Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Seis motivos para ter esperanças na luta contra a mudança climática na “COP fora da COP’
Povos indígenas, ativistas, juventudes, organizações e movimentos sociais na COP-26 apontam caminhos promissores para a luta por justiça climática e contra o racismo ambiental
Por Rebeca Lerer*
Marcha contra mudanças climáticas reuniu mais de 100 mil pessoa de todo o mundo nas ruas de Glasgow l Foto: via Greta Thunberg/Facebook
Acompanho reuniões e convenções da ONU desde 1997, quando cobri a Rio+5 como estagiária de comunicação da Fundação SOS Mata Atlântica. Quase 25 anos e dezenas de COPs e assembleias sobre Mudanças Climáticas, Direitos Humanos e Biodiversidade depois, sei bem que o sistema das Nações Unidas é limitado, imperfeito e insuficiente, funcionando como mais um espelho da crise socioambiental, humanitária e democrática proporcionada pelo modelo hiper capitalista que domina o planeta. No entanto, na COP que acontece fora da COP26, vi motivos que trazem esperança na construção de alternativas ao colapso climático em curso.
Historicamente, essas reuniões burocráticas das convenções-quadro da ONU serviram como espaço de encontro e embate entre a pesquisa científica sobre o clima e as políticas macroeconômicas dos países. As COPs também direcionam o debate público e as narrativas oficiais sobre essa crise planetária. ONGs, movimentos sociais e ativistas participaram e disputaram esse processo desde o início. A sociedade civil, embora persistente, foi muitas vezes marginalizada e impedida de acessar os fóruns de tomada de decisão. A participação também foi desigual: COPs realizadas em países frios e distantes, dependendo de viagens muito caras, resultando em uma maioria de pessoas de padrão hegemônico branco, heteronormativo e ocidentalizado, perpetuando a lógica colonial que nos trouxe à atual #EmergênciaClimática.
A #COP26 começou no dia 06 de novembro e entrou em sua segunda semana na Escócia carregando vários desses ranços históricos e estruturais. Em termos gerais, a expectativa é que as metas de redução de emissões, o dinheiro alocado para financiar soluções e adaptação e a vontade política que constarão da declaração final da COP26 sejam bem menores do que o momento exige. Como disse a nossa amiga Greta, é puro #blahblahblah.
O Brasil bem que tentou performar imunizado em Glasgow porém o país está com o filme diplomático and as florestas queimadas – ninguém acredita mais no governo brasileiro (e tão errados?). No projeto Sinal de Fumaça – Monitor socioambiental, fizemos até um dossiê bilíngue chamado “Governo Bolsonaro: Menos 30 Anos em 3”, uma linha do tempo dos principais fatos da política anti-meio ambiente de Bolsonaro. Enviamos essa memória organizada aos delegados internacionais que participam da COP para que saibam o tamanho do desmonte bolsonarista e com quem estão lidando.
E se de onde nada se espera é que não vem nada mesmo, assistindo de longe esta #COP26, me peguei jogando o jogo do copo meio cheio, principalmente pelo que tem rolado do lado de fora e para além dos corredores da conferência. A “COP fora da COP26” me deu seis #RazõesParaAcreditar:
1. FINALMENTE a cobertura midiática sobre mudança climática se tornou diária, constante e abrangente – e não mais meras notícias perdidas nas editorias de ciência e meio ambiente. Chamadas em capas de grandes portais, centenas de correspondentes, comunicadores comunitários, influenciadores, formadores de opinião, especiais na TV – nunca a atenção foi tão grande, nunca se gerou tanto conteúdo sobre o tema, nunca as #s subiram tanto no twitter. Como era de se esperar, as campanhas de desinformação, fake news e greenwashing explodiram de forma inversamente proporcional no ambiente digital, modernizando a tradição de negacionismo da mudança do clima praticada por corporações até o verão analógico passado;
2. Por falar nisso, o termo GREENWASHING (maquiagem verde) voltou com tudo para a boca do povo. Quem viveu os anos 90 e o início dos 2000 lembra das aulas de propaganda enganosa promovidas por corporações poluidoras como Monsanto, Dow Chemical, Exxon e Bayer, entre muitas outras, que disfarçavam os efeitos da poluição tóxica com campanhas publicitárias vencedoras de troféus em Cannes além de criar prêmios, bolsas e institutos para passar pano na própria imagem. Aos poucos, o marketing corporativo foi consolidando o uso de termos como “sustentabilidade”, ” economia verde” e “responsabilidade social” para limpar a imagem dessas empresas. Não por acaso, na mesma época, aqui no Brasil, parou-se de falar em “latifúndio” e “reforma agrária” e passou-se a usar “agronegócio” e “regularização fundiária” – é estratégia de branding que chama. Nessa COP, iniciativas como o EcoBot.net estão rastreando e apontando greenwashing praticado por corporações nas redes digitais e dentro da própria conferência, que tem pavilhões e atividades financiadas por grandes poluidores. Não basta cobrar metas dos governos – as corporações também precisam ser responsabilizadas pela crise climática.
3. INDÍGENAS na linha de frente, formando a maior delegação brasileira na história, marcando presença na abertura da COP26 com o discurso certeiro da Txai Suruí, nas reuniões paralelas e marchas nas ruas de Glasgow com Sonia Guajajara, Joenia Wapichana, Célia Xakriaba, Puyr Tembé e outras mulheres indígenas da Apib e da ANMIGA, Alice Pataxó dando a letra sobre a luta pela terra na COY e todas elas, junto à centenas de lideranças africanas, asiáticas, das ilhas do Pacífico e da América do Norte, organizadas em resistência contra a destruição de seus territórios. A presença mais ampla de movimentos indígenas na COP26 também reflete maior financiamento e acesso à filantropia para esses grupos – como diz o ditado, “antes tarde do que mais tarde”;
Indígenas brasileiros estiveram em número recorde na COP-26. l Foto: Edvan Guajajara
4. A luta ANTI-RACISTA como vértice da busca por justiça climática, com participação direta de redes como o Black Lives Matter e a Coalizão Negra por Direitos, que mandou uma delegação para Glasgow e publicou um forte manifesto pela demarcação dos territórios quilombolas brasileiros. Ver os amigos Douglas Belchior, Raull Santiago pelo Perifaconnection, Marcelo Rocha pelo Fridays For Future Brasil, entre outras representações dos movimentos negros brasileiros, levantando as bandeiras do combate ao racismo ambiental e pela defesa da vida quilombola, periférica e favelada na COP26 em Glasgow é inspirador e um grande passo à frente para todxs nós;
5. O PROTAGONISMO JOVEM em um assunto tão complexo, a capacidade de auto-organização do #FridaysForFuture, os ícones Vanessa Nakate, do RiseUp Movement Africa, e Greta Thunberg dando o papo reto, a coragem da galera do Engajamundo e a sensatez fofa da pequena Holly Brown de apenas 8 anos, garotas que debatem com chefes de Estado ao mesmo tempo que formam enormes marchas populares do lado de fora da COP e em dezenas de países, são exemplos concretos de uma estética renovada, inspiradora e esperançosa na luta por justiça climática. Uma geração que já se cria sob as lentes do decolonialismo, do feminismo, da neurodiversidade, da ciência e da busca por igualdade. É muito emocionante viver esse momento histórico e precisamos apoiar essa juventude de todas as maneiras possíveis;
6. A transversalidade das lutas, o fortalecimento das redes e conexões entre esses movimentos e o engajamento da juventude parecem assustar mais as empresas e os governos do que eventos climáticos extremos como secas e enchentes. O tempo da política institucional e do mercado raramente acompanha o ciclo de evolução cultural da sociedade – são ritmos muito diferentes. Embora governos e empresas atuem na direção contrária, hoje, depois de décadas de muito trabalho de centenas de milhares de ativistas, pesquisadores, comunicadores, defensores de direitos humanos e cientistas, existe uma COMUNIDADE ampla, diversa, crítica e autônoma mobilizada contra a crise climática. Gente que sabe de quem é a culpa e o que é preciso fazer para manter o planeta habitável, e que isso só acontecerá com a redução da injustiça social e o fim do racismo. Os altos investimentos das grandes corporações e governos em tentar proteger sua imagem com slogans sofisticados e vazios como “net zero” e o envio de mais de 500 lobistas da indústria do petróleo à Glasgow, além do teatrinho do governo brasileiro promovido com apoio da agroindústria, indicam que eles estão sentindo a pressão. Quem produz bilhões de toneladas de CO2 tem que ter medo mesmo.
Apesar de tudo, o lado bom de ser veterana desse rolê é conseguir perceber que, em vários aspectos, nos organizamos, resistimos e evoluímos. Que a situação seria bem pior sem os esforços coletivos da sociedade civil. Que estamos em uma esquina da história planetária e ainda podemos fazer alguma diferença, na esperança equilibrista de quem sabe que só a luta muda a vida.
*Rebeca Lerer, 44, é jornalista, ativista de direitos humanos e coordenadora do Sinal de Fumaça- Monitor Socioambiental.
Sociocracia 3.0: a experiência do ativismo canábico com uma forma de gestão radicalmente orgânica
Ativista conta sobre seus aprendizados com o conceito da sociocracia aplicado em uma associação canábica
Por Keka Ritchie*
Quando iniciei meus trabalhos voluntários no ativismo canábico, há quase quatro anos, não tinha ideia do tamanho das transformações pessoais, profissionais, relacionais e até espirituais que aconteceriam a partir daquele momento em minha vida. Mesmo sendo usuária de cannabis há quase vinte anos, acho que, naquela época, eu também pré-julgava as pessoas maconheiras a partir daquele perfil que a sociedade desenhou: lesadas, irresponsáveis e menos comprometidas com o trabalho.
A verdade é que eu não só estava totalmente enganada, como me surpreendi ao descobrir que uma associação de maconha era o lugar mais organizado e motivador em que eu já havia trabalhado na vida. Fora meu trabalho no ativismo, atuo como produtora há mais de dez anos e passei por diversas agências, das menores às maiores do mercado. No entanto, foi ao ver aquela organização feita cem por cento por pessoas voluntárias engajadas somente pelo amor a uma planta, que fiquei realmente encantada e curiosa. Decidi então dedicar um tempo da minha vida para aquela associação e logo fui convidada a assumir o papel de líder de eventos.
Naquela época eu já vinha querendo me envolver com ações que gerassem um impacto positivo na sociedade frente à situação política desastrosa que vinha se desenhando desde o impeachment, mas confesso que toda essa energia densa de disputa que a política gera me causava uma certa repulsa e eu acabava deixando essa ideia pra depois.
Mas o lado bom da vida é que o universo é elegante quando a nossa intenção é boa e ele não só me levou até uma solução extremamente amorosa, bem diferente de como eu imaginava que seria, mas também tinha um detalhe apaixonante: era uma organização onde a maconha era legalaize, afinal, ela nasceu assim, livre! Seria perfeito? Sim! E assim, quando eu menos percebi, eu já tava envolvida até o pescoço em uma organização do terceiro setor. Essa organização é a ACuCa – Associação Cultural Cannábica de São Paulo, onde depois de um tempo ocupei a presidência, num mandato de dois anos, que se encerrou agora em abril de 2021. Hoje, ainda sigo na diretoria, como secretária, além de atuar também como coordenadora institucional suplente na FACT – Federação das Associações de Cannabis Terapêutica, fundada também em abril de 2021, tendo a ACuCa como uma de suas membro-fundadoras.
Na ACuca, me sentia realizando o desejo de contribuir ativamente para a reparação social histórica e para a construção de uma sociedade melhor. Isso porque acredito que a luta pela legalização da maconha é extremamente necessária em um país violentamente racista e desigual como o nosso. Mas teve outro fator que me encantou – e ainda encanta – na ACuCa: o sistema organizacional que ela adotou pra fazer sua gestão: a Sociocracia 3.0. E é sobre essa tal de Sociocracia 3.0 que a gente vai levar a prosa a partir daqui.
Foto: Keka Ritchie/Arquivo Pessoal
Modos de fazer
Bem, o associativismo é a união de pessoas trabalhando juntas em prol de um objetivo em comum, mas isso não significa que ter esse objetivo faça com que todas as pessoas que compõem aquele coletivo pensem sobre tudo da mesma maneira. A realidade é bem diferente disso, na verdade. Sabemos que onde há um grupo de pessoas, há divergência de opiniões. Mas isso é bom, afinal a diversidade é a grande riqueza de um coletivo. Todavia, como é possível usar essa riqueza a nosso favor, organizando todas essas ideias diversas – muitas vezes até opostas – chegando num senso comum que permita ao coletivo tomar decisões onde todas as pessoas se sintam seguras com elas? Essa é justamente a proposta da Sociocracia 3.0. Vou tentar exemplificar usando as eleições presidenciais do Brasil:
Bolsonaro ganhou as eleições com 55% dos votos. Isso significa que ele foi eleito pelo desejo da maioria. Mas eu pergunto: e o que acontece com o desejo de 45% das pessoas que, embora componham a minoria, ainda representa uma parcela muito grande e considerável do todo? As vontades e desejos dessas pessoas são totalmente ignoradas por essa pessoa escolhida para representá-las? Infelizmente, na democracia exercida hoje no Brasil, sim.
Bem, embora a gente não perca oportunidades de criticar o atual (des)governo, a gente não tá aqui pra falar sobre isso. Mas esse exemplo serve para mostrar como a sociocracia ajuda um coletivo a se organizar para deixar não só 55% dele satisfeito.
Vamos fazer uma recapitulação histórica para contextualizar a origem desse sistema: A sociocracia clássica nasceu em 1851, com três regras básicas: os interesses de todas as pessoas deveriam ser considerados e indivídues deveriam respeitar o interesse do todo; Nenhuma ação poderia ser tomada sem uma solução que todes pudessem aceitar; Todas as pessoas deveriam aceitar as decisões de forma unânime, e se um grupo não fosse capaz de tomar uma decisão, a decisão deveria ser tomada pelo nível mais alto de representantes escolhides pelo grupo.
Ao longo dos anos, embora haja registros, a sociocracia foi pouco explorada até que no começo dos anos 2000 começou a se ouvir falar um pouco mais sobre Holocracia, que é um modelo de gestão com ideias semelhantes às da sociocracia, onde não há um sistema rígido de hierarquia, e o poder e a tomada de decisões é dividido entre todas as pessoas da entidade em questão. Em 2015 então, a Sociocracia 3.0 foi desenvolvida a partir da evolução da Sociocracia Clássica ao integrar influências da Holocracia e também da queridinha Comunicação Não-Violenta.
