pergunta Anna Tsing “como uma reunião se transforma num acontecimento, isto é, maior que a soma das partes? Uma resposta é a contaminação. Somos contaminados por encontros; eles mudam quem somos e como dar lugar para outros”. Disso, novas mesclas, direções e mutualidades podem emergir; “a pureza não é uma opção”. [56] Isso dialoga diretamente com Primo Levi, que pensava a química como “inerentemente antifascista”, por sua “valorização da impureza das combinações de elementos, em aberto contraste com a obsessão fascista de pureza. É bem provável que esse antifascismo o tenha conduzido a uma concepção da química como reserva de resistência”. [57]
[56] Anna Lowenhaupt Tsing, 2015, p. 27.
[57] Renato Lessa. “Primo Levi transformou em arte relato sobre horror de Auschwitz”. Folha de S. Paulo, 27 de julho de 2019.
Continua Tsing, afirmando o caráter decisivo da precariedade, pois nos remete ao ensinamento básico de que a sobrevivência depende de se adaptar criativamente às novas circunstâncias e questionando o que significa essa sobrevivência. Num novo elo com o discutido na primeira parte, esse conceito tem um sentido recorrente, nas fantasias estadunidenses dos programas de TV ou das histórias de alienígenas (mas também nas perspectivas de pesquisadores que se baseiam em interesses individuais como na economia neoclássica ou na genética) de se salvar lutando contra outros. A antropóloga, porém, a partir de sua investigação sobre um mundo em ruínas a partir de um cogumelo (matsutake), propõe que “permanecer vivo – para todas as espécies – requer colaborações vivíveis. Colaborações significam trabalhar através da diferença, que leva à contaminação. Sem colaborações, todos morremos”. [58] Daí a urgente necessidade de aprender com mestres do cultivo. Na contramão da empobrecedora (e antes celebrada) dita “revolução verde”, se situam os povos indígenas no Brasil, cuja ação foi e é decisiva para o “o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta”, mantendo “por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e [observando] as novidades”. Como no caso do curare para os Ashaninka, existem na Amazônia uma centena de variedades de mandioca e dezenas de batatas-doces, favas e pimentas cultivadas pelos Kaiapó, Wajãpi, Baniwa e outros povos que “mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie”, são, “de fato, colecionadores”. [59]
[58] Anna Lowenhaupt Tsing, 2015, p. 27-28.
[59] Manuela Carneiro da Cunha. “Povos da megadiversidade: o que mudou na política indigenista no último meio século”. Revista Piauí, n.148, janeiro de 2019.

Somos compelidos a criar alianças cultura-natureza. A sobrevivência comum em vários sentidos. Contaminação e composição. Quando tantos insistem em pensar-fazer as lutas de classe apartadas das interseccionalidades, temos o exemplo da Aliança dos Povos da Floresta nos anos 1980, que reuniu seringueiros e sindicalistas revolucionários com lideranças indígenas. As práticas das lutas espantam perspectivas restritivas e insistências em se desconectar de uma riqueza de existências coletivas, de mundos vivos: “quando os seringueiros suprimiram os patrões encontraram os índios”. [60] Uma política de associação – “o termo queer não designa identidade, mas aliança”. [61] Uma bruxaria universal, encontrada em todos os povos (até mesmo nos que tentaram de todos os modos apagá-las em suas infindáveis caças).
[60] Ailton Krenak. Encontros. Organização de Sergio Cohn. Azougue, 2015.
[61] Judith Butler, 2018, p. 79.
Em sua potente narrativa cosmopolítica, Davi Kopenawa mescla “mitos e relatos de sonhos, visões e profecias xamânicas, discursos e exortações, autoetnografia e antropologia comparativa”. Uma crítica da insanidade capitalista desde a mata: “no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hique é o alimento dosxapiri. Eles levam então nossa imagem no tempo do sonho. É por isso que somos capazes de ouvir seus cantos e de contemplar suas danças durante nosso sono”. Como vimos antes, esse é parte do processo de formação xâmanica, a “escola para realmente conhecer as coisas. Omama não nos deu livro onde estão traçadas as palavras de Teosi como o dos brancos. Ele fixa suas falas no interior de nosso corpo”. Isso envolve uma outra concepção de política – cósmica, pois a floresta é viva e habitada por espíritos, contendo uma trama de coordenadas sociais e intercâmbios cosmológicos que garantem sua existência. Nesse contexto, Davi zomba de nós ao dizer que “os brancos, eles, não sonham tão longe quanto a gente. Eles dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e cochilam como antas ou tartarugas. É por isso que não logram compreender nossas palavras”. [62]
[62] Davi Kopenawa e Bruce Albert. La chute du ciel: paroles d'un chaman yanomami. Plon, 2010, p. 25; 52; 412. Tradução livre.
Num universo capitalista no qual falta tempo para dormir e sonhar, onde o sono se torna até parte de uma indústria da saúde, [63] o sonho como cura, oráculo e premonição, trabalho sobre si e visões oníricas – experimentar como caminho de sobrevivência e invenção de conexões. Imaginação política, sonhos de liberdade e libertação, do clássico discurso de Martin Luther King de 1963 aos sonhos proféticos de dignidade comum para a rede de seres vivos. Sonho-luta. Como vimos, “alguns dos frutos mais brilhantes da cultura humana têm de fato raízes na terra negra, com plantas e fungos”. [64] Escrevendo no ano da Comuna de Paris, paradigma da revolução proletária, Nietzsche clama, em O nascimento da tragédia, por uma outra vertente de reviravolta e subversão, da energia inventiva (natureza-cultura) da embriaguez, na “alegre necessidade da experiência onírica”. [65] Rios que podem confluir? Viagens, ritos, políticas dionisíacas.
[63] Sidarta Ribeiro. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. Companhia das Letras, 2019.
[64] Michael Pollan, 2002, p. 178.
[65] Friedrich Nietzsche. O nascimento da tragédia. Companhia das Letras, 2015 [1872].
Uma conversação no Assentamento Dois Riachões
Tuíra visitou Luciano da Silva, assentando da reforma agrária, agricultor agroecológico e técnico agrícola, para ver e ouvir uma jornada de transformação que tem a terra como centro
Por Luciana Ferreira e Marcelo Marquesini

Tuíra — Quem é Luciano da Silva?
Luciano — Eu nasci em Ubatã, no sul da Bahia, que é próxima daqui. Meus pais eram agricultores, trabalhavam com cacau. Em 1985 a gente mudou para Aurelino Leal para morar na fazenda chamada Cascata. Em 1998, com a crise gerada pela vassoura de bruxa, começaram as demissões nas fazendas. Um dos oito trabalhadores que permaneceram foi meu pai. Eu estudava em Aurelino Leal, ainda no 1º grau, sem imaginar o que era o Movimento Sem Terra. Não sabia nada disso. E aí eles anunciaram que a fazenda ia ser desapropriada pelo Incra [1] e de uma hora para outra tinha um acampamento lá. E eu: “O que é isso?”. Meu pai, que também não fazia noção do que era, foi convidado para fazer parte do movimento. Foi tudo muito rápido: um assentamento de 40 famílias, incluindo a gente. Em um belo dia do ano 2000, chegou o pessoal da CPT [2] e, dentre outras coisas, criamos um grupo de jovens na comunidade, organizávamos as festas e aí foi… Criamos uma comissão regional e eu comecei a trabalhar com jovens de toda a região sul vinculado ao movimento Ceta.[3] Nesse processo de aprendizado da juventude, foi se construindo um entendimento da luta pela terra. Em 2003, quando concluí o segundo grau, o movimento estava construindo um curso de agronomia.
1 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
2 Comissão Pastoral da Terra.
3 Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas.

Em 2005 migrei para Ibirapitanga para organizar o movimento, mas vim parar em Dois Riachões porque o assentamento sairia mais rápido: mas demorou 18 anos (risos). Fui fazer agropecuária e me formei em 2010. Participamos da ocupação, começamos a trabalhar. Este trabalho que vocês estão vendo aqui começou em 2008. Optamos por trabalhar os conceitos que aprendemos no curso de agropecuária aqui na comunidade. Queríamos ficar na terra por acreditar na reforma agrária. Fizemos um curso de alto nível, com bons professores, boas discussões. Então escolhemos Dois Riachões. Me casei com Elimaria Silva, a Mara, uma companheira do oeste da Bahia que foi colega de curso mas adora trabalhar com alimentação agroecológica. Temos uma filha de seis anos, a Ester. E as coisas foram acontecendo…
Tuíra — Como surgiu o Assentamento Dois Riachões?
Luciano —O cacau na região Sul da Bahia era a principal fonte econômica, que detinha o poder político e também cultural. Esta região produzia muito cacau, as fazendas eram produtivas, era bom o financiamento do governo federal através da Ceplac. [4] O foco da produção de cacau era exportação.
4 Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira.
Uma das consequências da crise da lavoura cacaueira foi a vassoura-de-bruxa, que dizimou a produção de cacau, quebrou a região. Os trabalhadores migraram para outras atividades nos grandes centros. Também havia a má administração dessas propriedades na fase de declínio: a organização dos cacauicultores era muito individual, não conseguiam pensar o cacau no contexto da economia e essa região estrategicamente. Por outro lado, surge um novo fator na região, que é a luta pela reforma agrária. A partir dessa crise, onde não cabia fazer assentamento de reforma agrária, regularização de terra indígena e quilombola por conta do poderio que os cacauicultores tinham na política, surge uma brecha: a possibilidade de desenvolver os assentamentos. Os primeiros assentamentos vêm em 1975-80, ainda no auge do cacau, porém em regiões onde a terra não era tão valorizada e era desinteressante para os grandes fazendeiros, região de solo arenoso próximo ao litoral do sul baiano, assentamentos como Puchim Sarampo, Poço e Provedora. Com essa reorganização da estrutura fundiária, foi possível realizar os processos de movimentos sociais e a luta pela terra. Dentro da pauta do movimento Ceta, começamos a reivindicar várias fazendas para fins de reforma agrária. Em 2002, surge o acampamento Dois Riachões. Em 1998, saiu Cascata, Cruzeiro do Sul, Santa Irene, em 2004 saiu Serra de Areia, São João, Quarí, Terra Boa, Santa Cruz, Entre Rios; enfim, uma série de assentamentos, despertando em outros trabalhadores essa vontade de continuar o modo de vida trabalhando com cacau, mas agora num processo de reforma agrária e associativismo.
Nosso acampamento à beira da BA-652 em barracas de lona preta foi de 2001 a 2007. No dia do trabalhador, em 1º de maio de 2008, ocupamos o imóvel denominado Conjunto Dois Riachões. Dada a morosidade do Incra em desapropriar as áreas, ocupamos estrategicamente as áreas já vistoriadas e avaliadas: se der certo, deu; se não der certo, organizamos a luta dos trabalhadores novamente e pensamos em outras áreas, pois o papel do movimento dos trabalhadores, assentados e quilombolas, o Ceta, é organizar os trabalhadores e trabalhadoras para a luta e para, de forma consciente, conquistar os seus direitos.
Em 2008, o padrão produtivo da região era o pacote da “revolução verde”, difundida pela Ceplac através da assistência técnica baseada no aumento da produtividade para exportação de amêndoas secas de cacau. Mas nosso propósito era trabalhar com a agroecologia. A gente não tinha muita referência no Sul da Bahia, exceto o Terra Vista. [5] Não podíamos contar com a Ceplac, pois o modelo deles estava pronto. Trabalhamos na linha da formação dos agricultores. Esses trabalhadores vinham da “revolução verde”, trabalhavam com agroquímicos e precisavam reaprender a trabalhar com a terra. Nossa aposta inicial foi a soberania alimentar, produzir para se alimentar, pois os trabalhadores tinham uma alimentação muito restrita baseada no feijão, arroz, carne seca e farinha. A lógica era diversificar a propriedade para a alimentação interna e comercializar o excedente da produção. Nós pensávamos nessa linha da diversificação da produção porque o que encontramos aqui foi pasto para criação de gado e cacau abandonado. Então fomos estudar: cursos, capacitações de curta duração, parceiros, e fomos diversificando a produção – tudo isso com a agroecologia.
5 Assentamento Terra Vista fruto da luta pela reforma agraria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região de Arataca. Referência na produção de cacau orgânico.
Em 2010 formamos os primeiros quatro técnicos em Agropecuária Sustentável pelo Pronera.[6] Nessa época, organizamos a compra institucional da produção da comunidade, começamos a experimentar a produção agroecológica com o PAA, [7] que transformou os trabalhadores de reforma agrária: eles ganharam importância na cidade porque produziam para alimentar a população carente. A visão de que o sem-terra era preguiçoso, que não trabalhava, que não produzia começou a mudar, principalmente do ponto de vista social. De 2008 pra cá, nos deparamos com: 1) processo administrativo de desapropriação do imóvel e 2) constância das decisões de reintegração de posse interposta pela proprietária. Independentemente disso continuamos a organizar as famílias, aproveitamos os programas de aquisição de alimento.
6 Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.
7 Programa de Aquisição de Alimentos.
Em 2013, percebendo o declínio do PAA e das políticas sociais, decidimos mudar nossa estratégia de comercialização. Nossa ideia era aproximar a produção agroecológica do público da cidade, levando alimentos agroecológicos e a nossa história, modo de organização e a necessidade da reforma agrária popular.
Tuíra — O que levou vocês a criar a Rede Povos da Mata?
Luciano — Nós estávamos convencidos a repensar a estratégia da comercialização direta. Com a matriz da agroecologia bem desenvolvida. na passagem de 2014 para 2015, encontramos com dois membros da Rede Ecovida, da região sul do Brasil, que haviam organizado a rede Brotas Cerrado em Minas Gerais e vieram para organizar um núcleo aqui. Com a diversidade de movimentos, de agricultores, de organizações, eles perceberam que o mais interessante era fazer uma construção mais local mesmo. Começamos a participar. O primeiro encontro foi lá em Terra Vista em 2014, onde começamos a desenhar essa organização. As pessoas ainda não acreditavam na agroecologia, no associativismo, e nos empenhamos neste processo.
A fundação da Associação de Certificação Participativa ocorreu em 2015. A gente tinha a teia de agroecologia, que reúne vários movimentos sociais e trabalha as questões mais políticas, mas na ponta a gente não conseguia fazer a certificação pelas vias institucionais. A certificação com a participação dos agricultores possibilitou que esses agricultores pudessem ser reconhecidos por produzir com a matriz agroecológica, tendo a Certificação Participativa e o selo do Orgânico Brasil no seu produto, na sua feira. Essa inovação criou uma reviravolta no processo de comercialização nessa região sul da Bahia. Foi a primeira OPAC [8] da Bahia, e Dois Riachões (ainda ocupação) foi a primeira área com certificação participativa da Bahia. Hoje são 1 mil agricultores no estado da Bahia envolvidos. A então rede de agroecologia do Sul da Bahia se transformou em rede de agroecologia Povos da Mata, porque passou a incorporar, além da Mata Atlântica, o bioma Caatinga, em quatro núcleos: 1) Serra Grande: de Itabuna, Ilhéus, Uruçuca, Arataca, Santa Luzia até Camacã; 2) Monte Pascoal: Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Belmonte, Eunápolis, Itagimirim, Itapebi, Itabela e Guaratinga; 3) Raízes do Sertão: Irecê; e 4) Pratigi: Baixo Sul, Ibirapitanga, Camamu, Gandu, Pirai do Norte, Valença, Santo Antônio de Jesus, Ipiaú, Jaguaquara, até perto de Salvador. Agora estamos chegando a outras regiões da Bahia.
8 Organização Participativa de Avaliação da Conformidade.
Ganhamos um prêmio nacional na categoria Agroecologia pela Fundação Banco do Brasil em 2017. Com isso ganhamos visibilidade no país. Vieram reportagens e grupos de pessoas de todo Brasil para conhecer o nosso trabalho e viramos uma espécie de referência nacional. De 2015 para cá, a gente começou a fazer os processos de comercialização direta.
Tuíra — Nesse processo, vocês eliminam a figura intermediária, vocês conseguem também dizer ao consumidor de onde vem o alimento. Isso devolve a feira à população, pois muitas pessoas acabam consumindo tudo nas redes de supermercado.
Luciano — A gente abriu a feira de Itacaré, Algodões, Barra Grande, Itaipú de Fora, Ilhéus, Itabuna, Ibirapitanga, Gandú, e agora Salvador. Estamos melhorando o sistema produtivo das estações e feiras, funcionando em um circuito em que o caminhão vai carregado e volta carregado com produtos combinados: eles produzem o que não temos aqui e vice-versa. E temos o circuito agroecológico nacional Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Em 2017, fizemos um trabalho com o Slow Food e chegamos a 38 itens de produção, entre olerícolas, frutas e produtos beneficiados.
Tuíra — As famílias, quando chegam na terra, precisam se sustentar, comer para conseguir trabalhar e investir em outras frentes. E isso é difícil no início, principalmente porque o solo está degradado. Como vocês encararam este desafio?
Luciano — Sempre achamos muito importante que as famílias morassem aqui mesmo durante a ocupação. No começo, nosso único recurso era o PAA e a nossa estratégia era destinar uma parte dos fundos para estruturas coletivas. O recurso que seria destinado ao trabalho dos técnicos formava um fundo e a Associação, em assembleia, definia os investimentos. Primeiro foi a rede de água por gravidade, depois a unidade de beneficiamento de mandioca, depois a unidade de beneficiamento de frutas, depois a irrigação nas áreas de produção. E, em 2017, passamos a trabalhar com o cacau. Para escapar do modelo tradicional, de produzir e entregar ao atravessador que mediava com a multinacional, nós decidimos trabalhar na comercialização direta. Eliminamos o atravessador. E o desafio inicial era produzir um cacau agroecológico de qualidade.

Tuíra — Como é o processo até o cacau chegar no Centro de Inovação do Cacau (CIC), e o que as análises do CIC identificam?
Luciano —O trabalho começa lá na cabruca. Nós temos 160 hectares de cacau cabruca, 90% da variedade pará e parazinho. Colhemos só o que está em maturação ideal, o amarelo ouro. Juntamos um grupo de quatro a cinco agricultores para colher em mutirão. Quebramos no mesmo dia. No primeiro dia, ele fica 48 horas aqui, fechadinho, parado, e depois vamos virando a cada 24 horas. No sétimo dia ele está com a fermentação ideal; finaliza quando sua temperatura diminui. Terminada a fermentação, mudamos de espaço. O CIC analisa amêndoas chatas e com defeito, a quantidade de amêndoas violeta – que são as amêndoas que não fermentaram – e a presença de odores estranhos. Por isso esse espaço é longe das casas, longe de áreas que podem ser contaminadas com fumaça. Fazemos os testes de corte para saber como está a fermentação e a secagem, e depois mandamos para análise. Eles identificam os percentuais: cacau tipo 1, tipo 2 e tipo 3. Aqui batemos tipo 1 e, quando tem algum problema, ficamos no tipo 2.
Tuíra — Qual é o valor agregado?
Luciano — Com o cacau tipo 1, fino, comercializamos no circuito (PR, SP, RS, DF e MG) em pequena escala. O chocolate de alta qualidade vai para pequenas empresas em pequenas quantidades, tipo uma saca que segue por avião. Em 2017, negociamos um preço fixo de 270 reais pela arroba do cacau em amêndoa seca tipo 1. Tem também alguns produtores de chocolate que compram o cacau tipo 1 certificado por 300 reais a arroba. Ou seja: o cacau de base agroecológica ia para mercado convencional por 90 reais, e hoje negociamos por três vezes mais. Insistimos na cabruca, porque nesses últimos 25 anos foram desmatados aqui no sul da Bahia aproximadamente 301 mil hectares de cabruca para dar lugar ao eucalipto, pecuária e café e, por incrível que pareça, tem muita gente que ainda insiste no modelo tecnológico de tirar cabruca e colocar sistema tecnificado para produzir apenas 500 arrobas por hectare. Na nossa opinião, a cabruca é viável do ponto de vista econômico, mas principalmente social. Hoje, na região, sem a cabruca não existe agricultura familiar e camponesa para o pequeno produtor. Estamos disputando essa narrativa: a produção do cacau cabruca é viável. E colocamos nossas experiências também para além do cacau. Somente em cacau e olerícolas, a renda que entra no assentamento é cerca de 2.000 a 2.500 reais por família! Estamos provando que é economicamente viável. Lá no início, em 2008, era de 240 reais por família ao mês. Do ponto de vista ambiental é mais interessante ainda, porque não estamos tirando floresta para produzir cacau. Nós nos colocamos o desafio de mudar a cultura de produção do nosso território.
Tuíra — Vocês estão fazendo também o beneficiamento de outras partes do cacau, como a polpa? O cacau é um mundo particular; podemos dedicar uma boa parte dessa conversa somente a ele.
Luciano — Pois é, a cada dia descobrimos uma coisa nova no cacau. Nos interessa horizontalizar a cadeia produtiva em torno do cacau. Não adianta produzir amêndoa de qualidade para uma empresa, por exemplo, e ficar refém dela. Ou seja, substituir uma multinacional por uma empresa apenas. Queremos dominar toda a cadeia produtiva; à medida que entendemos os processos produtivos, tiramos estratégias de atuação. Já extraímos o mel do cacau de forma artesanal. Comercializamos a polpa de fruta direto nas feiras de orgânicos. Fazemos os nibs de cacau, que têm bom valor agregado. Capacitamos alguns jovens da comunidade em parceria com o curso de engenharia de alimentos do Instituto Federal Baiano, de Uruçuca. Nessa parceria, estamos fazendo um chocolate com 70% de cacau só com manteiga de cacau e açúcar demerara.
Tuíra — Vocês vão produzir o chocolate, este de “receita boa”, aqui mesmo no assentamento?
Luciano — Sim! Em 2017, isso era só um sonho. Mas recentemente recebemos os equipamentos da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, dentro de um projeto para introduzir um hectare de Sistema Agroflorestal, realizar quatro cursos de produção de chocolate artesanal e aquisição de equipamentos de chocolate para instalação de uma agroindústria no assentamento. Estamos colocando um desafio para o Instituto Federal Baiano, por meio do curso de engenharia de alimentos, que é de substituir o açúcar pela jaca. Se for jaca mole, a concentração de açúcar é maior ainda. Estamos tentando extrair a frutose da jaca e utilizá-la no lugar do açúcar demerara. A jaca sempre foi um problema aqui porque fazia muita sombra para o cacau. Muita gente queria tirar a jaqueira, mas nós defendemos fazer apenas a poda e manter a produção de jaca. Então veio a possibilidade de trabalhar a proteína da jaca. Olha isso: aprendemos também a fazer a proteína de jaca e hoje vendemos muito nas feiras, e tem muita demanda em Salvador e São Paulo. É carne de jaca, palmito de jaca, escondidinho de jaca, coxinha de jaca. Recebemos recentemente aqui um programa da TV Futura, Amor de Cozinha, de Regina Tchelly, para fazer uma matéria bonita sobre a empada de jaca na merenda escolar. Um produto que não tinha nenhum valor comercial nem cultural hoje está introduzido na base alimentar. E tem uma disputa cultural, porque as pessoas vão experimentando, conhecendo as possibilidades de alimentos a partir da jaca e tal…
Tuíra — Então Dois Riachões não é um assentamento exclusivamente de produção de cacau. Como é a alimentação dos assentados?
Luciano — A reforma agrária tem dois objetivos bem claros: a distribuição da terra e a produção de alimentos. A função social da propriedade a partir dos assentamentos, da agricultura familiar, das comunidades indígenas e quilombolas, é a produção de alimentos. Não é produzir commodities! Outra coisa: era proibido ao agricultor produzir comida onde deveria produzir cacau. Eu já vi muito fazendeiro mandar o trabalhador rural desfazer a horta com a qual ele alimentava a família dele porque o tempo dedicado à horta era tempo desperdiçado, do ponto de vista do fazendeiro. A lógica era: o tempo do trabalhador deve gerar lucro para o patrão. Mas quando a gente cria uma comunidade, um assentamento, essa cultura ainda está na cabeça do trabalhador. Está introjetada, é o oprimido que sonha em ser opressor. Então é preciso reaprender. Olha que exemplo maluco: quando chegamos aqui, tinha agricultor que não sabia plantar coentro, não sabia fazer um canteiro. Eles esqueceram! Então fizemos do trabalho em mutirão uma estratégia pedagógica de partilha dos conhecimentos. E, nesse processo, percebemos que duas coisas caminham juntas: primeiro o trabalho coletivo em mutirão e, junto com isso, a educação. É preciso reaprender pela partilha do conhecimento!
Quando o agricultor vai trabalhar para a grande fazenda, vende o tempo dele em forma de mão de obra. Aqui a mão de obra é a nossa. Mas precisa organizar, planejar. Isso não é fácil para quem está acostumado a obedecer. E isso tudo é um exercício, é começar a estimular a voz de quem está acostumado a calar, é conversar para organizar quem está acostumado a obedecer. Nesse processo, fomos convencendo as famílias a diversificar a produção. A segunda etapa, igualmente difícil, é compreender que o alimento que ele faz é bom para ele e para os outros também. Senão o agricultor produz um alimento de qualidade, o vende, e compra no mercado um alimento com veneno. Aí não dá, né? Então é preciso aprender a aproveitar as várias possibilidades de receitas com a jaca, banana da terra, com o aipim, com a amêndoa de cacau que antes só se vendia, e fazer um bom nibs, um bom prato. Extrair o mel. E assim, sair daquela lógica de que o aipim cozido é o único prato possível. São muitas as possibilidades de receita.
Tuíra — É escapar um pouco da lógica de plantar, vender e, com o dinheiro, comprar comida. Ou seja, escapar deste círculo vicioso.
Luciano — Veja o exercício que fazíamos com as famílias. Perguntávamos: quantos sacos de aipim você produziu neste ano? Quantos sacos de feijão? Quantos cachos de banana? E milho, porco, galinha…? Depois a gente pegava esses dados, transformava em dinheiro e mostrava para o produtor. Quer dizer, se ele não produzisse a banana, teria que comprar, e, produzindo, ele não precisa comprar, entende?
Tuíra — O que vocês propõem é uma outra relação – seja com as plantas, seja com a sociedade –, abandonando a época de ouro do cacau, que era somente de exploração. É uma proposta outra, de lidar com a diversificação da produção e das plantas. Quanto mais elementos, melhor para o cacau e para as famílias. Ao falar de agroecologia, de cuidado com a terra, de produzir sem veneno, estamos falando de vida. Que vida queremos viver?
Luciano — É tudo multidisciplinar. Ao mesmo tempo em que trabalhamos a produção de alimentos na parte técnica, para compreender a matriz agroecológica é preciso associá-la à educação, ao gênero, à juventude, às relações de produção, às relações de trabalho… A gente sempre fala: “tem que colocar os meninos lá pra estudar”. Mas de repente a gente vê que alguns problemas de dez anos atrás permanecem: o analfabetismo. Os jovens voltam dos estudos mas não se envolvem com os temas da associação. Dou o exemplo para ressaltar este aspecto da coerência. Junto com a produção agroecológica, trabalhamos com a educação no campo, pois estamos falando de mudanças de comportamento. Precisa ser uma educação em que esses jovens possam ser incorporados à vocação de uma agricultura que não passa pela venda da força de trabalho, e que consigam administrar os meios de produção conquistados com muita luta. A educação no campo pode qualificar as relações de produção e de comercialização. O campo precisa de profissionais de diversas áreas, pois acreditamos num campo que tenha gente, serviços e produção de cultura. Esse nosso esforço de trabalhar com a agroecologia e a reprodução de modos de vida no campo exige que os profissionais recém-formados na área de educação, ciências agrárias, direito e saúde conversem com os nossos conhecimentos. Estamos chamando isso de educação do campo contextualizada, para não perder esses novos profissionais para a lógica da indústria do veneno ou do capital – porque quem está no sistema não está invulnerável às seduções do mercado. E não adianta apenas um assentamento trabalhar na lógica da agroecologia isolado: ele precisa influenciar o território. A questão ambiental é outra pauta urgente hoje. Estive na Itália recentemente para falar de cacau agroecológico, mas falei também de biodiversidade, de bioma. Falei da produção do cacau articulado com o bioma em que ele está inserido.

