Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Hidrelétricas e barragens impactam gerações de comunidades nas margens do “Velho Chico”
Por Mirela Coelho*
A produção de energia elétrica ameaça a vida do rio São Francisco e a sobrevivência de diversos povos, atravessando histórias de famílias e comunidades

Abertura das comportas da Usina Hidrelétrica Três Marias cuja construção afetou a vida de inúmeras comunidades l Foto: Cbh São Francisco/Youtube/Reprodução
Há cerca de 60 anos, o município de Três Marias, em Minas Gerais, era o lar de seu Pedro e dona Antônia, um casal de ribeirinhos recém-casados. Por ali eles viviam bem e tiravam seu sustento de tudo que o rio São Francisco provia. Em 1963, a primeira filha do casal acabara de nascer quando se iniciaram as operações da barragem Três Marias, um mega-empreendimento de geração de energia que mudaria para sempre suas vidas.
Seu Pedro até chegou a trabalhar na construção da hidrelétrica. Eles acreditavam na promessa de que, quando o lago estabilizasse, teriam suas terras de volta. Porém, a história não foi bem assim: os fazendeiros locais se apossaram das áreas que restaram e a família, como muitas outras, foi expulsa e precisou recomeçar a vida rio abaixo, na barra do Formoso. Hoje, Clarindo Pereira, 55 anos, pescador, filho do casal, e que ainda vive no local, teme que a história se repita.
Em 2020, o governo federal por meio do Diário Oficial da União anunciou a construção de uma nova barragem no rio São Francisco, a usina hidrelétrica (UHE) Formoso. Como aconteceu com seus pais, Clarindo e sua comunidade não foram consultados sobre a construção dessa barragem e as consequências esperadas para o mega-empreendimento causam medo e revolta.
“Não houve consulta prévia. Ninguém chegou e disse: “Olha, o senhor que é um pescador, que é um ribeirinho, o que o senhor acha da gente construir uma barragem aqui?” Não houve nada. Quando abrimos o olho as coisas já estavam além do que a gente previa”, afirma Pereira.
A UHE Formoso integra o Programa de Parcerias de Investimento (PPI) do Governo Federal e a empresa responsável pela hidrelétrica é a Quebec Engenharia. A nova hidrelétrica terá potência instalada de projeto de 306 MW e está projetada para ser implantada no estado de Minas Gerais, a 12 quilômetros da cidade de Pirapora (MG) e a 88 da UHE Três Marias. A área de reservatório invadirá 312 km2 e abrangerá os municípios de Buritizeiro (MG) e Pirapora (MG). O projeto atualmente segue na fase de levantamentos sociambientais prévios ao licenciamento.
Direito de existência
Biólogos brasileiros alertam para os perigos da construção de uma nova barragem na região em um estudo publicado no periódico científico “Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems” [Conservação Aquática: Ecossistemas Marinhos e de Água Doce]. As projeções indicam que 8 mil pescadores serão diretamente afetados e uma área de preservação permanente será profundamente alterada, assim como todo o rio São Francisco. Estudos também indicam que mais um barramento pode causar o desaparecimento de espécies de peixes ameaçadas, como o pacamã, que usam os efluentes do rio para reprodução.
Os moradores das áreas que não forem alagadas, que já vivem assombrados com o risco de rompimento da barragem Três Marias, passarão a conviver com mais uma barragem pendurada em suas cabeças – além de lidarem com todos os impactos ambientais, econômicos, sociais e psicológicos do empreendimento.
“Recebemos a proposta dessa barragem já com todo o desenvolvimento do projeto, pronto para aprovação, com o aval do presidente Bolsonaro e do governador Romeu Zema. Nós defendemos que nenhum mega-projeto, por mais importante que seja, possa retirar o direito à própria existência de um povo!”, diz seu Clarindo.