Princípios
Mas de que forma essa tal da Sociocracia 3.0 consegue organizar uma instituição, permitindo que pessoas trabalhem bem juntas, da forma mais eficiente possível? Respondendo objetivamente: nesse sistema, o poder e a soberania são exercidos pelo coletivo, que possui uma inteligência coletiva, sendo capaz de se auto-organizar e tomar decisões em grupo sem critérios hierárquicos, mas tendo agentes facilitadores que tomam decisões com base no consentimento do todo. Na sociocracia, as decisões são tomadas com base na opinião popular, de acordo com seus sete princípios:
Princípio da eficácia, que sugere que o tempo deve ser dedicado apenas naquilo que nos aproxima de nossos objetivos. Ou seja, reuniões desnecessárias que não geram insights são descartadas, o que é um grande incentivo para que as as pessoas aprendam a priorizar suas atividades;
Princípio do empirismo, que entende que mais importante que discutir hipóteses é nos pautar em evidências. Assim, tudo deve ser testado e avaliado de acordo com a realidade, e somente são consideradas as informações concretas da sua eficácia;
Princípio do consentimento, que sugere que as decisões sejam tomadas através de boas argumentações, ou seja: o poder está nas mãos dos bons argumentos, e não de líderes. Em suma, não é preciso que 100% do grupo esteja de acordo, mas após muita argumentação e esclarecimento de dúvidas, é possível chegar a uma conclusão que, embora não seja a preferência de algumas pessoas, pode ser tolerada por elas por ser coesa e não ameaçar a organização. Dessa forma, muito menos energia é gasta com discussões sobre preferências pessoais;
Princípio de melhoria contínua, que sugere que a organização é um organismo vivo e sua evolução é adaptável, ou seja, é necessário ter abertura para mudanças, se moldando conforme o tempo. Assim, é possível incorporar aprendizados, evitando falhas com a repetição de padrões antigos que deixaram de ser eficazes;
Princípio da equivalência, que garante o envolvimento de todas as pessoas que serão afetadas por aquela decisão. Afinal, se uma pessoa será afetada, isso significa que ela é a pessoa ideal para ser ouvida sobre aquele assunto;
Princípio da transparência total, que é um dos principais valores da Sociocracia 3.0, pede para que todas as informações sejam compartilhadas e estejam 100% acessíveis, porque só assim é possível que todas as pessoas possam contribuir positivamente com as decisões;
E, por fim, o princípio da responsabilidade, que entende que em um coletivo orgânico sem pessoas soberanas, só funciona com base na responsabilidade individual. Ou seja, cada pessoa precisa estar completamente ciente das suas funções para cumprir os próprios acordos e fazer a gestão de si mesma;
E, para garantir que esses princípios funcionem pra além da teoria, existe uma característica especial da sociocracia 3.0 que é a estrutura em círculos. Ou seja, ao invés de departamentos organizados através de uma estrutura hierárquica vertical/horizontal, como a gente costuma ver no organograma das instituições, a proposta aqui é que cada departamento seja um círculo – que pode ter ou não outros círculos dentro – que compõem o grande círculo que é a organização. E não existe uma hierarquia estabelecida entre esses círculos. Todos são fundamentais para o funcionamento do todo, exatamente como um organismo vivo. Pra exemplificar, abaixo a gente pode ver como uma instituição se organiza em círculos:
Os círculos existem pra organizar “o que”, “onde” e “por quem” as decisões são tomadas, sendo formados por grupos de pessoas com uma meta em comum, que deliberam pra tomar decisões sobre as mais diversas questões dentro do coletivo. Eles são autogestionáveis, ou seja, as pessoas que integram cada círculo estão ali porque são especialistas sobre aquela questão e, portanto, são as melhores pessoas para tomar uma decisão sobre. Isso é ótimo e otimiza demais o tempo, já que não faz sentido levar a tomada de decisão pro círculo principal, a não ser que isso vá influenciar no caminhar do coletivo como um todo.
Dentro de cada círculo existem os papéis que são energizados pelas pessoas especialistas pra executar as tarefas competentes a cada círculo. O que é diferente de um cargo, por exemplo. Na sociocracia, nada impede que uma pessoa que exerça um papel de liderança execute uma tarefa que, dentro de uma organização hierárquica, pode ser considerada simples demais. Nesse caso, é interessante observar que deixar de lado o ego do “cargo alto” faz com que o coletivo fique muito mais conectado e eficaz. Mas isso é, infelizmente, a razão pela qual é tão difícil implementar a sociocracia em grandes organizações já estabelecidas e, principalmente, nas privadas. Porque as lideranças que compõem os mais altos cargos não querem estar no mesmo nível das outras pessoas funcionárias e, como elas são as tomadoras da decisão final, acabam desistindo do processo de sociocratização no meio do caminho. O que não parece ser uma decisão muito eficaz, já que são nítidos os benefícios que a sociocracia oferece pra uma organização.
Engrenagens para ativistas
Listar todos esses benefícios deixaria esse texto muito extenso, mas acho válido destacar alguns. O primeiro deles é a governança inclusiva, que considera com profundidade os conceitos da democracia (poder do povo), trazendo a sensação de pertencimento a todes envolvides. Outra coisa muito legal de se destacar é que a sociocracia trabalha a flexibilidade das pessoas ao convidá-las a sair da preferência pessoal e decidir pelo que for tolerável, bom e suficiente por agora, sem botar a entidade em risco. Outro benefício incrível é que a sociocracia desenvolve o espírito empreendedor individual e da equipe porque estimula a criatividade, trazendo assim soluções muito mais inovadoras.
Esse sistema melhora também o tempo e a qualidade da entrega porque, segundo o princípio da eficácia, não perdemos mais tempo com atividades desnecessárias, o que nos deixa com mais tempo para executar as tarefas com maior atenção e também antes do prazo, aumentando muito mais a produtividade. Por fim, o meu favorito: através das técnicas da comunicação não-violenta (CNV) ela, naturalmente, estimula a escuta ativa das pessoas, aumentando a confiança, a motivação e o comprometimento das pessoas que se sentem valorizadas ao terem suas opiniões, dores e necessidades ouvidas pelo coletivo. Mais que isso, a CNV melhora as relações interpessoais dentro do coletivo, tornando o ambiente muito mais humanizado e amoroso.
Parece incrível, né? E é! Na minha humilde opinião, a Sociocracia 3.0 deveria ser peça fundamental da engrenagem de organizações sociais ativistas, garantindo transparência e equidade nas suas decisões, ações e intenções, de forma humanizada e amorosa.
E o mais legal disso tudo foi quando me veio a sacada que eu podia aplicar a sociocracia em todas as relações da minha vida, fossem elas profissionais ou não. Eu me perguntei: quanto tempo eu já perdi na vida tensionando uma situação buscando a perfeição, ao invés de relaxar e aplicar o mantra da sociocracia, que diz: “isso é bom e seguro o suficiente para ser testado agora?”. E tudo bem se o teste der errado! Porque a vida, assim como as organizações, é esse grande organismo vivo que está constantemente nos convidando a nos adaptar e aprender com os erros em busca do melhor, mas não da perfeição.
Te convido então a carregar esse poderoso mantra com você e passar a observar as maravilhas que podem acontecer toda vez que ele for entoado.
(E, pra quem quiser navegar mais pelos mares da sociocracia, indico o livro “Muitas Vozes Uma Canção – Autogestão por meio da Sociocracia” de Ted J. Rau e Jerry Koch-Gonzalez.)
Viva a sociocracia! Viva a maconha! E que nada nos distraia do amor. <3
* @kekaritchie é ativista pela regulamentação da maconha, usuária e paciente de cannabis terapêutica
Ensaio: Coletivo Revelar.si e a insubmissão de corpos femininos através da fotografia
*Mulheres da Comunidade do Coque, no Recife, se organizam para propor uma fotografia que se contraponha aos registros feitos pelo machismo e o racismo
Texto e fotos: Coletivo Revelar.si
Pensamos muito – e por muitos anos-, mas não há um modo de resumir ou definir o Revelar.si.
Somos muitas, somos diversas. Começamos como um coletivo de fotógrafas da comunidade do Coque (Recife/PE), mas hoje somos mais.
Somos um coletivo de fotografia e cuidado, que se iniciou com 5 jovens que tinham o desejo de aprender fotografia, mesmo com poucos recursos. Essa caminhada existe há quase cinco anos e não pretendemos nunca parar, pois o coletivo nos motiva e impacta nossas vidas.
Além de desenvolver as habilidades artísticas, atuamos com produção, fotografia, oficinas formativas, ensaios fotográficos, modelagem, desenho, colagem, artesanato e muitas outras coisas.
Somos todas mulheres, na maioria negras e moradoras do mesmo território. Foi através dessa condição compartilhada de ser mulher no Coque que resolvemos criar o coletivo. É a nossa forma de resistir às dificuldades que se impõem nas nossas vidas e de honrar nossas ancestrais, nossas mães e mulheres que ergueram nossa comunidade e a mantêm até hoje.
É uma das formas que encontramos de desconstruir o estigma que cerca esse lugar. É a nossa forma de comunicar, de mostrar ao mundo que existimos, resistimos e estamos cansadas de que falem por nós.
(Re)tratamos questões próprias à mulher, das mulheres que como nós habitam os territórios periféricos, sempre tendo cuidado e atenção às dores inerentes à essa condição. Aliamos nosso trabalho de criação, com nossa necessidade de nos relacionarmos com nossa comunidade e com o mundo. E, ao mesmo tempo, vamos nos construindo e reconstruindo nesse processo.
O trabalho do coletivo está permeado pelas nossas vidas, emoções, sensações, aprendizados, revoltas, dores e paixões. Utilizamos a fotografia e a colagem como ferramentas de criação, convertidas em instrumentos ético-políticos de construção de uma arte feminista negra periférica. Dessa forma, contamos nossa história utilizando uma narrativa própria que contesta o imaginário e o estigma aos quais temos sido submetidas por séculos.
Para isso, nos reunimos ao menos uma vez por semana no Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis), organização social fincada no Coque há 26 anos. Esses encontros abordam temas como “mulher negra”, práticas de cuidado, técnicas de fotografia e edição de imagens, e reflexões sobre sexualidade. Nessa perspectiva, já fizemos reflexões sobre identidade (individual e coletiva), território, raça e racismo. A discussão sobre raça, nesse caso, é permeada pela dimensão de gênero, uma vez que ser negra no Brasil traz significados específicos para as mulheres.
Como profissionais do campo da fotografia, é um processo de empoderamento — entre nós e com as mulheres com quem atuamos. Numa cena dominada por homens, o Revelar.si coloca as mulheres em outro posicionamento na fotografia.
Ao invés de sermos apenas o produto delas, nos tornamos as produtoras. Um coletivo somente de mulheres para mulheres, no intuito de despertar e capturar aquilo que mais nos toca, com um olhar totalmente diferente do que habitualmente se costuma fotografar sobre a favela e sobre as mulheres negras.
Trazemos um olhar mais sensitivo, um olhar de dentro. Estamos propondo que não apenas nós possamos ocupar lugares outros na fotografia, mas também ir para que outras mulheres negras também percebam a possibilidade de ocupar esses outros lugares, que elas vejam beleza em seus corpos e em sua comunidade.
Em nossas oficinas e ensaios fotográficos, já tivemos a oportunidade de estar ao lado de mulheres potentes, mas que não se davam conta disso. Em outros casos, conhecemos mulheres que sabiam bem de sua força, mas estavam muito cansadas para parar e pensar sobre isso.
Em meio a tantas trocas, produzimos registros inundados de simplicidade e abundância, presença e ausência, mas, sobretudo, muita beleza. Em algumas de nossas oficinas, percebemos, no meio do caminho, que a missão seria mostrar a beleza oculta das mulheres.
Às vezes, as mulheres e meninas com quem trabalhamos não conseguiam enxergar essa beleza, por não serem tão bem representadas nas fotos que costumamos ver por aí afora. Se você não se vê e não é mostrado como belo, logo você não vai se achar!
Somos e trabalhamos com mulheres marcadas pela vida, com suas cicatrizes, fora dos padrões estéticos. Por isso é muito comum nas oficinas que realizamos ouvirmos frases como: “não quero foto minha não, que eu sou feia”, “eu tô feia”, “esse negócio de retrato não é pra mim não”. Queremos desconstruir isso.
Não somos referência na grande mídia. Mas podemos ser referência umas para as outras.
Quando estamos juntas, como mágica, as fotógrafas do coletivo conversam e mostram como existe beleza em nós. O nosso papel, nos ensaios fotográficos com outras mulheres, não é nem dizer que as mulheres são bonitas do jeito que são, cada uma do seu jeito. A função do Revelar.si é mostrar essa beleza e fazer com elas também enxerguem e se enxerguem por outra visão.
Quais histórias guardam as mulheres pobres? E se pudéssemos ver o que está inscrito nas marcas de sua pele? Se cada ruga, cada marca do tempo, nos permitisse captar tudo pelo que já passaram: todas as histórias de dor, de luta, de enfrentamento e de coragem?
Nosso trabalho com fotografia é afetivo e político: é a nossa ação política contra as diversas formas de violência que já enfrentamos e ainda vamos enfrentar nas nossas vidas. Não teríamos como fugir desse tema que nos atravessa como uma flecha e vai deixando marcas e perdas ao longo de sua passagem.
No contexto das diversas formas de violência que enfrentamos, o feminicídio é o nível mais extremo de controle sobre a vida — e a morte — das mulheres. O Brasil é o país com a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, tendo as mulheres negras como maiores vítimas. A cultura racista, machista e patriarcal em que vivemos, altamente perversa, subjugando as mulheres, nos coloca numa posição subalterna que se reflete no descaso como são tratados os casos de violência doméstica e contra as mulheres.
Dessa forma, quando ocupamos um lugar na arte, na cultura, na fotografia, estamos lutando contra o racismo que nos foi imposto, contra o machismo que nos reserva lugares à sombra ou de objetificação dos nossos corpos.
Temos realizado, ao longo de nossa trajetória, reflexões e trabalhos sobre racismo, machismo, homofobia, lesbofobia, sempre pensando em como implementar práticas anti-racistas nas nossas vidas, na nossa comunidade, através da arte, do nosso trabalho, do nosso olhar e das nossas lentes.
O Revelar.si se transmuta a cada período, se multiplica e se divide a cada ano, mas permanece, resiste, e se perpetua nas suas ações buscando sempre, sempre, trazer nossa visão de mundo.
Resistir, portanto, seria também um ato de acreditar numa resistência possível ou que a resistência ainda é possível. E acreditando, tentar construir essas formas de resistência no cotidiano.
Acreditamos dessa maneira, na reconstrução das formas de resistência coletivas, numa micropolítica cotidiana que vem sendo construída “clandestinamente” pelas mulheres negras, pelas mulheres pobres, onde construímos nós mesmas nossos processos formativos, nossas experiências culturais e coletivas no exercício do viver.
O Revelar.si é a busca pela concretização de um sonho feminista e coletivo de uma sociedade melhor, mais segura, justa e mais feliz para nós mulheres. Resolvemos começar pelo lugar que ocupamos no mundo, enquanto mulheres negras. É no Coque que estamos construindo nosso sonho feminista. Onde ele irá nos levar, não sabemos. Sabemos apenas da potência desse sonho quando sonhamos juntas.
O Revelar.si é construído por Katarina Scervino,Rayane Larissa, Layane Fabíola, Eduarda Salomé, Julia Oliveira, Laryssa Eduarda, Erica Cileide, Mariana Cristina, Nilza Souza, Ana Beatriz, Ana Flávia Catarina, Auta Azevedo, Amanda Martinez, Mariana Medeiros.