Tuíra — O cacau cabruca é o exemplo da interdependência. Porque ele só vai bem se tudo perto dele estiver igualmente bem. Se tudo estiver mal, o cacau vai mal.
Luciano — No auge do cacau, quando ele representava 70% da economia baiana, a produção nas melhores fazendas não passava de 50 arrobas por hectare. Hoje os caras querem produzir 500 arrobas por hectare com o discurso de que isso vai melhorar a vida. Naquele tempo do auge, o índice de analfabetismo desta região estava entre os piores do Brasil, o salário mínimo era o mais desvalorizado. É essa a herança do cacau que queremos trazer? E o que a gente quer para as pessoas que saíram do campo? Porque cerca de 97% da população carcerária de Itabuna, Ilhéus e até Porto Seguro é composta por filhos e netos de agricultores. Como trazer também para a juventude do campo que eles podem ser introduzidos num sistema de produção e comercialização de alimentos? Com educação e modelos tecnológicos de produção que hoje não são apenas de força bruta: a cooperativa, o aplicativo, a roçadeira, o perfurador de solo, a internet, mas também o motorista, o técnico, o agrônomo, o pedagogo… É compreender o campo com a sua gente.
Tuíra — Em Dois Riachões vocês apresentam muitos elementos – tanto no trabalho de rede e articulação política em várias frentes, quanto na educação, nas relações ambientais, econômicas e sociais – que apontam para um novo paradigma de sociedade. É isso que escutamos quando vocês contam essas experiências. Vocês praticam uma política baseada no cultivo.
Luciano — A gente compreende a matriz agroecológica como uma ciência. Estamos experimentando e demonstrando que é possível um modelo de matriz agroecológica passando pela produção de alimentos e sua comercialização, fora do modelo de integração do Estado. A maioria das políticas desenvolvidas principalmente nos governos do PT, [9]quando a tendência DS [10]ocupou o Incra e o MDA,[11]sempre apoiaram a agricultura familiar, os pequenos e médios agricultores e buscaram integrá-los ao grande comércio, ao agronegócio. Isso aconteceu com as políticas de integração com a Sadia no Rio Grande do Sul na produção de suínos e aves e, aqui no Nordeste, com o trabalho das cooperativas e o cacau no sul da Bahia. Enfim, há toda essa integração da pequena agricultura ao grande mercado, como Walmart, Pão de Açúcar, Macro, etc. Este modelo, no entanto, é uma armadilha. Compreendemos que o processo deve ser autônomo. Temos pouca gente no campo – hoje são 20%, e 80% na cidade – e a política de reforma agrária não avançou, não teve começo, meio e fim. A reforma agrária vai respondendo ao calor da luta social que os movimentos imprimem, ora mais intenso, ora menos intenso a depender da conjuntura. Nós queremos uma produção que dialogue com o consumidor – esse é o diferencial. A maioria dos consumidores está na cidade e estabelecer essa relação cidade-campo é um desafio tanto na produção de alimentos quanto na construção de um projeto de sociedade. Outro elemento é que a luta social dos trabalhadores do campo não pode estar dissociada da questão ambiental. É produzir alimento preservando o meio ambiente e convivendo com os diferentes tipos de biomas. O agronegócio não faz isso; ele destrói o meio ambiente para produzir cada vez em escala maior. Firmar um modelo agroecológico de produção exige sistemas participativos de associativismo e cooperativismo que garantam para esses trabalhadores e suas organizações a organização da produção em processos coordenados por eles mesmos de forma autônoma. Caso contrário, ocorre uma quebra, uma ruptura. Mas como fazer com que isso tudo se transforme em política? Como isso vira uma necessidade para a sociedade? Quem consome precisa compreender esse processo. Recentemente teve o debate da Lei da Agroecologia e Produção Orgânica no estado da Bahia e só estavam presentes as organizações do campo. Se não houver entendimento da sociedade baiana e do campo da Bahia de que essa lei é importante, não vai adiantar de nada. Então a gente precisa produzir, trabalhar com agroecologia, trabalhar com os processos organizativos da produção agroecológica e dialogar com esses atores na ponta a respeito da importância disso para a sociedade e para o país como um todo. Quem a gente chama para esse time dos territórios agroecológicos? E como a gente junta força para dizer assim: “agora a nossa pauta é a da produção agroecológica, da comercialização direta”, ao mesmo tempo em que o Estado cria as políticas públicas para fomentar esse modelo? Nos últimos tempos os movimentos e as organizações foram criando mecanismos de sobrevivência e se esqueceram de um projeto nacional. Hoje não temos um projeto nacional de esquerda para contrapor ao projeto hegemônico, que é uma porcaria, uma aberração. Como recompor isso? Tem movimento que se afastou da base, ficou 20 anos sem aparecer e, quando volta, o trabalhador olha e pergunta: “por onde você andou?”. O processo, o modelo e as experiências que a gente vem construindo nos permitirão, no médio prazo, constituir uma frente, um bloco na Bahia e talvez no Brasil que conseguirá dizer assim: a agroecologia é o processo mais inovador na luta dos trabalhadores. Ela organiza a luta numa discussão mais ampla: gênero, juventude, produção, comercialização, educação, formação organizacional do território… Dá pra discutir tudo isso de forma holística.
9 Partido dos Trabalhadores.
10 Democracia Socialista.
11 Ministério do Desenvolvimento Agrário à época; extinto no Governo Temer.
Comitê Invisível, uma apresentação
imannens

O Comitê Invisível vem publicando textos desde o ano de 2007. Seus livros têm um tom bastante próprio: se algumas vezes lembram um panfleto ou um manifesto, outras tantas se parecem com textos acadêmicos ligados à filosofia e à teoria política. Em alguns momentos, ainda, adquirem o tom de literatura contemporânea, americana ou francesa ou japonesa (imagine-se, aqui, um autor contemporâneo qualquer que questiona o uso que se faz de um aplicativo de sexo em detrimento do sexo – ou algo do tipo).
A invisibilidade dos membros do Comitê talvez não seja tão importante quanto tudo aquilo que seus escritos tornam visível. Ainda assim, qualquer pesquisa simples na internet oferece algumas informações sobre seus membros.
A primeira das informações é aquela que associa o caso que ficou conhecido como “Os nove de Tarnac” ao primeiro livro do Comitê, A insurreição que vem. Em resumo, um grupo de amigos que vivia numa propriedade rural foi acusado de sabotagem. O sistema francês também os acusou de pertencerem ao Comitê Invisível. Nenhuma prova atestou esse vínculo.
A segunda informação diz respeito ao vínculo do Comitê com uma revista que circulou entre 1999 e 2001. Enquanto revista, possuiu dois números. Depois disso, há alguns livros que circulam por aí com a assinatura Tiqqun, com textos que parecem ter nascido nas publicações da revista (Introdução à guerra civil, Uma metafísica crítica…, Isso não é um programa, são títulos já traduzidos para o português, por exemplo).
Houve, também no caso da revista Tiqqun, um conjunto de associações possíveis entre Tiqqun, Comitê Invisível e o caso de Tarnac.[1]
1 Lendo o seguinte artigo será possível encontrar uma boa organização deste histórico:Guerrilha performática: arte-política e terrorismo estatal, de William Osório. Disponível em: http://www.artes.uff.br/uso-improprio/trabalhos-completos/william-osorio.pdf
De todo modo, queremos insistir naquilo que os escritos do Comitê Invisível, associados ou não a Tiqqun, trazem para o campo do visível e que tem enorme importância para o ativismo e a militância de esquerda nos dias que correm.
OS LIVROS E SEUS CONTEXTOS
Além dos números da revista e dos livros que levam a assinatura Tiqqun, o Comitê Invisível publicou três obras que, juntas, vêm compondo os debates travados no campo das lutas contemporâneas, dos meios militantes e ativistas ao âmbito acadêmico.
O primeiro livro, A insurreição que vem, foi publicado originalmente em 2007. Dispomos de uma tradução para o português, impressa pela Edições Baratas, em 2013. [2] É um livro que esteve diretamente associado ao caso dos prisioneiros de Tarnac. Escrevem eles sobre o assunto: “A incriminação por terrorismo de pessoas que foram acusadas não tanto de algumas simples sabotagens (notavelmente contra uma linha do TGV), mas principalmente por terem escrito um livro, evidentemente aumentou o interesse por seu conteúdo, fazendo com que o livro A insurreição que vem não tardasse a se tornar um bestseller e, assim, um tipo de clássico”. [3]
2 Disponível em PDF no site da editora: https://edicoesbaratas.wordpress.com/2013/07/04/a-insurreicao-que-vem/
3 TGV é um sistema de trens de alta velocidade. Tradução livre. Comitê Invisível, 2019. Prefácio da edição italiana. Original disponível em: https://www.ilfattoquotidiano.it/2019/03/15/comitato-invisibile-il-libro-dei-nemici-numeri-uno-del-macronismo-dalla-rivolta-delle-banlieue-ai-gilet-gialli/5039101/
Aos nossos amigos: crise e insurreição foi publicado em 2014 (no Brasil, em 2018 pela n-1 Edições). Segundo os próprios escritores, o livro resumiu – com base em uma investigação realizada nos vários continentes – a sequência que se abriu com a “crise de 2008”, prolongada com as “primaveras árabes” e, finalmente, fechada pelos diferentes “movimentos das praças”. [4]
4 Idem.
O último livro, Motim e destituição agora, publicado em 2017 e traduzido no Brasil pela n-1 Edições, tem como canteiro de obras as lutas contra a lei trabalhista francesa desencadeadas em 2016. É com este ponto de partida que o Comitê quis “sondar o pano de fundo desta era” – a nossa. [5]
5 Idem.
Embora seja reconhecível um “tom” que marque a autoria de cada livro, há pelo menos uma nota dissonante em cada uma das obras.
O conjunto de escritos emA insurreição que vem está mais focado em uma espécie de diagnóstico da catástrofe que se anuncia ao término da primeira década dos anos 2000. O sufocamento de nossos modos de viver, de amar, de trabalhar, de fazer trocas – ele prenuncia um caminho. Este caminho é o da insurreição que vem.
Assim, o primeiro livro faz uma grande cartografia negativa do mundo que habitamos. Ou seja, para além de disputar o mundo tal como ele nos aparece, é necessário sair dele, de suas organizações, de suas instituições e criar novas formas de habitá-lo.
Aos nossos amigos parte de um novo pano de fundo: as insurreições chegaram. Os escritores afirmam terem se espalhado mundo afora para cobrir as diferentes formas com que a insurreição se apresenta. Há claramente uma mudança no tom do texto, que passa a ser muito mais agressivo, declarando guerra àqueles que não são seus amigos.
Sobretudo, nesta segunda obra são enunciados com maior nitidez os contornos daquilo que o Comitê Invisível entende como frentes de batalha: não se trata em absoluto de fazer lutas para disputar o que aí está (as instituições, por exemplo), mas sim de bater em retirada, de criar um funcionamento outro que possa nos fazer prescindir do modo como o mundo está organizado.
Em Motim e destituição agora, cujo título original é apenas Agora, há um tom menos belicoso. O canteiro de obras está mais enxuto, por assim dizer. A principal fonte de pensamento é a análise tática e estratégica que toma as lutas contra a reforma trabalhista francesa de 2016, o que parece ajudar o Comitê a sair da excitação do livro anterior. Diminuem também os ataques nominais aos outros pensadores que se põem a analisar a mesma constelação de outro ponto de vista, com outra rede conceitual.
Torna-se mais nítida ali uma dada forma de ler e de pensar o mundo. O Comitê coloca para funcionar em seu texto um conjunto de conceitos, tais como o de poder destituinte, formas-de-vida, comunismo, potência, experiência; propõe tomar de volta para si o que hoje se organiza na forma da política, da economia, das organizações, das instituições. A citação de um “amigo” parece resumir esse processo: “A solução para o problema que você vê na vida, é uma forma de viver que faça desaparecer o problema”.
REDE CONCEITUAL: POTÊNCIA DESTITUINTE, PODER CONSTITUINTE
Nessa rede conceitual mobilizada pelo Comitê, vale destacar a mútua implicação que se nota com a obra de um intelectual italiano cujas análises tiveram muito impacto nas ciências sociais brasileiras nas últimas duas ou três décadas. Trata-se de Giorgio Agamben.
Será fácil encontrar na literatura acadêmica crítica do período referências a diversos conceitos produzidos por Agamben no conjunto de sua longa pesquisa: estado de exceção, vida nua, profanação, potência, singularidade qualquer. Mas é especialmente no âmbito do que podemos chamar de “potência destituinte” que há uma imbricação praticamente indistinta entre as análises conduzidas pelo Comitê e a obra deste filósofo.
Na conferência Elements for a theoryofdestituintpower, Agamben cita o Tiqqun da Introdução à guerra civil em sua exposição sobre o conceito de “forma-de-vida”: “Tiqqun desenvolveu esta definição em três teses, afirmando que: 1) A unidade humana elementar não é o corpo – o indivíduo –, mas a forma-de-vida, que 2) Cada corpo é afetado por sua forma-de-vida como por um clinâmen, uma atração, um gosto; e que 3) Minha forma-de-vida não se relaciona ao que eu sou, mas a como eu sou aquilo que sou.” [6]
6 Tradução livre. Original disponível em: https://livingtogetherintheheartofthedesert.files.wordpress.com/2014/02/agamben-elements-for-a-theory-of-destituent-power-1.pdf
O conceito central, ao que tudo indica, é mesmo o de potência destituinte. “Desapareçamos”, “Destituamos o mundo” são títulos de capítulos presentes nos livros do Comitê. “O comunismo é o movimento real que destitui o estado de coisas existentes”, conclui um capítulo.
Aventa-se, assim, desativar as grandes formas constituídas que operam sobre nossas vidas: economia, religião, linguagem, política. Não seria uma recusa, mas uma “destituição constituinte”, que somente as formas-de-vida poderiam colocar em funcionamento. Que Agamben faça todo um estudo sobre as formas-de-vida entre frades e mosteiros parece bastante sintomático de onde e de como este tipo de situação poderia ser instaurada…
No polo oposto, e francamente destacado como inimigo, estaria o poder constituinte e um outro filósofo italiano também muito presente na literatura insurgente brasileira: Antonio Negri. O que é possível rastrear aqui e ali nos textos de Tiqqun, do Comitê Invisível e do próprio Agamben é que a treta é antiga, remontando ao próprio movimento da autonomia operária italiana.
Em seu último texto com Michael Hardt,Assembly, podemos ler esse debate bastante vivo. Às críticas que pretendem invalidar a ideia de poder constituinte – como estas de Agamben e companhia –, Hardt e Negri opõem a possibilidade de rearticular o conceito “acompanhando o modo como está sendo reinscrito na prática” e considerando “a materialidade e a pluralidade dos processos revolucionários”. [7]
7 Michael Hardt e Antonio Negri. Assembly: a organização multitudinária do comum. Tradução de Lucas Carpinelli, Jefferson Viel. Editora Filosófica Politéia, 2018, p. 49.
É claro que todos os pressupostos são outros e, consequentemente, é outra a disputa pelos mundos que podem ser criados a partir dos levantes da segunda década do século XXI. Negri entende que, ao invés de abandonar as instituições, é necessário inventar um outro tipo de instituição. Ao invés de entender os processos na chave da exceção, Negri os entende na chave do excesso, ou seja, de um transbordamento da potência afirmativa da cooperação.
LINHAS FORTES, LINHAS FRACAS
O conjunto dos textos do Comitê Invisível torna visível ao menos quatro linhas distintas de percepção do estado de coisas e das lutas por sua transformação: i) a análise de conjuntura; ii) a análise tática e estratégica; iii) a crítica à esquerda; iv) a análise dos modos de vida.
O vigor e a potência de seus textos não deixam de apresentar problemas diversos: a arrogância de suas críticas; a concentração em lutas de caráter metropolitano; a ausência de explicações consistentes sobre como se vai destituir tudo; o eurocentrismo de seus conceitos e métodos; a adoção de uma única perspectiva para interpretar e alimentar as lutas.
Os fragmentos agrupados nas páginas que se seguem, no artigo Amigos e amigas dialogam com um comitê invisível, dificilmente dão conta dessas tantas linhas possíveis de leitura deste conjunto de análises, genealogias, insultos, frases de efeito, influências de teorias e da disputa das ruas.
Mas desejam instaurar um debate inescapável ao ativismo contemporâneo: “para o que segue o mundo”.
Amigos e amigas dialogam com um comitê invisível

NOTA INTRODUTÓRIA
Tuíra preparou uma seleção de trechos dos dois livros do coletivo anônimo denominado Comitê Invisível publicados no Brasil: Aos nossos amigos: crise e insurreição(2016) e Motim e destituição agora (2017), ambos da n-1 Edições.
Os diferentes trechos foram organizados de acordo com um critério de proximidade temática, sem obedecer à ordem das publicações. Em seguida, foram enviados a um conjunto de pessoas que se mostraram dispostas a ler e comentar a seleção feita.
O conjunto de comentários, publicados a seguir, dá uma resposta à disposição do Comitê de dialogar com seus amigos e amigasespalhados pelo mundo e se pretende um momento desse diálogo.
O resultado de tal processo apresenta uma espécie de muro grafitado a muitas mãos, com inscrições que dão a pensar um amplo conjunto de temas ligados às lutas, à teoria e aos modos de vida contemporâneos.
Legenda das referências bibliográficas dos trechos citados
ANACI – Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo, n-1 edições, 2016.
MDA –Motim e destituição agora. São Paulo, n-1 edições, 2017.
+++
MARGEM DE AÇÃO
O estado de exceção no qual vivemos não deve ser denunciado, deve ser virado contra o próprio poder. E eis-nos libertos, da nossa parte, de qualquer consideração em relação à lei (…). Temos o campo completamente livre para qualquer tipo de decisão, qualquer iniciativa, (…). Para nós não há mais do que um campo de batalha histórico e as forças que aí se movem. A nossa margem de ação é infinita. A vida histórica nos estende a mão. (ANACI, 45)

