Em conversa online com Luciana Ferreira, durante o Festival AmazôniaS, em abril, Ailton Krenak afirma que a crise pode nos ajudar a limpar os olhos para enxergar melhor o mundo e a vivenciar  outros modos de envolvimento com a comunidade e a natureza

Ideias para adiar o fim do mundo, nosso modo de vida e a relação com a natureza

Ficar aqui na aldeia, não só na quarentena, mas ficar aqui na aldeia no resguardo longo, é muito bom porque permite refletir sobre o que já fizemos e não ficar repetindo a mesma coisa. Sobre o livrinho, eu digo [que] aquele livro já foi, eu tô além das proposições daquele livro e das provocações que fiz com relação à ideia de natureza e humanidade: a ideia de uma certa humanidade que recobre o planeta todo, a ideia da super humanidade que são aqueles que ficaram fora do clube da humanidade. Eu não imaginava que nós íamos ser arrochadas pela realidade para ir além desse lugar. Com essa situação agora, o mundo inteiro está sendo convocado a parar. Se o mundo inteiro tá sendo chamado a parar, alguém pode ter também tempo para pensar se aquela correria (que a gente tava fazendo até outro dia), era consciente, se a gente estava indo numa direção consciente ou só fazendo a corrida da boiada.

Tem uma boiada que corre para todo lado. E eu fiquei muito impressionado com a capacidade das pessoas de atender, todas ao mesmo tempo, uma convocatória de “fica em casa”. No mundo inteiro. Em alguns lugares os governos tiveram que fazer uso da força para obrigar as pessoas a fazer esse resguardo; em outros lugares, a grande maioria das pessoas fez isso voluntariamente, conscientes de que estavam fazendo o melhor para si, se resguardando. Curiosamente, o isolamento social pode limpar os nossos olhos para a gente enxergar melhor o que estamos fazendo com as nossas vidas, seja na experiência individual, seja na experiência coletiva. Essa perspectiva de coletivo foi muito ressaltada com a crise; se a gente sentia falta dela, de agora nós estamos aprendendo ela meio que na marra. Se [alguém] tá querendo ir para rua, é obrigado a pensar, porque tem de atender uma outra prioridade que não só a dele, individualista. Que isso nos eduque e que a gente possa aprender um pouco mais sobre os outros – não só sobre o lugar em que nós estamos, mas sobre o lugar em que os outros estão.

Que privilégio para aquelas pessoas que não vivem nesses redutos e que podem, por exemplo, estar no campo, na zona rural, afastados dessas aglomerações e produzindo seu alimento, seu remédio, suas medicinas, suas realidades locais, recorrendo a um repertório de conhecimento de saber e de práticas que alargam o sentido da vida. Daquilo que no livrinho chamei de ampliar as subjetividades, existe uma rica oportunidade de exercício agora. A pessoa que não tá numa rotina de ter que levantar para ir para escola ou trabalho, nenhuma outra rotina muito limitadora, pode fazer um pouco de experiência extraordinária. Se alguém está em um lugar no qual pode mexer na terra, que vá mexer na terra, vai fazer alguma coisa no seu quintal! Se você tá no sítio, faça no sítio. Eu não entendo porque alguém que está em um sítio tem que ficar sozinho dentro de casa, ele não precisa, ele pode ficar junto com toda aquela multidão de maritacas, de sapos, e de tudo que tá na terra – as minhocas, as formigas –, alertando ele que o único sujeito que foi mandado parar foi o humano. De toda a constelação de outros seres que está compartilhando a vida na Terra com a gente, só o humano é que é o vetor da ameaça do vírus. Os outros seres, não.

Mais uma vez estamos tendo a oportunidade de aprender, ao invés de ficar só na expectativa de que alguém nos indique alguma ação para adiar o fim do mundo. Nós estamos sendo coletivamente intimados a pensar, a ter ideias. Tomara que as pessoas aceitem essa oportunidade, não como uma coisa para deprimir, adoecer, mas como uma oportunidade para melhorar! E a nossa solidariedade caminha para aqueles que estão passando aperto. Mantenham a calma, a serenidade.

Agora nós estamos convocando quase todo mundo a se aproximar desse mundo virtual. Alguns de nós tínhamos uma crítica sobre o excesso de relação com essa tecnologia, mas agora nós vamos ter que criar uma disciplina pra se relacionar com ela, porque ela está sendo uma plataforma fundamental para nos dar oportunidade de fazer, por exemplo, o Festival [Amazônias]! Como que a gente pode viver essa experiência sem perder o sentido dos nossos encontros, para que os encontros não sejam tão sublimados a ponto de a gente virar personagens sem carne e osso, sem existência, sem a vida que nos atravessa nos nossos cotidianos, né?