*Texto produzido coletivamente pelas mulheres do Revelar.si
Ficha Técnica das fotos:
Autoria: Revelar.si – Coletivo de Fotógrafas do Coque
1) Mulher do Pilar (2019)
2) Afroameríndia Periférica (2020)
3) Afrontosa (2017)
4) Derramar-se (2020)
5) Coque Gigante (2019)
6) Insubmissão de corpos retalhados (2020)
7) Crianças na Maré (2017)
8) Deusa das Águas (2018)
9) Kaliotica (2020)
Ferrugem na engrenagem do sistema: militância atrás e após as grades
Cristiano Silva escreve sobre sua passagem pelo “sistema” e a fundação do coletivo de sobreviventes que quer corroer as engrenagens das prisões
Por Cristiano Silva*
Iniciar este texto requer estrutura. Cada lembrança que acesso reflete diretamente no meu corpo e traz à tona memórias de dor e sofrimento. Os efeitos dessas recordações disparam diversos gatilhos. Enquanto digito cada palavra que vai neste breve artigo, meus olhos ficam marejados, minha garganta forma um nó e resseca. As longas vias penais percorridas me trouxeram sofrimento, experiências intensas, dolorosas, traumatizantes e provocaram feridas profundas que vão para além da concretude do corpo.
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Tudo começou em 12 de junho de 2010. Depois de chegar do trabalho, fui abordado por policiais civis com um mandado de prisão na entrada do prédio onde meus pais moram. Acusado de um crime de ordem financeira enquadrado nos artigos de furto qualificado e formação de quadrilha.
No momento da prisão, minha companheira, meus filhos, meus pais e vizinhos assistiram àquelas cenas perplexos e desesperados.
Meu filho, com sete anos na época, teve uma crise de choro ao ver o policial me algemar; esse choro ecoa na minha mente até hoje.
Minha filha tinha apenas um ano de vida, a tenra idade a poupou daquele momento traumatizante, mas quase apagou de sua memória a minha presença paterna, por causa do longo cumprimento da pena.
Quando meus olhos encontravam suas expressões faciais, via que eram de pura tristeza e dor. Lembro dos olhos da minha companheira e dos meus pais. Eles doíam mais do que tudo. As algemas que apertavam e cortavam os meus pulsos, a vergonha e as humilhações na presença de todos, tudo isso não era nada diante daqueles olhares desolados.
“Sobreviver aos ataques letais do sistema penal brasileiro é uma missão quase impossível“
Embora seja terapêutico dividir as cargas emocionais advindas daquele momento — por meio de uma escrita viva e memorial —, minha proposta não é me deter somente no momento da minha prisão. Pretendo discorrer brevemente sobre a permanência e focar mais nas questões pós-cárcere e os inúmeros desafios impostos pela ressocialização e como transformar a dor em luta. Nesse ponto falarei também do coletivo de egressos EuSouEu – A Ferrugem, que visa corroer as estruturas do sistema prisional, fortalecer famílias, egressos e presidiários.
Estrutura desigual
O encarceramento causa danos duradouros. Ressalto três: a criminalização do sujeito e de seus familiares; a sentença; e a segregação social. Essa tríplice penitência opera com eficácia em todos os campos existenciais do(a) penitente e de seus familiares, que sofrem perenemente os danos da prisão.
A prisão é um ambiente estigmatizante de desesperança e reducionismo, de contágio patológico, de morte e sofrimento.
Sobreviver aos ataques letais do sistema penal brasileiro é uma missão quase impossível e muitos sucumbem diante da sentença aplicada por um conjunto jurídico que vai desde os modus operandi das polícias até as decisões dos tribunais de justiça.
Todo rigor da lei e ordem estão ancorados no racismo, machismo, no patriarcado e na seletividade penal. Essas superestruturas definem a tipificação do sujeito de acordo com a cor da sua pele, renda, endereço e gênero.
Eu, no entanto, antes daquele momento aterrorizante da prisão, levava uma vida comum.
Eu, um homem afrodescendente, fruto de uma relação miscigenada entre um pai branco e uma mãe preta, vivia as restrições impostas pelas dificuldades socioeconômicas e com uma visão crítica, mas pouco aprofundada. Seguia o fluxo do capital e não me envolvia muito com a militância.
Sabemos, e isto é fato, que milhares de famílias pretas, periféricas e empobrecidas não puderam dar os suportes necessários aos seus por causa de políticas desiguais na terra dos privilégios, das classes dominantes e do genocídio.
No meu caso, ainda que debaixo de muito sacrifício obtive apoio e graças aos esforços contínuos dos meus pais. Então pude seguir com meus estudos e, concluí o ensino médio em uma escola estadual na zona oeste do Rio de janeiro, no bairro de Realengo, onde moro.
Prisão
Quando fui preso havia dois equipamentos prisionais, um sob gestão da Polícia Civil (Polinter) e o outro da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Tudo é prisão, mas com algumas especificidades. Na Polinter, os papos de melhoria aconteciam com mais facilidade, as negociações não exigiam muitos critérios para chegar até os gestores da carceragem, era só ter grana. Quanto mais cheia a carceragem, maiores eram os lucros. Afinal, tudo estava pautado no poder de compra do apenado. Mas também, não faltavam os desenrolados — esse termo pode significar muitas coisas diferentes dentro da realidade prisional e, no decorrer do texto, explicarei seus diversos significados.
Imagine só: era um espaço, que mais parecia uma masmorra da Idade Média, projetado para 100 pessoas, mas era ocupado pelo triplo. Só de lembrar, sinto o cheiro daquele lugar. Diversos corpos pendurados e sustentados por lençóis amarrados na grade. No chão da carceragem formava uma espécie de tapete humano. Para chegar no boi, o banheiro da cela, inevitavelmente pisávamos nos corpos espremidos. Recentemente, todas as carceragens foram desativadas por causa da insalubridade aguda.
O Complexo de Gericinó abriga um dos maiores conjuntos prisionais do país, com mais de 25 unidades. As mais conhecidas pelo senso popular são as unidades de, Bangu I, II e III. Lá o desenrolado e os papos de melhoria são mais criteriosos, a hierarquia lá dentro é levada ao pé da letra. Alcançar acordos no interior dos anéis penitenciários não é uma tarefa fácil, exige influência e muita grana.
Vivenciar esses dois espaços e presenciar diversas situações sinistras me conduziram a entender cada vez mais como nós somos um produto, um objeto. Não somos donos nem mesmo dos nossos corpos, das nossas vidas. Além disso, percebi quem é o verdadeiro criminoso nessa história toda: “o Estado”, que ao longo da história tortura, mata, some com vidas, apaga memórias, viola e nega direitos. E dentro da prisão, o crime institucionalizado é legitimado pelas diversas instituições de controle social. E assim a legalidade bate palma com as mãos sujas de sangue.
Nós, resistimos
Quanto mais eu entendia as verdadeiras intenções desses equipamentos, mais eu queria alertar os meus companheiros de sofrimento do plano tenebroso arquitetado para prender e dizimar nosso povo. Foi então que nos organizamos em um pequeno grupo para discutir e pensar como poderíamos confrontar e danificar tais engrenagens. Carregamos nossa utopia, sabíamos o tamanho das dificuldades. Afinal, mudar completamente todo um sistema leva anos ou até mesmo séculos, na melhor das hipóteses. Contudo, percebemos que a revolução estava ocorrendo na nossa forma de pensar. O desafio era como agir dentro daquelas estruturas triturantes.
Éramos apenas números, e arrumar problemas com a massa carcerária ou com a gestão da unidade é sinônimo de desenrolado. Esse conceito dentrodo sistema tem diversos significados. Por exemplo, as leis e os estatutos internos regem as relações entre os presos e a gestão da unidade e a quebra dessas regras leva o infrator para uma espécie de tribunal, liderado por presos que constituem a hierarquia interna, é uma comissão que define o perdão ou a culpabilidade e o tipo da sanção a ser imposta sobre o réu. Isso é desenrolado.
Darei alguns exemplos: ninguém acha nada na cadeia, sempre tem um dono, caso alguém ache um o objeto e não comunique nas galerias isso dá um maior problemão; no pátio de visita cada preso tem que ficar focado na sua família, caso contrário alguém poderá se sentir invadido por atitudes ou olhares, que podem ser entendidos e julgados como ações libidinosas. Citei duas, mas são diversas situações que podem levar um preso ao tribunal.
“Quanto mais eu entendia as verdadeiras intenções desses equipamentos, mais eu queria alertar meus companheiros de sofrimento do plano arquitetado para prender e dizimar nosso povo”
Mas o desenrolado não é só sobre sentenças. Ele pode ser convocado para anunciar mudanças de regras nas leis e nos estatutos regimentais. Na maioria das vezes esses desenrolados aconteciam no miolo, que é o centro da cela, de onde assistíamos os desdobramentos e os resultados finais. E estar no miolo por causa de alguma quebra de regras, é pânico total e os desfechos na maioria das vezes eram catastróficos.
Então segui com minha luta de sobrevivência, levando comigo meu projeto político de como poderia ajudar do lado de fora dos muros pessoas egressas e seus familiares. Mesmo com tantas questões, eu já tinha rompido com a minha inércia.
Minha família me ajudou muito a manter meus projetos pós-cárcere e ao me visitar traziam livros. Alguns eram barrados por causa do volume de páginas e espessura, não me recordo dos títulos que foram impedidos de entrar. Mas, na cabeça dos guardas, e em nome da segurança subjetiva de cada plantão, a preocupação não era com o conteúdo do livro e sim com algum objeto ilícito que poderia estar escondido dentro.
Mesmo assim, eu continuava a minha busca por conhecimento. O livro que eu mais li e pesquisei foi o Vade Mecum, um compilado de leis, assim como outras publicações na área das ciências jurídicas. Meu intuito de confrontar o massacre legitimado pelo poder público nutria minha gana em aprender a enfrentá-lo. Entretanto, nessas visitas, os desgastes emocionais eram gigantescos e tão severos que em muitas das vezes eu achava melhor ficar na menor (gíria usada para expressar mais observação e menos reação).
Visitas no sistema prisional fluminense são totalmente estressantes. Os esculachos, os constrangimentos e tantas outras coisas transformam esse dia marcado no calendário de cada visitante em “o dia do massacre”. Repito, lutar por direitos estando dentro do sistema prisional é bem complicado, e é preciso analisar se isso encurtará os espaços conquistados pelos presos junto à gestão da unidade. O sistema prisional fundamentou-se em códigos e regras sociais, só que lá dentro é muito mais (in)tenso e neurótico.
O processo
Nesse ínterim, no meu cotidiano prisional, resolvi agir em relação ao meu processo. Após o confere, momento em que os guardas fazem a contagem dos presos, e no bater dos cadeados, peguei uma folha de papel ofício — isso já dentro do cubículo onde estava cumprindo a pena — e montei uma peça a próprio punho, solicitando minha progressão de regime. Tudo isso, após trocar ideias sobre os possíveis caminhos jurídicos em direção a liberdade, as longas leituras sobre direito constitucional e criminal e o auxílio dos presos mais antigos e experientes no assunto.
Alguns companheiros não acreditavam nessa possibilidade, mas eu estava cansado de esperar pela Defensoria Pública, os rodízios de atendimento às vezes chegavam a ser trimestrais e minha progressão para o semifechado (uso este termo porque as prisões fluminenses semiabertas não são tão diferentes das totalmente fechadas) já tinha vencido. Entreguei o documento à minha companheira e a instruí. Ela levou na seção de protocolos na vara de execuções penais no Centro do Rio de Janeiro e protocolou o pedido. Compartilhei essas informações e muitos fizeram o mesmo procedimento, pois boa parte dos presos da galeria estavam também com suas progressões vencidas.
Era um dia igual aos outros, o dia a dia na prisão parece uma fita que é rebobinada o tempo todo e traz uma sensação de que o relógio trabalha de forma diferente. Por isso, o dia da visita é a maior responsa e é importantíssimo, mesmo para quem não recebe alguém. Então fui encher minhas garrafas pet e os baldes para armazenar água; na cadeia a água só cai duas vezes ao dia, perder esses dois momentos é ficar na sequidão até o próximo dia.
De repente, ouvi chamar meu nome, estava próximo de cair a brilhosa (quentinha fornecida nos presídios do Rio de janeiro). Informaram que minha transferência tinha chegado. Os demais companheiros de cela e galeria vibravam e entenderam a potencialidade do conhecimento.
Da escrita até chegar à transferência para o regime semifechado levou cerca de 20 dias. Ali percebi o quanto eu poderia auxiliar e ajudar muitos deles nessas questões e em outras, conforme as possibilidades.
Na longa travessia penal, passei pela visita periódica familiar e pelo trabalho extramuro e então alcancei a condicional, depois de 5 anos e dois meses. Por onde passei levei esses argumentos, que o conhecimento pode arrebentar grades e cadeados. Finalmente senti a suposta brisa da liberdade e eu estava de volta à correria social.
Liberdade cantou?
Nos primeiros momentos anestesiado, fora de órbita, festejei com toda família, tentando recuperar os anos sequestrados pelo sistema. Por algumas horas esqueci os desafios, as lutas e as barreiras que teria de enfrentar. Mas é assim, a cadeia é tão sinistra que ela é capaz de assumir todas as possibilidades da sua existência. Sua extensão aparece na ressocialização, na sentença social e na velha dialética punitiva do “CPF cancelado” e do “bandido bom é bandido morto”.
Veja, eu, homem preto e periférico, casado e com dois filhos, marcado pelo carimbo da ressocialização, na condicional, sem emprego e sem renda, carregando os efeitos nocivos da prisão. Nos percursos da vida reencontrei algumas pessoas que tiraram uma etapa (tempo de prisão), comigo no conjunto prisional. Dialogamos muito sobre as imensas dificuldades de empregabilidade. Como alguns já tinham conseguido um emprego, compartilharam como é difícil mantê-lo. Para quem está na condicional ou monitorado eletronicamente é preciso ir ao patronato da Seap de três em três meses para marcar presença. A cada ida para assinatura era necessário um atraso ou inventar uma história no emprego.
A saga da ressocialização é presente em todos os momentos. Tem uma galera que vem do interior do Estado do Rio de Janeiro trimestralmente para assinar. Quantas pessoas não conseguem cumprir as medidas por causa das restrições econômicas, habitacionais, culturais, sociais e acabam tendo um novo mandado de prisão expedido para regressão de regime. Essa tal ressocialização é um termo expectorado pelos pulmões da hipocrisia social, onde a sociedade narcótica consome abusivamente esta crença de que cadeia é ressocialização. Nesses termos, esquecem o tipo de socialização que o Estado aplica sobre a população mais vulnerabilizada — uma sociabilidade carregada de racismo, violência, segregacionismo e preconceitos, tudo fora dos preceitos da isonomia institucional.
A ferrugem
Em meio a tantos horrores, eu precisava colocar em prática aquele projeto político pensado nos intramuros, ajudar pessoas egressas e seus familiares. Apesar de que quando saímos da cadeia não queremos tocar muito no assunto e nem ser identificados como ex-presidiários. As exposições geram fragilidades emocionais, o cenário punitivista e o clamor social contribuem impiedosamente e sempre manifestarão dúvidas, desconfiabilidade, ódio, medo, insegurança e indignação contra os(as) etiquetados(as).
É nesse cenário que eu e mais alguns irmãos e irmãs de sofrimento, aproximadamente umas vinte e seis pessoas, passamos a nos encontrar quinzenalmente na Praça da República, no Centro do Rio de Janeiro, para colocarmos em prática nosso projeto político e nos organizarmos.
A partir de nossas construções, em 18 de janeiro de 2017, formamos o coletivo EuSouEu- reflexos de uma vida na prisão.
Nossa proposta estava ancorada em amenizar os sofrimentos dos familiares quando o assunto era a falta de informações sobre o(a) preso(a).