Comentários
A luta política, “realista”, tende quase sempre a ser condicionada ora pelo contexto – que exige de nós algumas ações e não outras –, ora pela natureza da causa – que estabelece a priori seus fins e suas condições –, ora pelo próprio quadro de referência ideológico que nos diz o que é luta, o que vem a ser ou não política, o que se deve ou não se deve fazer, quem é ou não é o sujeito histórico. A noção de uma “margem de ação infinita” muda o jogo. Menos talvez pelo fato de estender a perder de vista o horizonte da ação (o que, de todo modo, aguça e estimula a imaginação), e certamente porque estabelece que o horizonte que está posto é limitado demais e que é possível e desejável ultrapassá-lo.
Para o ativismo, essa noção amplia o campo estratégico e renova as opções táticas. Altera o escopo da ação e também a própria autodefinição dos agentes da luta, suas capacidades e seus propósitos. É surpreendente que nós, ativistas, ainda nos mantenhamos facilmente circunscritos a esferas específicas de ação (o ambientalismo, a reforma agrária, o feminismo, a cidade, a floresta, a tecnologia, etc.), observando de forma respeitosa os limites de cada campo, e que ousemos tão pouco embaralhar ou desconstruir tais esferas, muito menos criar outras.
Todo campo é inventado. Uma vez que só a ação pode inventar um campo, que a ação política, portanto, faça existir aquilo que ainda não existe.
++
Repetir repetir – até ficar diferente, escreveu o poeta pantaneiro. Em certa medida, assim o fizeram alguns filósofos. Há uma espécie de repetição estéril no campo das lutas que cria muitos movimentos simultâneos, mas que essencialmente são constituídos de: eliminar aquilo que não é espelho. Bagunçar as fronteiras poderia ser uma forma possível de expandir a potência de todas e cada uma das lutas? Às vezes, sim. Mas quase sempre recuando a essa forma primeira de reduzir o campo infinito de possibilidades a uma repetição que não promove diferença.
+++
O QUE FAZER
Quando o centro da cidade de Atenas estava de novo em chamas, atingiu-se, nessa noite, um paroxismo de júbilo e de esgotamento: o movimento vislumbrou toda a sua potência, mas também compreendeu que não sabia o que fazer com ela. (ANACI, 162)
Vencer a polícia, arrasar os bancos e derrotar temporariamente um Governo ainda não é destituí-lo. O que o caso grego nos ensina é que, sem uma ideia concreta do que seria uma vitória, só podemos ser derrotados. A determinação insurrecional não basta por si só; nossa confusão ainda é demasiado espessa. Que o estudo das nossas derrotas nos sirva, pelo menos, para a dissipar um pouco. (ANACI, 163)
Comentários
Há, em pelo menos um aspecto, enorme diferença entre os agentes da esquerda hierárquica tradicional (marxista-leninista, de corte disciplinador e autoritário) e a constelação dos agentes da multidão que lutam por um “outro mundo”: os primeiros têm um modelo de sociedade e um modelo de governo, e procuram implantá-los. Têm uma formulação do que é a “vitória”. Do outro lado, sem modelo, sem governo, o que temos é “confusão espessa”, como afirma o Comitê.
É provável que, diante da pergunta “O que é vitória para nós?”, decorra um sem fim de platitudes (“justiça social”, “igualdade”, “liberdade”, “diversidade” etc) e de imagens idílicas de mundo que acabam por não dizer nada e por se perder na vala comum das boas intenções.
A pergunta pode estar mal formulada. Ou pode ser que a pergunta exija ser bem respondida. Se eu não tenho resposta para ela, isso dirá mais de mim do que da pergunta. De todo modo, parece que precisamos mesmo é de coragem para encará-la, nem que seja para dizer, ao final, que a questão não nos serve mais. Se for para invalidar a pergunta, que seja por uma boa resposta – ou por uma pergunta melhor.
++
Há uma pista para o enfrentamento do problema do que fazer no tópico “Inteligência da situação”.
++
Um plano de estudos para as derrotas. Somos todos derrotados. E é isto que nos faz outros em relação a todos os vitoriosos.
A convocação da imagem de uma vitória é um flerte, sim, com os formulários ou cartilhas da militância que, sem pestanejar, se aliam ao tucanato para decretar guerra à multidão!!! Mas a multidão não para de se recompor. Vinte centavos foi uma vitória? Para o problema então colocado, sim. Para os problemas que se colocam logo depois, não. Qual o problema? Qual a vitória?
+++
REVOLUÇÃO
Uma insurreição pode estourar a qualquer momento, por qualquer motivo, em qualquer país; e levar não importa aonde. (…) As insurreições chegaram, mas não a revolução. (…) Mas por maior que seja a desordem sob os céus, a revolução parece sempre se asfixiar na fase de motim. Nesse ponto, é preciso admitir, nós, os revolucionários, fomos derrotados. Não porque não perseguimos a “revolução” enquanto objetivoapós 2008, mas porque fomos privados, continuamente, da revolução enquantoprocesso. (ANACI, 11-13)
Comentário
Viver o processo: é isso a revolução!
Se nossa guerra, ou nossa luta, não é contra a teleologia, não deixamos de buscar viver a revolução enquanto processo, e o processo enquanto revolução. O que isso muda nas coisas mesmas? Lembremos Foucault que, sempre para nosso estranhamento, comenta Kant:
“Por outro lado, o que faz sentido e o que vai constituir o signo do progresso é que, em torno da revolução, diz Kant, há ‘uma simpatia de aspiração que beira o entusiasmo’. O que é importante na revolução, não é a revolução em si, mas o que se passa na cabeça dos que não a fazem ou, em todo caso, que não são os atores principais; é a relação que eles mantêm com essa revolução da qual eles não são agentes ativos.” (Michel Foucault, O que é o Iluminismo?)
+++
TRAIÇÃO
Se as revoluções são sistematicamente traídas, talvez isso seja obra da fatalidade; mas talvez seja o sinal de que há, na nossa ideia de revolução, alguns vícios escondidos que a condenam a esse destino. Um desses vícios reside no fato de ainda pensarmos (…) a revolução como uma dialética entre o constituinte e o constituído. Ainda acreditamos na fábula de que todo o poder constituído se enraíza num poder constituinte, de que o Estado emana da nação, como o monarca absoluto de Deus, de que existe permanentemente sob a Constituição em vigor uma outra Constituição, uma ordem ao mesmo tempo subjacente e transcendente (…). Essa ficção do poder constituinte serve apenas, na verdade, para mascarar a origem propriamente política, fortuita, o golpe de força pelo qual todo poder se institui. Aqueles que tomam o poder retroprojetam a fonte de sua autoridade sobre a totalidade social que, a partir de então, controlam e, dessa forma, fazem-na calar em seu próprio nomede maneira legítima. Assim se realiza, em intervalos regulares, a façanha de disparar sobre o povo em nome do povo. (ANACI, 86-87)

Comentários
Se a revolução é entendida, numa perspectiva totalizadora, como aquilo que muda tudo ou a situação em que tudo mudou (ou será mudado), então não há como não haver traição da revolução, seja num sentido contrarrevolucionário, seja numa perspectiva ainda revolucionária que segue seu curso, incansavelmente. Isso porque não é possível, nem desejável, mudar tudo. Esse projeto totalitário é preciso trair.
A ideia de insurreição parece menos suspeita, pois há algo nela que a limita: é o seu fim. Uma espécie de revolução que se contém – e se contenta por isso. Pode querer muito, mas não tudo. E, pelo fato de muito às vezes ser muito pouco, haverá muito a ser feito, sempre.
++
Fortuita: aqui me parece mesmo haver um certo apelo a um misticismo. Que as revoluções fracassem tão logo o povo descubra que toda revolução é particular, compreendemos. Mas qual a explicação material para o processo que chegamos a chamar de revolucionário? Qual força conjura o golpe e formata o governo revolucionário? Aqui, há uma sensação de questões conceituais, narrativas, que pouco têm que ver com o sangue derramado, o gás inalado. A ver…
+++
POTÊNCIA
Uma força revolucionária deste tempo deve zelar sobretudo pelo crescimento paciente de sua potência. Essa questão foi reprimida durante muito tempo por trás do tema obsoleto da tomada do poder. (ANACI, 292)
“O que é a felicidade? O sentimento de que a potência aumenta”. (ANACI, 284)
Comentários
Nota mental: tomar o “aumento de potência” como critério para a adoção de estratégia ou tática; da mesma forma, usar o “aumento de potência” como indicador na análise dos fenômenos, das situações e das ações políticas.
++
Em Espinosa: não desejo algo porque é bom; mas porque o desejo é que ele se torna bom. Mas o que seria o crescimento da potência de uma força revolucionária? Força revolucionária: um agrupamento? De que tipo? Potência desta força: o que a torna mais forte, com maior condição de ação? Tudo isso em relação a quê?
++
Potência é abandonar algo da vida que a obstrui!
+++
GUERRA
No fundo, a rejeição da guerra só exprime uma recusa infantil ou senil em admitir a existência da alteridade. A guerra não é a matança, mas sim a lógica que regula o contato de potências heterogêneas. Se há uma multiplicidade de mundos, se há uma irredutível pluralidade de formas de vida, então a guerra é a lei de coexistência nesta terra. (ANACI, 167)
A paz não é possível nem desejável. O conflito é a própria matéria daquilo que se é. Resta adquirir uma arte de como conduzir isso, que é uma arte de viver situacionalmente, e que supõe delicadeza e mobilidade existencial mais do que vontade de esmagar aquilo que não somos. (ANACI, 168)

Comentários
É inspirado em Michel Foucault o conceito de guerra (ou guerra civil) que CI põe em circulação aqui – e que também se encontra em Tiqqun (Contribuição para a guerra em curso, n-1, 2019). Diz o filósofo francês em A sociedade punitiva (citado em ANACI, 179): “A guerra civil é a matriz de todas as lutas pelo poder, de todas as estratégias do poder e, por conseguinte, também a matriz de todas as lutas a propósito do poder e contra ele”, um “processo através do qual e pelo qual se constituem diversas coletividades novas, que não tinham vindo à tona até então”.
Em Tiqqun, a formulação é quase idêntica ao trecho do CI reproduzido acima: “A guerra civil é o livre jogo das formas-de-vida, o princípio de sua coexistência” (p. 25). Lá temos uma breve, mas precisa, explicação sobre o uso do termo: “Guerra, porque, em cada jogo singular entre formas-de-vida, a eventualidade do confronto bruto, do recurso à violência, jamais pode ser anulada” (p.26).
Nesses trechos todos, talvez seja preciso compreender, como alerta CI, que “a guerra não é a matança”, mas a lógica do encontro, do “jogo” entre potências diferentes. É por isso que, do outro lado do espelho, a paz não seja possível. Guerra e paz jogam aqui o seu jogo de antinomias.
Curiosa a escolha pela guerra e a recusa da paz. Ora, seria possível afirmar, também com o intuito de ressignificar um conceito, que a paz não é a harmonia, o bem estar indiscriminado que supõe o fim de todos os conflitos, mas, sim, considerando que “o conflito é a própria matéria daquilo que se é”, ela é justamente “a arte de viver situacionalmente, e que supõe delicadeza e mobilidade existencial mais do que vontade de esmagar aquilo que não somos”. Delicadeza e mobilidade existencial parecem ser, em política, talvez o que mais se aproxima de um sentido ativo e potencializador de “paz”.
Antes de ser qualquer recusa, em qualquer condição etária, da alteridade, rejeitar a guerra, isso que comumente se entende por guerra – esta expressão do poder que se manifesta em matança (individual ou coletiva, velada ou escancarada, no estrangeiro ou em território nacional), genocídio, carnificina, massacre, chacina, assassinato (qualquer nome que se dê a isso) –, ao contrário, pode ser a melhor ou a maior afirmação da alteridade que se possa fazer neste mundo. E a isso se segue, como decorrência necessária, a recusa da recuperação ou retomada do conceito de guerra como potência da criação das coletividades novas; simplesmente a recusa em dourar a pílula da ideia de guerra, uma forte rejeição da guerra (e da violência) inclusive como metáfora da potência da vida.
++
Há um pressuposto que orientou ou orienta a vida social: “o homem é o lobo do homem”, a vida é a “guerra perpétua de todos contra todos”. Isto se traduz em um problema para a paz e, principalmente, para a liberdade: “a minha liberdade acaba quando interfere na do outro”.
Ora, o esforço é para ampliar as esferas de liberdade: a liberdade de um aumenta junto com a dos demais. Mas não há ponto pacífico nesta formulação. Na mesma medida em que diferentes interesses se chocam é que aparecem os conflitos. Sua resolução implica algo que pode ser diverso da sua pacificação e aproximar-se da sustentação do conflito enquanto sustentação da vida em si mesma e de todas as formas de vida que lhe acompanham.
Quanto de guerra, no sentido mais frequentemente usado do termo, não se fez em nome da “paz”?
++
“Se quer guerra terá! Se quer paz, quero em dobro!” (Vida Loka, parte 1 – Racionais Mc’s)
A paz não é algo presente nos corpos daqueles que vivem na guerra. Falo daqueles e daquelas que nascem, vivem e morrem nela e com ela se constituem. Falo de gente da pele escura que ao nascer lhe é declarada guerra! São mortos por ela, são potentes a partir dela. Arrasados pelos seus destroços, multiplicados pela herança, pela história dos que não estão mais para contar. Se a paz prometida vier pelo decreto, que a guerra se faça em dobro!
++
Para alguns povos indígenas a guerra não visa acabar com os inimigos. Ela é apenas uma forma de comunicação – incluir em si um traço do inimigo e assim ampliar o repertório, tornar-se mais forte. A aposta é de que o conflito alimentará a cultura e o conhecimento. A guerra como tática de afirmação da vida.
+++
DESTITUIÇÃO
Repensar a ideia de revolução como pura destituição. (ANACI, 88)
Para destituir o poder não basta portanto vencê-lo na rua, desmantelar seus aparelhos, incendiar seus símbolos. Destituir o poder é privá-lo de seu fundamento. É isso o que justamente uma insurreição faz. (…) Destituir o poder é privá-lo de legitimidade, é conduzi-lo a assumir sua arbitrariedade, a revelar sua dimensão contingente. (…) Na insurreição, o poder vigente é mais uma força entre outras forças sobre um plano de luta comum, e não mais essa metaforça que rege, ordena ou condena todas as potências. (…) Destituir o poder é mandá-lo por terra. (ANACI, 89-90)
Quebrar o círculo que faz de sua contestação o alimento daquele que domina, marcar uma ruptura na fatalidade que condena as revoluções a reproduzir aquilo que elas perseguem, tal é a vocação da destituição. A noção de destituição é necessária para liberar o imaginário revolucionário de todos os velhos fantasmas constituintes que a entravam, de toda herança enganadora da Revolução Francesa. Ela é necessária para fazer um corte no seio da lógica revolucionária, para operar uma partilha no próprio interior da ideia de insurreição. Pois há as insurreições instituintes, aquelas que acabam como acabaram todas as revoluções até hoje: retornando a seu contrário, aquelas que se fazem “em nome de…” – em nome de quem? do povo, da classe operária, de Deus, pouco importa. E há as insurreições destituintes, como foram as de maio de 1968, o maio desenfreado italiano e tantas comunas insurrecionais. (MDA, 91)
Comentários
Negri, citado e atacado pelo CI, advoga em prol de uma releitura do conceito a partir da materialidade das lutas que emergem a partir de 2011, contra uma leitura estritamente jurídica e moderna dos mesmos. Em seu último livro com Hardt, ambos defendem a invenção de instituições não-soberanas, construídas sobre as bases das redes de cooperação. Afirmam a importância da tomada de poder, mas não a permanência das instituições como formas jurídicas em si mesmas.
++
As revoluções até hoje não deram conta de realizar uma ruptura drástica no sentido de propriedade. Não basta destituir o sentido de propriedade, deslocá-la de um polo a outro. A propriedade precisa ser destruída!
Nenhuma instituição pode ser capaz de governar a vida das pessoas, ponto.
+++
SAIR
Destituere significa, em latim: colocar em pé à parte, erigir isoladamente; abandonar; pôr de lado, deixar cair, suprimir; decepcionar, enganar. Enquanto a lógica constituinte choca-se contra o aparelho de poder sobre o qual ela pensa ter controle, uma potência destituinte se preocupa muito mais em dele escapar, em retirar desse aparelho qualquer controle sobre si, na medida em que agarra o mundo que forma à margem. Seu gesto próprio é a saída, enquanto o gesto constituinte é a tomada de assalto. Em uma lógica destituinte, a luta contra o Estado e o capital vale sobretudo por uma saída da normalidade capitalista, na qual se vive, por uma deserção das relações de merda consigo, com os outros e com o mundo que, na normalidade capitalista, se experimenta. (MDA, 94-95).
Comentário
Não se está falando apenas em tomar ou não tomar o poder, mas em esvaziamento das instituições, num movimento em que a coletividade passa a assumir seu papel, realizar suas funções, sufocar as instituições pela positividade de suas ações. Se Syriza e Podemos, ao tentarem ocupar o poder, foram por ele ocupados (citação que o CI faz de um militante do próprio Podemos ao referir-se ao mesmo), isto nos alerta para o fato mesmo de que a estrutura que sustenta esse mundo de pé está falida. Romper a normalidade capitalista é romper a dependência institucional?
Experiências vividas por nós vêem que as lutas se dão simultaneamente, não uma em detrimento da outra (como um território quilombola que tem condições de viver autonomamente em relação às instituições, mas não abre mão das mesmas – seja a eletricidade do Luz Para Todos, seja a construção da escola estadual ou da unidade de saúde).
+++
CONSTRUIR, ATACAR
O gesto revolucionário, portanto, não consiste mais em uma simples apropriação violenta deste mundo, ele se desdobra. De um lado, há mundos por fazer, formas de vida que devem crescer distantes do que impera, aqui compreendido o que pode ser recuperado do atual estado de coisas, e, por outro, é preciso atacar, é preciso destruir o mundo do capital. (MDA, 104)
Só uma afirmação tem a potência de cumprir a obra da destruição. O gesto destituinte é assim deserção e ataque, elaboração e saque, e isso em um mesmo gesto. Ele desafia, ao mesmo tempo, as lógicas admitidas da alternativa e do ativismo. O que se joga nele é uma junção entre o tempo longo da construção e aquele mais intermitente da intervenção, entre a disposição em gozar de nosso pedaço de mundo e a disposição para colocá-lo em jogo. (MDA, 106)
Comentário
O esvaziamento dos poderes constituídos, das instituições, pela afirmação de formas de vida que podem interromper a normalidade da vida atravessada pelo capitalismo: interromper e destruir.
Construção, intervenção. Destruir para recriar?
Na base da criação está a destruição.
+++
SECESSÃO
Vamos (…) assumir a secessão que o capital já pratica, mas ao nosso modo.Fazer secessão não é cortar uma parte do território do conjunto nacional, não é se isolar, cortar as comunicações com todo o resto – isso é a morte certa. Fazer secessão não é constituir, a partir do refugo deste mundo,contraclusters em que comunidades alternativas se comprazeriam em sua autonomia imaginária relativa à metrópole (…). Fazer secessão é habitar um território, assumir nossa configuração situada no mundo, nossa forma de aí permanecer, a forma de vida e as verdades que nos conduzem e, a partir daí, entrar em conflito ou em cumplicidade. É, portanto, criar laços de maneira estratégica com outras zonas de dissidência, intensificar as circulações com as regiões amigas, ignorando as fronteiras. Fazer secessão é romper não com o território nacional, mas com a própria geografia existente. É desenhar uma outra geografia, descontínua, em arquipélago, intensiva – e então partir ao encontro dos lugares e dos territórios que nos são próximos, mesmo se for necessário percorrer dez mil quilômetros. (ANACI, 220-221)
Comentário
Não se trata, então, de algo tipo “walden” [1] ou qualquer remissão a comunidades hippies. A menção a Deligny [2] e seu grande trabalho com as pessoas com autismo talvez possa dar uma materialidade. Ou talvez o que os zapatistas construíram até aqui. Ou talvez, de novo, a terra quilombola, que não abdica de seu direito ao título que lhes amplia direitos, mas não se entrega a um modo de vida da economia capitalista, mantendo muito de sua forma de vida tributária há três séculos de existência.
1 Walden ou a vida nos bosques é uma obra de Henry David Thoreau, publicada nos EUA em 1854.
2 Fernand Deligny (1913-1996), educador francês.
+++
ORGANIZAÇÃO
Se organizar nunca quis dizer se filiar a uma mesma organização. Se organizar é agir segundo uma percepção comum, em qualquer nível que seja. Ora, o que faz falta à situação não é a “cólera das pessoas” ou a penúria, não é a boa vontade dos militantes nem a difusão de consciência crítica, nem mesmo a multiplicação do gesto anarquista. O que nos falta é a percepção partilhada da situação. Sem essa ligatura, os gestos se apagam no nada e sem deixar vestígios, as vidas têm a textura dos sonhos, e os levantes terminam nos livros escolares. (ANACI, 18-19)
Como construir uma força que não seja uma organização? (ANACI, 277)
É preciso sair de nossa casa, ir ao encontro, tomar o caminho, trabalhar a ligação conflitiva, prudente e feliz, entre os fragmentos de mundo. É preciso se organizar. Organizar-se verdadeiramente nunca foi outra coisa do que se amar. (MDA, 57-58)

Comentários
Que bom seria se a nossa percepção partilhada da situação partisse, então, da organização verdadeira chamada amor. Isso se o que organiza não for o papel, mas o valor e o sentimento. Eu poderia me basear na ideia de que a única coisa mais forte do que o medo é a esperança e partilharia, então, a esperança de que um mundo melhor é realmente possível. Quem sabe, daí, se organizaria uma revolução.
++
Uma primeira ideia, para ser elaborada: qualquer tentativa de organização contra-hegemônica precisaria assumir-se, antes de mais nada, como não-hegemônica, ou não hegemonista.
E isso é o contrário do que querem e do que fazem nossos amigos e amigas da “esquerda”, de seus partidos, movimentos associados e aparelhos. Qualquer pessoa ciente de sua liberdade e de sua independência irá dizer Não a tais pretensões de subordinação mascaradas de “frente ampla”. A história da fagocitação política das múltiplas potências pelas organizações de massa centralizadas e hegemonistas já é velha conhecida.
Dizer “Não!” aos hegemonistas não resolve muita coisa do problema da “organização” – só exige que pensemos em outros pontos de partida.
+++
MODA
Quem quer que comece a freqüentar os meios radicais se admira de início com o hiato que reina entre seus discursos e suas práticas, entre suas ambições e seu isolamento. Eles parecem como que condenados a uma espécie de autodestruição permanente. Não demora muito tempo para perceber que eles não estão ocupados em construir uma força revolucionária real, mas em alimentar uma corrida de radicalidade que satisfaz a si própria – e que se desenrola indiferentemente no terreno da ação direta, do feminismo ou da ecologia. O pequeno terror que aí reina e que torna o mundo tão duro não é o do partido bolchevique. É antes o da moda, esse terror que ninguém exerce pessoalmente, mas que se aplica a todos. Teme-se, nesses meios, deixar de ser radical, como do outro lado se teme deixar de estar na moda, de ser cool ou hipster. Precisa-se de pouco para manchar uma reputação. Evita-se ir à raiz das coisas em proveito de um consumo superficial de teorias, de manifestações e de relações. A competição feroz entre grupos, como também entre si, determina uma implosão periódica. Há sempre carne fresca, jovem e iludida para compensar a partida dos esgotados, dos traumatizados, dos enojados, dos esvaziados. (ANACI, 172-173)
Comentários
Antigamente (é preciso usar este advérbio com muita ênfase), antigamente o militante preocupado com o povo, envolvido com a classe trabalhadora, queria fazer desaparecer sua identidade burguesa, sua consciência culpada, e, assim, se dissolvia ele mesmo num devir-operário. Seu horror era parecer diferente do povo. Queria se misturar ao povo, pertencer ao sujeito coletivo, dispor de si para se amalgamar na figura sem rosto da classe revolucionária que faria tudo mudar.
Contemporaneamente, o ativista é, antes de qualquer coisa, um ser distinto – incomum, diferente. Tudo isso em nome da premissa da singularidade, aquilo que é mais próprio da vida e da liberdade, o mais radical exercício do viver: ser único, sem igual. Pior é que nem é tanto assim. Uma vez que essas e esses singulares todes acabam no final tão parecides.
++
Então, numa consideração com viés menos sarcástico, é preciso reconhecer que o ativismo está inscrito, em suas formas contemporâneas, no âmbito maior das modas culturais juvenis, e que se expressa com base em pressupostos conceituais e atitudinais delas, sendo indissociável do curso desses fenômenos mais abrangentes. Então, é preciso reconhecer no ativismo suas influências hippies, góticas, punks, cristãs, leninistas, guevaristas, gandhianas, rastafáris… No mínimo, isso nos abre novas abordagens sobre os desafios da mobilização e da interlocução com a “sociedade” – este conjunto dos que habitam conosco e estão ao nosso redor e aquilo que, de uma forma ou de outra, todo ativismo pretende transformar.
Na verdade, talvez caiba reconhecer o ativismo ele próprio como uma moda cultural, um “estilo de vida”, com seus códigos, seus discursos, suas manifestações estéticas, seu visual e suas roupas. Quando um estereótipo se constitui, ele o faz a partir de uma base original empírica; o estereótipo é falso, no mínimo, enganoso, mas pode dar boas pistas para abordar um fenômeno. Se alguém usa o qualificativo “ativista” – como em pessoa ativista, atitude ativista, revista ativista – é porque há uma forma cultural de características definidas que se instituiu. Qual forma é essa, e quais são suas características? Isso dá uma boa pesquisa.
++
Se os “meios radicais” são ambiente de moda, como insinua este trecho do CI, os radicais tem de lidar com isso, seja 1) superando e ultrapassando essa condição, seja 2) assumindo um perfil e um estilo correspondente à sua moda, seja 3) abolindo sua própria radicalidade, aquilo que os distingue e caracteriza. É o momento em que o ativista pode ou não negar o seu ativismo sem negar sua luta.
++
Me parece que está também em jogo o sentido e a possibilidade de um devir ativista. Não no sentido de vir a ser isso ou aquilo, na maneira utópica de ser e estar em uma sociedade que se deseja, mas de assumir a radicalidade de não se enclausurar em uma identidade fixa, em uma causa sublime e única. Permitir transformar-se em qualquer coisa que a luta exigir. Ser floresta, ser terra, ser água, ser sem terra, sem teto, refugiado, trans, estudante, o que for preciso. E antes de tudo: não se deixar capturar pela moda.
+++
ATIVISMO PERFORMÁTICO
Ao se definir como produtor de ações e de discursos radicais, o radical acabou de forjar uma ideia puramente quantitativa de revolução – como uma espécie de crise de superprodução de atos de revolta individual. “Não percamos de vista”, escrevia Émile Henry, “que a revolução será a resultante de todas essas revoltas particulares”. A história está aí para desmentir essa tese: seja a revolução francesa, russa ou tunisiana, todas as vezes a revolução é resultante do choque entre a situação geral e um ato particular – a invasão de uma prisão, uma derrota militar, o suicídio de um vendedor ambulante de fruta –, e não a soma aritmética de atos de revolta separados. Essa definição absurda de revolução está provocando os danos previsíveis: esgotamo-nos num ativismo que não se enraíza em nada, entregamo-nos ao culto mortífero da performance, no qual se trata de atualizar a todo momento, aqui e agora, a identidade radical – seja nas manifestações, no amor ou no discurso. Isso dura um tempo – o tempo de burnout, de depressão ou de repressão. Sem que ninguém tenha mudado nada. (ANACI, 174-175)