As barragens alteram a vida do rio e de suas populações l Foto: Cbh São Francisco/Youtube/Reprodução
Remoções
Histórias graves de violação de direitos fundamentais na construção de barragens são comuns no Velho Chico. Os povos Tuxá, em Rodelas (BA), e Pankararu, entre Petrolândia, Itaparica e Tacaratu (PE), também tiveram seus territórios e vidas violadas com a chegada da hidrelétrica Luiz Gonzaga (Lago de Itaparica) no norte da Bahia em 1975.
Nos anos 1980, a inundação causada pela barragem de Itaparica levou ao deslocamento de aproximadamente 40 mil pessoas, entre elas, cerca de 200 famílias Tuxá, aproximadamente 1.200 indígenas. Além dos danos materiais e imateriais produzidos com a submersão dos territórios ancestrais, a demora no reassentamento resultou na separação da população Tuxá, com grupos menores indo procurar abrigo em territórios distantes.
“Nenhuma das comunidades que saíram do território tradicional e foram para outros espaços vivem um cenário socioeconômico e cultural estável e seguro. Todos vivem processos territoriais por conta do que aconteceu no território tradicional” diz Ayrumã Tuxá, que mora na aldeia mãe, território D’zorobabé, local ancestral próximo a área que foi inundada. Ela completa:“Hoje eu percebo que foi uma estratégia inteligente do estado, pois não havia interesse de negociar ou conceder os direitos do povo Tuxá. Era mais fácil desagrupar uma comunidade”
Ayrumã conta que hoje seu povo luta em duas frentes: indenização e autodemarcação. Há quase 40 anos os Tuxás esperam respostas da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) sobre o ocorrido. Além disso, os indígenas da aldeia-mãe enfrentam um árduo processo para reconhecimento de posse das suas terras, em constante ameaça de desapropriação.
Atualmente, existe uma liminar de reintegração de posse expedida e reconhecida pela justiça federal que está com prazo suspenso até o julgamento final do Marco Temporal no STF. O Marco Temporal para demarcação de terras indígenas tem como finalidade principal determinar qual data deve ser observada para que aconteça a demarcação de um território indígena. Os ruralistas defendem que apenas as terras ocupadas em 1988 por Povos Indígenas poderão ser demarcadas, o que, por conta de processos de extermínio e expulsão, muitas vezes não acontece, como no caso dos Tuxá. A decisão é de repercussão geral, impacta diretamente no processo.
“Este é um processo de sérias violações a direitos fundamentais e o Estado está à frente disso, infelizmente. Para nós, resta a esperança de que o Marco Temporal não passe e que possam vir futuros governos que tenham propostas para os territórios indígenas e demarcação dessas terras,” destaca Ayrumã.
Depois da construção da hidrelétrica Luiz Gonzaga, o povo Pankararu viu toda a margem do rio São Francisco ser privatizada, não restando meios para desenvolvimento de suas atividades de subsistência. Até o consumo de água foi prejudicado. Para além disso, a cidade de Petrolândia que era de suma importância para as atividade econômicas Pankararu, desapareceu por entre as águas e foi transferida de local, o que impossibilitou a comunidade de vender produtos e tirar seu sustento.
“À medida que o rio foi privatizado tivemos que nos entender em um novo contexto. Em 1987 houve a nossa demarcação pela Funai e em 2006 conseguimos a extensão das terras, que é o território Entre Serras. A distância de Entre Serras ao São Francisco é de 2 km. O que são 2 quilômetros em uma demarcação? A todo momento o nosso direito ao rio é negado!”, protesta João Pankararu.
Atualmente a comunidade Pankararu não tem abastecimento de água do rio, vivendo de poços, água da chuva, fontes e nascentes. No período de seca, a água chega em carros pipa, quando o estado oferece, quando não, as famílias, mesmo que sem condições financeiras, são obrigadas a comprar água de longe. Tudo isso com o Velho Chico a poucos quilômetros.
“Não podemos mais praticar nossos rituais à beira do rio. A gente acredita que os encantados surgiram na cachoeira de Itaparica, que é onde está localizada hoje a barragem. Quando foi construída a barragem, a cachoeira foi destruída. Esse é o primeiro impacto: cultural e espiritual” conta João.
Preocupação com o futuro
Após tantas transformações, o estado atual do rio preocupa João e seu povo. “Passamos por uma seca forte nos últimos cinco anos. A Serra da Canastra, onde o São Francisco nasce, sofreu um incêndio criminoso. Com isso, a nascente diminuiu a vazão e a gente viu a água secando. Hoje o rio está um pouco mais cheio. Por mais que seja uma notícia boa, essas chuvas torrenciais que estão vindo e encheram as barragens são decorrentes das mudanças climáticas. Outros acontecimentos naturais ou provocados irão acontecer. E isso nos preocupa.”
Hoje, coletivos, pastorais, movimentos sociais e outras entidades dos povos do São Francisco se movimentam para que a barragem do Formoso não escreva mais histórias tristes naquelas águas. João afirma que “o desenvolvimento e o progresso ignoram essas histórias, mas são histórias reais, são impactos reais e que perduram por muito tempo.”
Dentre estes coletivos está o “Velho Chico Vive”, onde organizações, moradores e artistas se reuniram para denunciar os impactos da construção da UHE Formoso e defender o Rio São Francisco, através da divulgação da campanha contra a construção da hidrelétrica e ampliação do debate para a população. Eles costumam fazer visitas em campo e grandes rodas de conversa para trocar com o povo ribeirinho, num movimento de acolhimento e unificação para que todos se mantenham firmes diante das promessas que envolvem dinheiro, emprego e desenvolvimento para as comunidades.
Para Clarindo, a situação revela a “ ganância capitalista com a desculpa de que há necessidade de energia.” Segundo ele, ”o povo que vive da lamparina, porque a energia não chega aqui, não entende qual é o significado de tanta intolerância para construir uma barragem.”
Na contra-mão de empresas e governos, os povos do São Francisco pedem que outras formas de geração de energia mais limpas, que não matem bacias inteiras e respeitem as limitações e potencialidades do semiárido passem a ser consideradas pelo estado. Eles já entenderam que os frutos maduros dos empreendimentos no São Francisco definitivamente não vão para quem vive de suas águas.
“Temos que unir forças e acolher o povo para que esse projeto não passe e se apodere de mais um território. Onde vão colocar as pessoas retiradas de suas terras santas? Qual o valor para isso? O trunfo deles é ir apagando histórias e arrancando raízes. O impacto das barragens vai muito além da área que eles dizem indenizar”, finaliza seu Clarindo.
*Mirela Coelho é repórter da Escola de Ativismo.
Como é ser uma adolescente crescendo num Brasil que encolhe
A ativista Vitória Rodrigues reflete sobre crescer e se tornar adulta durante os anos de Bolsonaro e organizando, na linha de frente, a resistência climática