Além disso, nosso objetivo era facilitar o entendimento nas leituras de processos, construir uma rede de apoio para evitar maiores transtornos emocionais, viabilizar acesso à justiça de forma descomplicada e fornecer o maior número possível de informações aos familiares sobre seus direitos e os dos(as) custodiados(as). Atualmente passamos de “reflexos de uma vida na prisão” para EusouEu – A ferrugem.
Sem perder de vista o nosso foco inicial, assumimos uma postura de maior incidência política e educacional, pois queremos enferrujar as engrenagens de um Estado penal e mortífero, que ceifa diariamente vidas e sonhos. Nossa meta é interromper esse fluxo encarcerador e promover novas possibilidades e compartilhar conhecimento para todos(as) aqueles(as) que foram atravessados(as) pelo sistema prisional.
“Queremos enferrujar as engrenagens de um Estado penal e mortífero, que ceifa diariamente vidas e sonhos.”
No campo político participamos de audiências públicas para ampliarmos o debate e trazer um olhar empírico de dentro do sistema para fora e propor ideias colaborativas e de protestar contra decretos e projetos de lei que ferem os direitos dos entes privados de liberdade e de seus familiares. Já no educacional elaboramos um projeto chamado de “Educação Que Liberta”, no bairro de São Gonçalo, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, para atender pessoas que foram atravessadas direta ou indiretamente pelo sistema prisional fluminense. O intuito é fortalecer esse público por meio de um ensino emancipatório, o objetivo do projeto é prepará-los(as) para a prova do Encceja e obter a certificação de conclusão dos ensinos fundamental e médio.
Por fim, encerro este extenso texto reafirmando a ineficácia da prisão. Ela afeta mentes e corpos, fragmenta identidades e criminaliza familiares. Seus agentes ressocializadores orquestram uma sinfonia da morte entre as ciladas sutis da reincidência e do brutal dogma estatal. Todos esses aparatos violadores e violentos estão precisamente expressos no verso penal “ressocializar para o futuro conquistar”. Essa frase que chamo de verso penal, esconde um projeto político racista e bem estruturado, consolidado em interesses lucrativos. Afinal, a cadeia é um órgão público e como toda máquina pública necessita de capital e a fonte desses recursos somos nós, os indesejáveis, os matáveis e os economicamente inviáveis. E é justamente nesta perspectiva ressocializadora, que o Estado segue negando e violando direitos. Suas políticas seguem pautadas na certeza da reincidência. De modo que, investem agressivamente e maciçamente nos contêineres da privação, para manter a lógica do poder e do controle de corpos carimbados por uma subcidadania.
*Cristiano Silva é cofundador da associação EuSouEu-A Ferrugem.
A música que toca os ativistas!
Já foi dito que a música pode mudar o mundo. Alguns podem retrucar dizendo que é um exagero, mas, no mínimo, a música tem o poder de despertar emoções e chamar a atenção para causas nobres. Ao longo das décadas, as canções de protesto abriram um caminho, oferecendo testemunhos poderosos e apaixonados para aqueles que sofrem, enquanto convocam os ouvintes a darem apoio e solidariedade em troca. Quantas vezes um ativista não escolheu a música exata pra inflamar os sentimentos e dar norte para a próxima ação? Música é um combustível poderoso e há sempre os hinos geracionais que mantiveram os ativistas mundo a fora alertas e preparados!
A música de protesto tem uma larga tradição no Ocidente e poderíamos gastar horas examinando seu desenvolvimento nos mais diversos países do planeta. Mas aqui vamos nos limitar a alguns exemplos pontuais até chegar à atualidade. Como define a Wikipedia, “uma canção de protesto é uma canção associada a um movimento de mudança social e, portanto, parte da categoria mais ampla de canções atuais (ou canções ligadas a eventos atuais)”. Acompanhe nossa pequena seleção com artistas do Brasil, Estados Unidos, França, Alemanha, Austrália, África do Sul, Chile, Rússia, Inglaterra, Jamaica, Porto Rico, Suécia e Nigéria.
Billie Holiday – “Strange fruit” (1939)
Inicialmente um poema de Abel Meeropol – um professor judeu e membro do Partido Comunista estadunidense – foi publicado em 1937 antes de ser musicado. “Strange Fruit” expõe a brutalidade do racismo nos Estados Unidos na época por meio de uma descrição cristalina e marcante. Justapondo cenas idílicas e floridas de uma paisagem sulista com descrições intransigentes de corpos negros balançando em uma árvore na brisa sulista, suas palavras contundentes tiveram o efeito desejado de chocar os ouvintes.
Quando Billie Holiday começou a cantar a música em 1939, ela tinha medo de retaliação. Holiday percebeu o impacto que a música tinha e logo resolveu gravá-la. Mas a sua gravadora, a Columbia, temia por sua repercussão e liberou a artista para gravá-la em outro selo. Assim, a diva do blues arrumou outro selo para gravá-la e a sua versão da música vendeu um milhão de cópias, espalhando a consciência sobre a crueldade e o sofrimento indizíveis causados pelo racismo. É um hino atemporal na luta contra a discriminação racial.
Cláudio Santoro – “Sinfonia n°5” (1955)
A música erudita, ao redor do planeta, tem se posicionado ao lado do ativismo político em diversos momentos. No Brasil não poderia ser diferente. Gilberto Mendes, Eunice Katunda, e Willy Corrêa de Oliveira com suas peças voltadas para as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) marcaram a música erudita engajada no país. E a peça que abriu alas para essa movimentação foi a “Sinfonia n°5” de Cláudio Santoro, também chamada de “Sinfonia da Paz”, realizada no contexto de Guerra Fria, com texto da poetisa comunista Antonieta Dias de Moraes. Acima, temos a peça executada pela antiga Orquestra Sinfônica de Leningrado, na União Soviética.
Pode parecer estranho num primeiro momento elencar uma peça erudita nesta lista, mas deve-se lembrar também que a “música popular, mesmo aquela de protesto, sempre foi rapidamente adotada como mercadoria pela indústria fonográfica’, como diz o músico erudito Jorge Antunes. E, por outro lado, como também aponta Antunes, “a música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical que resta, ainda hoje, não recuperada pelo sistema”.
Sam Cooke – “A change is gonna come” (1964)
Sam Cooke era um muito conhecido artista da soul music, mas estava longe de ser um artista que reconheceríamos como politizado. Porém, sua hoje antológica canção “A change is gonna come” muda tudo isso, ao tratar diretamente da luta pelos direitos civis dos negros estadunidenses na década de 1960. Inspirada tanto na música “Blowing in the wind” de Bob Dylan e no discurso “I have a dream” do Dr. Martin Luther King, a canção de Sam Cooke nasceu depois que sua banda foi rejeitada em um motel só para brancos na Louisiana.
Sam Cooke tinha sentimentos confusos sobre a música, tocou ao vivo apenas uma vez e resistiu aos esforços do empresário Allen Klein para torná-la um single. Eventualmente, foi lançado, postumamente, e agora é considerado um de seus sons mais importantes e um marco de um período histórico.
Violeta Parra – “Gracias a la vida” (1966)
Cantora, compositora, poeta, artesã, artista plástica e folclorista, Violeta Parra nasceu no interior, teve infância pobre, com família numerosa, de nove irmãos e meios-irmãos, e os primeiros contatos com a música ocorreram no ambiente familiar, mas formou-se em termos musicais praticamente de forma autodidata.
Suas canções marcaram e inspiraram muitos artistas na América Latina dominada por ferozes ditaduras militares, e mesmo que suas composições não expressem conotação política nas letras, acabaram por servir como símbolos da resistência. É o caso de “Gracias a la vida”, uma popular canção de música folclórica composta e interpretada por Violeta Parra. A canção foi gravada em 1966 em Santiago, e seus filhos Ángel e Isabel, a acompanharam no violão durante a sessão de gravação. A canção é uma das mais conhecidas de Parra, tendo sido interpretada por artistas de todo o mundo, como Elis Regina e Mercedes Sosa, por exemplo. É uma das canções latino-americanas mais regravadas de toda a história.
MC5 – “Kick out the jams” (1969)
A banda de Detroit nos Estados Unidos MC5 foi precursora do garage rock e uma pioneira ao mesclar agressividade musical com ideias radicais políticas.
O grupo iniciou suas atividades em 1964, tocando na escola e em festas, e com o tempo, decidem experimentar novos sons, passando a usar o feedback e a distorção nas guitarras e, assim, criando o som que tanto os distingue. Os MC5 fazem vários concertos, em Detroit e rapidamente chamam a atenção de John Sinclair, fundador do movimento radical Panteras Brancas, e logo os MC5 viram porta-vozes estridentes do movimento, atraindo a atenção policial para suas atividades..
Com Sinclair como seu empresário, o MC5 alcança um rentável contrato com uma grande gravadora e lançam seus clássico primeiro álbum, Kick out the jams, que contém a homônima e abrasiva faixa título. A banda logo se desfez numa espiral de drogas, muitas detenções e paranoia característica do pós-hippie estadunidense.
The Wailers – “Get up, stand up” (1973)
Escrito por Bob Marley e Peter Tosh depois de testemunharem a pobreza e a opressão no Haiti, “Get up, stand up” é um dos hinos mais envolventes da história do reggae. Mas seria um erro interpretar isso como uma simples canção de empoderamento: a letra evoca a natureza opressora da religião organizada e diz que, em vez de esperar por uma recompensa celestial, você precisa exigir a sua agora mesmo. No terceiro verso da versão original, Tosh desafia os oprimidos a fazerem algo a respeito da sabedoria que ele acabou de espalhar.
Um verdadeiro hino pós-colonial, e ainda temos que dar crédito ao grande Bob Marley e companhia por terem passado a mensagem sem a mão pesada que frequentemente norteia muitas canções de protesto desse tipo – justamente espalhando sua mensagem no espírito reggae.
Miriam Makeba – “Soweto Blues” (1977)
Zenzile Miriam Makeba, também chamada de “Mama Africa” foi uma cantora, compositora, atriz, embaixadora da boa vontade da ONU e ativista pelos direitos humanos e contra o apartheid sul-africana. Em 1959 Makeba teve uma pequena participação no filme anti-apartheid Come Back, Africa mas que foi suficiente para chamar atenção internacional e apresentar-se na Europa e Estados Unidos. Ela se mudou para os Estados Unidos, e sua tentativa de retornar à África do Sul naquele ano para o funeral da mãe foi impedida pelo governo do país.
Miriam Makeba foi ativa no maior movimento de independência colonial do século XX, apoiando firmemente as independências africanas. Além disso, foi incansável ativista dos direitos civis e da igualdade racial no mundo, e se casou com Stokely Carmichael, líder do Partido dos Panteras Negras, em 1968. Como resultado, o governo dos EUA cancelou seu visto enquanto ela estava viajando para o exterior, o que a fez se mudar para a Guiné. Segundo a Wikipedia, o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela disse que “sua música inspirou um poderoso sentimento de esperança em todos nós”.
Ela passou a escrever e executar músicas mais explicitamente críticas do apartheid com o passar dos anos, como a canção “Soweto Blues” de 1977, sobre o levante de Soweto.
Fela Kuti – “No agreement” (1977)
Fela Aníkúlápó Kuti foi um multi-instrumentista nigeriano, compositor, ativista político e pan-africanista. Pioneiro do Afrobeat, um gênero musical africano que combina a tradição iorubá com o funk e o jazz, foi um músico de destaque em seu tempo e uma voz musical e política de importância internacional. Kuti era filho de uma famosa ativista nigeriana pelos direitos das mulheres, Funmilayo Ransome-Kuti . Em 1970, ele fundou a comuna da República de Kalakuta, que se declarou independente do regime militar. A comuna foi destruída em uma invasão de 1978.
“No agreement” é um de seus diversos hinos políticos, dessa vez convocando o ouvinte à desobediência civil, e segue o modelo afrobeat exemplarmente: linhas de guitarra incrivelmente cativantes, um segundo guitarrista para adicionar um pouco do poder do funk de James Brown, conduzindo aparições da seção de sopro, saxofone intrincado, trompete e solos de improvisação de órgão, adicionada à mensagem despudorada de Fela Kuti para o povo. Fela usou a frase “sem acordo” da mesma forma que Malcolm X usou anteriormente. A letra de Fela diz que ele nunca fará as pazes com o regime militar corrupto e brutal da Nigéria. “Eu não vou concordar, deixar meu irmão com fome, não vou falar, não vou concordar, deixar meu irmão desempregado, não vou falar, não vou concordar, não vou fazer meu irmão sem-teto, não vou falar… Nenhum acordo hoje, nenhum acordo amanhã, nenhum acordo agora, depois, nunca e sempre”.
Midnight Oil – “Beds are burning” (1987)
Como falar sobre música e meio-ambiente sem citar o Midnight Oil? A banda australiana pode não ter sido a pioneira neste filão, mas com certeza alcançou repercussão sem igual, inclusive entre nós na América do Sul, onde fizeram sucesso enorme. “Beds are burning” (sobre mudanças climáticas) e “The dead heart” (sobre a questão dos aborígenes vs colonizadores) foram hits avassaladores e trilha sonora predileta dos ativistas ambientais dos anos 1980.
Desde quando as questões ambientais tomaram parte da agenda pública no mundo, o movimento cultural se tornou mais expressivo em torno da defesa da sustentabilidade e proteção ao meio ambiente. Mas o Midnight Oil extrapolou os limites culturais: o vocalista Peter Garrett se tornou ministro do Meio Ambiente da Austrália em 2007!
Rage Against The Machine – “Bombtrack” (1993)
Rage Against the Machine tem sua origem em Los Angeles, Califórnia (EUA), e é uma das bandas de rock abertamente anticapitalistas mais famosas da história do rock. São conhecidos pelas visões políticas revolucionárias de esquerda de seus membros, que são notórias em suas músicas.
Dentre uma gama de hinos rebeldes revoltosos, destacamos “Bombtrack” por ser o primeiro single de seu primeiro álbum, mas a verdade é que suas músicas serviram como porta-vozes das mais variadas causas aos longos dos anos e, até o ano de 2010, eles haviam vendido cerca de 16 milhões de discos pelo mundo. É a revolução para multidões!
Chumbawamba – “Tubthumping” (1997)
Chumbawamba foi uma banda do norte da Inglaterra formada em 1982 que começou tocando hardcore punk com uma postura voltada para o anarcopunk. Pode parecer inverossímil, mas “Tubthumping” foi composta por esse grupo de homens e mulheres anarquistas!
Nos seus mais de 30 anos de carreira, a banda foi mudando seu estilo, introduzindo elementos de dance music, world music e música folk, sempre com uma vocação cada vez mais pop, sem abrir mão da postura política anarquista e irreverente.
Ficararm globalmente conhecidos com o single “Tubthumping”, do álbum Tubthumper (1997), que foi o tema do jogo World Cup 98, e de diversas peças promocionais e filmes. Detalhe: a renda dessa faixa em produtos promocionais era destinada a grupos e organizações rebeldes ao redor do mundo – tendo impactado inclusive o ativismo no Brasil.
Manu Chao – “Clandestino” (1998)
Manu Chao, cujo nome completo é José-Manuel Thomas Arthur Chao, é um músico francês que se destacou, inicialmente, no combo francês multi gêneros Mano Negra. Inicialmente com seu grupo, alcançaram visibilidade mundial com sua explosiva mistura musical: rock, rumba, hip-hop, salsa, raï e punk, cantada em francês, espanhol, inglês e árabe. Tem uma influência duradoura no rock latino, inclusive.