Comentários
CI faz uma crítica ao modelo greenpeace de ativismo espetacular. Mesmo que a organização ambientalista mundial possa fazer mais do que executar foto-oportunidades e cenas telegênicas para delícia da mídia, não resta dúvida que produziu um estilo de ativismo midiático, copiado e reproduzido por muitas.
Esse “culto mortífero da performance” é fácil de ser verificado entre nós, ativistas do Brasil, especialmente no ambiente das grandes cidades. Trata-se de uma espécie de ativismo de atos, um “atismo”, doença juvenil da luta, contemporânea dos likes e das selfies, dos vlogs e influencers digitais. Eis um tema controverso, pois o espetáculo pode/deve ser uma arma, dirão algumas; e o espetáculo precisa ser derrotado, dirão outras.
CI sugere a alternativa de um ativismo que se enraíze.
Em outra chave, a gente poderia dizer: no mínimo, um ativismo que não seja banal. Eis um critério muito simples, de fácil uso, como nesta pergunta singela: Este ato (marcha, ação criativa, ocupação etc) que iremos fazer é um ato banal?
++
Se essa revolução que se faz montar como um quebra cabeça, uma soma extenuante entre partes “particulares” – se ela é absurda, podemos dizer que a estratégia é também um instrumento absurdo de revolução. A estratégia fatia a luta em partes, apostando que será também uma “crise de superprodução” de táticas certeiras que levarão a um resultado – que, francamente, é desconhecido.
O radical nunca encontrará as raízes de nada. Não pode se orgulhar de muito mais do que fingir decifrar o indecifrável. Não é a toa que a destituição proposta pelo Comitê quer “mandar o poder por terra” (ANACI, 90), tombá-lo de uma vez como uma estátua milenar.
Paremos de tentar encontrar, talvez, aquilo de que a revolução é resultante.
+++
POLÍTICA
Eis a grande mentira e o grande desastre da política: colocar a política de um lado e de outro da vida: de um lado, o que se diz, mas que não é real e, do outro, o que é vivido, mas não se pode dizer. (MDA, 71-72)
“Política” jamais deveria ter se convertido em um nome. Deveria ter continuado um adjetivo. Um atributo e não uma substância. (MDA, 73)
Comentário
“Ativismo” jamais deveria ter se desdobrado em adjetivos ou nomes que caracterizam sujeitos (“ativista”). Deveria ter continuado a ser tratado como um fenômeno, designado sempre a posteriori, isto é, que só pode ser percebido depois que acontece. Como a paixão, ou o amor.
+++
AGIR
Um movimento que exige está sempre por baixo de uma força queage. (ANACI, 86)
O velho mito da greve geral [deve] ser colocado na seção dos acessórios inúteis.(MDA, 24)
Mostrou-se evidente, para todo manifestantevivo, que os desfiles em marcha lenta exibiam a pacificação pelo protesto. (MDA, 35)
Os amadores desses cortejos fúnebres nomeados “manifestações”, todos estes que, tomando um vinho tinto, apreciam o gozo amargo de ser sempre derrotados, todos estes que soltam um flatulento “Isso vai dar merda!”, antes de sabiamente entrarem em seus carros. (MDA, 14)

Comentários
Pode-se falar de uma crise do ativismo? A primeira frase reproduzida acima, retirada de um livro do Comitê Invisível, e que poderia constar de qualquer coletânea de citações vendidas baratinho num saldão de livros usados, diz quase tudo sobre essa crise. Uma grande parcela do ativismo brasileiro das manifestações e atos criativos na Paulista ou na Esplanada dos Ministérios parece nitidamente estar por baixo, pois a única coisa que faz é “exigir”. E ir-para-a-rua é a fórmula caduca de seu modusoperandi que só trai a sua impotência.
Primeiro, ir-para-a-rua é, quase sempre, reação – e não ação. E, quase sempre, reação tímida e fraca, diante de uma ação ostensiva e forte do adversário (o Estado, as corporações, o Poder).
Segundo, ir-para-a-rua é, quase sempre, iniciativa descolada de uma estratégia de força, de oposição e luta, que prevê escaladas, avanços súbitos ou retiradas táticas, confrontação radical. Em geral, os atos de rua se esgotam neles mesmos – são fins em si mesmos. Por isso, inócuos, quase sempre.
Terceiro, os atos de rua, em geral, com seus cartazes e palavras de ordem, são menos situações de força que extravasam para o espaço público e mais uma espécie de modo espetacular de transmitir nossa mensagem para a televisão. Quase sempre, nesse sentido, são uma forma de mídia – e nada mais que isso. Num mundo midiatizado, rodeado de imagens por todos os lados, esses atos desaparecem instantes depois que vêm à luz, desmancham no ar depois de seus 15 segundos de fútil fama.
Quarto, as mensagens dos atos de rua quase sempre interpelam os agentes do poder fortalecendo sua posição de poder: exigem que o Estado cumpra a lei; que os deputados votem ou deixem de votar; que as autoridades ajam ao ordenar algo ou ao retirar uma ordem; que as empresas deixem de fazer ou façam alguma coisa para o bem. Reivindicação é, no fundo, isso: pedir. “Parem as motosserras!”. Quem irá pará-las?
Quinto, ir-para-a-rua é item típico de uma cartilha de táticas na categoria “Formas básicas de luta”, algo como um “abaixo-assinado” das vias públicas (enquanto no abaixo-assinado os signatários reivindicantes colocam seus nomes, os aqui-presentes das passeatas colocam seus corpos – não à toa os resultados de ambas as táticas costumam ser parecidos). É uma forma codificada demais, já sabida, de fácil combate e anulação. Então, por que insistimos tanto nela?
Para além do argumento da demonstração de forças (reunir gente na rua é prova de nossa determinação) e de servir como indicador de mobilização das causas, os atos públicos que só fazem reivindicar parecem evidenciar, no fundo, a incapacidade do ativismo de ir além do discurso e de dar conta de uma luta política verdadeiramente conseqüente – isto é, com conseqüências, quaisquer que sejam elas. Por isso, esses clichês táticos de certo ativismo são sinais de crise – crise de responsabilidade, crise de visão, crise da própria potência.
++
Perguntas orientadoras:
O que seria um agir distinto de um exigir? Como sair da reivindicação pura e simples para a ação que não pede, faz?
Como podemos substituir o ato midiático de rua por alternativas táticas mais conseqüentes? Se a ideia é não ir para a rua (pelo menos, não no modo automático), iremos para onde? E para fazer o quê?
Se a rua é o lugar onde a polícia certamente estará, onde a polícia não vai estar?
Você já tomou a dianteira hoje?
+++
TÁTICA
Ocupar praças bem no centro das cidades e aí montar barracas, e aí montar barricadas, refeitórios ou tendas, e aí reunir assembleias, tudo isso em breve se tornará um reflexo político básico, como ontem foi a greve. (ANACI,12)
O motim, o bloqueio e a ocupação formam a gramática políticaelementarda época. (MDA, 38)
Comentário
Uma gramática elementar não tem de ser baseada em táticas elementares, mas num modo de agenciar processos e formas de luta capazes de incidência e efeito. Uma gramática sem formas prontas, isto é, que sugira apenas modos de produzir formas, nunca a reprodução do que um dia foi feito. Sem cases, sem melhores práticas – apenas uma linguagem da ação.
+++
NUNCA
Numa de suas publicações, os opositores à construção da linha-férrea Lyon-Turim escreveram; “O que significa serno-TAV? É partir de um enunciado simples; ‘o trem de grande velocidade nunca passará pelo Vale de Susa’ e organizar sua vida para que esse enunciado seja confirmado.” (ANACI, 221)
Comentários
Faço coro: Nunca!
Acredito que sem essa dimensão de determinação, os trabalhos, mesmos estes realizados no híbrido campo das organizações não-governamentais, não têm qualquer sentido. Não lutamos esperando pela derrota. Lutamos porque sabemos que nunca vai acontecer o mal que está prestes a nos acometer.
++
Nunca um Não ganhou tanta força como este Nunca.
Passar a usar mais este Nunca.
Por exemplo, na recusa e no combate às obras de infraestrutura que só nos vem arrasar e destruir.
Por exemplo, no caso do Porto Sul, em Ilhéus: “Nunca um porto para exportar minério será construído no sul da Bahia”.
Por exemplo, no Mato Grosso: “Nunca hidrelétrica de qualquer porte tomará o rio Juruena”.
Por exemplo, naquele estado montanhoso das Gerais: “Nunca mais se implantará aqui uma barragem de rejeito de minério”.
Em tantos lugares: “Nunca quem quer que seja fará qualquer coisa à nossa revelia”, “Nunca um direito a menos”, “Nunca terei ou serei eu mesmo/a chefe”… A lista é extensa.
Nunca houve palavra mais radical.
+++
TOMAR A DIANTEIRA
É preciso ler as doutrinas contrainsurrecionais, então, como teorias de guerra dirigidas contra nós, e que tecem, entre outras coisas, nossa situação comum nesta época. (…) Se as doutrinas de guerra contrarrevolucionária se modelaram a partir de sucessivas doutrinas revolucionárias, não podemos deduzir negativamente, contudo, uma teoria da insurreição a partir de teorias contrainsurrecionais. Eis a armadilha lógica. Não basta que mantenhamos uma guerra latente, que ataquemos de surpresa, que derrubemos todos os alvos do adversário. Até essa assimetria foi reabsorvida. Em matéria de guerra, como de estratégia, não basta recuperar o atraso: é necessário tomar a dianteira. Precisamos de um plano que vise não o adversário, mas a sua estratégia, que a volte contra ele. De tal maneira que, quanto mais acredita estar vencendo, mais rápido ele está caminhando para sua derrota. (ANACI, 186-187)
Comentário
Imagine um certo cenário sombrio num certo país distópico da América Latina, no qual as forças de resistência encontram-se atarantadas e confusas. As formulações do final do texto acima podem ajudar.
Ler novamente as três frases finais.
Ler em voz alta e bem devagar.

38 é muito: os jovens ativistas que derrubaram o ditador de Angola
Laurinda Gouvea

Introdução
No continente africano, o século 21 tem sido tempo de levantes. Não só: emergiram lá mais levantes do que em qualquer outra parte do mundo, em particular os movimentos de massa não violentos.[1] Em alguns países, como Tunísia e, mais recentemente, Sudão e Argélia, o poder popular desalojou chefes de Estado que há décadas se recusavam a sair. Em outros, como Uganda, Zimbábue e Quênia, as ações diretas, campanhas e mobilizações comunitárias têm ganhado um sopro de criatividade e tenacidade.
1 Erica Chenoweth, Zoe Marks e Jide Okeke. People Power Is Rising in Africa: How Protest Movements Are Succeeding Where Even Global Arrest Warrants Can’t. Foreign Affairs, 25 de abril de 2019. Na última década, a África liderou a emergência movimentos de massa não violentos (25), seguida pela Ásia (16).
Angola, com a qual compartilhamos o passado de colonização portuguesa, também viu o curso de sua história mudar pela força do ativismo. Após viver em primeira mão a insurgência contra o ex-ditador José Eduardo dos Santos – e sofrer no corpo a represália à luta – a ativista Laurinda Gouveia, hoje com 29 anos, relata a jornada dos jovens “revús”.[2]
2 Nome pelo qual ficaram conhecidos os jovens ativistas angolanos que se empenharam na luta contra o regime.
Angola está situada na parte austral ocidental de África. É um dos países mais ricos do continente devido aos seus recursos minerais e naturais. Em 1482, Angola foi colonizada pelos portugueses. Sofreu tortura e escravatura. Eles entraram de forma fria e dominaram todo o território. Acabaram por ter sua posse da terra confirmada na partilha da Conferência de Berlim, de 1884 a 1885. Apesar de termos lutado pela independência com catanas [3] dos colonos deixarem fisicamente Angola, espiritualmente o colono ficou e domina ainda a nossa terra. Os três partidos, MPLA, Unita e FNLA, [4] proclamaram a independência no dia 11 de novembro de 1975, mas logo depois instauraram a guerra por ganância e ambição do poder, apoiados pelo ocidente. Muitos filhos de Angola perderam a vida [5] no conflito, que teve fim com a morte de Jonas Savimbi, em 2002.
3 Facões.
4 MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Unita (União Nacional Para a Independência Total de Angola) e FNLA (Frente Nacional de Libertação do Leste) foram os três principais movimentos a se engajarem na luta anticolonial em Angola nos anos 1960-70. Posteriormente, entraram em guerra civil pelo poder – em boa parte, um conflito “por procuração” que envolvia China, União Soviética, Cuba, EUA e África do Sul. Com a proclamação da independência em 1975, o MPLA passou a controlar o aparato estatal, sendo militar e politicamente desafiado pela Unita até 2002. A FNLA entrou em declínio militar nos anos 1970. Hoje, os três movimentos operam como partidos em Angola, embora o MPLA permaneça hegemônico.
5 As estimativas do número de mortos na Guerra Civil de Angola variam muito, indo de 500 mil a 2 milhões.
O feito da guerra foi tão forte que até hoje continuamos a vivenciá-la: o MPLA agarra-se com ganância ao poder desde então e mantém o povo refém da sua ditadura, sendo autor de vários massacres que ceifaram a vida de milhares de angolanos e angolanas. O mais marcante deles foi em 27 de maio de 1977 [6]. Levantaram-se, nessa data, pessoas que não aceitavam a forma como o MPLA estava a conduzir o país. Foram perseguidas, sequestradas e mortas pelo partido, que simulou um golpe de estado. Até hoje o governo não se responsabiliza nem entrega os cadáveres aos familiares. Cada um de nós tem um familiar ou conhecido que passou por esse facto [7] histórico. Esse massacre marcou as nossas histórias e mentes enquanto jovens e hoje representa momento de reflexão e protesto. Por outro lado, ele inibe os nossos familiares e amigos que viveram direta ou indiretamente aquele momento e temem que o mesmo venha a acontecer connosco.
6 Um dos episódios mais polêmicos, controversos e violentos da história angolana recente.
7 O leitor e a leitora encontrarão neste texto a grafia do português angolano. Angola não aderiu ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa ratificado em 1990 por Portugal, Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. No entanto, em 2019, o país inaugurou uma Comissão Multissetorial que discute a possibilidade de adesão pelos próximos cinco anos.
O activismo em Angola surge da situação adversa que o país enfrentou e enfrenta em quase todos os níveis – social, político, económico e de direitos humanos – por culpa de um grupo que tomou a hegemonia no país, como coisa privada e particular, que não se responsabiliza pelo estrago que vem causando nos 45 anos desde a independência. Perdemos a nossa história, nossas línguas, passamos a adorar o vazio, ficamos presos às tradições alheias, continuamos escravos sem direito a opinião. Não produzimos, vivemos presos aos estrangeiros, o nosso governo não aposta no cidadão e a mulher não tem voz, sem capacidade de encontrar a verdadeira liberdade. O povo continua sob o martírio da pobreza extrema, vivendo diariamente à custa de um dólar. Sofremos com a falta de respeito aos direitos dos cidadãos e cidadãs, enquanto o Estado e as políticas governamentais fecham os olhos de estrangeiros que não vivem a realidade deste triste país. Nepotismo, corrupção, impunidade, eleições fraudulentas, perseguição e morte de quem pensa diferente. Perfume de neocolonialismo, fantasma de guerra e regresso ao partido único.
O RENASCER DO ACTIVISMO EM ANGOLA
O nosso activismo emergiu neste contexto, com todas as lutas que alguns mais velhos começaram. Exigíamos saúde de qualidade, liberdade de expressão, educação e igualdade de tratamento. Mas o desafio maior que nos propusemos era remover José Eduardo dos Santos do poder, onde estava havia mais de 32 anos.

Não éramos os primeiros a confrontá-lo diretamente. Já existiam na sociedade civil personalidades como Makuta Konde, William Nome, Rafael Marques, o deputado Mfulupimga Nlando Victor e o jornalista Ricardo de Melo, os dois últimos mortos por falarem a verdade acerca de como estava a ser conduzido de forma errada o país. Nós próprios acreditávamos que não estaríamos vivos nos próximos 10 anos devido às mensagens que nossos familiares recebiam para impedir nossa luta pela liberdade. Mas, para nós, havia coisas mais importantes do que a vida: a nossa nação, a mudança. Uma Angola com hospitais, escolas, água e luz eficiente para todos os cidadãos, como direito e não esmola do governo.
Com ajuda das redes sociais e a coragem da juventude, começamos em 2011 uma campanha: “32 é muito. Fora, Zédu”. [8] A campanha era fortemente impulsionada por um “fantasma” com o nome Jonas Roberto, que até hoje não sabemos quem é além de alguém do Facebook. Alguns activistas, tempos depois, fizeram-se passar por ele, mas foram desmontados pela falsa argumentação. Ainda assim, os discursos de Jonas Roberto possuíam uma sustentabilidade e convicção de alguém que conhecia bem o sistema apodrecido em que estávamos inseridos.
8 Em alusão ao número de anos em que José Eduardo dos Santos estava, à época, no poder em Angola.
Eu apercebi-me da campanha em um show de hip hop em fevereiro de 2011, em que os músicos Ikonoclasta (Luaty Beirão) e Edu ZP a anunciaram. Antes disso, eu não sabia o que era uma manifestação de rua propriamente dita. Somente via manifestações religiosas e dos partidos políticos, algumas em apoio ao ditador José Eduardo dos Santos. Por outro lado, também estavam a acontecer manifestações em outras partes de África, como Egito e Líbia, e estes acontecimentos nos motivavam. As ditaduras que estavam a ser derrubadas não eram diferentes da de Angola.
No dia 7 de março de 2011, a uma hora da madrugada, aconteceu o primeiro protesto no Largo Primeiro de Maio. Os que apareceram, incluindo o próprio Luaty Beirão, acabaram por ser presos. A televisão pública dizia que os jovens estavam presos porque estavam a se fazer passar por manifestantes religiosos. Só depois acabei por confirmar que aquela informação era falsa, e que os manifestantes reivindicavam a destituição do presidente. Ainda não havia como tal um grupo organizado. Os que lá estiveram ouviram e aceitaram o apelo do Jonas Roberto. Mas, depois daquela primeira manifestação, constituiu-se automaticamente um coletivo que tratava das propagandas e actividades do então “movimento revolucionário”, nome dado pela mídia. Eu passei a fazer parte do grupo organizativo em 2013.
Os protestos aconteciam no mesmo local. Cada um aparecia com um sentido patriótico muito forte. Queríamos uma Angola melhor, sem José Eduardo. As manifestações eram divulgadas nas redes sociais ou nos eventos de hip hop que aconteciam na periferia. A internet foi a nossa mídia e única ferramenta, uma vez que a televisão pública não transmitia nada contra o presidente. Fazíamos vídeos, fotos e anúncios das nossas actividades para cativar as pessoas para aparecerem em massa. Usar a imagem do presidente de forma ridicularizada como protesto contra a má governação era uma coisa nova por parte da juventude. Sua imagem era usada nas igrejas e em marchas para adoração do “Santos”, mas nós, a juventude, decidimos mostrar seu verdadeiro rosto: o diabo que alimentava o inferno em Angola.
BARREIRAS: AS MANOBRAS DE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS
“Quem são os jovens manifestantes em Angola? São uns 300 jovens frustrados, que não tiveram sucesso escolar, que dizem estar descontentes com a minha governação”, disse José Eduardo dos Santos em grande entrevista na rede portuguesa SIC (Sociedade Independente de Comunicação) em 2012. A má propaganda pela parte do governo fazia com que o povo pensasse que nós éramos pessoas do mal. O MPLA controlava os canais públicos e nós não tínhamos os canais de televisão, nem as rádios nacionais, nem as igrejas como nossos aliados; todos eram usados como propaganda política para o partido que tinha o poder de controlar tudo no país. Outra dificuldade era que nem todos tinham acesso à internet, onde fazíamos a nossa propaganda e cidadania, na qual incentivávamos o povo a agir contra o mal do país através de manifestações pacíficas.