As últimas semanas estão sendo caoticamente dolorosas para qualquer pessoa que saiba e reconheça a gravidade do que está acontecendo. Ignorância, negligência, mentira. Eu tenho a expectativa de conseguir, algum dia, mudar realidades através da vida pública, mas como é possível permanecer com essa visão no clima de Bolsonaro?
Nas escolas que passei durante o fundamental, achei que chegar ao ensino médio seria sinônimo de, exclusivamente, curtir a vida e ver no estudo a chave pra mudar de vida. Mas, todavia, entretanto, eu comecei essa parte da minha vida junto com o governo Bolsonaro. O resto a gente já sabe muito bem o que houve, mas aqui quero falar da perspectiva da Vitória.
O meu ensino médio foi e está sendo completamente diferente do que eu imaginava: eu trampo com projetos sociais, faço iniciação científica por cem reais ao mês e estágio sem remuneração. Sendo mais específica, falo bastante do mínimo, que é trocar ideias sobre periferia, segurança, saúde pública e educação de impacto social. Porém é aí que o buraco fica mais embaixo: que é quando eu preciso afirmar que a crise climática tá em curso — e se não tem mundo, não tem mais problema algum.
Eu vou nos cantos falando que desenvolvimento sustentável é o caralho, que a mudança é estrutural, é como um todo: é preciso naturalizar a radicalidade. Essa preocupação com o presente – não é futuro, gente – do mundo não é só minha, mas também de muitos adolescentes, como a Hyally Carvalho e a Heloíse Almeida, que estão se desdobrando para comunicar que as coisas não podem continuar como estão.
Daí na hora de repensar diariamente tudo o que faço, me pergunto: por que eu preciso fazer isso?
Sei muito bem que a gente precisa de gente que movimenta espaços na cara e na coragem. Eu sei. Fazer isso me conecta com pessoas, histórias e experiências que jamais teria se só estivesse conformada com a realidade, mas eu realmente tinha que estar passando a maior parte do meu tempo lutando contra toda essa correnteza que vai desde o montante de lixo que é incinerado na porta da minha casa até a indústria que tá poluindo a Baía de Guanabara?
Todo esse processo é doloroso: faz o corpo gritar seja na dor de cabeça ou na ecoansiedade. Crescer no clima de Bolsonaro é ver que a sua vida e a sua luta não tem valor algum, porque a política deste crápula é a de atacar o ser ativista de tudo que é forma, ao ponto de dar aval ao fim da nossa existência. Comecei falando que essa semana está uma merda e está. Mais uma vez, estamos vendo o governo brasileiro – que é o de Bolsonaro, precisamos dar nome aos criminosos – falar que tá tudo bem ver ativistas como Bruno Pereira e Dom Phillips desaparecerem.
É aterrorizante ver que você vai começar a sua vida adulta num país que simplesmente não liga pra sua vida, pro que você fala. Viver no clima de Bolsonaro é andar lado a lado do medo e com a consciência de que o que você representa só importa quando você é um dos alvos dos poderosos.
Isso é um desabafo. Isso é um grito de desespero. Isso é uma expressão do meu medo. Mas isso também é uma forma de dizer que precisamos dar as nossas mãos não apenas entre a gente que tá nos projetos, mas entre todo mundo. A Anna Paula Salles, da Associação de Moradores do Engenho de Itaguaí, costuma dizer que a gente precisa é andar em bonde.
Convido quem me lê aqui a pensar formas de proteger ativistas, sejam aqueles que já foram, os que estão na luta e os que estão por vir. Como fazer tudo isso eu ainda não sei, mas a Escola de Ativismo é um bom caminho. Vamos pensar em outros coletivamente também?
Como publicou Andréa Pachá, “quero viver em um país que não mata e que não naturaliza a morte. Não aceito um Brasil que vive de perguntar quem mandou matar.”
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Vitória Rodrigues é moradora de São João de Meriti, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Está terminando o ensino médio técnico de Gerência em Saúde na EPSJV/Fiocruz. É Diretora Executiva do Projeto Ini.se.ativa e inventa arte nas horas preenchidas. Fala bastante de violência urbana, racismo ambiental e educação crítica de impacto social.
As mudanças climáticas impactam a população LGBTQIA+. De que maneira podemos nos proteger?
Populações vulnerabilizadas serão as mais afetadas pelas mudanças climáticas, cada uma com sua particularidade. Gabriela Borges reflete nesse texto sobre como isso afetará as pessoas LGBTQIA+ e o que aliades e a própria comunidade podem fazer.
Por Gabriela Borges*