Já em sua carreira solo, lança seu álbum Clandestino, de tons mais intimistas mais amplamente companheiro dos desvalidos da terra. A canção homônima ao álbum se tornou um hit de alcance global e lançou novos olhares para a sempre presente questão dos imigrantes em um mundo globalizado.
Atari Teenage Riot – Revoluction Action (1999)
Atari Teenage Riot é uma banda alemã de música eletrônica extremamente barulhenta, conhecida como digital hardcore, formada em 1992 por Alec Empire, Hanin Elias e Carl Crack e, um pouco depois Nic Endo uniu-se a banda. A banda surgiu inicialmente para contestar a crescente onda de bandas neonazistas no cenário da música eletrônica na Alemanha, suas letras eram explicitamente politizadas e seus shows quase sempre acabavam em tumultos com a polícia.
Após sua participação em uma manifestação de primeiro de maio na Alemanha, em 1999, na qual foram acusados de incitar violência, passaram a ser acompanhados por perto pelo serviço secreto alemão.
Infelizmente, o furor anticapitalista do grupo foi interrompido com a morte por overdose de Carl Crack, e o grupo apenas se recompôs em 2010, mas já sem a energia de outrora. O clipe de “Revolution action” é uma distopia sobre automação do trabalho e homogeneidade social. Um clássico!
International Noise Conspiracy – “Capitalism stole my virginity” (2001)
Influenciados por uma citação do cantor folk Phil Ochs, o grupo sueco de rock de combate buscava com sua identidade visual e sonora uma mistura entre música e política que fosse, “uma mistura entre Elvis Presley e Che Guevara”, como eles costumavam dizer. Muito influentes com a emergente cena de ativistas anticapitalistas do fim dos anos 1990, eram movidos a base de teoria comunista de esquerda e máximas situacionistas, com a banda buscando combater a função da música como espetáculo, conceito tomado da obra de Guy Debord, Sociedade do espetáculo.
A faixa “Capitalism stole my virginity” (Capitalismo roubou minha virgindade) era um dos singles de seu álbum mais famoso, e encerra em si mesma todo o conjunto de ideologias de esquerda que o grupo rendia homenagens.
MIA – “Paper planes” (2007)
Mathangi Maya Arulpragasam, mais conhecida como M.I.A., é uma cantora, rapper, compositora, cineasta, produtora, diretora e ativista britânica, de origem tâmil (Sri Lanka). As suas composições combinam elementos da música eletrônica, música indie, hip hop e world music.
Em seu segundo álbum, Kala, M.I.A disparou uma dezena de temas politicamente orientados e afirmou, por exemplo, que os efeitos sonoros do tiro e da caixa registradora de “Paper planes” seriam uma declaração sobre como os imigrantes são vistos pela sociedade em geral. Assim, como Manu Chao, mais um artista europeu discutindo a temática da imigração.
Calle 13 – “Latinoamérica” (2010)
Calle 13 (Rua 13 em português) é um trio de rap alternativo e pop latino de Porto Rico. Embora tenham iniciado sua carreira como um grupo de reggaetón, o trio se distanciou do gênero com o passar dos anos, adotando instrumentação não convencional e abordando vários estilos musicais. As letras da banda são geralmente satíricas e politizadas, abordando assuntos socioculturais da América Latina.
O grupo se tornou inicialmente conhecido nacionalmente em Porto Rico com a controvérsia da música “Querido FBI”, que tratava de Filiberto Ojeda Ríos, líder do grupo revolucionário porto-riquenho pró-independência Los Macheteros, morto durante uma ação de agentes do FBI. Logo, se tornaram um fenômeno em toda América Latina. E é sobre as mazelas de nosso continente que trata a faixa “Latinoamérica”, que também alcançou grande projeção nos processos de formação de movimentos sociais no Brasil.
Ana Tijoux – “Shock” (2011)
“A posição política é a coisa mais bonita que pode acontecer a uma pessoa”, resume a ultra politizada cantora Anita ou Ana Tijoux, uma das vozes de contestação ao status quo mais potentes do nosso continente. A artista é notória por tratar de temas como pós-colonialismo, feminismo, ambientalismo e justiça social em sua lírica.
Anita ou Ana Tijoux é conhecida por ser engajada nos movimentos sociais latino-americanos, dando voz à luta dos índios Mapuche em suas letras e também ao movimento estudantil do Chile, que ganhou tanta força que se tornou uma força decisiva nas últimas eleições chilenas, uma década depois do lançamento do libelo “Shock”. Além disso, combate o machismo, a violência doméstica e canta pela liberdade dos povos do mundo, ressaltando sempre a coragem dos latino-americanos de não se curvarem ao imperialismo.
Racionais MCs – “Mil faces de um homem leal (Marighella)” (2012)
Racionais MC’s é o mais importante grupo brasileiro de rap e foi fundado em 1988. Em 2012, 24 anos após sua fundação, fizeram esta faixa memorialística que, se observarmos bem, é também uma tomada de posição aguerrida diante dos conflitos que começavam a se armar na sociedade brasileira. A música “Mil faces de um homem leal (Marighella)” foi composta para o documentário sobre a vida do guerrilheiro Carlos Marighella que estreiou no mesmo ano, que foi também o ano que participaram do MTV Video Music Brasil, tendo feito o show de encerramento do evento, depois de terem marcado o mesmo evento com sua participação marcante em 1997.
Não é a primeira faixa abertamente de protesto do grupo, mas é particularmente impactante por tratar de uma das figuras da esquerda brasileira mais odiadas pelas as hordas conservadoras do país, mesmo tendo morrido há mais de 50 anos atrás.
Kendrick Lamar – “Alright” (2015)
Em novembro de 2014, a decisão de não indiciar o policial que atirou fatalmente em Michael Brown gerou protestos e tumultos em todo os Estados Unidos. No mesmo mês, Tamir Rice, de 12 anos, foi baleado e morto pela polícia após ser flagrado segurando uma arma de brinquedo. O movimento Black Lives Matter ganhava força a cada dia e, a música “Alright”, com seu apelo à esperança pela solidariedade e resiliência, foi adotada por apoiadores da causa.
“Alright” rapidamente se tornou um hino genuíno, uma das melhores canções de protesto de sua época, demonstrando a importância que a mídia social desempenha na divulgação da palavra. Imagens de vídeo de manifestantes gritando alegremente o refrão de Kendrick de “We gon ‘be alright” foram compartilhadas em todo o mundo, destacando a influência que a música ainda tem na política. O refrão da canção – eletricamente cativante e esperançoso – ecoou pelas ruas dos Estados Unidos na última meia década de manifestantes do movimento Black Lives Matter pedindo o fim do racismo estrutural.
Djonga – “Olho de tigre” (2017)
“Um boy branco, me pediu um high five / Confundi com um Heil, Hitler / Quem tem minha cor é ladrão / Quem tem a cor de Eric Clapton é cleptomaníaco”. Esses são os primeiros versos da afrontosa “Olho de Tigre”, das músicas mais conhecidas de Djonga, o nome artístico do rapper mineiro Gustavo Pereira Marques.
“Eu seria hipócrita se eu falasse o contrário num mundo onde os caras colocaram fogo na gente no passado”, explicou certa vez o artista. Desde quando foi lançada, a faixa “Olho de tigre” se tornou um verdadeiro hino do Rap Nacional e do movimento contra o racismo, com seu abrasivo refrão “Fogo nos racistas”!
Pussy Riot – “Police state” (2017)
O Pussy Riot é o grupo agit-prop russo formado para vocalizar as demandas ativistas de suas integrantes. O grupo ganhou notoriedade com a prisão de Nadya e outra integrante, Maria Alyokhina, depois que as duas entoaram uma “reza punk” na catedral de Moscou, em 2012, intitulada “Maria, mãe de Deus, tire o Putin”. Enquanto estiveram presas, as balaclavas coloridas, símbolo de seus protestos, se multiplicaram em atos de solidariedade ao redor do globo, inclusive no Brasil.
“Police state”, single de 2017, trata de um Estado repressor e seus mecanismos de controle e, obviamente, é uma referência direta à Rússia, mas pode bem ser qualquer Estado tomado pela tirania, como é o caso do Brasil atual sob o comando de Jair Bolsonaro.
Dez por Cento – 10 anos de Escola de Ativismo, 100 anos de Paulo Freire
E como em 2021 a Escola de Ativismo completa 10 anos e Paulo Freire completa 100 anos, trazemos para vocês o Webinário Dez por Cento! Convidamos todes a explorar as encruzilhadas entre a luta política e a educação, com um time de convidados que falará sobre aprendizagem, invenções, resistências e revoluções. É um grupo que nos deixa muito, muito felizes.
A transmissão foi feita no Youtube e pelo nosso Twitter.
Veja a programação completa
O professor da UNESP Rio Claro falará da relação entre política e educação própria do Paulo Freire. Como e quais leituras de Freire o inspiraram? O professor que não só fala, mas leva seus ensinamentos para a sala de aula. Dias também é pesquisador em estudos de psicanálise e política e assessor do Common Action Fórum, de Madri, Espanha.
04/11 – Jorge Larrosa Bondía – “Paulo Freire e a Filosofia da Diferença” [Clique aqui para assistir]
Jorge Larrosa é professor de Filosofia da Educação na Universidad de Barcelona (Espanha). Seus últimos trabalhos publicados no Brasil, todos pela Editora Autêntica, tratam da forma da escola em todas suas modalidades e da materialidade do ofício do professor. “Minha contribuição será uma reflexão sobre o estudo, o trabalho e o ativismo como formas de abrir e compatilhar o mundo”, explica o professor sobre sua fala.
Alessandra Korap liderança do médio tapajós do povo Munduruku e vice presidenta da FEPIPA (Federação dos Povos Indígens do Pará) falará sobre as relações entre educação popular e a luta dos povos indígenas em defesa de seus territórios.
29/11 – Madalena Freire – “Entre escolas e ativismos” [Clique aqui para assistir]
Madalena Freire nasceu no Recife em 1946. Filha de Paulo Freire, ela é professora primária, pedagoga e arte educadora. Fundou a Escola da Vila (SP) e o Espaço Pedagógico (SP). Atualmente é Diretora e Coordenadora Pedagógica do Instituto Superior de Educação Pró-Saber (RJ). Publicou a “Paixão de conhecer o mundo ” e “Educador Educadora”. Atua com formação de professores.
02/12 – Silvio Gallo – “O professor militante” [Clique aqui para assistir]
Uma conversa sobre ativismo, anarquia e autonomia com o professor titular da FE-Unicamp e pesquisador do CNPq. Gallo desenvolve estudos em torno da filosofia francesa contemporânea e dos anarquismos, sempre em conexão com a educação.
09/12 – Dyarley Viana – “Paulo Freire, por uma pedagogia preta!” [Clique aqui para assistir]
Dyarley é mulher negra e periférica, pedagoga, se tecendo como educadora popular. Ex-catadora, cria do ProUni, atua como assessora técnica no Inesc na área de juventudes, crianças e adolescentes e direito à cidade. Poeta e ativista pelos direitos humanos com um olhar especial sobre racismo e gênero. Paraense acolhida na comunidade Estrutural, na cidade mais negra e empobrecida do DF.
tuiragens
#marina vive!
Imaginemos novos espaços de resistência neste mundo velho, caquético, que dá sinais de esgotamento e cansaço. Recorramos às infâncias para inventar mundos e, finalmente, abrir-se aos novos mundos.
Uma espiritualidade desdobrada em nova arte política. Uma arte herdada das bruxas e feiticeiras, dos faquires e xamãs, e que visa expor-nos à diferença e à multiplicidade, preparando-nos para uma luta política que principia por nos fazer atentos à precariedade ontológica e política dos corpos.
É do corpo e de suas alianças que surgem todas as ações transfiguradoras e transgressoras. O corpo não é apenas uma superfície de inscrição passiva dos poderes, mas é também o espaço vivo de contestações e dissidências, vetor de toda uma forma cultural e social de pertencimentos, de ligações, de afetos… às vezes tudo que importa é a temperatura!
O lugar que ocupa o corpo de Sarah Marques é o lugar da resistência.
O inimigo está lá, sempre esteve: o Estado, a casa, a toca, engendrando, esquadrinhando o pensamento.
Mas agora temos um inimigo invisível. Esse vírus ainda não tem cura e o cuidado se torna ainda mais estratégico e cada vez mais difícil.
Há uma produção de doenças em curso.
Uma peste que não dorme.
Entre mortes, genocídios e genocidas, o desespero torna-se um estado do próprio mundo.
Exigimos o fim do governo da peste.
E o fim deste governo da morte!
É preciso criar uma rachadura. Algo que emergindo, na forma de uma revolta, uma insurreição, interrompe o curso normal dos acontecimentos.
Valem e precisam valer todas as táticas e todos os métodos de ação:
as notas e os manifestos. os dossiês e as denúncias. as fotografias e os cartazes. as conversas e os cochichos. os beijos e os abraçaços. as lives e as leituras. as caravanas e as expedições. o slam e a ópera. os choques e os acordos. os protestos, as barqueadas, procissões e pedaladas. as pessoas nuas e as camisetas. os pixos e as projeções. as assembleias e os piquetes. os abaixo-assinados e os poemas. o que é convencional e o que se inventa. o rapel, o violino, o festival da canção. o berro e o silêncio. o banquetaço e a greve de fome. a demarcação das terras e da internet. as redes e a novela. o rádio, o led, a oração. a marcha e o piquenique. o big data e o carnaval. o lento acúmulo. a surpresa. o flash, o redemoinho. eles passarão, eu passarinho. a água, o fogo, a terra, o ar. a escuta atenta. a ação direta. o turbilhão. o que a gente passa de mão em mão.
É black bloc, ocupação de prédios convertidos em centros sociais e moradias coletivas, ações de autodefesa de grupos antifa e anarco-queer e toda forma de sexualidade dissidente que não reivindica reconhecimento, dos grupos do movimento negro que compreenderam e deram forma à máxima do Djonga: fogo nos racistas!
Nos formamos é na luta e formamos muita gente… juntos.
Basta picar uns alhos, que a gente se une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
A liberdade é terapêutica! Toda a prática clínica é também política.
A antena vai fincada na lama enquanto o wi-fi anda de rabeta: essa é a imagem, para provocar o ingovernável!
Na eficácia tecnológica, multifacetária e polivalente do dispositivo monitoramento, desativá-lo totalmente é uma quimera, talvez uma utopia conservadora e democrática dos dias de hoje. Mas enfrentá-lo é sempre uma possibilidade. Enfrentar essa máquina de controle e morte é provocar o ingovernável, uma revolta antipolítica.
Não se trata mais de preservar o mundo e a vida, mas de expandir e transformar tudo, e…
Constituir para si e para seu coletivo espaços de escuta qualificados daqueles e daquelas que construíram o mundo com as suas próprias mãos.
Somos todos parentes por intoxicação, amantes, ainda que muitas vezes desalmados, dos exus, dos xapiris e das onças, dos rios e das montanhas.
Por uma vida em fricção com a terra.
Corporificaremos então a resistência!
Por uma vida em fricção com a terra
A crise global da pandemia pode nos ajudar a limpar os olhos para enxergar melhor o mundo e a vivenciar outros modos possíveis de envolvimento com a comunidade e a natureza.
Por Ailton Krenak
*Este texto apresenta o registro da conversa de Ailton Krenak com Luciana Ferreira, durante o Festival AmazôniaS, realizado online em abril de 2020. Uma versão resumida foi publicada em Tuíra de Emergência, aqui.