O partido tinha como aliados também os policiais nacionais, a quem usavam para nos ameaçar e meter medo em nossas famílias. Uma das vítimas da represália foi Kalupeteka, um jovem e carismático pastor que liderava a seita Luz do Mundo. Após recusarem-se a fazer propaganda política para o presidente, Kalupeteka e seus seguidores foram vítimas de uma emboscada pela polícia, que cometeu um massacre que matou mais de 100 velhos, jovens, mulheres e crianças. Os que conseguiram ali escapar foram perseguidos. A prisão e tortura do líder e, pouco depois, a sua condenação a 28 anos – uma pena que sequer consta no código penal, e maior do que o tempo máximo permitido por lei – tiveram repercussão na mídia tradicional e nas redes sociais. A lei angolana tem dono, e esse dono é o partido político do momento que está no poder para sempre.
Em 2011 e 2012 houve nas manifestações muitas torturas, espancamentos e perseguição. É o caso de Filomeno Vieira Lopes, espancado pela milícia de Bento Kangamba, marido da sobrinha de José Eduardo dos Santos, empresário da juventude e representante do MPLA. A Luaty Beirão lhe quebraram o braço de tanta surra na manifestação do dia 10 de março de 2012, no marco histórico do Cazenga, exigindo melhores condições básicas para aquele município. Já Mbanza Hamza, Carbono Casimiro e Manuel Gaspar foram surpreendidos por agentes da bófia [9] na casa de um dos activistas aonde estavam reunidos para arquitetar actividades posteriores. As prisões eram intensas e consecutivas. O governo fazia de tudo para que os activistas desistissem da sua luta por um melhor país.
9 Nome pejorativo para a polícia e seus agentes.
O ponto mais relevante destes dois anos foi a morte de dois activistas, Isaías Cassule e Alves Camulingue, que eram funcionários da Guarda Civil. O presidente da República, por um despacho, decidiu despedir mais de 1000 pessoas. Cassule e Camulingue lideravam o grupo de funcionários desmobilizados. Reivindicavam apenas os seus salários, subsídios e indemnização. Isto foi suficiente para serem mortos da forma mais cruel: foram raptados e levados a um local incerto quando estavam a preparar uma manifestação, e a ideia que se tem é que os mesmos foram esquartejados e os seus corpos atirados aos jacarés. Até então os seus familiares não tiveram a possibilidade de fazer um funeral condigno uma vez que os corpos não aparecem. Em 2013 é morto o jovem Manuel Hilberto Ganga, militante da Casa-CE, [10] enquanto estava a colar panfletos nas mediações do palácio um dia antes da megamanifestação organizada pelo partido Unita – justamente no intuito de exigir ao governo que se explicasse e mostrasse os ossos de Cassule e Kamulingue. Atirou a queima-roupa um dos guardas do Presidente da República.
10 Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral, um coligação formada por partidos e detentora de 16 assentos no Congresso angolano.
Os familiares queriam obrigar-nos a não nos envolvermos, temendo as armaduras do regime. Alguns decidiram mesmo desistir e mudaram de rumo; não queriam saber mais do ser activista ou cidadão consciente. Uns preferiram exilar-se e outros foram estudar no estrangeiro. Muitos desistiam da causa por medo do que poderia acontecer aos seus familiares. Outros, porque eram ameaçados de ficarem sem os seus empregos. Sempre pensei que sair ou desistir da luta não seria a solução, porque a realidade em si não compensa. Sabia que poderia morrer, mas seria para mim uma morte digna porque era por uma causa justa – uma Angola melhor para os angolanos e angolanas.
Época de grande baixa do activismo foi em 2013 a 2014, devido às perseguições e morte daqueles que se manifestavam. Alguns foram subordinados e receberam dinheiro para instaurar o caos no grupo. Com a baixa presença nas ruas, mudamos de estratégia. Como não havia meios do partido no poder controlar o Facebook, passamos a usar as redes sociais para relatar as situações graves que nos aconteciam, como as prisões ilegais e injustas feitas por parte da Polícia Nacional. Entre nós havia repórteres, fotógrafos e editores que recolhiam as peças. Os acontecimentos eram lançados aos 2.000 seguidores da nossa página, Central Angola 3711, e depois partilhados entre todos.
Também usávamos as redes sociais para educar a juventude a serem bons cidadãos e terem força para querer um país melhor, mostrando grandes figuras da revolução mundial que nos inspiravam por sua força, bravura, audácia e coragem, como Martin Luther King, Steven Biko, Nelson Mandela, Malcolm X e Jesus Cristo. Usávamos o chat para estudar e criar ideias. Foram as redes sociais que nos ajudaram ir em frente com a nossa luta. A juventude, apesar de na rua não querer contacto com os activistas, nas redes sociais era nossa seguidora e nos apoiava.
A ajuda de pessoas e organizações que estavam no exterior também nos tornava mais seguros para continuar. Tivemos o apoio de organizações internacionais como Amnistia Internacional e Human Rights Watch, que davam visibilidade para as violências que os manifestantes sofriam no exercício dos seus direitos constitucionais. Havia também cidadãos da diáspora que apoiavam as manifestações como um exercício de cidadania.
Já em Angola, tínhamos como apoiadores muitos agentes do governo que não podiam ir efetivamente contra o sistema político: estavam infelizes com a forma como o ditador estava a levar o país, mas nada poderiam falar nem dizer, sob pena de serem mortos ou perderem seu sustento.
Uma vez que toda manifestação era sabotada pelo governo ao receber o aviso prévio, optamos pelas manifestações-surpresa, ou espontâneas. Não avisávamos as autoridades para não lhes dar oportunidade de se prepararem. Chegávamos no local com 15 a 30 minutos de antecedência, enviávamos uma foto na Central Angola 7311 e, caso a policia aparecesse, a imagem já havia circulado. Caso acontecesse algo, todo mundo já sabia quem te fez mal e por qual motivo.
O DITADOR TENTA SILENCIAR NOSSA GERAÇÃO
Foi no final de 2014 que o regime ditatorial quis me matar. Fui raptada e torturada em 23 de novembro, quando pretendíamos nos manifestar pelo segundo dia seguido, exigindo a destituição do José Eduardo dos Santos do cargo de presidente. Nesse dia eu estava como repórter cívica, com a responsabilidade de reportar a manifestação e toda anomalia que pudesse ocorrer por parte da polícia. Quando reportava uma agressão que os meus colegas estavam a passar, fui surpreendida por um agente da bófia, que me esbofeteava, e de repente aproximaram-se quatro agentes da Polícia Nacional cuja patente dava a entender que eram comandantes. Pegaram-me pelos cabelos e arrastaram-me pelo asfalto para me meter no carro. Estando no carro, disseram que estavam a me levar para a esquadra. Mas isso não aconteceu. Levaram-me para um lugar sem movimento de pessoas onde, com porretes eléctricos, paus e ferros, submeteram-me a tortura durante quatro horas. Enquanto espancavam-me, estavam a filmar e perguntar quem era o líder do grupo, e porque eu, enquanto mulher, não me preocupo com casamento, ter um bom marido, filhos e emprego ao invés de estar a fazer confusão. Fizeram promessa de morte caso eu voltasse a me manifestar. Fui encontrada pelos meus companheiros semi-morta.
Dada a repercussão, quase toda Angola se apercebeu do que me tinha acontecido. A minha família decidiu me expulsar de casa, porque eu não quis recuar nos meus posicionamentos e abandonar o activismo. Alegaram que, estando a protestar, poderia meter a vida dos que vivem em casa em perigo, tal como morreram muitos familiares nossos, porque a minha imagem tinha corrido o mundo. A igreja decidiu me afastar do coral em que fazia parte. As minhas amigas temiam estar comigo. Eu era perseguida na escola e outros locais aonde ia. Fotografavam as pessoas que se juntavam a mim. Foi o momento mais revoltante da minha vida, não pela causa, mas pelas pessoas terem cedido às represálias e perseguições. Mas não parei. Sabia que era forma de me silenciar e silenciar a minha geração.
PRISÃO E LIBERDADE
Depois de ter usado toda a força, meios e homens para opressão e repressão dos jovens, em 20 de junho de 2015, José Eduardo dos Santos mandou-nos prender, alegando que estávamos a arquitetar um golpe de Estado contra ele.
Domingos da Cruz, jornalista e professor universitário, havia nos contactado junto a Nuno Dala – este último, amigo seu que havia lido o livro de Gene Sharp, Da Ditadura à Democracia, e decidido interpretá-lo de acordo com a realidade de Angola. O título ficou Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura: Filosofia política para a libertação total de Angola.Fizemos três encontros em um sítio para debater o livro. Era uma forma de repensar o nosso activismo. O autor, Gene Sharp, apresenta 198 formas de luta pacífica em que nós, jovens da sociedade angolana, nos víamos, porque nossa luta era pacífica. No terceiro encontro, percebi que eu estava a ser perseguida quando me dirigia ao local pelo “meu bófia”, o jovem que estava sempre a seguir-me. Já era normal. No quarto encontro, acontece a detenção. Nesse dia não estive, porque minha irmã seria pedida para o casamento. Quando o relógio tocou às 17h30, os outros companheiros que tinham faltado ligaram para mim para confirmar se eu estava no grupo que havia sido preso. Estavam nesse grupo Albano Bingobingo, Inocêncio de Brito, Fernando Tomás, Luaty Beirão, Mbanza Hamza, Hitler Samussuku, José Hata, Nuno Dala e Dito Dali. Este último tinha aparecido pela primeira vez na actividade.
Não conseguíamos descobrir aonde tinham sido levados os jovens e temíamos que aconteceria mais uma execução. Contudo, alguns companheiros que estavam no dia do rapto detinham telefones que permitiam acessar internet e fizeram uma rede de informação. Em menos de 30 minutos, a notícia sobre o rapto estava a circular nas redes sociais, o que motivou as forças policiais e militares do país a desistirem da ideia de matar os jovens activistas e defensores dos direitos humanos. Já não podia se repetir o aquilo a que o Estado do MPLA estava acostumado.
Domingos da Cruz e Osvaldo Caholo foram presos fora do sítio. Domingos foi apanhado na fronteira, no dia seguinte da prisão dos restantes; já Osvaldo, activista e militar que havia participado uma única vez nos encontros, foi preso em casa depois de quatro dias do anúncio público do procurador de que os jovens estavam a ser acusados de atentado de rebelião e golpe de estado. Decidiram ir prendê-lo pois não havia outros vestígios de envolvimento militar no grupo. Eu e Rosa Conde fomos arroladas ao processo um mês depois. Não nos mandaram para a cadeia, na altura, porque isso levantaria mais problemas, uma vez que não conseguiam fundamentar o crime do qual nos acusavam. Como 17 jovens poderiam dar um golpe em um presidente que investe a maior parte do orçamento na defesa?
Comecei a ser julgada em consonância como os meus colegas em 2015, tendo recebido em 2016 a sentença de quatro anos e seis meses, O processo ficou conhecido pelo nome de 15+duas devido às duas senhoras, eu e Rosa Conde.

Houve greves de fome na prisão, em que a mais durável foi do meu companheiro Luaty Beirão, de 36 dias, que simbolizava os 36 anos em que José Eduardo estava no poder à época. Luaty desejava pressionar o sistema judicial que estava muito moroso. Havia passado a época da prisão preventiva, e ainda assim não tinham um crime formal. Eles estavam a ser submetidos a condições desumanas em celas dos altamente perigosos, sem direito a visita, sem apanharem sol. O nosso companheiro Nuno Dala também fez a greve de fome e, depois, uma greve de nudez, devido aos maus-tratos que estava a sofrer na cadeia. Eu e Rosa Conde fizemos greve de nudez e de silêncio absoluto, que durou 13 dias. O objetivo era vermos os nossos direitos respeitados enquanto presas políticas e chamar atenção dos angolanos e da comunidade internacional que estávamos a pagar uma pena injusta.
Com as greves, os tribunais começaram a acelerar o processo judicial. Foi criada a Lei da prisão domiciliária e fomos os primeiros a nos beneficiar deste processo, presos em casa, sob controlo da Polícia Nacional.
Fizemos também protesto em que usamos perucas no momento do julgamento, para simbolizar a representante do ministério público, que durante do julgamento manteve o rosto coberto pela tissagem, [11] por temer que fosse identificada pela mídia e pelos que estavam revoltados com o caso. Vestimos camisetas com as nossas caras representadas como palhaços, para simbolizar o julgamento, que era uma palhaçada. Pessoas presas por lerem um livro.
11 Extensão capilar
O dia 28 de julho de 2016 foi o dia da libertação. Fomos soltos e soltas provisoriamente, por documento do tribunal constitucional. Dois meses depois, entrou em vigor uma Lei criada a nosso propósito, para desfazerem o que tinha feito: Lei da Amnistia dos crimes ocorridos de 2015 para cima. Acabamos por ser amnistiados de um crime que não cometemos.
Meses depois, José Eduardo anuncia que não voltaria a se candidatar para a presidência da República. Realizamos o objetivo que tanto esperávamos. Penso eu que com o nosso processo havíamos desgastado a sua imagem a nível nacional e internacional. José estava, assim, a ceder à pressão das formigas. Que éramos nós. Os ditos frustrados que ele acusou publicamente numa entrevista em televisão internacional. Para nós foi momento de muita alegria, apesar de nosso sofrimento não ter terminado com sua saída.
É necessário fazer mais.
SE TIVESSE QUE NASCER DE NOVO
Não escolhi ser activista, o activismo é que me escolheu para fazer dos meus actos os actos de uma pessoa que sonha com uma Angola digna para todos. É um prazer ser activista apesar de todas as dificuldades. O importante é ir refletindo a cada etapa para não se deixar cair pelos entraves. Não me canso, e me renovo nas gerações vindouras que devem encontrar um país onde eles se orgulhem de serem chamados de cidadãos. Se eu tivesse que nascer de novo, pediria ao mundo que me escolhesse como activista política e feminista angolana. Não parei de lutar desde 2011 e tive que desafiar as estruturas da família e sociedade. Continuamos firmes.
Marchas longas: movimento, percurso e destino
O deslocamento das pessoas pelo espaço, numa jornada de longa duração, produz forte impacto político e simbólico, como demonstra a história dos movimentos civis e das lutas não-violentas
Cássio Martinho e Mikael Peric

Atravessar um território tem sido, desde sempre, uma ação tão potencialmente revolucionária quanto ocupar um território. A história está repleta de exemplos de êxodos, diásporas, cruzadas, marchas – de fuga ou enfrentamento, de ataque ou defesa – de povos, grupos ou agentes em conflito. Muitas vezes atravessar o território se dá em razão de uma ocupação (uma expedição de conquista ou uma fuga em massa, por exemplo), quando o próprio território é o objeto da disputa; outras vezes ocorre em função de motivos econômicos e sociais, como no fenômeno da imigração; ou sob a orientação de uma ideia ou propósito (religioso, social ou político), como nas peregrinações, romarias e manifestações. Com frequência, diferentes motivações se combinam para produzir esses deslocamentos.
Atravessar o território constitui também uma tática política. Caravanas (ou expedições) e longas marchas são os casos mais ilustrativos. Ambas têm como características estruturais a travessia do espaço geográfico e a decorrente longa duração da ação. Como o deslocamento no território é físico e implica, mesmo, romper as distâncias com o uso do corpo, o seu tempo de duração pode ser bastante longo. Nas caravanas e grandes marchas, o percurso demorado também é feito de paradas (pequenas ocupações ad hoc) – onde há descanso, ação e interação – e, por isso, o espaço não é só um recurso, uma utilidade ou ferramenta para a tática, mas a condição de sua existência política. Caravanas e grandes marchas são ambas táticas do espaço e para o espaço.[1]
1 As manifestações de rua são outro exemplo da travessia política dos espaços, embora ocorram em geral no ambiente restrito das áreas centrais das cidades e, por isso, não se encaixem bem nessa categoria analítica.
Embora grandes deslocamentos ou êxodos [2] devam ser tratados sempre como fenômenos políticos, aqui caravanas e longas marchas são entendidas como táticas políticas na medida em que se constituem desde a origem com esse duplo caráter explícito: são políticas porque têm fins políticos; são táticas porque sãomeios para esses fins. Tais são os casos da Marcha do Sal, na Índia de 1930, que tem Mohandas K. Gandhi como idealizador; a caminhada de Selma a Montgomery, nos EUA, que marca uma inflexão no movimento pelos direitos civis de afrodescendentes nos EUA na década de 60; as marchas zapatistas no México em 2001 e 2012; as marchas nacionais do MST no Brasil; entre outras iniciativas em todo o mundo.
2 Os casos são abundantes: desde os percursos bíblicos à Terra Prometida até as colunas de imigrantes percorrendo a Europa ou a América Central no século 21, passando pela diáspora africana e um sem-número de fugas e migrações forçadas.
As marchas longas são manifestações especialmente emblemáticas desse atravessamento político dos espaços. Enquanto as caravanas podem manter sua constituição inalterada durante a jornada (com o mesmo grupo de pessoas, por exemplo, se deslocando sem ganhar necessariamente novos integrantes), as grandes marchas vão se encorpando e tornando-se mais volumosas à medida em que percorrem um território. Elas se nutrem da passagem pelos lugares, alteram profundamente a paisagem social ao convocar os habitantes a seguir junto e, assim, transformam os lugares enquanto são transformadas por eles.
As marchas longas são, ainda, uma plataforma de táticas; elas incorporam todo um conjunto de métodos de ação em seu percurso. Merecem, portanto, um exame mais minucioso.
APROXIMANDO O OLHAR
Como em todo ato demonstrativo, o efeito simbólico é componente essencial da tática da marcha longa. Ela tanto será mais efetiva quanto mais inteligível, forte e compartilhável for a mensagem da qual é portadora, e tanto mais transformadora quanto mais conseguir exprimir essa mensagem por meio de sua própria forma. Nesse sentido, as marchas longas possuem uma alta capacidade discursiva, que é potencializada pelo seu caráter espetacular e extraordinário.
São pelo menos cinco os principais elementos estruturais ou técnicos da tática, que ostentam forte estatuto simbólico, a saber: o ponto de partida, o contingente de pessoas que se move, a distância a ser vencida, o percurso e, finalmente, o destino ou ponto de chegada. A eles, se junta outro componente de caráter político: a causa que a marcha defende e os objetivos ou metas almejados. Esse mix de fatores compõe o discurso político da tática.
PARTIDA E DESTINO
Nesse conjunto, o destino parece ser o componente mais expressivo. Ele manifesta, na sua condição de fim da marcha, especificamente, os fins do ato. Muitas vezes o ponto de chegada, em marchas de protesto, é o lugar onde se decide o futuro da luta, o lugar do poder, isto é, o lugar a partir do qual pode se desenhar a mudança. Desse modo, a Marcha Nacional dos Sem-Terra, [3] de 1997, tinha como destino a capital do país, Brasília, sede do governo central, arena da deliberação política sobre a reforma agrária. No caso da gandhiana Marcha do Sal, que se constituía também como um exercício de ação direta, era preciso chegar ao mar (seu destino) para ocupar as salinas, assumir a manufatura do sal e se apropriar da riqueza pretendida.
3 A Marcha Nacional dos Sem-Terra por Emprego, Justiça e Reforma Agrária, do MST, foi iniciada no dia 17 de fevereiro de 1997, com o objetivo de chegar em Brasília no dia 17 de abril, quando se completou um ano do massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará. Cerca de 1.500 sem-terra partiram de três pontos diferentes do país – São Paulo (SP), Governador Valadares (MG) e Rondonópolis (MT). Cada coluna percorreu aproximadamente mil quilômetros, atravessando diferentes cidades e vilas, em um percurso que durou dois meses. Cerca de 100 mil pessoas aguardaram em Brasília a chegada da Marcha, que exigia o debate sobre a reforma agrária e a punição dos responsáveis pelo massacre de Eldorado dos Carajás. A data passou daquele ano em diante a celebrar o Dia Internacional de Luta Camponesa.
Pontos de partida também são simbolicamente importantes nas marchas longas. A escolha de Selma para o início da célebre marcha dos direitos civis, [4] por exemplo, expressa uma situação e uma aspiração política que contribui para o entendimento completo da ação realizada. Os pontos de partida podem ter papel semelhante ao dos destinos especialmente em determinados casos, quando, depois de atingido o final do percurso, o contingente que se move retorna. Nesse momento, a marcha põe em cena uma dialética da partida e da chegada que reconstrói o significado dos lugares. É aí, de novo, que a tática encontra o seu sentido. O exemplo dos sem-terra e dos zapatistas é emblemático dessa dialética: eles percorrem longas distâncias até a capital do país, para em seguida regressar aos lugares que são (ou pretendem) seus. O movimento Ekta Parishad, da Índia, também constrói suas marchas nesta dialética. Todo o exercício do percurso é uma afirmação do seu pertencimento a um lugar, logo, uma afirmação do lugar. Eles vão para dizer que ficam.
4 Marcha de Selma até Montgomery, no Alabama, foi conduzida por Martin Luther King Jr. e outros líderes da época. Em março de 1965, os manifestantes levaram cinco dias até à entrada de Montgomery, Por fim, ao menos 25 mil manifestantes caminharam juntos até o Capitólio, sede do governo estadual. A Marcha tornou-se um ícone do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e no mundo.
Chegar ao destino, contudo, não é fundamentalmente o elemento definidor da tática. A marcha é uma saga, uma história contada ao longo de um percurso. É um processo vivo, atraente, que desperta a curiosidade enquanto gera, sustenta e amplia uma expectativa. Seu clímax e desfecho imprevisíveis vão dar peso ao caminhar. A marcha pode estar envolvida em suspense, em tensão, em drama, na incerteza de seu desenrolar. Uma vez que a dúvida quanto ao sucesso da jornada pode potencialmente engajar e mobilizar, a marcha mexe com a esperança de quem a acompanha.