Amazônias no plural

O “s” é muito bem vindo no [nome do Festival] Amazônias. Se não fosse aquelas linhas que marcam as fronteiras entre os nossos países, ela seria sempre no plural, “Amazônias”, porque é tão vasta que chega a ser um lugar imaginário pras pessoas no mundo inteiro. Amazônias é uma imagem antes de ser uma realidade. Tem muita gente que lida com as diferentes materialidades dessas “Amazônias”. Tem gente que pensa como um lugar que historicamente foi o Eldorado, que era o lugar de saquear e buscar riqueza, desde a descida dos espanhóis lá de cima pelo rio Negro, atravessando o Amazonas, até os que entraram aqui pelo sul. Todos bateram essa trilha como aventureiros, viajantes, caçadores, coletores de todo tipo. Exploradores. Os povos antigos que viveram nessas diferentes “Amazônias” têm outras Amazônias no pensamento, no coração e nas suas memórias.

No tempo em que nós vivemos, no século 21, há uma multiplicidade de perspectivas dessas Amazônias: a do governo do Estado, dos ministérios ou de um empresário do Sul. Se cada um deles fosse desenhar o que eles estão pensando, ia ser uma infinidade de Amazônias, porque são os lugares onde cada um quer realizar o seu projeto, digamos assim. E tem o campo das pessoas que nos últimos, 20, 30 anos, se engajaram nas políticas públicas e nos movimentos sociais não governamentais para promover a existência desses lugares chamado Amazônias – desde a proteção da vida, o direito à vida das pessoas que sempre estiveram lá, até a vigilância e fiscalização da invasão desses lugares.

Nós vamos achar que são mais bacanas aqueles que querem conservar a floresta, aqueles que querem apoiar e proteger os modos de vida dos povos que vivem na floresta, mas até nessa parte seria bom a gente olhar com um olhar crítico. Tem os inimigos e tem os amigos; tem os caras que querem comer a Amazônia e tem os que querem proteger a Amazônia. Se a gente ficar fazendo uma simplificação dessas, nós não vamos ser capazes de ser honestos com quem está vivendo dentro dessas Amazônias e precisa que ela continue tendo floresta, rios e segurança. Por que que nós todos nos batemos na década de 90 para que existisse uma infraestrutura voltada para a Amazônia com a ideia de desenvolvimento, mesmo que acrescentado do adjetivo sustentável? No fundo, o motor da ideia era o desenvolvimento. E naquela época já tinha gente dizendo: por que, ao invés de desenvolvimento, a gente não busca ter envolvimento?

Escolhas & possibilidades da Amazônia

Ainda sobre a ideia de fronteiras e Amazônia, tanto uma pessoa que nasceu em Parintins quanto alguém que nasceu em Berlim pode se achar relacionada com a ideia das Amazônias com a mesma intensidade. Ou aquela menina fantástica que mobilizou o mundo alguns meses atrás, a Greta. A Greta tem a mesma intensidade de entusiasmo e envolvimento com uma ideia de Amazônia do que uma menina que nasceu em Ji-Paraná ou Oriximiná. Não é porque ela nasceu lá na Europa que você vai dizer para ela que “você não tem nada para dizer sobre esse lugar”, porque esse lugar para ela tem outras representações. Quando um chefe de Estado na Europa vira e fala “a Amazônia é isso, é aquilo”, e alguém fica nervoso com ele e diz “esse gringo não tem que falar nada sobre a Amazônia”, é porque não está sendo capaz de entender de onde é que ele tá falando. A Amazônia tem um sentido para ele, e isso deveria ampliar a nossa percepção do que são as Amazônias. Elas não são um lugar; elas se constituem numa constelação de lugares de representação mítica, cultural, econômica e política.

Antropoceno & adoecimento de um rio

Eu acompanho faz pelo menos 40 anos tudo quanto é empreendimento dos governos regionais e do governo nacional – desde a Transamazônica! É claro que os engenheiros que estavam fazendo o traçado da Transamazônica achavam que estavam abafando. Depois deles, os que faziam as linhas de colonização do INCRA achavam que estavam pirando! Os que fazem os projetos de hidrelétricas, então, achavam que deveriam ganhar um Nobel! Mas todos estão fazendo uma cagada monumental. Estão invadindo um organismo que não conhecem com um aparato que eles não têm capacidade de desligar depois — pois você não desliga a Transamazônica, você não desativa Belo Monte, Tucuruí, e toda essa esquizofrênica constelação de barragens que foi feita no corpo dos rios, mutilando o corpo desses rios, tornando esses organismos vivos mais suscetíveis a pegar uma doença no futuro. Alguém pode falar “ué, mas rio pega doença?” Claro que pega! Vai mergulhar no Tietê se você acha que rio não pega doença. Ele não só pega, como transmite! Ou vem aqui no rio Doce, sobe na ponte lá em cima de Governador Valadares, dá um mergulho nele. Vai no rio São Francisco, bebe a água do São Francisco, em qualquer trecho dele. Se a gente fizesse uma lista, seriam centenas de rios, de bacias hidrográficas que foram adoecidas pela nossa ação ao longo de 40, 50, 100 anos!