Estamos na quarentena e apesar de tanta desinformação sobre qual a melhor atitude a tomar diante de uma situação dessas, [a opção de] ficar em casa é a mais óbvia. Algumas pessoas ficam achando que é um conselho difícil de ser oferecido, porque muitas pessoas não poderiam ficar em casa, principalmente nos grandes centros urbanos, em comunidades em que todo dia precisa-se trabalhar para trazer a comida para casa, trazer o remédio e pagar as contas. Então dizer para uma pessoa dessas “fique em casa” pode ser uma ofensa. Eu não quero de jeito nenhum ofender ninguém com uma recomendação de ficar em casa. A gente não sabe onde dói e o que nós temos que fazer a cada momento. Acredito nessa natural sabedoria a que cada um de nós pode recorrer para que a gente possa seguir vivendo da melhor maneira e superar as dificuldades. Nós estamos vivendo uma situação de dificuldade nos últimos meses, digamos assim, agravada pelo fato de que agora nós temos também uma espécie de confusão de orientação. Eu estou aqui em Minas Gerais, no médio rio Doce — aquele rio de que vocês tiveram notícia quatro anos atrás, quando a lama da mineração invadiu nosso lado, que é o nosso rio. Nós estamos a uns 300 metros da calha do rio, é pertinho daqui de casa. Nós não podemos usar a água desse rio, vocês já sabem disso, e nós somos assistidos aqui por caminhão pipa e outras ações emergenciais que as empresas responsabilizadas por esse dano tem que promover para 130 famílias que vivem aqui nesta reserva. É uma reserva, tem quatro mil hectares, a vegetação tá bonita, tá verde, mas é uma paisagem que eu costumo dizer que ela não confere se você for experimentar a água do rio, por exemplo. Então ela até desperta na gente uma crítica sobre o cuidado com a aparência das coisas. Você pode olhar uma paisagem, pensar que ela está bonita, mas você vai ver que ela está sendo depredada, não é?
Chamo ele de livrinho azul. Esse livrinho veio em um momento da minha vida depois de já ter transitado por vários lugares e de ter me engajado, por um bom tempo, na organização das nossas comunidades, dos nossos povos da floresta. Eu acredito que algumas pessoas sabem da minha ativa participação no movimento indígena na década de 1980 e 90, dessas lutas que configuraram essa realidade que os povos indígenas vivem no Brasil hoje. Eu não tinha mais uma perspectiva com relação a essa coisa dos movimentos sociais, do engajamento no sentido ativo da política social, porque estava muito crítico em relação a toda essa confusão que nós estávamos vivendo quando eu fiz essas conferên-cias que viraram o livrinho. Juntas, essas ideias provocaram mesmo uma abertura de picada, abriram uma trilha que me possibilitou ir além daquele lugar, com relação a nossa perspectiva sobre a floresta, o meio ambiente, os nossos rios, a política em relação às águas, a ideia dos Comitês das Bacias Hidrográficas (de que eu fui membro), do Conama(2)(de que fui membro quando ele tinha sentido, [porque] foi totalmente descaracterizado). Então todos aqueles lugares sociais que a gente podia ir como cidadãos, representando lugares diferentes da nossa realidade, da vida brasileira: eu senti que eles estavam sendo totalmente abduzidos. Então eu falei “o que eu vou ficar fazendo nesse lugar?” Ficar aqui na aldeia, não só na quarentena, mas ficar aqui na aldeia no resguardo longo, é muito bom, porque me permite refletir sobre o que já fizemos e não ficar repetindo a mesma coisa. Sobre o livrinho, eu digo [que] aquele livro já foi, eu estou além das proposições daquele livro e das provocações que eu fiz com relação à ideia de natureza e humanidade. A ideia de uma certa humanidade que recobre o planeta todo, a ideia da super humanidade que são aqueles que ficaram de fora do clube da humanidade. Eu não imaginava que nós íamos ser arrochados pela realidade para ir além desse lugar. Com essa situação agora, o mundo inteiro está sendo convocado a parar. Se o mundo inteiro tá sendo chamado a parar, alguém pode ter também tempo para pensar bem se aquela correria que a gente estava fazendo até outro dia, se ela era consciente, se nós estávamos indo numa direção consciente ou se a gente só estava fazendo a corrida da boiada.
Eu fiquei muito impressionado com o fato de a gente ter milhões de pessoas fazendo esse resguardo em um apartamento. E aí teve um corte forte para imaginar que abismo [é] alguém ter que passar esse tempo preso no apartamento; numa casa ainda vá lá, num apartamento vira quase uma prisão domiciliar no sentido que a coisa tem, não é? E que privilégio para aquelas pessoas que não vivem nesses redutos e que podem, por exemplo, estar no campo, na zona rural, afastados dessas aglomerações e poder, por exemplo, produzir seu alimento, seu remédio, suas medicinas, suas realidades locais, recorrer a um repertório de saberes e de práticas que alargam o sentido da vida. Daquilo que no livrinho chamei de “ampliar as subjetividades”, está sendo uma rica oportunidade de exercício agora: a pessoa não está numa rotina de ter que levantar para ir para escola, nem ir para o trabalho, nenhuma outra rotina muito limitadora, [então] pode fazer um pouco de experiência extraordinária. Se alguém está em um lugar no qual pode mexer na terra, que vá mexer na terra, vá fazer alguma coisa no seu quintal! Se você está no sítio, faça no sítio.
Eu não entendo porque alguém que está em um sítio tem que ficar sozinho dentro de casa; ele não precisa, ele pode ficar junto com toda aquela multidão de maritacas e de sapos, e de bichinhos, e outros pássaros, e tudo que está na terra – as minhocas, as formigas – alertando a ele que o único sujeito que foi mandado parar foi o humano. De toda a constelação de outros seres que estão compartilhando a vida na Terra com a gente, só o humano é que é o vetor dessa ameaça, do vírus. Os outros seres, não.
Mais uma vez nós estamos tendo a oportunidade de aprender ao invés de ficar só numa expectativa de que alguém nos indique alguma ação para adiar o fim do mundo. Nós mesmos vamos poder, no dia a dia, pensar “se eu fizer isso aqui, vai ficar melhor no lugar em que eu vivo e pode ficar melhor em outros lugares também”. Nós estamos sendo
O “S” é muito bem-vindo no [termo] “Amazônias”, e eu gostei porque dá a oportunidade para quem não viveu e não vive a experiência cotidiana de algumas dessas regiões, dessas Amazônias, seja na Amazônia brasileira, na Colômbia, na Bolívia, no Peru. Se não fosse aquelas linhas que marcam as fronteiras entre os nossos países, ela continuaria sendo no plural “Amazônias”, porque é tão vasta que chega a habitar um lugar imaginário, de gente no mundo inteiro, [que] anseia por um lugar “Amazônias” e, essas “Amazônias” são uma imagem antes de ser uma realidade. Tem muita gente que lida com as diferentes materialidades dessas “Amazônias”. Tem gente que pensa como um lugar que historicamente foi o Eldorado, que era o lugar de saquear e buscar riqueza, desde a descida dos espanhóis lá de cima pelo rio Negro atravessando o Amazonas, até os que entraram aqui pelo sul. Todos bateram essa trilha como aventureiros, viajantes, caçadores, coletores de todo tipo, exploradores, e os povos antigos que viveram nessas diferentes “Amazônias” tem outras Amazônias no pensamento, no coração e nas suas memórias. No tempo que nós vivemos, no século 21, a multiplicidade de Amazônias que existem e as perspectivas presentes que o governo do Estado, os ministérios têm dessas Amazônias, ou que um empresário do Sul tem desse “Amazônias”: se cada um deles fosse desenhar o que estão pensando, ia ser uma infinidade de Amazônias, porque são os lugares onde cada um quer realizar o seu projeto, digamos assim. Aí nós vamos chegar no campo das pessoas que nos últimos, 20, 30 anos, se engajaram nas políticas públicas, na política dos movimentos sociais não-governamentais para promover a existência desses lugares chamados Amazônias. Os movimentos sociais, os engajados em diferentes campos do que a gente pode chamar de lutas pela Amazônia – desde a proteção à vida, o direito à vida das pessoas que sempre estiveram lá, até a vigilância e fiscalização da invasão desses lugares que se constituem biomas, que se constituem em complexas biodiversidades que diferentes atores querem de alguma maneira se acercar deles — uns para conservar como bem comum da humanidade, outros para controlar, como essa turma agora que tem um grupo de trabalho dirigido pelo [vice-presidente] general Mourão, um comitê de crise para Amazônia. De vez em quando, acontece um evento desses. Na década de 1980, no tempo do governo do Sarney: ele também criou os pacotes. Tinha um negócio da Calha Norte. Depois passou um tempo na década de 1990, tinha uma outra coisa, que era a modernização do sistema de vigilância. Nós vamos achar que o mais bacana deles é aquele que quer conservar a floresta, aquele que quer proteger os modos de vida, apoiar e promover os modos de vida dos povos que vivem na floresta, mas até nessa parte seria bom a gente olhar com um olhar crítico. Tem os inimigos e tem os amigos, tem os caras que querem comer a Amazônia e tem os que querem proteger a Amazônia: se a gente ficar fazendo uma simplificação dessas, nós não vamos ser nem capazes de fazer uma ação que seja honesta com quem está vivendo dentro dessas Amazônias e que precisa que ela continue tendo floresta, rios, e que as pessoas possam ter acesso a alguma segurança nos lugares onde vivem. Aí se abrir tantas linhas para gente observar, a gente iria se perguntar, por exemplo: por que nós todos nos batemos na década de 1990 para que existisse uma infraestrutura voltada para a Amazônia com a ideia de desenvolvimento, mesmo que acrescentado do adjetivo “sustentável”? No fundo o que estava no motor da ideia era o desenvolvimento. E aquela época já tinha gente dizendo: “Por que, ao invés de desenvolvimento, a gente não busca ter envolvimento?”
Ainda sobre a ideia de fronteiras e Amazônia, tanto uma pessoa que nasceu em Parintins quanto uma que nasceu em Berlim podem se achar relacionadas com a ideia das Amazônias com a mesma intensidade. Ou aquela menina fantástica que mobilizou o mundo alguns meses atrás, a Greta [Thunberg). A Greta tem a mesma intensidade de entusiasmo e envolvimento com uma ideia de Amazônia do que uma menina que nasceu em Ji-Paraná ou Oriximiná. Não é porque ela nasceu lá na Europa que você vai dizer para ela que “você não tem nada para dizer sobre esse lugar”, porque esse lugar para ela tem outras representações. Quando um chefe de Estado na Europa vira e fala “a Amazônia é isso, é aquilo”, e alguém fica nervoso com ele e diz “esse gringo não tem que falar nada sobre a Amazônia”, é porque não está sendo capaz de entender de onde é que ele está falando. Aquele gringo está falando de algum lugar do mundo; a Amazônia tem um sentido para ele, e isso deveria ampliar a nossa percepção do que são as Amazônias. Elas não são um lugar, elas se constituem numa constelação de lugares de representação mítica, cultural, econômica e política.
Eu já comentei que uma das coisas mais estranhas é que as cidades brasileiras nos trópicos, não só no Brasil, as cidades coloniais nasceram com as privadas viradas para os rios e a porta da sala para uma viela. Pode olhar todas as nossas cidades, inclusive Ouro Preto e Mariana. Parece que a gente foi para esses lugares para cagar nos rios. Pegue as plantas de todas as nossas cidades no Google e olhe: para onde é que fica virado o esgoto? E para não dizer que eu não falei das flores, antes da Covid-19, o Rio de Janeiro estava abas-tecendo as torneiras das pessoas com água de esgoto. Eu acho que é aquele sentido de que tudo o que sobe, desce. Você jogou alguma coisa para cima, uma hora vai cair na sua cabeça. Jogaram esgoto nos rios, o rio está devolvendo esgoto nas torneiras. E numa cidade como o Rio de Janeiro! Não é uma vilinha pobre, que não tem como fazer uma estação de tratamento de água; é o Rio de Janeiro, que nos últimos anos deve ter gastado bilhões com a recuperação da Baía de Guanabara. É espetacular, dava pra filtrar com dinheiro toda a água daquele sistema lá. São tubos de dinheiro.
O mundo hoje é governado por CEOs, gerentes. As corporações escolhem gerentes e botam os caras para governar e, quando eles não estão correspondendo, tiram ele numa boa. Eu acho uma ingenuidade enorme as pessoas continuarem engajadas em partidos políticos e fazerem campanha para partido, a gente deveria ter superado isso. Assim como a ideia da economia movida por uma perspectiva de progresso e desenvolvi-mento é uma ideia vencida, velha e vencida, a gente deveria superar também a ideia da representação política nos termos em que ela foi feita até agora — porque isso é colonialismo. A gente deveria pensar em envolvimento! O envolvimento das pessoas, das comunidades com os lugares onde vivem, e a partir desse envolvimento produzir novas visões, novas realidades sobre a vida social. Agora que nós estamos vivendo um isolamento, a gente deveria pensar como é que a gente faz o religamento dessas relações que não sejam [por meio dos] sistemas falidos e declaradamente corruptos.
2 Conselho Nacional do Meio Ambiente.
Debaixo da pandemia, o risco oculto da pecuária industrial
Por Allan de Campos Silva
Em meio a pandemia de COVID-19, as práticas largamente abusivas e insalubres das campeãs do setor, como a JBS no Brasil e a Smithfield nos EUA, vêm à tona transfiguradas por uma nova camada de humilhações e riscos para os trabalhadores de frigoríficos. Por sua vez, o avanço do agronegócio e a destruição ambiental no país, sob a égide do bolsonarismo, nos lançam do fogo para a brasa: enquanto se intensificam as causas que em primeiro lugar produzem as epidemias e pandemias, nos deparamos com a consolidação de uma ecologia proto-pandêmica no Brasil.
De acordo com Wallace, contudo, vírus como os causadores da influenza não são objetos inertes, alheios às intervenções humanas sobre os ambientes de produção e criação de aves e porcos. Muito pelo contrário: ao perseguir cegamente uma demanda tautológica por incre-mento de produtividade, a pecuária intensiva, tal como praticada pelas indústrias de aves e porcos no mundo todo, pode estar contribuindo para a seleção de vírus cada vez mais mortais.
Um novo rearranjo de vírus que tenha sido capaz de infectar animais produzidos sob o sistema de monocultivo genético em confinamento, em tese, é capaz de contaminar celeiros, fazendas e regiões inteiras. O sistema é tão crítico que, em muitos casos, os animais são sacrificados por meio de abates sanitários em massa, para evitar que um surto incipiente se espalhe por uma região ou até mesmo pelo planeta inteiro.
DO NORMAL-TERRÍVEL ÀS PRIVAÇÕES DE SEGUNDA ORDEM NA PANDEMIA
Em meio a pandemia de COVID-19, proliferam-se denúncias sobre funcionários de frigoríficos obrigados a trabalhar sem proteção adequada ou mesmo enquanto manifestam os sinto-mas da doença. Contudo, não é de hoje que o setor de carnes se destaca pelos riscos ocupacionais que oferece aos seus trabalhadores, em muitos casos composto por contingentes de imigrantes.