No caso da Marcha do Sal, [5] o elemento decisivo consistia na ação de desobediência civil – pegar e fazer o sal era um ato contrário ao SaltAct, a lei do império britânico de 1882 –, enquanto que a marcha de Selma para Montgomery era ela mesma o seu o próprio fim. A questão central desta última consistia justamente em verificar se ela aconteceria ou não. Qualquer ato final passou a ser menos relevante do que o simples fato de a marcha existir. A permissão dada ao movimento por direitos civis de seguir em caminhada prefigurava a construção de um país plural. Ao se dar espaço para o movimento negro ocupar a rodovia, dava-se espaço, também, para toda a população negra ocupar sua cidadania e sua nação. Por sua vez, na Índia, a Marcha do Sal consistiu num mecanismo magnético do ponto de vista físico, uma vez que esta crescia no percurso, tensionava a atmosfera política ao mesmo tempo que mantinha presa a atenção dos espectadores, curiosos pelo seu desfecho. Será que eles vão conseguir? Será que serão presos antes? Será que é possível desafiar o império a este ponto? Neste sentido, tudo indica que a maior potência da tática da marcha longa, portanto, se realiza no próprio percurso, como se verá adiante.
5 A Marcha do Sal, também conhecida como Marcha para Dandi, ou SaltSatyagraha, talvez seja a marcha longa mais famosa da história. Começou com cerca de oitenta pessoas, percorreu quase 400 km, passou por quatro distritos e 48 vilas e culminou em seu grande ato, 24 dias depois do seu início, sob o apoio presencial de dezenas de milhares de pessoas. Tendo partido no dia 12 de março de 1930 de Sabarmati Ashram, onde vivia Gandhi, a marcha chegou a Dandi no dia 5 de abril. No dia seguinte aconteceu, então, o ato de desobediência civil. Às 6h30, Gandhi, acompanhado de seus seguidores, desobedeceu as leis britânicas de controle e monopólio de produção do sal. Ele chegou ao mar, escavou com as mãos um pedaço de lama e a levou para as águas ferventes onde faria seu próprio sal. A repercussão deste ato simbólico testemunhado por milhares de indianos e correspondentes internacionais disparou inúmeros protestos não violentos por todo o país, transformando para sempre a conjuntura política da Índia.
AQUELES QUE SE MOVEM
Não é à toa que se usa a palavra “movimento” para designar o próprio fenômeno da luta social. A luta social movimenta quem dela participa, movimenta quem com ela se relaciona e movimenta, também, a causa que nela se realiza. Assim, a marcha longa pode ser a metáfora paradigmática desta luta. Os atores que promovem e executam a marcha, eles próprios estão em movimento.
O contingente que se move constitui a matéria prima para que o efeito político da tática se realize e seus objetivos sejam alcançados. Neste particular, é preciso que haja multidão. Marchas minguadas, com fileiras esparsas de poucos participantes, não dão conta de sua pretensão. Uma marcha longa é, sem dúvida, por suas características, uma demonstração de força.
A distância (a ser) percorrida e o que ela subentende de esforço e organização conferem a grandeza que o efeito político da tática exige. Realizar uma marcha longa é realizar um grande feito. Caminha-se muito, debaixo de sol e de chuva, o que demonstra um profundo compromisso com uma causa ou questão específica. O poder da entrega a uma façanha árdua e desgastante é algo que atrai a atenção e potencialmente pode mobilizar e engajar outras pessoas cujos interesses estejam envolvidos com a ação de quem caminha.
Como disse Rajagopal Puthan Veetil durante a marcha Jan Satyagraha [6] de 2012: “Quando suamos sob o sol, quando a terra e o céu estão queimando, quando nós caminhamos, suando sob o calor do sol, isto é sacrifício. Quando dormimos nas ruas, isto é sacrifício. Quando comemos uma vez só ao dia, isto é sacrifício”. Conclui ele: “Então, porque nós estamos fazendo este sacrifício? Para que possamos derreter o coração deles”. [7]
6 Promovida pelo movimento Ekta Parishad, um dos herdeiros do pensamento e da prática gandhiana, a marcha Jan Satyagraha, (“marcha por justiça” ou “compromisso com a verdade”), foi parte de uma campanha pelo direito e acesso à terra e aconteceu em outubro de 2012. Tendo como distância prevista os cerca de 350 quilômetros entre as cidades de Gwalior e Delhi, capital da Índia, a marcha teria duração de 27 dias. Com um trabalho prévio de mobilização e preparo, um conjunto de demandas foi apresentado e discutido com o Ministro do Desenvolvimento Rural da Índia pelo menos seis meses antes do início da caminhada. No dia 2 de outubro, aniversário de Gandhi, a marcha teve início, Pouco mais de uma semana depois, caminhando cerca de 12 quilômetros por dia, a marcha chegou em Agra, onde então foi anunciado um acordo com o governo, garantindo a formulação da Política Nacional de Reforma Agrária, a implementação de leis relativas ao direito à terra e a imediata instauração de uma Força Tarefa para implementação da agenda acordada.
7 Tradução livre. Esta fala foi feita durante a marcha e está registrada no filme MillionscanWalk, de Christoph Schaub e Kamal Musale, produzido na Suíça em 2013.
Ao se colocarem em condição tão exigente e difícil, aqueles que marcham apresentam para o mundo a importância da sua luta, o tamanho da sua necessidade, da sua implicação e, também, da sua exclusão; o tamanho da negligência de quem está no poder. A disponibilidade de se colocar sob tais condições é um elemento que traz força para as marchas e, conforme os dias passam, conforme avançam os passos, maior o sacrifício e, assim, maior a força intrínseca da tática, maior o seu momentum.
A pesquisadora Christine de Alencar Chaves, em um estudo sobre o MST, afirmava que a marcha realizada pelos sem-terra em 1997 “percorreu mais que estradas: atravessou um solo moral”. [8] Para além disso, pode-se dizer que a marcha – e reside justamente aí seu poder simbólico e político –, ao se estender pelo território, crioupropriamente esse “solo moral”. A marcha, quando passa, deixa como rastro esse sentido novo para o território, que pode se tornar lendário e receber peregrinações de outros caminhantes mais tarde. [9]
8 Christine de Alencar Chaves. A Marcha Nacional dos Sem-terra: estudo de um ritual político. Publicado em: O dito e o feito – Ensaios de antropologia dos rituais. Relume Dumará, 2001, p. 135.
9 Tanto a rota de Selma a Montgomery, no Alabama, como o trajeto entre Sabarmati Ashram e Dandi, na Índia, receberam reconhecimentos formais. Esses percursos costumam ser refeitos por turistas e ativistas que buscam ver de perto a história da luta não violenta no mundo. Livros já foram escritos sobre esses caminhos. Espaços por onde algumas dessas grandes marchas passaram foram ressignificados completamente, tornando-se símbolos de resistência e transformação.
O longo percurso produz ainda grande efeito sobre quem se move. Aqueles que caminham assumem uma tarefa de grande esforço físico que envolve dificuldades de resistência e cuidado com o próprio corpo. Esse esforço pode se tornar um profundo exercício de auto-conhecimento, de teste dos próprios limites, de convicções e de entrega por algo maior do que o próprio indivíduo. As marchas acabam também por se tornar um intervalo de tempo ocupado pela reflexão sobre a vida em geral, a relação com a família, com o próximo, com o espaço e com as suas próprias necessidades. A marcha se torna, assim, uma experiência profundamente transformadora para quem a experimenta e nela vive a própria vida de maneira simples, colaborativa, integrada. A troca de experiências e de vivências com outros caminhantes, bem como as populações dos lugares por onde se passa, acabam sendo oportunidades únicas de se aprender sobre a situação das pessoas e suas formas de resistir. A criação de vínculos de afeto, de apoio e de cuidado, além de essencial para a manutenção da marcha, fortalece valores e altera comportamentos e práticas individuais.
PERCURSO
A conhecida máxima de um poeta que afirma que o caminho se faz ao caminhar se aplica, com precisão, à tática das marchas longas. No percurso, os ativistas acionam outras táticas de luta – passeatas, atos públicos, rodas de conversa e debates, apropriação simbólica dos muros e das paredes, ações diretas – e, assim, criam um processo vivo e dinâmico de participação coletiva.
A marcha longa cria um ambiente propício para o diálogo e para a atração de novos participantes e apoiadores. Por onde se passa é possível conversar diretamente com o público, explicar o que se está fazendo e o que se pretende. É assim que muitas marchas longas ampliam seu tamanho no caminho e, desta maneira, aumentam também a pressão sobre seus oponentes.
Para aqueles que, por diferentes razões, optam por não se juntar à massa que percorre cidades e vilas, existe ainda um conjunto de tarefas de organização e logística que são essenciais para o sucesso da tática. Não é incomum ver a solidariedade aos manifestantes se transformar em apoio logístico, com o vem e vai de pessoas que trazem alimentos, água, remédios, roupas e itens de higiene pessoal. A rede que se forma entre as populações locais e a marcha auxilia na manutenção desta, ao mesmo tempo em que reforça e deixa mais poderosa a mobilização em torno da causa.
Gandhi, quando realizou a Marcha do Sal, mandava à sua frente, para que chegassem antes às vilas e cidades, batedores que preparavam o território e as populações para a passagem da marcha, concebendo e realizando espaços de diálogo e troca entre o líder religioso e a população indiana interessada.
A Marcha Nacional dos Sem-Terra por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, realizada pelo MST em 1997, recorreu a um planejamento semelhante, que incluía três elementos básicos: a entrada das fileiras da marcha, a realização de atos públicos e a montagem de acampamento provisório. “Em cada vilarejo ou cidade que os caminhantes atravessaram, na passagem das fileiras da Marcha pelas vias públicas e no ato principal, quando se pretendia reunir população e marchantes, a razão de ser da peregrinação era exposta através de palavras de ordem, hinos, representações teatrais e discursos inflamados. Junto com as manifestações públicas, reuniões eram feitas em escolas, faculdades, câmaras municipais, sindicatos e igrejas com a finalidade de dar ressonância à passagem da Marcha Nacional e à mensagem que ela pretendia veicular.” [10] Aqui, também, chama a atenção o paralelo entre os acampamentos provisórios da marcha e a tática dos acampamentos tipicamente realizada pelo MST em suas ocupações, um exemplo de ato demonstrativo didático do que vem a ser o dia-a-dia de luta do próprio movimento.
10 Christine de Alencar Chaves, 2001, p. 13.
Impressiona igualmente o grau de organização coletiva e disciplina presente nas marchas dos zapatistas no México. A performance dos integrantes da Marcha Silenciosa zapatista de 2012 [11] – e seu decorrente impacto midiático – é a demonstração do poder simbólico e político de um movimento organizado. Representantes dos diversos povos de Chiapas – tzeltales, tzotziles, choles, tojolabales, mames e zoques – percorreram vigorosamente as ruas de vilarejos e cidades, todos igualmente cobertos por pasa-montañasidentificados conforme o local de origem e, todos, em um silêncio completo e perturbador. As colunas e fileiras performam claramente uma tomada do espaço– os zapatistas, apesar do caráter temporário do ato, ocupam de fatoas cidades, e demonstram, por meio da cena construída e da experiência vivida, a força política de um exercício concreto de contrapoder. Os registros em vídeo da Marcha falam por si.[12]
11 Em 21 de dezembro de 2012, 20 mil zapatistas marcharam até o centro de San Cristóbal de las Casas; 8 mil fizeram o mesmo em Palenque; 8 mil em Las Margaritas; mais de 6 mil em Ocosingo; e 5 mil em Altamirano, todas no estado mexicano de Chiapas. A Marcha Silenciosa é considerada a maior feita pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) até hoje. Mais informações: https://www.elsaltodiario.com/hemeroteca-diagonal/la-marcha-zapatista-mas-grande-de-la-historia-del-ezln#
12 https://www.youtube.com/watch?v=3HtyX1ATmsw
PREFIGURAÇÃO
Como uma tática de vivência, isto é, durante a qual os sujeitos realizam diretamente com os corpos uma experiência de viver e conviver na ação, as marchas longas agenciam, seja nas localidades por onde passam, seja no seu próprio deslocamento pelas estradas, uma ambiência social alterada, de ordem nova e singular. É o que torna também as marchas longas um campo fértil para a invenção de outras sociabilidades.
Esse fenômeno de produção de “uma esfera específica no curso da vida social” é o que faz Christine Chaves considerar as marchas um tipo de “ritual de longa duração”. [13] A suspensão provisória dos usos e práticas regulares, a emergência de uma outra temporalidade, o surgimento de novas maneiras e de outras formas de relacionamento entre os agentes (mesmo entre pessoas conhecidas, que, agora, reinventam seu jeito de lidar umas com as outras), em suma, o surgimento de uma convivência simbolizada (ritualizada) de outro modo permite afirmar que as marchas longas constituem também aquilo que Hakim Bey denominou de “zona autônoma temporária” – uma situação singular, especial, fora do Estado, na qual a vida é reinventada.
13 Christine de Alencar Chaves, 2001, p. 15. No caso das marchas indianas, tanto Gandhi como Rajagopal Puthan Veetil, no lugar do termo “marcha”, usam yatra, termo também empregado em peregrinações religiosas. No hinduísmo, assim como em outras religiões indianas, yatra significa peregrinação a locais sagrados.
Nesse sentido, a marcha longa constitui uma tática prefigurativa por excelência. Ao vivenciar internamente à marcha a realidade do mundo que se deseja alcançar – plural, igualitário, justo e comum; um mundo em que todos desempenhem seus papéis em favor do grupo, de todos e da melhoria das condições de vida –, os espaços de experimentação autônomos inerentes a esta prática acabam por ser, também, uma experiência revolucionária e transformadora para quem dela participa.
Durante o percurso, as pessoas se banham, se alimentam e dormem nas vias públicas. Elas são responsáveis por cuidarem umas das outras, acompanhando idosos, grávidas, cuidando também de enfermidades e, também, possíveis desavenças ou conflitos interpessoais. Toda a gestão desta enormidade de pessoas que atravessa as fronteiras internas do seu país é feita ali mesmo, pelas mesmas pessoas que caminham.
Um exemplo pode ser encontrado em relatos sobre a marcha da campanha Jan Satyagraha, realizada em 2012 pelo Ekta Parishad. Como relata Jilll Carr-Harris, o movimento teve grande impacto sobre as mulheres. Na marcha, os papéis assumidos por elas foram por vezes muito diferentes daqueles em suas comunidades e vilas. Na marcha, as mulheres não eram dependentes e mantinham-se em nível de igualdade com os homens, assumindo inclusive tarefas não convencionais como, por exemplo, a segurança e a vigília durante as noites. Também ali as mulheres assumiram protagonismos, por exemplo, ao liderarem as marchas, colocando-se à frente das dezenas de milhares de caminhantes. [14]
14 A reflexão de Carr-Harris foi retirada deste vídeo do Ekta Parishad: https://youtu.be/KpxJQeQsakY

O caráter prefigurativo das marchas é notadamente impressionante no caso da marcha de Selma até Montgomery, no Alabama. Selma já se tornara palco da luta pelo direito ao voto da população negra nos EUA com mobilizações pontuais e pequenas ações de tentativa de cadastro da população negra nos cartórios eleitorais, quando a morte do ativista Jimmie Lee Jackson motivou os diferentes grupos e movimentos negros a decidir pela marcha. Na luta por fazer valer os seus direitos civis, os movimentos negros tentaram por duas vezes percorrer os 80 quilômetros que separavam a cidade de Selma da capital do Alabama, Montgomery. E por duas vezes foram impedidos. Na primeira vez, a brutalidade da polícia foi tanta que a data ficou eternizada como o “Domingo Sangrento”. Dezenas de pessoas foram parar nos hospitais da cidade. Os relatos de mulheres desmaiadas enquanto eram espancadas atravessaram os oceanos. A segunda tentativa frustrada de marchar até Montgomery foi parada por força da lei, por meio da decisão de um juíz federal que expediu uma ordem contrária ao direito de manifestação e de livre circulação das pessoas.
Neste sentido, realizar a marcha, como aconteceu na terceira tentativa, entre os dias 21 e 25 de março de 1965, demonstrou para toda a população negra daquele país que era, sim, possível ter os seus direitos garantidos e assegurados. Quando Martin Luther King, John Lewis, o Rabino Abraham Joshua Herschel e demais irromperam na capital do estado, com o apoio das forças armadas, destacadas para garantir a segurança física dos manifestantes, irrompia com eles, na sociedade, uma mudança que mais tarde viria a ser oficializada com o VotingRightsAct (a lei de direito ao voto). [15]
15 O direito ao voto para pessoas negras nos Estados Unidos foi garantido em 1870, quase cem anos após o final da Guerra Civil, formalizado na aprovação da 15ª Emenda à Constituição do país. Porém, já em 1876 a Suprema Corte e alguns juízes de estado passaram a limitar o escopo da Emenda, tornando muito difícil o registro de eleitores negros. Mesmo com a aprovação do Civil RightsAct em 1964, a discriminação e o racismo seguiram criando barreiras que impossibilitaram, especialmente no sul do país, o acesso ao voto. Desta maneira, fez-se necessário ao movimento pelos direitos civis concentrar esforços na luta pelo direito ao voto, o que foi feito através de mobilizações populares e da articulação entre Martin Luther King Jr. e o presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson, que apresentou ao Senado a lei que se tornou, em 1965, o chamado VotingRightsAct.
MECANISMO DE PRESSÃO
Pelo fato de a marcha estar associada a algo que poderíamos chamar de clímax (ou desfecho), no sentido da chegada ao destino e da realização do que se pretende nesse local, ela acaba se tornando uma espécie de alerta de uma colisão. A cada dia que se passa, a cada passo dado e a cada quilômetro avançado, o oponente é colocado mais próximo da ação que se desenrolará. Se nada for feito, uma multidão irá irromper na porta da cidade e a força deste feito poderá abalar as estruturas de poder. O melhor resultado para a marcha é, talvez, não precisar ocorrer, mas sim ter as suas demandas atendidas. Foi assim com Gandhi, com Luther King e muitos outros. Nos casos estudados aqui, os agentes que promoveram e lideraram as marchas comunicaram a seus oponentes da possibilidade de não colocarem os pés na estrada caso suas demandas fossem atendidas. No caso da Jan Satyagraha de 2012, na Índia, por exemplo, a marcha ainda tinha muitos dias, quase semanas, para alcançar o seu destino, quando o governo então cedeu e atendeu aos manifestantes.
Assim, o custo político de se acatar os pedidos de um movimento popular, mesmo que parcialmente, pode ser menor do que deixá-lo seguir ou forçá-lo a se dispersar. Tudo dependerá de um conjunto de fatores como a capacidade do movimento de se comunicar, de mobilizar e engajar e, ainda, de seu desenho estratégico quanto ao que motiva a marcha, quais as suas demandas e para onde se dirige.

DILEMA DO OPONENTE
As marchas carregam consigo um elemento chave para toda ação não violenta que se pretende estratégica: elas posicionam seu oponente em um dilema. Ao se colocar um ator em um dilema, este, em tese, terá um conjunto limitado de possíveis movimentos a fazer, como quando se coloca um rei em xeque em um jogo de xadrez. E, para os ativistas, tanto a ação como a inação de seu oponente anunciam resultados positivos.
O oponente poderá tanto tentar impedir a marcha de acontecer, como poderá optar por deixar que esta siga seu percurso e realize o que pretende. Deixá-la seguir pode significar um avanço ainda maior para a causa defendida e, consequentemente o enfraquecimento de seus oponentes. Por outro lado, se a escolha do oponente é a de impedir a marcha, duas opções pelo menos são possíveis. Pode-se acatar as demandas do movimento ou, então, fazer uso da força. O uso da força poderá dar notoriedade àqueles que marcham, uma vez que quando forem vítimas da violência, poderão expor o caráter antidemocrático do opressor. O uso da violência contra uma demonstração não violenta costuma gerar bons resultados políticos para os ativistas, que podem ganhar mais atenção, visibilidade e apoio. E, ainda, impedir a realização de um direito – o direito de ir e vir – pode ser ruim para a imagem de quem tenta barrar a marcha.
COMUNICAÇÃO
Martin Luther King Jr. saiu de Selma em 1965, com alguns milhares de pessoas, mas foi proibido por lei de atravessar a rodovia até Montgomery com mais do que 300 pessoas. Os manifestantes não poderiam caminhar os 80 quilômetros entre as duas cidades sob a justificativa de terem de deixar livre uma das faixas da via. Ademais, não havia povoados no caminho, não havia com quem dialogar durante o percurso e, tampouco, a possibilidade de se mobilizar mais gente uma vez que, se isso acontecesse, o limite de 300 pessoas seria excedido. Todas as condições inerentes à marcha apontavam para um baixíssimo potencial de expansão do contingente de caminhantes.
Ainda assim, quando a pequena marcha chegou ao seu destino, ela foi recebida por dezenas de milhares de pessoas que seguiram unidas até o Capitólio da cidade. O trabalho de mobilização e engajamento não podia ser feito fisicamente, mas foi realizado por outros meios, com a participação da mídia, de celebridades e de diferentes grupos e movimentos da sociedade civil que estavam diretamente implicados e interessados na conquista dos direitos civis da população negra dos Estados Unidos.
Isso significa que a mobilização e o engajamento não precisam acontecer apenas in loco, por onde a marcha passa, embora este seja seu grande trunfo. A mobilização e o engajamento de apoiadores e manifestantes dependem, em última instância, da capacidade de o movimento transmitir sua pauta e de sua determinação em atingir um público interessado. Além de pressionar seus oponentes durante todo o percurso, marchas longas contam e escrevem a história. Assim, a comunicação é fundamental.
Quando o Ekta Parishad iniciou em 2012 a Jan Satyagraha, sua segunda grande marcha na Índia, com cerca de 50 mil pessoas, todo o governo já estava ciente do que ali se passava. No primeiro dia, antes que a marcha tivesse decretado o seu início oficial, diversas lideranças populares se reuniram na presença do Ministro do Desenvolvimento Rural e das dezenas de milhares de pessoas que iriam marchar, tornando este um grande evento no país. A comunicação começara meses antes da marcha sair e seguiu ativa a cada passo dado.
Outubro de 2019 é a data em que partiu de Nova Delhi, na Índia, outra marcha longa promovida pelo Ekta Parishad, com o nome de JaiJagat (“uma vitória pelo mundo”). Seu objetivo: alcançar a cidade de Genebra, na Suíça, doze meses depois. Muito antes de seu início físico, a marcha já existia. Ela começou a mobilizar e engajar seu público antes mesmo de ser dado o primeiro passo. Da mesma forma, seu destino já foi informado, bem como todo o seu percurso. Todos os envolvidos já sabem o que os espera meses antes de acontecer. A comunicação faz o trabalho de antecipar seu efeito no tempo e de fazê-la perdurar depois que ela termina.
FAZ-SE CAMINHO AO ANDAR
Marchas longas são táticas complexas que dependem de planejamento, estrutura, sacrifício. São conjuntos dinâmicos dos quais emergem transformações em nível individual e, também, coletivo. Elas transformam quem dela participa, transformam o contexto político, transformam a história e a forma com que se entende a luta popular. Quem caminha transpõe fronteiras, geográficas e psicológicas. Rompem-se crenças e fortalecem-se valores. Aqueles que caminham serão para sempre transformados pela experiência da construção de seu futuro a partir dos próprios pés, optando pelo sacrifício e pela entrega à causa. Aquele e aquela que marcham podem construir pluralidade, fraternidade e igualdade. Marchar questiona as fronteiras, ocupa os territórios e demonstra força, enquanto constrói o próprio movimento.
CAMINHAR E TRANSFORMAR
Uma lista de pontos para o uso estratégico da tática da marcha longa
LOGÍSTICA_ Para se percorrer longas distâncias com grande número de pessoas deve-se dar atenção redobrada a alguns aspectos. São eles: alimentação, repouso e descanso, higiene, segurança e saúde. O preparo para manter o grupo com energia e saúde durante a marcha é essencial, então lembre-se de pensar em estruturas de apoio, veículos, mochilas distribuídas entre os caminhantes, comida, água, barracas, remédios e material para primeiros socorros, entre outros. Planeje bem o percurso e saiba onde a marcha poderá parar, montar acampamento, descansar. Pense em grupos e horários para preparar a comida. Pense também em como estocá-la.
ORGANIZAÇÃO_ Para se manter grande número de pessoas de maneira organizada e segura durante um percurso, a organização, tanto do uso do espaço como do fluxo de informações, faz toda a diferença. Pode-se subdividir a marcha, por exemplo, num grupo que vai à frente com faixas e palavras de ordem, um grupo ao final que garante que ninguém fique para trás, um grupo responsável pela música (baterias, bandas, caixas de som, carros de som), outro responsável pela segurança etc. Definir responsáveis e coordenadores pode facilitar para se saber com quem falar em caso de necessidade. Considere formar um grupo organizador que tomará decisões, acessará recursos, dialogará com autoridades e assim por diante.
ESTRATÉGIA_Lembre-se que uma marcha que não tem repercussão não produz o impacto e o efeito necessários. Uma dica é comunicar às autoridades e ao(s) oponente(s) que a marcha será realizada e por onde ela passará, bem como o conjunto de demandas do seu movimento. Leve em consideração quais comunidades estarão no seu percurso, quem você pode mobilizar, de quem pode receber ajuda e apoio. Pense em como encerrar a marcha, o que fazer quando chegar ao destino e como esta ação deixará o seu movimento mais próximo dos seus objetivos. A marcha deve fazer parte da estratégia do movimento e não o contrário.
COMUNICAÇÃO_ Comunique-se, ganhe apoio e visibilidade. A comunicação é chave para a mobilização e crescimento da marcha. Converse com a população que está nas cidades e vilas por onde o percurso passa. Converse com o público mais amplo através da mídia tradicional e das mídias sociais. Explique porque estão marchando, para onde vão e o que pretendem. Explique a injustiça que motiva o caminhar, amplie as vozes pela sua causa, abra espaço para que diferentes caminhantes possam ter suas vozes escutadas. Cada passo dado, cada quilômetro vencido é notícia. Quanto mais perto se chega do destino, maior a importância de dialogar com a sociedade.
DESTINO_O local para onde se dirige a marcha é o ponto primordial e estruturante de toda a sua estratégia. Ele deve ser tanto simbólico como prático no sentido de que as pessoas envolvidas no processo de tomada de decisão sobre a causa devem estar no destino também, sendo que é lá que a marcha pode alavancar ou alcançar a mudança pretendida . O local em que você vai chegar com uma multidão é o local onde a pressão atingirá o seu ápice. Use isto a seu favor.
MOBILIZAÇÃO_Comece a mobilizar pessoas e movimentos com suficiente antecedência para que todos possam se preparar para participar desde o primeiro dia de caminhada. Busque iniciar a sua marcha com um número expressivo, se possível, e prepare-se para que ela possa crescer ao longo do caminho. Para tal, conquiste apoio no percurso, receba caminhantes de outras regiões, atraia apoiadores nas cidades e vilas por onde passar. Uma marcha que cresce no caminho ganha mais força e assim pode fazer mais pressão para alcançar suas demandas.
TÁTICAS ASSOCIADAS_ É possível associar uma série de outras táticas à marcha, como ações diretas, assembleias, teatros, ações de desobediência civil e, também, advocacy. Isso pode definir o potencial de sucesso do seu movimento. Construir uma relação de diálogo com tomadores de decisão que possam se articular paralelamente ao andamento da marcha amplia os seus canais de pressão e de negociação. Marchas são espaços vivos, autônomos, transformadores. Nelas existe enorme potência de ação política. Use isto a seu favor.
DILEMA_Táticas não-violentas frequentemente colocam seus oponentes em posições difíceis. No caso da marcha, force seu/sua oponente a tomar uma atitude, seja ela a de tentar desmobilizar a marcha, seja até mesmo optar por não fazer nada. Lembre-se que chegar ao destino e ocupar o local com suas demandas é uma vitória para a marcha. Essa possibilidade de vitória é o que deixa seu oponente em um dilema, uma vez que seu oponente não quer que você avance com sua pauta e movimento. Uma eventual ação ou a inação do(a) oponente será positiva para a marcha.
Uma narrativa sobre o recente êxodo de Honduras
Sofía Marcía
tradução: Yadira Ansoar e Paola Amaris
Levas de migrantes percorrem todos os anos os países da América Central em direção às fronteiras do norte. A ativista hondurenha analisa as condições que fundamentam o fenômeno e se pergunta como é possível impedir a expulsão das pessoas de seus territórios.
Quiero irme a casa, pero mi casa es la boca de un tiburón.
Mi casa es un barril de pólvora,
y nadie dejaría su casa a menos que su casa le persiguiera hasta la costa,
a menos que tu casa te dijera que aprietes el paso,
que dejes atrás tus ropas, que te arrastres por el desierto,
que navegues por los océanos. [1]
[1] Eu quero ir para casa, mas minha casa é a boca de um tubarão.
Minha casa é um barril de pólvora,
e ninguém deixaria sua casa a menos que sua casa lhe perseguisse até a costa,
a menos que tua casa te tenha dito que apertes o passo,
que deixes tuas roupas, que te arrastes pelo deserto,
que navegues pelos oceanos.
Fragmento de Hogar, de Warsan Shire
Um êxodo em massa de hondurenhos e hondurenhas surpreendeu o mundo em outubro de 2018. Vimos mulheres, homens, jovens, meninos e meninas, famílias inteiras se juntando à chamada Caravana de Migrantes, para chegar aos Estados Unidos.
Antes desse outubro, nós nos acostumamos com a partida de algum parente, um amigo de infância, algum colega de trabalho, vizinho ou conhecido. Até celebramos ao saber que estavam indo bem; em outros casos, tivemos que receber de volta o primo que não conseguiu chegar e não quis tentar novamente.
Mas desde outubro as imagens de cerca de 13 mil centro-americanos, na sua maioria hondurenhos e hondurenhas que se juntaram à caravana, foram dolorosas. Lembraram-nos quem somos, gritaram-nos com força que esta realidade nos ultrapassou. O que motivou essas pessoas a sair de maneira massiva? O que acontece em seus lares e comunidades? Por que eles decidem arriscar tudo para fugir? É possível impedir a expulsão daqueles que amamos? Quem são os responsáveis por sua partida?
Este texto é uma tentativa de explicar o contexto de Honduras e sua ligação com a caravana de migrantes – um reflexo daquilo que poderíamos ser, qualquer um de nós em qualquer lugar, se nossa casa-território parecer esgotar-se, se a pobreza e a violência nos alcançarem, se a desesperança se tornar a vida diária.

