Dando a letra de Caranguejo, no Recife, Sarah Marques mostra que a pandemia traz dilemas inéditos para as comunidades mais pobres do país, tornando ainda mais importante sua história de solidariedade e coragem

Cara,

Eu sou Sarah Marques, né,

se eu não der nome e sobrenome o racismo me dá nome.

Sou cofundadora do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste,

formado na maioria por mulheres,

educadora popular no Centro Popular de Direitos Humanos e bolsista do Fundo Baobá.

Aqui no Caranguejo,

mora eu, meu irmão e meus filhos:

os gêmeos Rafael e Juliana, adolescentes de 13 anos.

É, eu sou mãe solo,

o pai não assumiu.

Como várias outras mães negras, de comunidade e de favela, eu tenho esse papel de ser mãe e pai,

de sustentar a casa e a comunidade.

Ação do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste junto com voluntários na comunidade; Sarah Marques, à direita.

Direito aos direitos

O Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste foi formado no conflito com a Prefeitura de Recife, quando teve tentativa de retirada de algumas casas. Foi aí que a nossa comunidade entendeu que o direito à cidade não é só à sua casa:

é o direito aos direitos.

É o direito a ter acesso a trabalho, a alimentação, a educação.

O coletivo faz o papel de discussão dentro da comunidade, pra gente conhecer nossa realidade, conseguir algumas saídas pra situações difíceis daqui.

Palafitas

No momento de pandemia tudo piora muito.

Muitas das mulheres que estão acessando o auxílio emergencial são mulheres negras que ganham até 285 reais por mês. Quem ganha 285 reais por mês não consegue se sustentar. As mulheres que ganham esse dinheiro, elas têm várias outras formas de se virar pra aumentar essa renda: vai pro semáforo, pras faxinas, ser babá. Só que em um contexto de pandemia, ninguém consegue fazer isso.

Ao mesmo tempo, a gente não pode ficar em casa.

Muitas das casas daqui são 18 metros quadrados, né?

Palafitas.

Mães com 5, 6 crianças que moram todo mundo junto,

e às vezes com marido.

Não é um modelo de mãe, pai e filha.

Vou dar mais um exemplo. A beira de canal tem esgoto da cidade toda, mas esse esgoto passa aqui na porta. Quem mora no rio Capibaribe, nos prédios, nas grandes casas, nas grandes mansões não sente o que a gente sente porque é aqui que o esgoto passa. Na chuva tem enchentes aqui. Como o povo está na palafita, um vai pra casa do outro porque tem um primeiro andar com batente mais alto. Como é que vai ficar quando começar a chuva de verdade? Quem é que fica em casa, quem é que se isola nesse momento? Como falar sobre distanciamento numa comunidade assim, com duas mil e poucas famílias?

A gente tem um inimigo muito mais forte agora porque é invisível.

Os outros a gente sempre tá mostrando ao povo,

e a gente consegue ver pra bater, né?

Mas o o vírus a gente não consegue ver. 

E como a gente sempre fala, a fome não é só do estômago, é muito tempo de fome e abandono, então quando vem uma pandemia ou qualquer coisa que não estava no mapa e que a gente nem imaginava, nós somos os primeiros a ser atingidos e de uma forma brutal.

Linha de frente

A gente está fazendo campanhas de atuação direta com kits de alimentação e higiene e entrega de cesta básica. Fizemos uma parceria com um colégio do Recife, o Colégio Damas, que tá dando quentinha três vezes por semana. A gente entrega pros vizinhos, pra quem trabalha no semáforo, pras pessoas que são usuárias de droga, o pessoal alcoolista. Tudo é feito na nossa casa, então as pessoas vêm pra porta da gente.

Estamos fazendo também um trabalho de comunicação, vários textos e cards, passando de bicicleta, falando da pandemia, e trazendo aqui pra dentro as mídias lá de fora pra mostrar que a gente existe. Ontem mesmo saiu um texto nosso nas redes sociais falando que o vírus já chegou na comunidade.

Mas nosso papel é bem difícil: a gente fica numa posição muito cruel nesse momento de ter que escolher quem precisa mais. É muito tempo de abandono. Quando é a gente que tá ajudando, tudo fica muito mais próximo, e as pessoas da comunidade nos cobram com mais força.

E a gente também se cobra.

Medo

O sentimento de medo é o que nos rege agora.

A gente sabe que tudo que é feito sem conversar com a gente nos atinge diretamente e nos atinge sempre de uma forma errada.

A gente sabe que as pessoas têm preconceito com a comunidade, veem a comunidade como suja, desorganizada.