A história de abuso sobre os trabalhadores da indústria de processamento de carnes já é razoavelmente conhecida no Brasil. O documentário Carne e Osso (3), produzido com apoio do Repórter Brasil, retrata as condições degradantes para os trabalhadores das atividades de abate e desossamento de aves. Em uma pesquisa anterior (4), eu já havia relatado a situação dos abatedores de frango da sessão halal da BRFoods – voltado à exportação para mercados muçulmanos – onde cada trabalhador chega a sangrar duas mil aves por hora. Em muitos casos estes trabalhadores são forçados a cumprirem segunda ou terceira jornada de trabalho, o que caracterizaria uma relação de trabalho análoga à escravidão.
As grande empresas do setor já tiveram diversos frigoríficos temporariamente interditados e já foram obrigadas a pagar indenizações coletivas a grupos de trabalhadores – o que, em todo caso, não tem sido suficiente para coibir tais práticas.
E os trabalhadores do setor já há muito tempo vivenciam uma epidemia de doenças diretamente relacionadas ao trabalho, dentre as quais as Lesões por Esforço Repetitivo (LERs) cons–tituem o carro-chefe.
Vale notar que as LERs são doenças crônicas, ou seja, um trabalhador que tenha os braços assim lesionados portará braços danificados para o resto da sua vida. Os trabalhadores com LERs em geral são afastados temporariamente do serviço – em muitos casos sem qualquer acompanhamento médico, principalmente nas cidades pequenas que sequer contam com clínicas de fisioterapia. Esperam a lesão desinflamar, a dor ser mais suportável ou o açoite da fome para logo voltarem a se sacrificar, em geral, na mesma função que em primeiro lugar produziu a lesão.
As LERs, contudo, não andam sozinhas, pois sempre se vêm acompanhadas de cortes nos membros, depressão, pânico de ambientes fechados e infecções nos olhos, boca e pele, que em muitos casos sequer são diagnosticados de maneira apropriada.
A frieza do setor para com a saúde pública se fez notar recente-mente no Brasil por meio da Operação Carne Fraca (5), deflagrada pela Polícia Federal, que expôs um esquema no qual o próprio Ministério da Agricultura, sob o governo do antediluviano Michel Temer, criou barreiras para a inspeção sanitária de carnes impróprias para consumo. Em seguida, um superin-tendente do Ministro da Agricultura foi flagrado orientando a destruição de provas materiais do crime. O esquema visava beneficiar as principais empresas do país, como a JBS – con-troladora das marcas Seara, Swift e Friboi – e a BRFoods – controladora das marcas Sadia e Perdigão.
Em 2019, uma investigação posterior realizada pelo Repórter Brasil em conjunto com o jornal britânico The Guardian revelou que mais de 1 milhão de toneladas de frango contaminado com Salmonella exportadas pelo Brasil e barradas em portos europeus, foram trazidas de volta e revendidas em super-mercados brasileiros.
E mesmo em meio à pandemia de COVID-19, em maio de 2020, frigoríficos da JBS e da Brasil Global, focos consolida-dos da pandemia – que até nisso mimetizam as práticas da gigante Smithfiled dos EUA (6) – são colocados sob escrutínio em Passo Fundo (RS), em Ipumirim (SC) e em Guia Lopes da Laguna (MS), acusados de obrigarem seus funcionários a tra-balhar sem proteção adequada ou a trabalhar com sintomas de COVID-19 – enquanto os representantes do setor lutam na justiça para evitar a interdição dos frigoríficos.
Enquanto a pandemia fortalece o seu curso no Brasil, estes novos focos de contágio se consolidam em pequenas cidades que, apesar de distantes das principais regiões metropolita-nas contaminadas ou fora dos principais eixos de circulação de pessoas, têm em comum o fato de abrigarem frigoríficos com milhares de trabalhadores.
Estes casos revelam com que frivolidade sujeitamos os tra-balhadores, entendidos antes de tudo como engrenagens descartáveis de uma máquina autodestrutiva. As declaradas atividades essenciais sujeitam os trabalhadores dos frigoríficos a situações de saúde que potencializam o contágio. Seus trabalhadores são sacrificados em plena pandemia, mimetizando os abates sanitários conduzidos pela indústria avícola diante de lotes de aves infectadas. A pecuária industrial parece realizar a metáfora de Marx, do trabalhador “como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto — o curtume” (7).
Em suma, o argumento de Rob Wallace nos oferece um vislumbre sobre a situação crítica para o Brasil assim como para toda a região Pan-Amazônica, uma vez que todas as condições econômicas e ambientais que deram origem aos surtos de epidemias na China, no México ou nos EUA, aqui se encontram de forma abundante.
Enfim, nos resta saber se a epidemiologia capitalista, sob a égide do obscurantismo bolsonarista, será também capaz de cultivar a sua própria cepa de vírus no coração da sua catastrófica ecologia.
9 AMAZÔNIA pode ser ‘maior repositório de coronavírus do mundo’, diz cientista. UOL, São Paulo, 13 mai. 2020. Viva Bem. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/afp/2020/05/13/amazonia-pode-ser-maior-repositorio-de-coronavirus-do-mundo-diz-cientista.htm Acesso em 4 de fev. 2021.
10 O equivalente a “epidemias” no universo animal não-humano.
A democracia securitária em meio à pandemia e uma nota sobre a revolta e o militantismo
As diversas faces do avanço dos aparelhos de segurança na gestão da pandemia no Brasil e o fogo da antipolítica que recusa o incremento das sociedades de controle
Por Acácio Augusto
As ações de Estado e as violências regulares de polícias, prisões e das Forças Armadas no Brasil não sofreram grandes transformações durante o que foi declarado, em março de 2020, como uma pandemia. Após mais de um ano nesta situação, mesmo com o início da vacinação, há sinais que apontam para desdobramentos duradouros e catastróficos no Brasil. De maneira geral, como quase tudo durante este período excepcional que estamos vivendo, a crise sanitário-securitária apenas intensificou e/ou aprofundou situações e intervenções que já eram feitas pelo Estado e por seus agentes de segurança, ou seja, serviu como mais um meio de ampliar e intensificar suas violências. A crítica mais comum à conduta e às medidas do governo brasileiro desde o início do espalhamento das infecções por Covid-19 é dizer que este teve uma postura negacionista. Isso é dito sobretudo por conta das declarações do presidente Jair Bolsonaro e dos membros de seu governo e aliados políticos, que trataram a emergência da doença como uma gripezinha ou mesmo sugeriram que ela seria uma invenção chinesa com motivações geopolíticas e geoestratégicas. Embora o negacionismo seja, em parte, verdade, não corresponde totalmente à realidade. Se não podemos falar em transformações nas tecnologias de poder com a emergência dessa declarada pandemia, mas só em intensificações e ampliações, essas se dão de forma muito mais complexas do que meramente uma disputa discursiva entre grupos políticos (no governo) que negam seus efeitos e grupos políticos (de oposição ao governo) e manifestações da sociedade que tratam a doença de forma correta.
A forma mais precisa de caracterizar como o governo brasileiro lidou com o que se tornou uma crise sanitário-securitária, que se soma ao governo de crise em que vivemos, é dizer que ele teve uma postura ambígua e buscou gerir a situação de forma a não produzir prejuízos políticos ao seu projeto e aos seus interesses imediatos e de curto e médio prazos. E, de certa maneira, o governo brasileiro conseguiu seu objetivo, pois, segundo as pesquisas de opinião realizadas com regularidade, sua aprovação e reprovação varia muito pouco, mesmo entrando no terceiro ano de mandato e muito contestado por diversos grupos sociais. Institucionalmente, a cada nova crise produzida, há acomodação nas relações com os outros poderes, que se revelam conflituosas no início, mas sempre encontram negociações possíveis. Se, de um lado, o governo lançou mão de um discurso crítico às medidas de isolamento social, alegando proteger a liberdade de circulação das pessoas e temendo os impactos econômicos de uma paralisação das atividades ordinárias; de outro lado, o governo tomou uma série de medidas que foram operadas, principalmente, pelo engajamento das forças de segurança, especialmente o Exército e as forças policiais. Isso é tão evidente que o então Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, era um general da ativa de três estrelas do Exército Brasileiro. Dentre os requisitos para sua seleção à frente do ministério, anunciada de forma interina e mantida mesmo depois de diversas ações desastrosas do ministro, estaria sua destreza em controle logístico. Habilidade supostamente demonstrada quando chefiou a Operação Acolhida, ação do Exército brasileiro para gerir a chegada de refugiados venezuelanos, ainda no governo Michel Temer, iniciada em fevereiro de 2018 (1). O próprio general-ministro, mesmo admitindo que até assumir o cargo nem sabia o que era o SUS (Sistema Único de Saúde), se gaba por ser um perito em questões de logística.
No entanto, esse recrutamento governamental entre as Forças Armadas não é um efeito dessa crise sanitário-securitária, mas caraterística regular do governo Bolsonaro, que emprega cerca de 6 mil militares em cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão do governo federal, desde que tomou posse em janeiro de 2019 (2). Além do presidente eleito, ex-capitão do exército, postos-chave como os Ministérios da Casa Civil, da Infraestrutura e o Gabinete de Segurança Institucional, são ocupados por membros do partido militar (3), forma com que alguns pesquisadores das relações civis-militares designam a composição do campo político governamental liderado por Jair Bolsonaro. Em geral são militares da reserva com passagem pela Minustah (4) no Haiti ou com histórico de atuação política, como o ex-Chefe da Casa Civil e ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, que liderou a intervenção federal militarizada na pasta de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, quando ainda era oficial da ativa, no início de 2018, durante o governo de Michel Temer. Neste período a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi executada por ex-policiais militares, sob circunstâncias até hoje não esclarecidas plenamente.
No LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acompanhamos com um grupo de pesquisadores, via sites oficiais do governo e a imprensa, como se deu o emprego das forças de segurança durante a pandemia. O número de mortes em decorrência da infecção ultrapassa 575 mil pessoas (5) e a onda de infecções, após mais de um ano, não dá sinais de recuo. Apesar disso, o país vive um clima de esgotamento que faz com que a maioria das pessoas relaxem as medidas de distanciamento social e os governos dos estados retomem atividades, como abertura de centros comerciais e academias de ginástica. Além do fato de que, para uma parcela significativa da população (a mais pobre), o distanciamento social foi impossível por todo o período, devido às imposições dos chamados serviços essenciais. A coleção dos nossos boletins pode ser consultada em nosso site (6): neles compilamos as notícias, medidas governamentais e análises de pesquisadores sobre a pandemia com foco em medidas securitárias e de controle social nos meses de março, abril, maio e junho de 2020, buscando um acompanhamento semanal dos eventos.
Esse texto pretende expor analiticamente, algumas de nossas conclusões seguindo os cinco tópicos que usamos para dividir nossos boletins. Essas conclusões nos levaram a algumas caraterizações do que chamamos de democracia securitária: a colonização da política pela segurança.
A emergência de lutas anti-segurança em todo planeta, mesmo em meio a pandemia, como as iniciadas nos EUA após o assassinato de George Floyd e as que ocorreram na Colômbia, nos levou a interromper a excepcionalidade dos boletins focados nos efeitos securitários da pandemia para continuarmos por outro caminho, dessa vez regular. Criamos um boletim de caráter quinzenal, focado nas lutas e em análises e proposições anti-segurança e que apontam para a desativação dos dispositivos de segurança. O primeiro número introduz os debates sobre a abolição da polícia (7). Ao final, um breve comentário sobre qual a relação do militantismo com essas lutas anti-segurança que se apresentam de forma intermitente em diversas partes do planeta.
EFEITOS DA PANDEMIA NAS TECNOLOGIAS DE GOVERNO E SEGURANÇA
O primeiro tópico de nosso boletim sobre a segurança na pandemia chama-se “Democracias securitárias e medidas de exceção”. Ele sistematiza e expõe as medidas de monitoramento institucional por parte de governos, organizações da sociedade civil, fundações e institutos de pesquisa, que evidenciam o nível e amplitude das políticas de segurança contra as liberdades. Sob a alegação de combater o vírus e defender a vida, mas sem muitos efeitos de contenção da contaminação, essas medidas acionam dispositivos securitários de exceção sem alterar a forma democrática do governo. São medidas que compõem o dispositivo monitoramento como prática comum das democracias securitárias. Mobilizando, de forma articulada, política democrática, participação da sociedade civil e engajamento militar, seus efeitos políticos muitas vezes auxiliam na justificava das medidas de segurança, pois, ao fornecerem parâmetros de aplicação e acompanhamento dessas medidas, em tese, “preservam padrões democráticos” e deixam o “povo vigilante contra as suas ameaças”, enquanto os dispositivos de segurança se expandem e se diversificam. Para além da situação de pandemia, o que temos no Brasil é um governo formalmente democrático que usa os agentes de segurança para exercer autoritarismo e um racismo de Estado que funciona como poder de morte sobre uma parte das pessoas. O importante a ser ressaltado é que essas práticas, apesar de intensificadas com esse governo, já se configuravam como modus operandi da democracia no Brasil desde a chamada abertura política e a Constituição de 1988, por isso chamá-las de democracia securitária. Há momentos de intensificação e recuos da violência e da letalidade, mas há elementos suficientes para afirmar que a triangulação entre democracia judicializada, participação estimulada e proliferação de dispositivos de segurança é a forma de funcionamento do governo contemporâneo.
Para retornar ao exemplo do Ministério da Saúde, ele seguiu incorporando ainda mais oficiais das Forças Armadas, segundo dados de maio de 2020. Jorge Luiz Kormann, Marcelo Blanco Duarte, Paulo Guilherme Fernandes e Reginaldo Machado Ramos ocupam, respectivamente, as posições de diretor de Programa, assessor de Logística, coordenador-geral de Planejamento e diretor de Gestão Interfederativa e Participativa. Dos cargos de coordenação e chefia no ministério, destaca-se que Kormann já atuou nas áreas de gestão de hospitais militares e no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), tendo assinado um manifesto do Clube Militar contra a Comissão da Verdade por considerá-la revanchista. Fernandes tem experiência de docência nas áreas de administração e economia em universidades, e Ramos já atuou como docente em universidades e instrutor na Polícia do Exército, consultor na mineradora Vale, coordenador de gestão e patrimônio do Ibama. No governo Bolsonaro, ele chefia a diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Poderia mobilizar outros exemplos que se encontram nos boletins sobre a pandemia e a segurança, mas apenas com esse caso no Ministério da Saúde é possível notar que não se trata exatamente de uma militarização do governo civil, mas de uma ocupação na política civil por militares, da ativa (em menor número) e da reserva (maioria). As justificativas governistas rechaçam as acusações de militarização de governo e ressaltam a formação militar e as experiências em gestão e logísticas em condições adversas, como a experiência que muitos militares acumularam no Haiti, participando da Minustah ou em convocatórias excepcionais, como a participação na segurança dos megaeventos em 2014 e 2016 e a Operação Acolhida em 2018. Assim, temos uma democracia em pleno funcionamento constitucional, mas com mais militares no governo que a ditadura civil-militar entre 1964 e 1985.