Durante a minha infância, eu não sabia direito o que era ser uma pessoa trans. Não entendia se as motivações vinham da disforia de gênero que sentia ou se era a desconformidade com o padrão binário enrijecido. Com o passar dos anos, compreendi a libertação do sistema que prende o sujeito em existências que nos foram propostas por um sistema colonizador. Porém, sentia que pensar nessa identidade era quase um privilégio, já que as ameaças ambientais batiam na porta, desde o esgoto a céu aberto na rua de casa até o perigo de desabamento morando em áreas de risco.
Mal sabia eu que, de lá pra cá, estaria lutando diariamente pela minha vida enquanto pessoa trans no ativismo ambiental. Um lugar que por vezes desaparece em uma silenciosa solidão repleta de perguntas: Quantas pessoas trans você já viu em lugares de tomada de decisão? Quem foi a última travesti televisionada falando sobre os efeitos climáticos que nos atingem? Enquanto isso, quantas pessoas cisgênero você conhece ocupando espaços de liderança? Finalmente, o último questionamento que rasga o peito é de que forma podemos levantar uma bandeira colorida quando a cor que mais se destaca para pessoas como eu é sempre o vermelho?
Jarda Araújo, travesti negra anticolonial, ativista, que trabalha na Secretaria Executiva de Juventude do Recife, aponta a necessidade de olhar para a exposição de pessoas trans em desastres ambientais. Segundo a comunicadora, “sem sombra de dúvidas os mais vulnerabilizados são os mais impactados. É impossível pensar a população LGBTQIA+ no Brasil desassociada dessa triste realidade, sobretudo quando analisamos o recorte de pessoas trans.”
Mesmo com todos os noticiários que escancaram os efeitos das mudanças climáticas presentes cotidianamente, ainda existe um imaginário social de que o Brasil não é um país atingido por grandes grandes desastres ambientais devido a ausência momentânea de desastres naturais como furacões, terremotos, vulcões e tsunamis, gerando um distanciamento da população do entendimento da magnitude dos problemas ambientais. Porém, a crise climática tem apresentado cada vez mais sintomas, com uma frequência ainda maior do que o comum.
Nenhum país, ainda que permaneça em negação, conseguirá escapar das mudanças climáticas. Lidar com elas requer estratégias de prevenção, o que traz a necessidade de pensar no cuidado voltado para grupos que já são vulnerabilizados, como lugares seguros para a população trans.
Para Jarda, não há possibilidade de pensarmos na eficácia de qualquer iniciativa voltada para a população T, sem pensarmos na prevenção. “É investimento em educação, viabilização dos meios de vida e subsídio, entendimento da própria estrutura e de como as agências atuam dentro de nosso território, para só a partir disso, criarmos um enfrentamento eficaz”, diz a ativista.
Por mais que o mundo esteja falando sobre as políticas de mitigação das mudanças climáticas, no Brasil esse ainda é um tema pouco desenvolvido, inclusive por conta do negacionismo climático por parte do governo, que desarticulou órgãos e secretarias de formulação de políticas sobre o tema. Tudo isso pode gerar ainda mais insegurança e dificultar as possibilidades de prevenção por falta de investimento. Nessa realidade, quando os desastres, naturais ou não, se aproximarem, os mais atingidos serão também as populações trans, principalmente aquelas não-brancas, com alguma deficiência e pobres.

Artista, travesti e profissional do sexo, Kundaline dança na praça da Sé l Foto: Pedro Stropasolas
De que forma especificamente essa população é atingida?
De acordo com um estudo recente do Chapin Hall na Universidade de Chicago, os jovens LGBTQIA+ são 120% mais propensos a viver sem-teto do que os jovens não-LGBTQIA+. Ainda segundo outra pesquisa de 2015, feita pelo Williams Institute, 40% dos jovens sem-teto nos Estados Unidos são LGBTQIA+. A situação coloca esses indivíduos na linha de frente das mudanças climáticas, sendo os primeiros impactados pelo calor ou frio extremos, chuvas, seca, poluição e outros riscos.
Na realidade brasileira, pesquisas regionais têm apontado para o crescimento da população LGBTQIA+ nas ruas. Todavia, há uma ausência estatística realizada por órgãos oficiais para o levantamento e monitoramento de dados sobre essa população. Isso limita a elaboração de qual é o perfil econômico, geográfico, social e o nível de escolaridade dessas pessoas. Com essa demanda, na última semana a Justiça finalmente acolheu o pedido do Ministério Público Federal ordenando que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclua campos sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo 2022.
Outro ponto importante para a discussão acerca da violência de gênero e sexualidade dentro da pauta climática é o descuido já presenciado em outros países com a população LGBTQIA+ em desastres. Segundo uma análise de Dale Dominey-Howes et al. em Gender, Place, and Culture, a população queer geralmente não recebe um aviso adequado antes, durante e depois de grandes chuvas. A informação correta sobre formas de cuidado e recuperação é crucial para a sobrevivência dessa população em períodos de crise climática.
Além disso, a marginalização de pessoas queer ao redor do mundo também afeta lugares que deveriam trazer segurança, como abrigos climáticos. Assim como a temperatura, eventos extremos como furacões, ciclones, tsunamis e outros mostram ainda mais as vulnerabilidades de grupos LGBTQIA+. Por exemplo, durante o furacão Katrina em 2005, pessoas trans foram discriminadas em abrigos de emergência, sendo algumas delas até rejeitadas. Outro caso também aconteceu no terremoto haitiano de 2010, em que pessoas e famílias LGBTQIA+ sofreram violência de gênero. O que você acredita que poderia acontecer com pessoas LGBTQIA+ dentro de abrigos climáticos em um país que ateia fogo em uma mulher trans a plena praça pública?
As agressões diretas ou indiretas não terminam aí, já que em alguns países após esses desastres, as populações LGBTQIA+ podem passar por perseguição. Um caso que representa a situação aconteceu após esse mesmo furacão Katrina, em que a pessoas queer, ainda fragilizadas pela tragédia, se depararem com relatos feitos por grupos religiosos que culparam a comunidade LGBTQIA+ por atrair a ira de Deus com seus “pecados”.
Ainda com todos os indícios que justificam a urgência de construir políticas públicas de cuidado para a comunidade queer no Brasil, não possuímos nenhuma medida de adaptação ou de mitigação das mudanças climáticas voltadas para populações LGBTQIA+. O motivo principal ainda é o preconceito, pois segundo um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, há um medo em contribuir para a ‘naturalização’ da identidade gay, mostrando o grande estigma social voltado para a população queer.
Como a luta climática pode ser construída junto à pauta LGBTQIA+?
Durante as chuvas que causaram a morte de 129 pessoas até o momento região metropolitana do Recife, não tivemos nenhum investimento no cuidado específico para as necessidades da população queer, o que faz com que estratégias tenham que ser construídas pelos próprios atingidos, como coloca Araújo. “[Ações governamentais] voltadas para a população LGBTQIA+ especificamente, desconheço. Já organizações não governamentais, temos a AMOTRANS e a NATRAPE, ambas atuando com a população T em vulnerabilidade, desde o início do período pandêmico”.
Diante disso, é possível visualizar a força que a essa comunidade possui para a união em momentos de emergência. Isso somado a nossa forma de olhar para o outro de maneira cuidadosa, com respeito e empatia sobre a diversidade que compõe a história de cada um, pode ser uma ferramenta essencial para construir pontes, ao invés de muros e mudar o curso da crise climática que assola o nosso planeta.