A CARAVANA DE MIGRANTES, UMA EXPRESSÃO POLÍTICA DO DESCONTENTAMENTO SOCIAL
Esse enorme movimento migratório, conhecido como a caravana de migrantes, mas que poderia ser melhor chamado pelo nome de êxodo em massa de centro-americanos e haitianos (mas principalmente de hondurenhos e hondurenhas), tem origens diferentes se o olharmos desde este pequeno país no centro da América.
O estopim desse grande movimento migratório em outubro de 2018 tem a ver com uma soma de fatores, principalmente os políticos e econômicos, que afetaram uma população que não tinha nada a perder porque já perdeu tudo aqui, até a esperança. Um destes fatores é pelo enorme descontentamento social que se acumulou na população hondurenha empobrecida e que teve seu auge após as eleições presidenciais de novembro de 2017. Essas eleições foram cheias de fraudes desde o início, com a candidatura de um então presidente que, segundo a Constituição da República, não tinha possibilidade de reeleição, nem mesmo de participação nas eleições. Mas, além de quebrar qualquer ordem constitucional explícita, Juan Orlando Hernández (chamado pelo pseudônimo de JOH pelas pessoas que lutam nas ruas desde o dia em que se impôs como presidente) é apenas a face de uma ditadura consolidada desde o golpe de Estado que ocorreu em Honduras em 2009, que tem deixado como consequência a negligência em relação aos direitos políticos, sociais e econômicos da população; um Estado inexistente; e uma falsa democracia, da qual participam majoritariamente aqueles que zelam por seu próprio capital econômico, com o apoio e a bênção do governo dos Estados Unidos. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem usado as vidas dos migrantes em um discurso que favorece sua candidatura por meio da xenofobia, do racismo, do terror e do ódio contra os latino-americanos, mesmo os nascidos nos EUA em famílias latinas.
ANTES E DURANTE A CARAVANA
Em outubro de 2018, começamos a ouvir falar sobre um êxodo em massa de hondurenhos e hondurenhas que viajavam para os Estados Unidos. Este êxodo começou a tomar forma no departamento de Cortés, no terminal de ônibus da cidade de San Pedro Sula, uma das cidades mais violentas do mundo, no dia 12 de outubro – paradoxalmente, o dia em que se celebra oficialmente os indígenas, mas que na verdade é uma data de resistência desses povos.
Cerca de 1.200 pessoas de todo o país se reuniram no terminal de ônibus. Muitas delas foram convocadas principalmente por redes sociais, e outras souberam quando viram na televisão que uma caravana de migrantes havia sido planejada. No dia 13 de outubro, a caravana partiu para a fronteira com a Guatemala. Passaram a noite na cidade de Santa Rosa de Copán, no ginásio de uma escola e onde mais conseguiram ficar. Muito mais pessoas começaram a se juntar e a cobertura da mídia se tornou cada vez maior. Foi então que nós, que moramos na capital, percebemos a magnitude da caravana de migrantes.
No momento em que chegaram à fronteira entre Honduras e Guatemala, estimou-se que havia cerca de 3 mil pessoas e um grande cerco de militares guatemaltecos esperava por eles do outro lado. Havia muitas incertezas nesse momento e tudo indicava que eles não os deixariam passar. No entanto, as pessoas começaram a pressionar e organizações de direitos humanos já estavam acompanhando esse momento; não houve maneira, assim, de conter essa enorme quantidade de migrantes. Naquela noite, eles dormiram em abrigos temporários. Nos dias seguintes, a solidariedade de muitas pessoas na Guatemala foi avassaladora e, ao mesmo tempo, contrastou com o discurso de ódio que começava a tomar forma por parte do presidente de Trump. Houve até quem sugerisse que as pessoas recebiam dinheiro dos adversários de Trump para se juntarem à caravana, reduzindo a simples fantoches um sujeito político com força e coragem, mas sobretudo com razões suficientes para continuar migrando.
Enquanto a primeira caravana percorria a Guatemala, outras caravanas saíram de Honduras. Apesar da tentativa de fechar as fronteiras, também houve grupos que se juntaram na Guatemala, em El Salvador e na Nicarágua; parecia que a primeira havia inspirado as outras.
A HISTÓRIA APAGADA DOS MIGRANTES LATINO-AMERICANOS
Muitos se perguntaram quem organizou a caravana, quem idealizou esse movimento migratório que aparentemente atenta contra a estabilidade econômica dos países da América Central, México e Estados Unidos, conforme as constantes ameaças de Donald Trump. Deve-se dizer que a população vem migrando há anos e que não é a primeira caravana que se organiza; houve outras em menor magnitude ao longo de 2017 e, na realidade, parte das economias da América Central se sustenta graças às remessas enviadas pelos migrantes para seus parentes (apenas em Honduras, representam 18% do PIB).
Os países da América Central têm uma história muito semelhante, apesar dos governos que passaram da esquerda ou da direita. Na Guatemala, registra-se 59,3% dos habitantes em situação de pobreza e extrema pobreza, o que afeta principalmente a população indígena-rural.
Assim como Honduras, o país recuou nos últimos dez anos não apenas em questões econômicas, mas também em direitos humanos, apesar dos acordos de paz assinados há mais de 20 anos, depois do genocídio de populações principalmente indígenas que caracterizou o conflito político e militar dos anos 80.
No ano 2015, foi exigida a renúncia do presidente guatemalteco Otto Pérez Molina, envolvido em um caso de corrupção junto a vários de seus funcionários do governo, principalmente a vice-presidente. Ambos lideravam uma cadeia de corrupção na alfândega. As pessoas nas ruas conseguiram que a justiça determinasse a prisão preventiva dos corruptos. Meses depois, é eleito um presidente daqueles que não são os de sempre na política partidária, um comediante, apresentador de televisão, Jimmy Morales, que era pior em questões de corrupção e impunidade. Seu governo rompeu com o Estado de direito e age com impunidade, protegido pelo discurso de ter sido colocado ali pelas maiorias.
Em San Salvador, onde em outubro de 2018 reuniu-se um grupo de cerca de 500 pessoas no famoso monumento El Salvador del Mundo para se juntar à caravana, a violência se abate sobre a população. De acordo com uma enquete realizada pela Universidade Jesuita Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), mais de 235.700 pessoas foram forçadas a se mudar somente em 2018 devido às gangues ou maras. As condições de desigualdade, pobreza e violência que continuam expulsando essas famílias não mudaram depois do conflito político dos anos 80 entre os guerrilheiros e o exército, que perpetuou massacres como o de Mozote, onde pelo menos 765 pessoas foram mortas em um único dia, na maioria meninas e meninos. Só até o ano 2012, o governo de San Salvador o reconheceu, sem que até hoje tenha sido processado um único oficial militar do exército ou que se tenha apontado o papel dos Estados Unidos, que rotulou de propaganda comunista a notícia do massacre e apoiou o exército e o governo com mais recursos econômicos e militares.
Na Nicarágua, um conflito que ninguém esperava eclodiu a partir de uma crise política. O detonador foi uma reforma da Previdência Social, mas o descontentamento já tinha se acumulado há muito tempo com o governo “sandinista e esquerdista” de Daniel Ortega. Este governo por mais de uma década se dedicou a criar uma espécie de dinastia que favorecia seus familiares e parentes juntamente com a empresa privada, às custas de interesses sociais e sob a proteção do império americano (que tinha sido seu inimigo durante os anos 1980, quando se dá o triunfo da Revolução Sandinista). A violência que gerou a resposta das forças armadas e militares na Nicarágua ao protesto social de abril de 2018 deixou mais de 350 mortos, segundo a Associação Nicaraguense dos Direitos Humanos (ANDPH), dezenas de prisioneiros e presos políticos (alguns recém postos em liberdade) e mais de 30 mil pessoas que migraram desde o início do conflito político, em abril de 2018, para vários países da região, incluindo os Estados Unidos.
Em Honduras, antes do êxodo em massa, estimou-se, segundo dados do departamento de relações exteriores, que 200 a 250 pessoas migravam por dia. Ou seja, havia um êxodo muito silencioso – o que é conveniente, especialmente quando levamos em conta os dados sobre as remessas que entram nas finanças do país.
Tenta-se apagar toda essa história da América Central. Ela está carregada de pobreza, violência e dor, com feridas que permanecem abertas e que afetam os mais pobres nesses países: os camponeses, os indígenas, os das periferias. Mas são justamente estes que em outubro de 2018 decidiram se tornar visíveis através das caravanas de migrantes para nos lembrar das feridas que carregamos há anos.
A migração tem sido, assim, uma das alternativas de vida digna para a maioria, quando não há outras. Mas migrar sem um visto americano tem um alto custo, não apenas econômico, mas também social. Os chamados coiotes, por exemplo, que são responsáveis por levar pessoas pelas diferentes rotas do México, cobram por pessoa uma média de 5 mil dólares. Na maioria dos casos, essa quantia é paga pelas famílias nos Estados Unidos; outros se endividam; e alguns viajam pela estrada sem um coiote, o que representa um risco muito alto. As caravanas possibilitaram, de alguma forma, viajar com mais segurança e a um custo econômico mais baixo, embora não possamos assegurar que isso fosse inteiramente um fato, quando se sabe do sequestro de alguns migrantes por cartéis de drogas ao longo do caminho.
A JORNADA CONTINUA
Quando os centro-americanos chegaram em Tecún Umán, na fronteira entre a Guatemala e o México, já era incontável o número de pessoas que tinham se juntado à caravana. Enquanto isso acontecia, Trump ameaçava reduzir a ajuda aos países da América Central se os governos não conseguissem conter as caravanas, que segundo suas palavras eram grupos de criminosos que iam até os Estados Unidos. Na realidade, são pessoas sem esperança e em busca de condições de vida melhores do que aquelas causadas nos países da América Central pela mesma política de extermínio e exclusão da intervenção dos Estados Unidos. Assim, apesar das ameaças, as pessoas não deixaram de somar-se cada vez mais, com a esperança de chegar aos Estados Unidos.
Ao chegar à fronteira com o México, houve momentos de grande tensão. Os portões foram fechados e novamente forças militares receberam aos migrantes em um lugar onde dizia: “Bem-vindo ao México”. Os centro-americanos que querem entrar no México devem apresentar um visto dos Estados Unidos, Canadá ou do próprio governo mexicano. É evidente que, depois de vários quilômetros de caminhada e fadiga, aqueles que esperavam entrar certamente não traziam consigo as exigências migratórias – exigências essas que foram impostas como outra maneira de estabelecer muros para impedi-los de entrar naquele país da América do Norte.
Milhares de migrantes estavam localizados em frente aos portões e sobre a ponte que divide a Guatemala e o México. Muitas horas de espera, uma noite toda e com chuva. O desespero se abateu sobre muitos: alguns decidiram pular a ponte e se jogaram no Rio Suchiate para nadar até o outro lado da fronteira, chegando ao México, enquanto outros cruzavam em jangadas de madeira e borracha, apesar das advertências das autoridades. Do outro lado da ponte, aqueles que conseguiam cruzar cantavam o Hino Nacional de Honduras, tentando encorajar os outros a fazer o mesmo. Um helicóptero voa sobre o rio enquanto as pessoas continuam a passar sem parar; outros decidem ficar e depois os portões, não conseguindo contê-los, são derrubados por algumas pessoas. Na frente estavam muitas crianças com pais que, no meio de gás lacrimogêneo, corriam em desespero.

Já no México, foram reportados cerca de 13 mil centro-americanos, principalmente hondurenhos e hondurenhas, que compõem o êxodo de migrantes, incluindo 24 mulheres grávidas, 184 pessoas com deficiência, 31 adolescentes solteiras, 87 pessoas da comunidade LGTBIQ+ e mais de 2 mil meninos e meninas. Era a soma de várias caravanas que chegavam por diferentes pontos fronteiriços a cidades como Veracruz, Oaxaca, Chiapas e outras caravanas que ainda deixavam os países da América Central.
Na Cidade do México, assim como em outras cidades do país, foram preparados albergues onde muitos se reuniram para participar de assembleias, o que lhes permitiu discutir questões como a conveniência de vistos humanitários que o governo mexicano oferecia para as pessoas que solicitassem refúgio. Alguns aceitaram os vistos, embora eles não fossem garantia de condições decentes; apenas garantiam a circulação dentro da fronteira mexicana para o trabalho.
Outro grupo decidiu nomear uma comissão de 19 hondurenhos e hondurenhas representando 17 dos 18 municípios e os hondurenhos que vivem nos Estados Unidos, bem como três de cada país da América Central (El Salvador, Nicarágua, Guatemala). Essa comissão solicitou na cidade do México, que o Comissário da ONU declarasse o êxodo dos migrantes como uma crise humanitária, e aplicasse o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular.
Enquanto as redes sociais serviram para convocar e inspirar milhares de pessoas a se juntarem às caravanas, foi através delas que também Donald Trump promoveu um discurso de ódio contra os migrantes. Mas não o fez em um momento qualquer, e sim antes de 6 de novembro, data em que é renovada uma parte do Congresso estadunidense e os governos estaduais por meio de eleições de meio de mandato. Momento algum seria melhor para promover a xenofobia, passar a responsabilidade dos imigrantes ilegais para o Partido Democrata (o partido da oposição) e buscar mais eleitores, que era o que mais importava nessas eleições.
Em Honduras, o governo se dedicou a culpar os líderes políticos da oposição, inclusive Bartolo Fuentes, ex-deputado do partido Liberdade e Refundação, por ser quem convocou e provocou a caravana de migrantes. Segundo o departamento de relações exteriores e outros políticos, eles levaram as pessoas enganando-as e usando a força. Além dessa acusação ser claramente falsa, colocou a vida de Bartolo em risco.
Da primeira soma de muitos êxodos que saiu em outubro de 2018, soube-se que a maioria conseguiu chegar aos Estados Unidos. Eram grupos diferentes e, embora não tenhamos voltado a ouvir falar de um movimento tão grande quanto o ocorrido naquele outubro, as pessoas não param de migrar a despeito da militarização das fronteiras e da perseguição pelas rotas convencionais. A mudança de perfis e fluxos migratórios continua representando um desafio para as organizações, abrigos e instituições que acompanham a migração segura como um direito.
A migração continua sendo uma expressão da crise democrática e política nesses países, da pobreza e da violência, mas também uma expressão daqueles que buscam condições de vida mais dignas, daqueles que se cansam de viver em desesperança e sabem que é necessário ir além.
UM OLHAR SOBRE O CONTEXTO HONDURENHO PARA ABORDAR O ÊXODO DE MIGRANTES
Para descrever o momento atual vivido em Honduras, imagine por um momento uma panela de pressão que está liberando fumaça, mas encontra-se a ponto de explodir. Dentro, há alguns ingredientes que, ao serem misturados, não demoram muito em surtir efeito: empobrecimento, violência, impunidade, corrupção, narcotráfico, extorsão, desemprego, militarização, crise democrática, concessão de território e resistência social.
Neste país no centro da América, com cerca de 9 milhões de habitantes, sete de cada dez pessoas vivem em condições de pobreza, quatro delas em pobreza extrema. [2] E, segundo o Banco Mundial, Honduras é o terceiro país mais desigual do mundo, o que se traduz em enormes concentrações de riqueza em poucas mãos.
[2] Dados do Instituto Nacional de Estadísticas de Honduras (INEH) gerados em 2018.
O desemprego e o subemprego prevalecem na população. Vejamos alguns dados oficiais [3] sobre isso: a taxa de desemprego aberto é de 5,7%; se você é jovem e com um diploma universitário, você terá mais dificuldades para encontrar emprego, ainda mais se for mulher. Se encontrar, pode aspirar a um salário máximo de 13.809 lempiras, cerca de 566 dólares. Já a renda média geral para o total de empregados é de 278 dólares. Ao mesmo tempo, a cesta básica é considerada pelo Banco Mundial como uma das mais caras, avaliada em 540 dólares. Ou seja, a média de hondurenhos e hondurenhas não atinge uma renda para cobrir suas necessidades básicas.
[3] Idem.
À situação alarmante de emprego acrescentaremos as condições de trabalho, que nos últimos 10 anos se tornaram cada vez mais precárias. As conquistas e lutas dos trabalhadores das empresas bananeiras [4] na greve de 1954 que deram uma enorme contribuição ao código de trabalho, com garantias mínimas para ter condições dignas, estão hoje invisibilizadas pelo novo contrato por hora aprovado no ano 2010, que subtrai qualquer benefício dos trabalhadores e trabalhadoras.
[4] Honduras é conhecida como República das Bananas, termo cunhado por O. Henry e que se tornou popular para descrever um país pobre, instável, corrupto e pouco democrático, que se move ao gosto de interesses estrangeiros. Mas, em Honduras isso também tem a ver com a forma como a produção de banana da região recebeu um impulso decisivo no século 20, “graças às operações das grandes empresas americanas de banana, particularmente a United Fruit Company”, como afirma Arturo Wallace nesta reportagem de 22 de maio de 2017 na BBC: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-39693332
Nas cidades com maior movimento econômico (San Pedro Sula, Choloma, El Progreso, Tegucigalpa e La Ceiba), deve ser paga mês a mês a extorsão, ou “imposto de guerra”. É um pagamento que tem que ser feito a diferentes grupos criminosos, comomarasou gangues, para que não te matem.
Honduras é também uma das principais paradas para 90% da cocaína consumida nos Estados Unidos. Sua geografia, a impunidade e a corrupção das instituições estatais o permitem. Os fluxos de cocaína direto para Honduras cresceram significativamente após 2006 e aumentaram drasticamente após do golpe de Estado em 2009, diz um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Segundo o governo dos Estados Unidos, aproximadamente 80% de todos os voos suspeitos de tráfico de drogas que saem da América do Sul desembarcam pela primeira vez em Honduras, transportando 65 das 80 toneladas que chegam por esta rota. [5]
[5] International Narcotics Control Strategy Report, 2016.
Os pontos de trânsito tornaram as cidades de Copan, Atlántida, Yoro e Cortes as mais violentas. As maras e gangues desempenham um papel essencial no controle dos territórios para as drogas, enquanto os cartéis mantêm os territórios em disputa pelas praças e pelo narcomenudeo. [6] Em consequência disso, as pessoas fogem do sequestro de seus filhos e filhas pelas maras, da extorsão e violência generalizada; as comunidades se sentem desprotegidas e incapazes de enfrentar essa violência, e famílias inteiras são forçadas a deslocar-se no nível interno e externo procurando sobreviver.
[6] Pequeno comércio de drogas ilícitas.
E se nos referirmos aos feminicídios, a cada 23 horas uma mulher é morta no país. Os assassinatos ligados à violência sexual ocorrem principalmente na via pública ou em casa, quase sempre por seus parceiros. Em sua maioria, são mulheres jovens com idade entre 19 e 39 anos que pararam de denunciar os casos pela falta de credibilidade das instituições do Estado e que, mesmo quando denunciados, permanecem impunes.