O sentimento é de medo porque a gente está perdendo, nós já começamos a perder os nossos e os nossos a gente perde sempre das formas mais mais cruéis:

morre na fila do hospital,

morre no caminho

– ou morre em casa, porque tem muito beco e rua fechada em que o socorro nem chega. 

Na verdade já estava ruim, né? O local que a gente está tem um posto de saúde pra 5 mil pessoas. Uma dentista pra 5 mil pessoas. A médica não está todos os dias, porque ela é chamada pra atender outros municípios. A equipe de saúde também não, e já tem caso de agente de saúde contaminada ou do grupo de risco.

E a gente não sabe a quantidade de gente que tá contaminada, porque na comunidade ninguém aceita dizer que tá com Covid-19. E a gente também não sabe quanta gente vai tratando os sintomas com chá, com coisa caseira.

Mas junto com o medo vem o sentimento da vontade de lutar. Essas comunidades sempre tiveram força, sempre tiveram essas mulheres. A gente vai sobrevivendo, vai se organizando e se ajudando,

sentimento de amor, mesmo.

Humanidade

Nós somos uma cidade invisível, né?

As comunidades são invisíveis a olho nu.

Estão sempre escondidas, atrás de morros, atrás de prédios, atrás de muros.

Você só vê os morros da avenida.

As pessoas de outras classes olham pra cá e só veem o lugar onde se busca o braço do trabalho – e sem pagar os direitos necessários, sem nos entregar o que é nosso. Então nosso papel é mostrar que a gente tá se organizando.

A gente precisa resgatar a humanidade que vai sendo tirada das pessoas. A nossa humanidade.

A gente coloca poemas na bicicleta que circula pela comunidade. A gente precisa dizer ao nosso povo e ao povo de fora que nós somos humanos,

e que a gente também escuta arte, escuta música,

e precisa ter isso pra se manter vivo.

História

O que a gente vem aprendendo é que a história só se repete, se reescreve. 

Tem os mesmos personagens,

como os capitães do mato,

que se vendem, se entregam e nos entregam.

Pra adiar o sofrimento deles, aumentam o da gente.

Quando a gente olha os movimentos das politicagens pra dentro das comunidades, a gente começa a entender o porquê dessas pessoas terem sido abandonadas por tantos anos e estarem sempre no lugar mais vulnerável: é porque esses capitães do mato precisam e querem usar essas pessoas.

A gente precisa fazer a leitura crítica dessa história.

Isso dói,

porque nos trás de volta

a memória das dores, da fome, da morte…

Mas também precisamos entender que os nossos e as nossas que vieram antes nos ensinaram muitas coisas:

estar em comunidade,

nos juntarmos pra enfrentar as coisas,

partilhar, ajudar e conectar.

Tanto é que no conflito com a prefeitura e com as imobiliárias, algumas famílias foram pro habitacional a sete quilômetros daqui. Se você chegar na sexta-feira, vai encontrar essas famílias aqui em Caranguejo. Elas voltam porque é aqui que a gente se fortalece, é aqui que divide comida, é aqui que está a mãe, a tia, o irmão.

Nosso

Eu só quero agradecer esse espaço e pedir que as pessoas apoiem as iniciativas comunitárias.

Apoiem, mas também procurem entender essas iniciativas,

fazer essa leitura política,

e nos ajudar a fazer essa leitura política pro mundo.

Nossas comunidades são centenárias, elas vêm de toda a história desse país de exploração,

mas também de mulheres fortes, mulheres dignas, que vão mudando a cara do país e dando esperança para o povo.

Eles sempre dividem pra conquistar, pras pessoas ficarem mais fracas e a comunidade ficar mais fraca.

A gente tem que dizer todo dia que aqui que está nossa história.

Esse chão fomos nós que aterramos,

fomos nós que pisamos,

fomos nós que construímos nossa casa,

e a gente tem direito de ficar e ficar juntos,

pra não morrer.

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O Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste foi fundado em meio ao conflito com a prefeitura do Recife e imobiliárias para defender o direito de uma comunidade que tem mais de cem anos a ficar em seu território.

Sarah Marques é educadora popular no CPDH (Centro Popular de Direitos Humanos), cofundadora do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, negra, favelada e mãe de Rafael e Juliana.

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Saiba mais

O brega-protesto “Sem destruição”, que bombou nas redes, gravado por jovens de Caranguejo Tabaiares por meio de parceria entre o Coque Vídeo e o Grupo AdoleScER – Saúde, Educação e Cidadania: https://www.facebook.com/caranguejoresiste/videos/1830498287081408/ 

Facebook do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste: https://www.facebook.com/caranguejoresiste/ 

Instagram: https://www.instagram.com/caranguejotabaiaresresiste/?hl=pt-br

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