Mask Oakland é um grupo de base trans e deficientes que distribuiu mais de 100000 máscaras N95 em todo o norte da Califórnia nos últimos dois anos. l Foto: Quinn J. Redwoods.
As iniciativas nesse sentido já começaram a se espalhar pelo mundo, em que se destaca a intersecção da pauta LGBTQIA+ junto à luta de Pessoas Com Deficiência (PCDs). Para exemplificar, trazemos as organizações compostas por PCDs queers que estiveram presentes durante incêndios e inundações de 2017, na área da baía de São Francisco, compartilhando máscaras e filtros de ar uns com os outros. Esses movimentos também se espalham pelo mundo. Em Porto Rico, as comunidades se uniram para compartilhar geradores para refrigerar insulina durante momentos de crise climática.
Outras formas de ação possível é a do grupo trans Latinx- que, com base em experiências passadas de incêndios causados por eventos de calor extremo, levaram oficinas de cuidado para pessoas queer e trans de cor. A atividade aconteceu na Cúpula de Solidariedade e Soluções de 2018, realizada ao lado da Cúpula Global de Ação Climática organizada pelo governo. Essa ação serviu como um convite para ativistas climáticos da comunidade LGBTQIA ao redor do mundo se conectarem com o objetivo de partilhar experiências.
Todas as formas de atuação desses grupos são pouco disseminadas, mas representam um pouco da potência que nós temos. Quando os corpos de pessoas queer passam por transição, o mundo precisa transicionar com a gente.Ee isso serve, especialmente, para a luta climática e socioambiental nesse momento. Nós estamos aqui e precisamos ganhar mais espaço!
Qual é o seu papel nessa história?
Não existe uma fórmula mágica para reparar uma violência que foi – e ainda é – reproduzida durante gerações. Assim como essa ferida foi aberta e mexida por anos, também serão décadas até que possamos cuidar dela.
O primeiro passo começa na representatividade! O nosso desejo é que a referência de pessoas queer não seja a pobreza, o sofrimento e a morte, feito as que denunciamos em todo o corpo deste texto.
Por isso, volto para a infância que abriu este texto, pois cresci em um mundo sem representações sobre as delícias que também podem compor a identidade diversa da nossa comunidade para um lembrete pessoal, sensível e indispensável: a falta dessa população dentro de espaços de tomada de decisões climáticas como a COP, Cúpulas e eventos propostos para as discussões ambientais reforçam esse sistema violento e apagam a nossa existência dentro do ativismo.
Cresci acreditando que teria que lutar sozinhe por mim mesme e hoje escrevo palavras neste artigo para essa adolescente que poderia ter sido poupade dessa solidão, mas também para que as gerações posteriores à mim possam se lembrar da nossa existência. No final das contas, acredito que só com a interseccionalidade entre lutas teremos uma chance de salvar o planeta!
*Gabriela Borges é não binárie, branca, graduanda em Psicologia, ativista e pesquisadore. Atua nas mídias sociais da Uma Gota no Oceano e como comunicadora no GT de Gênero da ONG Engajamundo.
Como o garimpo e a mineração agravam as mudanças climáticas? Listamos 5 fatores
O aumento do garimpo no Brasil atrapalha os objetivos do país de frear o aquecimento global e cumprir acordos internacionais.
por Nayara Almeida
Pecuária extensiva derrubando florestas. Queimadas liberando toneladas de CO2 na atmosfera. Carros queimando gasolina. Poluição industrial. Peido de vaca. Esses são alguns dos vilões costumeiros que nos vêm à cabeça quando pensamos em mudanças climáticas.
No entanto, outras atividades, que à primeira vista podem parecer de menor impacto, estão deixando uma pegada cada vez mais crítica. Esse é o caso da mineração e do garimpo, atividades econômicas que explodiram durante o governo Bolsonaro. Só em terras indígenas, o crescimento foi de 500% nos últimos dez anos.
Abaixo, listamos alguns elementos da atividade mineira mineradora que contribuem para as mudanças climáticas.
1 – Equipamentos poluem. E muito.
Na mineração é possível encontrar distintos métodos de lavra, isto é, exploração prática do minério, que podem variar de acordo com ferramentas e proporções de exploração. Geralmente há 2 formas de minerar, lavra a céu aberto, quando os minérios estão em uma parte mais superficial da terra ou em lavra subterrânea, quando estão em uma parte mais profunda do solo. Para a exploração da superfície, é necessário realizar a escavação e a terraplanagem para alcançar os minérios. Perfurar o solo significa destruir e mover pedras, terras compactas, raízes de um canto a outro.
Nesse processo, a atividade mineradora utiliza máquinas para acelerar esse processo. No entanto, estas máquinas possuem baixa eficiência energética e são alimentadas por combustível fóssil, uma das principais fontes de liberação de gases de efeito estufa na atmosfera. Alguns equipamentos podem consumir até 400 litros de diesel por hora, o que lança uma quantidade imensa de gás carbônico (CO2), principal gás do efeito estufa, na atmosfera.