No segundo tópico, intitulado “Comunicados e declarações da ONU”, buscamos mapear a produção de recomendações da principal organização internacional. Nesse conjunto de decisões e recomendações, é digno de nota que, apesar de reiterar a necessidade de distanciamento social e declarar que a saúde dos povos era prioridade, também se viu uma ambiguidade no discurso das Nações Unidas. O principal ponto a se destacar é discurso de guerra ao vírus (8). O secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, declarou, em 19 de março de 2020, que “estamos numa situação sem precedentes e as regras normais não mais se aplicam”, explicitando que os possíveis constrangimentos aos autoritarismos dos Estados que pudessem derivar do Direito Internacional estão, no mínimo, limitados. Isso recoberto por um alegado “silêncio prudente”. Em pronunciamento de março de 2020, o secretário geral ainda reitera a linguagem da guerra ao declarar que “a Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus”. Guerra e mobilização contra um inimigo que nem se pode ver, mas que espalha seus efeitos de forma desigual e assimétrica, tornando ainda mais evidente a gestão das vidas e as políticas de morte, tendo como vetor a declarada pandemia.
Essa breve referência torna explícito que a preocupação central da ONU é a instabilidade econômica, não os efeitos humanos das infecções e a crise decorrente de seu espalhamento. Assim, ela convoca os Estados para mitigarem esses efeitos em prol da “proteção aos vulneráveis”. No campo específico das medidas de segurança, houve, por exemplo, a revisão dos protocolos de combate ao terrorismo, adaptando-os a nova situação. Nada de novo no que diz respeito ao papel da ONU em situações de guerra, como as conhecidas “intervenções humanitárias” e ajudas por cooperação técnica. O objetivo da ONU e das nações que a compõem é a promoção de resiliência – estratégias flexíveis de prevenção que identifiquem o que passa a ameaçar os valores e ideais sustentáveis para o capitalismo em escala planetária. Resiliência, que denota compartilhamento, responsabilidade, elasticidade, empatia, mas que escancara seu outro lado complementar pela tolerância zero como política de segurança pública planetarizada desde os 1990. Interessa, nessas ações de contenção, a sobrevivência de sua burocracia planetária, a saúde do capitalismo e a manutenção da atual ordem global.
No terceiro tópico, “Tecnologias de monitoramento”, buscamos mapear o uso das chamadas tecnologias eletrônicas de vigilância (9). Se em países asiáticos os controles computo-informacionais foram celebrados como via eficaz de controle de contaminações e infecções, no Brasil eles foram acionados como forma de expansão das formas de trabalho remoto e uma hiperativação dos aplicativos de entrega, chegando a gerar paralisações e greves inéditas desses trabalhadores precarizados (10).
Além das medidas de monitoramento diretamente relacionadas com os equipamentos computo-informacionais como smartphones e aplicativos digitais, uma série de práticas de monitoramento foram acionadas e/ou intensificadas com o objetivo de antecipar e conter possíveis revoltas entre as frações da população que são classificadas como vulneráveis. Essas práticas estão em sintonia com as recomendações da ONU. Esses monitoramentos passam por enunciados que convocam aos controles mútuos do cumprimento do distanciamento social ou da quarentena, viabilidade tecnológica de ensino à distância, ações de caridade para mitigar impactos econômicos e sociais entre os pobres nos bairros de periferia ou favelas, medidas judiciais para que presos cumpram pena em meio aberto, criação de abrigos e recolhimento compulsório de moradores de rua, ações de dispersão de festas populares e eventos religiosos, ações policiais em regiões que concentram usuários de drogas, formas de abordagem policial diversas, dentre outras medidas sob o imperativo de contenção das infecções pela Covid-19. Não cabe fazer juízo de valor sobre essas ações, mas importa registrar como o dispositivo monitoramento funciona na resposta a uma urgência, no caso, a colocada pela crise sanitária com efeitos de segurança. Também expõe como este dispositivo mobiliza práticas discursivas e não-discursivas que vão além do que se nomeia como “vigilância digital” ou “aparelhos eletrônicos de vigilância”. Assim se amplia, em meio à declarada pandemia, os controles e penalizações a céu aberto, como também produz formação de condutas do cidadão-polícia, ambos elementos da democracia securitária.
No quarto tópico, “Comentários e análises”, buscou-se mapear as leituras dos efeitos e impactos que estão ligados à Covid-19 oriundas de diversos campos do saber. Coube-nos atentar àqueles que estão mais próximos do campo social, dos efeitos políticos e, mais especificamente, securitários. A forma eufemística de tratar o confinamento, o distanciamento social, motivada por um decreto e/ou uma proibição, coloca a questão: qual vida queremos? Nesse sentido, há de se colocar em disputa um horizonte de transformações, não de contenção ou gestão dos viventes por meio de medidas de segurança.
Os aparelhos securitários que ganham robustez em momentos de crise servem para gerir e monitorar a vida das pessoas, para salvaguardar o próprio sistema de segurança e não colapsar a capacidade de governo das condutas de Estados, empresas e associações da sociedade civil no capitalismo planetário. Acreditar que eles defendem a vida é, no mínimo, ingenuidade. A declaração de guerra contra o vírus só fortificou esses aparatos, bem como expôs como o Estado aciona uma espiral de medidas de exceção na forma de decreto-lei em favor do controle e administração da crise, em nome da saúde de todos. O boletim “(Anti)Segurança” busca verificar quais dessas medidas excepcionais se tornarão permanentes e como emergem as resistências à elas. Das muitas medidas já instaladas, a intensificação da exploração laboral pelo instituto do trabalho remoto parece já consolidada. Sem falar na expansão das tecnologias de vigilância eletrônica, alertada por vários pesquisadores desde o começo da pandemia.
Por fim, no tópico 5, buscamos indicar as ações de resistências anticapitalistas e antiestatais durante a pandemia. Resistência é um fenômeno da física que indica retenção ou bloqueio de um fluxo de energia, como as lâmpadas alógenas que retêm energia, gerando calor e luz. Talvez por isso, conscientes ou não, a mídia no Brasil veja a conduta do presidente e seus seguidores como resistência ao consenso planetário do combate ao vírus, do distanciamento social e das medidas de higiene e proteção. Nada mais equivocado por parte dos que assim pensam: as condutas do presidente e dos seus seguidores não geram nem luz, nem calor e em seu elogio da morte apenas revela uma outra faceta da disputa pelo controle da crise, a gestão dos viventes e a distribuição de mortes. Não há oposição, mas complementação em favor da manutenção do governo das condutas, do Estado, do Mercado e do capitalismo. Um consenso pela necessidade em assegurar a vida no planeta diante de uma ameaça fugidia, intangível e invisível.
Por isso indicamos no conjunto de nossos boletins algumas práticas e apontamentos que escapam a essa complementaridade supostamente contraditória. São iniciativas dispersas e descontínuas que afirmam a ação direta, a autogestão e o autocuidado sem temer o fim de um mundo que já não era bom de habitar; ele já estava em colapso. Um mundo em crise per-manente e que empurra os viventes a fazer escolhas infernais, como as que os médicos fizeram sobre quem deve viver ou morrer diante da escassez de leitos de UTI, da falta de oxigênio ou da quantidade de vacinas disponíveis. O registro dessas práticas, no conjunto dos boletins, além do contraste analítico, também funcionou como contraponto às ações de caridade e contenção das revoltas levadas adiante por empresas, fundações e ONGs. Eles criaram as condições para a emergência de revoltas de rua por grupos antifa no Brasil, antirracistas nos EUA, antipolícia na Colômbia e na Nigéria e pontos de retomada nos protestos de rua no Chile. Já vivem tempo suficiente sob essa declarada pandemia para afirmar que o saldo no Brasil é tenebroso: mais de 575 mil mortes, só decorrentes da Covid-19. A aposta de desgaste “natural” do governo, feita por muitos da oposição, não se confirmou; a presença de militares no governo se ampliou e se consolidou; a popularidade do presidente se estabilizou, sobretudo pelos efeitos do auxílio emergencial, os acordos com os poderes legislativo e judiciário e pela histórica tolerância da população brasileira às mortes em massa; a conduta autoritária do presidente foi retoricamente moderada na disputa com a imprensa e os outros poderes da república e, com isso, normalizada. Nada de novo. Enquanto isso, as Forças Armadas seguem sendo empregadas contra civis, um morticínio silencioso segue em curso nas prisões em todo país (onde até as visitas de parentes foram proibidas) e as polícias dos estados seguem como as que mais matam no planeta e, com ou sem pandemia, noticia-se que matou mais uma criança ou um jovem negro nas periferias de alguma cidade.
Uma realidade terrível, de terror, se confirma no Brasil: quem mais mata e promove terror, seja por ação ou inanição, é o Estado e todo seu aparato de segurança. Mas resistências intermitentes se manifestam aqui e ali, com potências de um militantismo no planeta e contra esse mundo da morte.
BREVE NOTA SOBRE A REVOLTA E O MILITANTISMO
A pandemia é uma relação social, muito mais do que um mero dado biológico e/ou viral, por isso seu acontecimento se impôs como uma encruzilhada social e política. Da mesma maneira, o dispositivo monitoramento é viabilizado pela expansão dos controles computo-informacionais, mas se operacionaliza como uma tecnologia política. O encontro desses dois elementos tem apontado até o momento para uma intensificação dos controles e a colonização definitiva de como amamos, nos relacionamos, aprendemos, fazemos sexo, vivemos e morremos.
Se estamos falando de uma relação social, há sempre a possibilidade de alguém, em algum lugar, em algum momento, produzir um desacerto, uma revolta. Neste instante a tela se apaga. O fogo consome e produz, depois vira brasa ardente a ser avivada. Responde ao intolerável dos controles e monitoramentos, desnorteando-os. Na eficácia tecnológica, multifacetária e polivalente do dispositivo monitoramento, desativá-lo totalmente é uma quimera, talvez uma utopia conservadora e democrática dos dias de hoje. Mas enfrentá-lo é sempre uma possibilidade. Enfrentar essa máquina de controle e morte é provocar o ingovernável, uma revolta antipolítica.
Durante a situação de pandemia a revolta apareceu em diversos momentos, desde a disseminação de práticas de autocuidado até enfrentamentos e protestos de rua que se reinventaram diante da necessidade de cuidados mútuos (11).
Não cabe aqui dizer como fazer. Mas é possível, diante da defesa da vida como dado biológico, indicar a forma de vida que produz essa revolta: a vida militante. Ela não é esse ativismo contemporâneo que organiza as identidades por autodeclaração. Isso faz, especialmente no campo das redes sociais digitais, com que qualquer pessoa se declare pertencente a uma identidade política e nela se feche como em um bunker. A partir dessa fortificação, todos se defendem contra todos e atacam as alteridades que se encontra pelo caminho. Os próprios governos constituídos, hoje em dia, sobrevivem desse ativismo, da participação de seus apoiadores. Essa é uma das vias para compreender porque mesmo após vencer as eleições, muitos governos seguem em campanha por meio da atuação de seus ativistas. Como diz Deleuze, nas sociedades de controle, nada acaba, estamos sob o signo do inacabado, da formação contínua (12).
Esse ativismo no inacabado é o extremo oposto do que Michel Foucault chama de militantismo, a partir da experiência transhistórica do cinismo antigo. Nessa formulação, o filósofo francês inclui, modernamente, os anarquistas. Na penúltima aula do curso “A coragem da verdade”, em 21 de março de 1984, ele oferece uma imagem muito poderosa desse militantismo: “seria a ideia de uma militância de certo modo em meio aberto, isto é, uma militância que se dirige a absolutamente todo mundo, uma militância que não exige justamente uma educação (uma paideía), mas que recorre a meios violentos e drásticos, não tanto para formar as pessoas e lhes ensinar, quanto para sacudi-las e convertê-las, convertê-las bruscamente. É uma militância em meio aberto no sentido que pretende atacar não somente este ou aquele vício, defeito ou opinião que este ou aquele indivíduo poderia ter, mas igualmente as convenções, as leis, as instituições que, por usa vez, repousam nos vícios, defeitos, fraquezas, opiniões que o gênero humano compartilham em geral. (…) Um militantismo aberto, universal, agressivo, um militantismo no mundo, contra o mundo” (13). Não se trata de preservar o mundo e a vida, mas de expandir e transformar.
Por isso, a situação de crise em todos os sentidos e como modo de governo exige um militantismo que, por meio da ação direta, atue como revolta antipolítica. Por isso, a atuação desse militantismo, nessa impaciência que dá forma a impaciência da liberdade, está em ações como a tática black bloc, a ocupação de prédios convertidos em centros sociais e moradias coletivas, as ações de autodefesa de grupos antifa e anarco-queer e toda forma de sexualidade dissidente que não reivindica reconhecimento, dos grupos do movimento negro que compreenderam e deram forma a máxima do Djonga: fogo nos racistas!
Trata-se de toda ação que, no momento em que é executada, não reconhece a pacificação da política de negociação e que, fatalmente, será acusada de radical. O que deriva disso são outros 500. Há uma imagem na dissertação de mestrado de Matheus Marestoni sobre junho de 2013: que os black bloc, ao retirarem as pedras portuguesas das calçadas para resistir às investidas das tropas de Choque da PM, estavam levantando a poeira dos mais de 500 anos de pacificação dos selvagens dessa terra (14). Vejam o que temos depois de junho, segue sendo. E isso é agonismo, não tem batalha final, é fogo! E esse fogo da antipolítica é que vai produzir a vida outra diante dessa vida do novo normal que a crise sanitário-securitária está produzindo.
Notas:
1 Sobre a Operação Acolhida, ver: https://www.gov.br/acolhida/historico/ Consultado em 15/10/2020.
2 Laís Lis. “Governo Bolsonaro mais que dobra número de militares em cargos civis, aponta TCU” In Portal G1. Brasília, 17/7/2020. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml Consultado em 15/10/2020. Consultado em 15/10/2020.
3 Cf. LASInTec. “Militares na Política. Como se dá o engajamento militar no combate à pandemia no Brasil? – Painel 2”. Vídeo de Painel digital. Osasco: UNIFESP, 2020. Ver, em especial, exposição da profa. Suzely Kalil Mathias, que desenvolve o termo “partido militar” para se referir à organização política do governo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=KDT91yDQve4 Consultado em 15/10/2020.
4 Acrônimo para Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti, liderada pelas Forças Armadas brasileira, que durou 13 anos (2004-2017), Cf. nota de enceramento publicada no site oficial do Ministério da Defesa: https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/minustah-militares-brasileiros-retornam-do-haiti(Consultado em 20/10/2020).
5 Número atualizado em 23/08/2021
6 Ver https://lasintec.milharal.org/boletim/ Consultado em 15/10/2020.
7 Ver: https://lasintec.milharal.org/boletim-antiseguranca/ Consultado em 15/10/2020.
8 Sobre essa relação ver Acácio Augusto. “Guerra e pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre” In Coleção Pandemia Crítica. Vol. 18, março. São Paulo: n-1, 2020. Disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/51 Consultado em 15/10/2020.
9 Sobre o que entendemos por “dispositivo monitoramento”, ver Edson Passetti et ali. Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019.
10 Para uma análise sobre o breque dos apps, ver Salvador Schavelzon. “A luta dos entregadores de aplicativo contra os algoritmos autoritários”. Publicado em El País Brasil. 20 de julho de 2020. Disponível em https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-07-25/a-luta-dos-entregadores-de-aplicativo-contra-os-algoritmos-autoritarios.html Consultado em 15/10/2020.
11 Para um inventário extenso dessas práticas anticapitalistas e antiestatais em todo o planeta, consultar os dossiês “A Luta é Pela Vida” partes I e II, com textos e relatos diversos. Disponível em https://faccaoficticia.noblogs.org/post/2020/04/13/a-luta-e-pela-vida-parte-ii/ Consultado em 1/7/2020.
12 Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992