A industrialização e o ajuntamento de milhões de pessoas em lugares concentrados nas cidades curiosamente nascem sempre na curva de um rio. Vide Manaus. As cidades nascem encostadas no rio. Vai ser excepcional você encontrar uma cidade que não tá encostada num rio. Só que desprezam a razão de estar nesses lugares. Num assentamento urbano, 50 anos depois as águas estão contaminadas, quando não podres.

Eu já comentei que uma das coisas que eu sempre achei mais estranhas é que as cidades brasileiras nos trópicos, não só no Brasil, as cidades coloniais, nasceram com as privadas viradas para os rios e a porta da sala, para uma viela. Pode olhar todas as nossas cidades, inclusive Ouro Preto e Mariana. Parece que a gente foi para esses lugares para cagar nos rios. Pega as plantas de todas as nossas cidades no Google e olha para onde é que fica virado o esgoto. E para não dizer que eu não falei das flores, antes da Covid-19, o Rio de Janeiro tava abastecendo as torneiras das pessoas com água de esgoto. Jogaram esgoto nos rios, o rio tá devolvendo esgoto nas torneiras. E não é numa vilinha pobre que não tem como fazer uma estação de tratamento de água. É no Rio de Janeiro, que nos últimos anos deve ter gastado bilhões com a recuperação da Baía de Guanabara. É espetacular. Dava pra filtrar com dinheiro toda a água daquele sistema lá.

Ailton Krenak

Entre isolamento social, distanciamento & envolvimento com a natureza

Eu tenho pensado nessa possibilidade de a gente ser abduzido da relação com a terra, pelo excesso de uso das tecnologias e por uma ampliada dependência delas. Ligar e pedir uma comida, ligar e pedir um remédio, ligar e conversar com a mãe, com a avó, com o tio. E eu fiz um paralelo com um joguinho que eu achava horroroso, que existiu um tempo atrás e que se chamava “segunda vida” – Second Life. É uma dessas maluquices hollywoodianas. Foi criticado pelos psicólogos, que recomendaram não deixar crianças brincar com aquilo porque podia criar uma ilusão de um mundo paralelo, no qual a criança ficava ganhando prêmios, inventando uma fantasia substituta da experiência de viver, e seria uma tragédia se o mundo caísse nessa armadilha de viver essa experiência artificial e deixar a maravilhosa experiência de viver em conexão com a terra, uma fricção com a terra, a ideia primária de mexer na terra, enfiar a mão na terra, pisar na terra.

Uma pessoa que tem 10 anos, 20 anos de experiência, sabe que restaura a gente pisar no chão, mexer no chão. Então mesmo que as pessoas consigam comer, beber e fazer tudo sem ter que mexer na terra, deveriam fazer isso pra ficarem saudáveis. Se perder essa conexão com a terra nós estamos acabados! Mas, mesmo que seja uma tendência, acredito nós não vamos por esse caminho. Eu tenho uma expectativa de que a gente vá ter tempo para considerar o quanto a vida em fricção com a terra, nesse planeta maravilhoso, é importante para a possibilidade de continuar vivendo aqui na Terra. Essa espécie de tranco que nós estamos levando vai fazer muita gente das cidades botar o pé na estrada, no bom sentido, e enfiar esse pé na terra. Nós vamos ter a necessidade de sair dessa casca, dessa plataforma extremamente dependente de tecnologia e se arriscar na terra. E isso é envolvimento.

Indígenas, Constituição & representação política

A própria ideia de ter uma Constituição comum a todos nós tem sido atacada. Toda hora querem emendar a Constituição, fazer uma medida provisória, inventar alguma coisa. O próprio Capítulo dos índios na Constituição é o tempo inteiro aviltado por gente que nunca aceitou aquela vitória que nós tivemos. Eu não tenho relação com partido político faz muito tempo. Nunca tive e me afastei fantasticamente de qualquer discussão nos termos de política partidária porque acho que é um tremendo furo n’água.

O mundo hoje é governado por CEOs, gerentes. As corporações escolhem gerentes, botam os caras para governar e, quando eles não estão correspondendo, tiram eles numa boa. Assim como a ideia da economia movida por uma perspectiva de progresso e desenvolvimento é uma ideia vencida, velha e vencida, a gente deveria superar também a ideia da representação política nos termos em que foi feita até agora, porque é colonialismo. A gente deveria pensar em envolvimento! O envolvimento das pessoas, das comunidades com os lugares onde vive! E a partir desse envolvimento, produzir novas visões, novas realidades sobre a vida social. Agora que nós estamos vivendo um isolamento, a gente devia pensar em como sair dos sistemas falidos e declaradamente corruptos. A gente deveria pensar como é que a gente faz o religamento das relações.

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