“Poluir para destruir ou destruir para poluir?”
A ponto de comparação, cada uma dessas máquinas emite, em uma hora, CO2 de forma similar a uma viagem (ida e volta) de carro de Fortaleza (CE) até o Rio de Janeiro (RJ).

“Partiu Jeri?”, disse a máquina
2 – Eletricidade – a cadeia mineradora não toma banho curto
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a cadeia minero-metalúrgica consumiu 320.918.220 MWh em 2020, o equivalente a 11% do total da energia elétrica consumida no Brasil naquele ano.

Imagina se o governo te desse subsídio para tomar banho quentinho longo
Seriam necessárias mais de 675 MILHÕES de geladeiras com freezer ligadas 24h por dia durante UM ANO para consumir a mesma quantidade de energia.

A quantidade de refri e cervejinha que estamos deixando de gelar é gigantesca
3 – Desmatamento – derrubar para minerar
Antes da mineração, vem a mina. Parece óbvio, mas não é: mineração gera MUITO desmatamento. Entre 2005 e 2015 a Mineração respondeu por 9% do desmatamento na Amazônia brasileira. A derrubada das árvores se dá principalmente no processo inicial de construção das minas.

Ninguém aguenta mais ver esse tipo de imagem ou morar em territórios assim
O foco no território da Amazônia não é algo de hoje, e muito menos parece que está próximo do fim. Não à toa, cerca de 22% de todos os requerimentos da Agência Nacional de Mineração (ANM) tem como principal alvo o bioma. O território amazônico possui minerais de alto valor e isso justifica o alto interesse de exploração e pressão na Amazônia. Isso significa que tem quase 2,6 milhões de hectares a serem autorizados a atividade de mineração, ou seja, uma área comparável ao território da Argentina e 60 vezes o Estado do Rio de Janeiro.



4 – Ameaça às Terras Indígenas.
Empresas de mineração entraram com incontáveis pedidos de autorização para mineração em áreas que invadem os limites de 204 terras indígenas registradas na Amazônia Legal.

Pesquisas mostram que as terras indígenas e de ocupação tradicional são as maiores protetoras das florestas e contribuem significativamente para o enfrentamento das mudanças climáticas, visto que a mudança de uso da terra e floresta compõem a maior fonte de emissões no Brasil.

Aprecie essa galeria que mostra como as terras indígenas são as maiores protetoras da floresta 👇
A dinâmica de ocupação da mineração é diferente da do agronegócio. Enquanto o agro “come pelas beiradas”, as empresas mineradoras se orientam pela concentração dos minérios e, por isso, acabam por instalar projetos em áreas mais remotas e preservadas.

À merce dos criminosos por um governo pró-garimpo, várias comunidades tem se organizado para expulsar invasores
5 – Barragens e destruição de ecossistemas e como isso pode ser agravado pelo clima extremo
Toda mina possui uma barragem de rejeitos ao lado. O potencial destrutivo desse tipo de barragem é bem conhecido no Brasil, e com as mudanças no regime de chuvas, o nível dessas barragens pode exceder o limite e elas podem se romper com mais facilidade.