Mesmo com todos os elementos até agora mencionados, os números duros dizem que não estamos mais entre os 10 países mais violentos do mundo. Mas isso não significa que nós, hondurenhos e hondurenhas, nos sentimos mais seguros. Recentemente, o Instituto Universitario en Democracia, Paz y Seguridad (IUDPAS) da Universidad Nacional Autónoma de Honduras (UNAH) apresentou os resultados da enquete de Percepção dos Cidadãos sobre Insegurança e Vitimização em Honduras; a maioria percebe a insegurança como o principal problema do país, seguida de questões econômicas, e consideram que nos próximos meses a situação ficará pior.
O descontentamento generalizado na população que vem se acumulando especialmente desde o golpe de Estado de 2009 foi reacendido com os casos de corrupção no Instituto Hondureño de Seguridad Social. O partido político do atual presidente, o Partido Nacional de Honduras, foi acusado de desviar fundos para a campanha política, entre outros casos. E a situação foi agravada pela crise pós-eleitoral gerada em novembro de 2017, quando o atual presidente decidiu mover todo o mecanismo do Estado em seu favor (poder Executivo, Legislativo e Judiciário) para ser reeleito inconstitucionalmente. [7]
[7] Essa foi, inclusive, uma das razões que justificou a derrota de Manuel Zelaya em 2009, que tinha a proximidade com os governos progressistas da América Latina e em consequência com a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América): houve uma consulta popular para perguntar se concordavam em realizar um referendo sobre a reeleição. Então, o que antes era considerado ruim para uns, agora acabou se tornando algo bom para outros.
Foram realizadas eleições que já eram ilegais, e que também foram altamente questionadas pela população que saiu para votar, como nunca antes, por uma mudança. As enquetes e a contagem inicial deram como vencedor o líder da aliança contra a ditadura, Salvador Nasrrala, mas depois de várias horas e a queda do sistema, o tribunal eleitoral deu como vencedor Juan Orlando Hernández. Isto levou as pessoas a sair massivamente às ruas para protestar. Os confrontos entre o exército e a população insatisfeita deixaram como saldo inúmeras violações de direitos humanos.
O atual governo continua a aumentar a militarização, que vem sendo notória desde o golpe de estado de 2009, mas que agora se torna mais evidente, especialmente no orçamento do Estado. As dotações foram aumentando para a Segurança, Defesa e o serviço da dívida, ao passo em que foram gradualmente reduzidos os orçamentos para saúde, educação e investimento público. [8] Não temos escolas suficientes, nem universidades, e muito menos hospitais ou remédios, mas temos mais de 24 mil membros das Forças Armadas e um alto investimento em armas militares e inteligência de Estado.
[8] Estudo do Foro Social de Deuda Externa y Desarrollo de Honduras (Fosdeh) que reúne dados oficiais dos orçamentos de 2010 a 2019 em Honduras.
Se olharmos com um pouco mais de detalhe, veremos que as Forças Armadas adquiriram grande relevância desde 2010 e mais ainda no atual governo, ao ponto de as encontrarmos ocupando posições chave nas estruturas governamentais. Não é algo casual: não se trata apenas de pagar favores, mas também de garantir os investimentos econômicos dos grandes empresários e das empresas transnacionais do país.
Há também uma ameaça latente para as populações nos territórios rurais do país, onde encontramos povos indígenas Lencas, Chortis, Pech, a tribo Tolupana, Miskito, negros e negras Garífuna, camponeses e camponesas que estão sendo perseguidos e criminalizados pela defesa de territórios e propriedades comuns.
Grande parte do território de Honduras está cedido para projetos extrativistas. Somente em agosto de 2009, em meio da crise do golpe de Estado, a Lei Geral da Água permitiu a concessão de 47 usinas hidrelétricas em todo o país; também estima-se 302 concessões para mineração. A paralisação da reforma agrária por grandes interesses nos anos 1990, bem como a lei da modernização agrícola, continuam gerando violência e expropriação para as comunidades e organizações camponesas.
Recentemente foram aprofundadas ameaças e perseguições políticas para aqueles que lideram as lutas e a defesa da vida. Nos meses anteriores, foram assassinados Salomon e Juan Samael, pai e filho, que durante anos se opuseram à venda e comercialização da floresta da tribo Tolupan. Eles se juntaram à longa lista de mortes de defensores de recursos naturais e bens comuns, cujos assassinos permanecem impunes. Há também o caso de Berta Cáceres, coordenadora do Consejo Cívico de Organizaciones Populares y Indígenas de Honduras (COPINH), que foi assassinada pela empresa hidrelétrica DESA com a cumplicidade do Estado. Apesar do diretor executivo e de segurança da empresa estar preso, assim como os assassinos que dispararam as balas, os autores materiais e intelectuais ainda não foram chamados a julgamento.
Líderes que acompanham a luta da comunidade Guapinol pela defesa de seu rio e a área central de um Parque Nacional foram recentemente processados por associação ilícita, como se a organização em defesa dos recursos naturais fosse um perigoso cartel. Foram levados para a cadeia e finalmente libertados graças à pressão de toda uma comunidade, o acompanhamento de uma equipe jurídica enormemente comprometida e a pressão de organizações internacionais de direitos humanos.
Sob esse pano de fundo, há aqueles que ainda estão procurando os responsáveis por organizar as caravanas de migrantes e desestabilizar o país. O representante do governo dos EUA em Honduras chegou a fazer ligações públicas para dizer às pessoas que não saíssem, que não se deixassem enganar por sujeitos inescrupulosos, que no seu país os aguarda todo o peso da lei. Donald Trump anunciou recentemente a suspensão da ajuda econômica aos países do chamado triângulo norte e a construção do muro que ele vem apresentando como parte de sua campanha política, bem como o fechamento da fronteira.
E tudo isso impediu que os migrantes parassem de sair de Honduras? Pelo contrário, eles encontraram maneiras de continuar saindo e continuarão a fazê-lo. Enquanto os responsáveis pelas políticas de morte continuarem a deixar as populações sem alternativas, eles poderão construir milhões de muros, mas não conseguirão impedir as pessoas de continuar a lutar por suas vidas e dignidade em meio a esse desastre.
DEPOIS DO ÊXODO QUE VISIBILIZOU A CRISE
Sem dúvida, o êxodo em massa de outubro nos mostrou a força daqueles que a história tentou tornar invisíveis. Aqueles e aquelas a quem naturalizamos que sempre vivessem com a dívida que a democracia deixou aos das periferias: violência, empobrecimento e desesperança. Pessoas oprimidas que sonharam com uma vida com dignidade, e que se atreveram a deixar tudo para trás, ir adiante, levar suas filhas e filhos ou suas famílias inteiras, tentando de novo, e de novo, porque já não há nada mais a perder. Essa é a história dos migrantes que viajaram naquela grande caravana.
Contudo, embora a caravana tenha visibilizado a crise, o que veio depois foi uma tentativa de desacreditar o êxodo e retaliar os migrantes. Em Honduras, pais ou mães que tentaram migrar com seus filhos foram criminalizados. As pessoas passaram a buscar “pontos cegos” – nome dados aos lugares em que se consegue cruzar a fronteira sem ter que mostrar os documentos para a polícia de imigração. Quando as fronteiras entre Guatemala e Honduras foram fechadas, as pessoas passaram por rios, encontraram outras rotas e, continuam até agora. Recentemente vimos uma imagem terrível de um pai e sua filha de 23 meses de idade, Oscar e Angie, que se afogaram no Rio Grande – imagens duras que nos lembraram a criança síria afogada. Algo deve estar errado com a humanidade para que permitamos que essas tragédias passem por nós, sem entender que a migração é um direito e uma expressão da crise em que vivemos.
No México, os grupos migratórios tem sido atingidos por ameaças. Em cidades como Oaxaca e Chiapas, para pegar um ônibus, você deve mostrar documentos comprovando sua nacionalidade mexicana; caso contrário, você correrá o risco de deportação. Os albergues no México relatam um aumento alarmante no número de migrantes e aumentaram sua capacidade em até três vezes. A grande maioria das organizações da sociedade civil viu seu trabalho se tornar bastante complicado, tem sido criminalizada e perseguida pelo mesmo aparato militar e executivo do governo progressista de Andrés Manuel López Obrador.
Essa campanha de terror e medo dirigida aos migrantes e seus aliados, somada à militarização das fronteiras no México e na Guatemala, à disseminação do discurso de ódio de Trump e à imposição do status de país seguro à Guatemala – o que se traduz em mais militarização e detenção –, seria muito fácil pensar que não há mais pessoas tentando chegar aos Estados Unidos. Mas em Honduras, somente neste ano, o Observatório Consular e Migratório (CONMIGHO) relatou 68.909 migrantes deportados principalmente do México e dos Estados Unidos, ao passo em que em todo o ano de 2018 foram um total de 75.279. Assim, o ano ainda não acabou e estamos prestes a atingir os números do ano passado. Em poucas palavras, a crise migratória não cessou, mesmo que agora se fale pouco ou nada sobre o êxodo dos países da América Central.
Os números oficiais já mostram um grande número de famílias e pessoas retornadas, mas além dos números, conhecer os rostos dos migrantes na estação de ônibus quando eles chegam depois de horas de viagem e dias detidos em meio à incerteza, é doloroso. Muitos são jovens e a maioria expressa que, apesar da deportação, tentarão novamente. Há até aqueles que, assim que chegam à estação, retomam novamente uma outra rota de migração.
Enquanto as condições de vida na América Central não mudarem, a crise migratória continuará aumentando. É preciso continuar pensando em alternativas, seguir tecendo pontes que nos juntem e persistir em apagar as fronteiras. Ações isoladas não bastam: uma das lições que essa crise nos deixa é a necessidade e a urgência de nos unirmos, de agirmos com base na solidariedade. Continuaremos assumindo com coragem e rebeldia a tarefa de buscar a esperança, sonhando e lutando para construir algo diferente dessa realidade e, por que não, de outro mundo possível.
Claudia Visoni
Agricultora urbana, codeputada
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

Eu me sinto muito bem com a reflexão sobre o que é realmente transformação no ativismo. Me sinto útil e podendo ter a oportunidade de refletir e direcionar energias para o que realmente importa. O ativismo visa a transformação, mas é fácil perdermos isso de vista. A reflexão nos ajuda a lembrar por que estamos aqui.
TORNAR-SE INÚTIL
Tenho a impressão de que os ativismos modernos nascem com o abolicionismo. Não sei se existiu algum outro movimento ativista coordenado ou de grande escala antes disso. São pessoas que resolveram se mobilizar em prol de uma causa, em prol de resolver uma injustiça que, em muitos casos, não as atingia diretamente – e que poderia até beneficiá-las. Conheço pouco sobre o movimento, mas muitos líderes eram pessoas de posse, ricas, que viviam em ambientes onde a escravidão era uma realidade, e uma realidade muito conveniente. São pessoas que resolvem dizer “isso está eticamente errado, é uma injustiça, as pessoas não podem ser compradas e vendidas dessa forma”.
Por que esse preâmbulo? Porque o sonho de todo ativista precisa ser se tornar inútil. Precisamos ter esse desprendimento. Ser vencedor, para o ativista, tem um gosto um pouco amargo. Vou falar do meu ativismo, da agroecologia. Eu estava aqui fazendo um canteiro na minha casa. Faço isso como pessoa, porque acho importante, mas isso é chamado de ativismo. Para a minha bisavó, isso não era ativismo, porque todo mundo plantava no quintal de casa. Não existia “o ativismo” de plantar comida no quintal. O nome disso era sobrevivência! Mas hoje em dia estou aqui, aparecendo em uma revista. A minha bisavó ia achar isso estranhíssimo. Por que entrevistar sobre algo tão banal, que todo mundo faz? No dia em que todos voltarem a fazer o que suas bisavós faziam, não vou mais precisar dar depoimento e ninguém virá filmar a Horta [das Corujas, da qual Claudia faz parte]. Não vai ter mais graça, porque todo mundo faz. Isso tem que ser a meta. Essa fala não é minha, e sim do Claudio Oliver, um ativista de agricultura urbana da Casa da Ribeira, de Curitiba. Ele diz: “as pessoas vêm aqui, nos entrevistam, tiram fotos, mas nós não fazemos nem metade do que nossas avós faziam”.
Mas o que é realmente transformação? É modificação de padrões de comportamento e padrões culturais. Tem uma frase da Margaret Mead que diz: “Não duvide que um grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou”. Transformação é mudar o mundo mudando o parâmetro e o paradigma. É estranho falar isso hoje, mas há 200 anos talvez alguém pudesse vir me dizer: “Nossa, é um absurdo as pessoas serem escravizadas!” e eu poderia responder: “Ora, por que? Está tudo normal: eles são escravos e nós, não.” Isso era aceito socialmente, mas um número de pessoas fez isso mudar. Pode ter gente que pense assim hoje, mas não é socialmente aceito e é contra a lei. Já eu, como permacultora, vejo uma série de paradigmas que precisam se transformar. Um exemplo é as pessoas acharem que inseticida é uma coisa ótima e formiga, uma coisa péssima. Na verdade, a formiga ajuda a recuperar o solo, e o inseticida dá câncer. O sinal está trocado.
PROTOTIPAGEM
Existem vários tipos de ativismo, e eu me identifico com aquele que prototipa a realidade em que quer viver, inspirado pela frase do Gandhi, “Seja a mudança que você quer ver no mundo.” Imagine que louco um lugar público onde você planta comida e qualquer pessoa pode ir lá colher… Bem, isso existe: são as hortas comunitárias, que são uma utopia que já conseguimos realizar em pequena escala. O ativismo em que eu acredito é pegar algo impossível e ir lá fazer. Isso já é uma tranformação em pequena escala. Fiquei muito feliz quando a Horta das Corujas e várias outras passaram a existir e entraram no repertório da cidade de São Paulo. Isso significa que eu não vou morrer sem ter vivido essa utopia. Já vivo ela em oitocentos metros quadrados.
O ativismo tem a característica de ficar observando o sistema e buscar uma fresta para atuar. Vou dar outro exemplo, da época da crise hídrica [do estado de São Paulo]. A situação era muito maior do que nossa possibilidade de resolver. O reservatório estava sem água, e não havia nada que três cidadãos comuns pudessem fazer para trazer chuva ou mudar a maneira como o governo estava lidando com a crise. Diante daquilo tudo, o que podíamos nós? Ensinar as pessoas a fazerem pequenas cisternas de baixo custo em suas casas. A partir de muito planejamento, criamos o movimento Cisterna Já, do qual sou fundadora junto com alguns permacultores. E tem uma liderança do Movimento de Defesa do Favelado, uma senhora chamada Teresinha Rios, que na crise hídrica começou a construir pequenas cisternas para doar, feitas com suas próprias mãos, na sua cozinha. Muita gente pensa que é impossível construir uma cisterna ou dedicar-se a essa causa. Ela foi lá e fez. Acredito muito na prototipagem.
É muito difícil querermos uma coisa que não conseguimos imaginar. Então o ativismo, para mim, tem muito a ver com o repertório da imaginação. Isso já é uma transformação: romper uma barreira mental de achar algo impossível. De repente, essa coisa acontece e passa a existir no mundo real. E, se ela existe, ela é possível – primeiro na mente, depois no discurso, e por fim na ação das pessoas. Graças ao ativismo.
Existe também o ativismo do enfrentamento e da denúncia, que é muito importante, principalmente neste momento do Brasil. Mas ele também pode ser limitante. Na minha opinião, o ativismo precisa ser propositivo. Não sou a detentora da verdade, e cada um tem sua visão, mas, para mim, a mera contestação daquilo que não achamos correto e a reivindicação de coisas que não estão ao nosso alcance não é uma postura muito ativista. Se não está na nossa mão, nós nos tornamos impotentes.
O pensamento e as palavras já são uma transformação, mas incompleta. A transformação completa é a transformação de valores e paradigmas da sociedade. Podemos convencer um governante atual de que uma causa é muito importante e ele precisa dar um apoio. Isso ajuda muito, porque são pessoas em instituições poderosas, mas essas pessoas também são efêmeras. O governo delas vai acabar. Se aquilo não tiver se transformado em um valor na sociedade, as conquistas voltarão atrás. Tempos atrás, a mulher não podia ter propriedade, dirigir ou sair de casa sozinha, e estava sujeita à violência de maridos e familiares. Hoje em dia, tudo isso é contra a lei. A mudança real está alicerçada em um novo padrão de consciência, pensamento e ética.
FASES
A transformação acontece quando um pequeno grupo de pessoas começa a falar algo que parece absurdo, como “Não podemos ter pessoas escravizadas no mundo!”, e em um primeiro momento são ridicularizadas, e depois isso passa a ser o contrato social hegemônico. Gandhi diz que primeiro eles te ignoram, depois eles riem de você, depois eles brigam com você, e depois você ganha. Nas causas ativistas, é isso que acontece.
No meu campo, quando comecei a plantar comida na minha casa, muitas pessoas próximas achavam ridículo. Se uma alface custa três reais no supermercado, porque eu gastaria horas aqui, plantando? Depois, brigaram: “Por que você está gastando horas com isso?”. Por fim, o fato de que na minha casa existe uma horta passou a ser uma realidade aceita. Na Horta das Corujas, nem mesmo passamos pela fase de ser ignorados. Tinha uma mulher ali que sempre me chamava de palhaça. Dizia que estávamos destruindo a praça, e que a agricultura na cidade não existe, que era algo só do campo. Depois fui estudar e descobri que horta vem de horto, do latim, que é o quintal no fundo das casas, onde se plantava comida e que era murado para evitar o roubo. Hoje em dia, essa mesma mulher frequenta a horta com o pai e sugere novas coisas para plantarmos. Ela ridicularizou, depois brigou, e agora frequenta. Todo dia ouvimos falar de novas hortas que vão ser instaladas em escolas, condomínios… e toda a imprensa acha bonito. Virou moda.
O meu papel como agricultora urbana ativista em trazer esse assunto à tona está menor a cada dia. Mas como a questão da agroecologia, segurança alimentar e da situação do pequeno agricultor é tão terrível, é só o começo de uma nova fase do jogo. Agora que conquistamos esses espaços na cidade, vamos usá-los a serviços dos valores em que acreditamos. E, nisso, estamos muito longe de ganhar alguma coisa. Ainda estamos saindo da primeira para a segunda fase. As pessoas riam, questionando: “vocês acham que vão alimentar o mundo com agricultura orgânica?”. Agora, enquanto alguns brigam conosco, a ONU [Organização das Nações Unidas] declara que o único jeito de alimentar o mundo é com agricultura orgânica.
CONVERGÊNCIA
Existem muitas armadilhas que impedem que o ativismo seja transformador. Uma delas é o ciúme, ou algo que talvez possamos chamar de apego egóico. “Esta é a minha causa!”: isso é a antítese do que precisamos para transformar o mundo. Não vou dizer que não sinto isso, mas tento ficar muito alerta. O ativista precisa estar sempre buscando conexões, aliados e alianças com outros ativistas de causas irmãs. Essa rede é muito importante. É como um jogo de futebol: cada pessoa tem a sua posição. Não adianta termos um time com 11 goleiros. Precisamos lidar não só com o consenso, mas também com a convergência. Posso não concordar cem por cento com alguém sobre o mundo que desejamos e como queremos chegar lá, mas temos entre nós um espaço de convergência – o mínimo para estarmos juntos nessa causa – e uma intersecção com a qual vamos trabalhar.
E é muito importante o empoderamento de quem está chegando no movimento. Quanto mais horizontal for o ativismo, mais bem sucedido ele será. Quando começamos a cercear o outro, dirigir demais e disputar poder, começam os rachas internos que atrapalham tantas causas. Tenho um pouco de problema com cadeias de comando e controle. Dentro de uma estrutura extremamente hierárquica, quem ali é ativista? Todo mundo, ou só os líderes? O que é o ativismo quando não se tem autonomia? Um ativista que não pode ter ideias e sair executando, como ele se vê?
Antes do meu ativismo começar, entrei em contato com organizações estabelecidas oferecendo ajuda com meu tempo e trabalho e percebi que não era bem vinda. Isso me gerou uma dor muito grande. Por isso, incorporei ao meu ativismo o gesto de trazer as pessoas para dentro, mostrando a todos que são muito bem-vindos. Também faz parte do meu ativismo romper as cadeias de comando e controle e romper a divisão social do trabalho. Vivemos em uma sociedade onde parte das pessoas só planeja, e parte só executa – o que é estúpido, pois quando planejamos as coisas, passamos a executá-las muito melhor, e vice-versa. Vejo muito isso na agricultura: muita gente que escreve propostas nunca pegou em uma enxada. É outra visão.
ESPÉCIE PIONEIRA
O Estado talvez seja uma das forças reacionárias da sociedade, ao menos na minha pauta. Quem ocupa esses espaços de poder são os homens brancos, velhos e ricos. A solução para enchente, para eles, é o piscinão, que já sabemos que não funciona. Eles não conseguem imaginar outra possibilidade, como os jardins de chuva. Hoje em dia tenho acesso ao poder legislativo e percebo que parecemos falar de mundos diferentes. Faço parte de um movimento chamado Bancada Ativista, cujo objetivo é colocar ativistas na política institucional. Vou dar o exemplo da formiga. A formiga é uma espécie pioneira. É o primeiro bicho que consegue habitar um solo seco, duro e degradado, onde a minhoca e outros microorganismos não conseguem viver. Ela coloca umidade, nutriente e ar dentro da terra. Quando vou para o poder legislativo, me sinto uma formiga, carregando minhas pautas.
Temos várias pessoas em posição de comando hoje que estão altamente defasadas em relação à ciência. Há muita gente tentando remendar modelos ultrapassados e tratando quem traz um paradigma mais atual como ignorantes. Precisamos ocupar esses lugares. Recentemente estive em uma reunião com a Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] sobre mudanças de normas de compostagem. A Cetesb é um órgão técnico, e eu sou uma pessoa do legislativo dando prioridade política para isso nesse momento. Os técnicos sabem que precisamos avançar na compostagem, e eu, que venho desse mundo, também sei, mas o resto da Assembleia [Legislativa de São Paulo] não sabe. Meu papel é “pinçar” esse tema e levá-lo para a esfera política. Estou ali [na Bancada Ativista] emprestando meu corpo para representar algumas causas socioambientais, principalmente a agroecologia, segurança alimentar, segurança hídrica, gestão de resíduos e também a saúde das pessoas, prejudicada pela poluição na água, ar, solo, alimentos e pelos produtos danosos que usamos cotidianamente. Tento levar essas causas para a política institucional porque estão subrepresentadas.
A jornada é prototipar, transformar em política pública, e depois pegar os comportamentos residuais e mostrar que eles não servem mais. É o que deve acontecer com o agrotóxico, por exemplo. A questão é saber quantas vidas humanas vamos destruir antes disso. Primeiro vêm uns loucos que plantam sem agrotóxico, fazem agrofloresta e agroecologia. Uma série de pesquisas apontam que eles são mais bem sucedidos. Mas, em grande escala, o agrotóxico continua sendo sustentado à base de subsídio e isenção de impostos, deixando o trabalho e a despesa para o produtor orgânico. Quem planta com veneno não precisa de certificação. Quem planta sem veneno tira do bolso três mil reais por ano para a certificação e não consegue financiamento bancário, que só é dado quando o produtor comprova que comprou os insumos – que são adubo químico, agrotóxico e semente transgênica. Se o produtor chega no banco e diz que conseguiu fazer a própria semente e o próprio adubo, e que não precisa de agrotóxico porque tem plantas saudáveis, o financiamento dele é rejeitado. Existe toda uma máquina estatal impulsionando e regulamentando uma coisa tão antiética e perniciosa como o uso de veneno. A fase umdo ativismo é prototipar: pessoas que, contra tudo e todos, conseguem produzir comida sem agrotóxico. Depois, vem a fase da argumentação: mostrar que pesquisas feitas no mundo inteiro apontam que essa forma é mais produtiva, eficiente, e que agrotóxico é cancerígeno; e, ao mesmo tempo, enfrentar toda uma série de pesquisas financiadas por quem produz agrotóxico para tentar mostrar que ele não é um problema. Em seguida, vem a terceira fase: se o cigarro, que dá câncer, tem uma taxação alta, que tal colocar uma taxação crescente no agrotóxico e criar linhas de crédito para financiar a transição agroecológica? O banco pode dizer ao produtor: “Este ano, vamos te dar o financiamento, já que você comprou adubo químico, veneno e semente transgênica. Mas no ano que vem, se você não comprar nada disso, vamos dobrar seu financiamento”. Por fim, os países, como alguns no mundo já fazem, devem acabar proibindo o uso de agrotóxicos.
RECOMEÇO
Como permacultora, tento observar e imitar a natureza. Na natureza, a cobra troca de pele quando deixa de funcionar, e abre espaço para outra pele por baixo. Acredito em ir tirando o foco da estrutura que existe e ir construindo a outra. Economia participativa, outras moedas, outros sistemas de produção e troca que estão fora do mercado. A minha grande utopia é que água e comida não sejam mercadoria. Isso é um direito humano. Porque colocamos um preço e dizemos que quem não tem dinheiro não irá comer hoje? Minha forma de construir essa utopia é produzindo comida que não é mercadoria e não tem preço. Olho para o sistema e vejo que ele vai ruir – inclusive o clima. Nosso papel é ir construindo alternativas para que, quando isso acontecer, tenhamos uma estrutura nova.
Mas não vamos ganhar todas as lutas. E a história não é linear. Há uns trinta anos, veio a questão do “fim da história”, como se estivessem resolvidos os problemas da humanidade em final feliz. Tem muito retrocesso, e aí o ativismo recomeça. A diferença é que o mundo em que minha bisavó vivia englobava a agricultura urbana. Isso era uma atitude normal. Ao mesmo tempo, o mundo dela não contemplava mulheres em espaços de poder. Então hoje ela poderia achar o conteúdo meio ridículo, mas acharia a forma bacana. Ela gostaria de ver que é a sua bisneta que está liderando esse movimento, sendo que no tempo dela eram os homens que lideravam.