Crimes ambientais como Mariana e Brumadinho podem se tornar ainda mais comuns
Em resumo:
E é por isso que, independente do seu ativismo, você deve ser contra o afrouxamento e a liberação da mineração em terra indígena, ser contrário a #PL191Não. Os territórios indígenas, por exemplo, são os grandes responsáveis por deixar a floresta em pé no Brasil. Liberar a atividade mineradora nestes territórios, além de um absurdo antidemocrático, é ir contra a proteção do clima, é ir a caminho do colapso do planeta.
Em vez de liberar a mineração em terra indígena, é ideal que haja o aumento da fiscalização ambiental, que haja punição e regulação para reduzir o desmatamento e atividades que o promovem, como o próprio garimpo e mineração.

de.sa.pa.re.cer, verbo intransitivo
Luh Ferreira, da Escola de Ativismo, reflete sobre esse verbo tão ecoado dentro do meio ativista, à sombra da ausência de Dom Phillips e Bruno Pereira
de.sa.pa.re.cer
“verbo intransitivo, deixar de ser visível, sumir”
Sentimento que se repete no meio ativista, entre professores, entre trabalhadores, escuto cada dia mais gente dizendo – quero sumir daqui.
Talvez por termos vivido situações tão difíceis nos últimos anos? Talvez porque as coisas vão mal no país? Violência, crise econômica, fakenews, polarização, morte, mortes, pandemia que não passa… excessos, insônia, ansiedade…
Tudo isso fazendo parte da nossa vida.
E viver ainda é o que nos resta.
Mas e quando você não quer sumir?
E quando você quer permanecer, lutar. Quando você quer comunicar, dizer ao mundo que algo precisa ser feito por um território e isso se torna um impulso para viver.
Aqui ao contrário de sumir, de desaparecer, se quer afirmar, permanecer. Lutar.
Bruno Araújo, indigenista e Dom Phillips, jornalista. Parceiros de expedição pelo Vale do Javari, segundo maior território indígena do país, mais de 8 milhões de hectares DE.MAR.CA.DOS; maior concentração de povos isolados – isolados minha gente, é por opção! Indígenas que preferem não fazer contato com essa coisa que chamamos de civilização -; acesso extremamente restrito, pelo rio Javari ou Jutaí e pelo ar; território riquíssimo de isolados, marubos, korubos, kanamaris, matis, e tantos mais, fronteira com o Peru e Colômbia. É palco de diferentes conflitos, tráfico, desmatamento, pesca e caça ilegal, invasões de terras indígenas. Conflito armado.
Então onde estão Bruno e Phillips? É o que nos perguntamos desde domingo, quando soubemos que eles não haviam retornado de mais uma expedição para que Phillips pudesse concluir seu livro sobre ideias para salvar e proteger a Amazônia.
Governo Federal? Ministério da Justiça? Funai?
Este lugar está ou deveria estar sob a vossa proteção!
Não podem simplesmente de.sa.pa.re.cer.
Vocês são sim responsáveis por tudo o que acontece em uma região de fronteira e nos territórios indígenas.
A pergunta segue no dia de hoje:
Onde estão Bruno e Phillips?
Onde está o Governo Federal?
É guerra! Não leitoras-es, não aquela constitutiva dos povos indígenas, a guerra que forma um guerreiro, que luta pelo seu povo, pela sua cultura, por seu território, para ser indígena e assim seguir.
A Amazônia vive uma guerra armada, desigual, suja. É pelas costas, é com aliciamento, na base da ameaça, é imagem e semelhança do sujeito, que governa pelo medo, pela confusão, do banditismo.
Sabemos nesta batalha quem precisa desaparecer. Não sabemos?

Ilustração de @crisvector
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A saúde mental é coletiva: como o movimento antimanicomial ajudou a criar uma rede de cuidado público
Com a forte mobilização do movimento antimanicomial foi possível obter ganhos como a criação das CAPS e das RAPS; o movimento busca agora a ampliação e a manutenção de políticas públicas
Por Alicia Lobato*

No dia 18 de abril, movimentos sociais tomam as ruas para visibilizar a questão da saúde mental e demandar atendimento humanizado e de qualidade l Foto: Governo da Paraíba
“Por uma sociedade sem manicômios”: foi essa frase que o movimento antimanicomial escolheu em 1987 para levar adiante suas reivindicações pelo fim do uso do eletrochoque e de práticas de torturas em instituições de saúde mental, então conhecidas como hospícios ou manicômios. E foi sob essa frase que o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental deu início a uma greve que durou oito meses e ajudou a avançar no questionamento das instituições de internação de pessoas em sofrimento psíquico e advogando por seus direitos.
Dessa mobilização surgiu a “Articulação Nacional da Luta Antimanicomial”, que tinha como o objetivo pôr fim às instituições manicomiais e lutar pela criação de políticas públicas de saúde para pessoas que precisavam de apoio psicológico.
Após 14 anos de luta, o movimento conseguiu uma vitória significativa: em 2001 foi sancionada a lei nº 10.216/2.001, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e assegura um melhor tratamento de saúde, segundo suas necessidades, além de pôr como direito, respeito e proteção contra qualquer forma de abuso.
Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mantidos pelo SUS e criados em 1992, foram atualizados pela lei e ampliaram um entendimento da saúde mental que foi encarada a partir daquele momento de maneira intersetorial e multidisciplinar, buscando entender a integralidade do sujeito em sofrimento psíquico.
“Tivemos um cenário de ganhos no sentido de não só trazer a pauta antimanicomial para a sociedade, algo que parecia tão naturalizada a pessoa ter algum tipo de transtorno e ir para o manicômio”, afirma Vanessa Furtado, militante da luta antimanicomial e doutoranda em Psicologia na Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN). “Com a lei de 2001, foi-se criando a possibilidade de demonstrar outras formas de cuidados que não o encarceramento e a hospitalização.”
A pressão dos movimentos sociais, também ajudou na criação das redes de atenção psicossocial (RAPS), em 2011, dentro do sistema público de saúde, que contribuíram para a qualidade de vida e o fim do isolamento de pessoas neurodiversas.
“As pessoas hoje conhecem e sabem o que são os CAPS, não só pessoas que estão com casos de transtornos graves, mas outros quadros acabam sendo atendidos”, aponta Furtado, ressaltando a capilarização da rede de atenção à saúde mental.

Ativistas da luta antimanicomial participam de atividade em Macapá (AP) l Foto: Divulgação
Desigualdade regional e resistência ao conservadorismo
Com a ascensão do conservadorismo no país e o regime de austeridade do governo Bolsonaro, os equipamentos de atendimento à população sofreram duros ataques. Para manter os serviços funcionando, os movimentos têm se mobilizado em todos os estados contra o retrocesso e também pela ampliação do atendimento.
Tânia Leal, atuante no movimento antimanicomial do Amapá, conta que o estado é o que menos possui CAPS no país, com cinco unidades. Apenas a capital, no entanto, tem uma população grande o suficiente para demandar cinco unidades.
Para Leal, a luta tem sido árdua, “visto a força do conservadorismo cristão no estado – desde a sociedade até em espaços de tomada de decisão. Além disso, Macapá é a única capital brasileira que não tem uma Unidade de Acolhimento e um CAPS 24h – o que o CAPS Gentileza deveria ser, mas não é”.
Em Macapá, ainda neste mês de maio, está sendo realizada a campanha “Trancar não é Tratar”, em defesa do cuidado em liberdade, focando principalmente na defesa do SUS, que torna possível a existência de espaços como o CAPS. O lançamento da iniciativa aconteceu no dia 10 de Maio, e a programação terá oficinas de lambe, cine debate e rodas de conversa.
A militante analisa que apesar dos avanços que o movimento antimanicomial tem conquistado, no governo atual o debate sobre saúde mental e saúde pública ficou cada vez mais escanteado e, com a pandemia, o próprio movimento teve dificuldade em saber como agir contra a reforma proposta pelo governo federal.
O governo Bolsonaro também aumentou o financiamento para as comunidades terapêuticas de cunho religioso, um movimento que ganha força desde 2016, com Michel Temer. Para a pesquisadora Vanessa, esse redirecionamento exemplifica o desmantelamento das políticas públicas de atenção psicossocial.
Em 2020, a Agência Pública noticiou que apenas no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro foram investidos em comunidades terapêuticas de orientação cristã quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades, cerca de R$ 41 milhões foram para comunidades terapêuticas evangélicas e R$ 44 milhões para católicas.
“Os hospitais psiquiátricos, as casas terapêuticas estão recebendo recursos do governo em detrimento dos CAPS isso é um problema, tem muito município que não tem condições sozinho de manter o CAPS e a ajuda do governo federal vinha diretamente para essa política. Precisamos garantir que as unidades sejam centralizadoras da atenção do usuário, essa política precisa voltar”, afirma Vanessa.
Por conta desse novo cenário, o movimento tem buscado se inserir em outros espaços para seguir atento aos passos do governo federal. A campanha realizada pelo movimento da luta antimanicomial no Amapá, por exemplo, tem feito críticas abertas às comunidades terapêuticas. De acordo com o material da campanha divulgado pelo movimento, já foi registrada pelo Ministério Público a existência de tortura, trabalho escravo e intolerância religiosa nesses espaços.
Tânia afirma que eles têm lutado por inspeções constantes nas comunidades terapêuticas e em clínicas de reabilitação no Amapá, e acrescenta, “temos denunciado incansavelmente esses espaços, mesmo com episódios de censura e retaliação”.

Em todo o país, manifestantes que defendem os direitos das pessoas em sofrimento psiquíco tomam as ruas no dia 18 de maio l Foto: Luta Antimanicomial RJ via Brasil de Fato
Daqui em diante
Hoje, falar sobre saúde mental é assunto costumeiro na vida das pessoas e nas redes sociais. Mas, a história do movimento antimanicomial mostra que, acima de tudo, essa questão é coletiva e social. E, sendo assim, questões como classe social, gênero e raça não podem ser deixadas de lado ao pensar o cuidado, a luta e a formulação de políticas públicas.
A pesquisadora Vanessa Furtado lembra que grande parte da população residente e hospitalizada nos hospitais psiquiatricos no Brasil são declarados como negros ou pardos, e complementa, “isso ainda é reflexo desse processo de racismo instituido no Brasil é que vai gerar formas de expressão de sofrimento diferente”.
Para Tânia Leal, o cenário de desigualdade também é percebido no Amapá, onde houve um aumento visível de pessoas em situação de rua, sendo “grande parte delas usuárias dos CAPS”. Além disso, ela continua “é grande o número de pessoas em sofrimento psíquico internadas nas alas psiquiátricas dos hospitais da cidade. Apesar do contexto nocivo, o movimento da luta antimanicomial continua resistindo dia após dia”, conclui.
*Alicia Lobato é jornalista e faz parte da equipe da Escola de Ativismo.