Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
As Independências, o coração que vem da Europa e as revoltas que os senhores ainda tentam silenciar
Por André Godinho*
O historiador André Godinho, do Coletivo História da Disputa, reconta o mito da Independência, mantido por corações brancos, para apagar lutas afro-indígenas
A crer nas celebrações oficiais da Independência, a nação brasileira tem origem num único coração, hoje frio, inchado, desbotado e embebido em formol.
O rito em si causa estranhamento, eventualmente nojo, mas também perplexidade: afinal, por que d. Pedro I? Mesmo tendo sido por mais de um século apresentado como grande personagem da independência, não existe qualquer comoção popular com sua figura. Conhecido por parte dos brasileiros como “o quadro da aula de história” ou como “o Marcos Pasquim naquele papel de cafajeste”, este príncipe não é exatamente reverenciado no Brasil na ordem do sagrado. Aliás, é muito mais frequentemente objeto de sátira — e isso desde a época em que governava.
Muitos brasileiros são capazes de dizer que quem proclamou a Independência foi d. Pedro I, às margens do Ipiranga, pátria amada, salve-salve… Muito menos sabido é que ele foi botado pra fora do Brasil pela mesma elite que o tinha chamado de Imperador, nove anos depois. Voltou para sua terra de origem, desmoralizado e vilanizado por quase todas as tendências políticas, restando apenas seus mais fiéis pedrominions (chamava-se “restaurador” ou “corcunda”, na época) tentando restaurá-lo. É também graças a isso que não restou muito da tentativa de construir sua memória heróica. Observe que mesmo os saudosistas da monarquia preferem o filho do que o pai. D. Pedro I deixou a heroicidade em 1831, quando foi chutado, e o que veio depois foi cada vez mais farsesco.
Por que ele, então? Minha explicação é que Pedro é celebrado não pelo que foi, mas pelo que encobre: a história de um país fundado e meio a revoluções e guerras civis, tendo a imensa maioria afroindígena da população um papel destacado em todas as esferas da vida, incluindo a política.
A colonização e o Brasil-mercadoria
Se o Brasil não vem de um coração cafajeste, de onde o Brasil vem afinal?
Antes de mais nada, brasil era uma planta – mas não qualquer planta. Nosso país compartilha com a Costa do Marfim (assim batizada por um navegador português) e a Argentina (derivado de prata, em latim) a relação entre o nome do país e uma mercadoria explorada por europeus no século XVI. Nesses primeiros tempos de violência colonial, houve diversas denominações europeias para esta parte do mundo – Terra de Santa Cruz, Terra dos Papagaios, dentre outras -, acabando por consolidar-se aquela que remete ao que de mais lucrativo os primeiros colonizadores exploraram.
A função do pau-brasil na economia dos colonizadores era a produção de tecidos vermelhos, cor distintiva das vestimentas e acessórios da nobreza, tanto em Portugal quanto em outros países europeus. Cortado e embarcado por indígenas do litoral, a princípio a troco de escambo e rapidamente sob a violência da escravização, o pau-brasil tinha como destino não apenas o porto de Lisboa, mas também os de outras cidades europeias. Rasphuis, em Amsterdam, foi um dos locais de transformação do pau-brasil em tinta. Trata-se de uma instituição prisional para jovens infratores pioneira no continente europeu, em especial por inaugurar a pena de trabalhos forçados. Neste caso, o trabalho de beneficiar pau-brasil. Aberta em 1596, a prisão holandesa funcionou até 1815 e serviu de modelo para diversas outras.
Portanto, ao contrário do que se anda falando por aí, o Brasil não nasceu do atraso, e sim do que de mais moderno a economia capitalista europeia vinha produzindo ao longo de séculos de colonização, tanto em termos tecnológicos, quanto no que diz respeito às formas de explorar o trabalho. Os europeus tinham acabado de inventar a escravidão moderna, baseada na racialização de povos de outros continentes, quando Rasphuis levou o progresso e a inovação – e não o atraso e o arcaísmo – para o centro do continente branco.
Não foi só com o pau-brasil. Durante o século XVII, os engenhos do nordeste brasileiro estavam entre os artefatos tecnológicos mais complexos e inovadores conhecidos pelo mundo europeu. Seus consumidores eram endinheirados brancos, que foram descobrindo o prazer de consumir não apenas o açúcar, nas também o tabaco, o cacau, o café, o chá, dentre outras mercadorias coloniais. Foram esses beneficiários do colonialismo que, de seu lugar de observação e consumo do resto do mundo, elaboraram ideias como a de que existem sociedades mais ou menos atrasadas com relação ao progresso da humanidade. Eles, é claro, representavam o progresso. Por sua vez, as pessoas que produziam seu café representavam o atraso.
A mentira por trás disso é a de que os brancos europeus foram os criadores intelectuais e guias morais do mundo moderno e dito civilizado, enquanto as populações racializadas de outros continentes participaram desta construção apenas na condição de braços e pernas a serviço de seus senhores iluminados. Pelo contrário, tecnologias como a dos engenhos de açúcar foram desenvolvidas por sucessivas apropriações de saberes de povos invadidos e escravizados, além do aprimoramento cotidiano feito por cativos e administradores, bem longe da Europa. No caso do ouro, a grande mercadoria explorada no Brasil no século XVIII, trata-se de saberes de povos centro-africanos que já praticavam a mineração há séculos, além de saberes indígenas sobre o solo que habitavam, seus caminhos e suas paisagens. Exemplos dessas apropriações não faltam, incluindo as armas e táticas de guerra, que uma vez apropriadas pelos brancos serviam para a dominação de outros povos. O apagamento dos povos não-europeus na história do mundo moderno atinge terrenos que vão da agricultura às artes, da medicina à política.
A Independência e o Brasil como invenção política
Falemos, pois, dos apagamentos na história política, afinal a Independência do Brasil foi, acima de tudo, um conflito entre projetos políticos. No período de formação do Brasil, entre 1550 e 1850, de cada 100 indivíduos que ingressaram no país, 14 eram brancos europeus, 86 eram negros africanos. Na época da Independência, pelo menos 7 em cada 10 brasileiros eram racializados em categorias diversas: “pretos”, “mulatos”, “pardos”, “caboclos”, “índios”, etc. No entanto, duzentos anos depois, a história da Independência segue tratando a imensa maioria da população como elementos da paisagem, ou como braços para a lavoura. A extrema desigualdade nas relações de poder numa sociedade escravista, além de produzir todo tipo de barbárie, também permitiu sucessivos apagamentos que fazem com que livros que contam a história da Independência continuem mostrando, em 2022, uma monótona sequência de personagens brancos da elite como fundadores do Brasil.
Esses apagamentos continuam não por herança, mas porque as forças do colonialismo e do escravismo seguiram atuantes após a Independência, e seguem até hoje. A colonização não foi apenas uma violência de europeus contra não-europeus. Do lado de cá do Atlântico, onde a expectativa de vida dos negros era de 19 anos, formaram-se elites brancas poderosíssimas em torno de núcleos coloniais como Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Senhores com terras maiores que reinos, famílias servidas por tantos escravos domésticos que poderiam fazer inveja a nobres da Europa. Ainda que a colonização canalizasse boa parte de seus lucros para a Europa, séculos de espoliação local firmaram o poder e a riqueza dessas famílias, a exemplo dos ancestrais de um recém-aposentado político brasileiro, filho de deputado, bisneto de prefeito e tataraneto de senhores de engenho e traficantes de escravos. Assim como muitos outros membros de nossa elite colonial contemporânea, ele jura que enriqueceu com seu próprio trabalho — com a mesma cara de pau com que subia em palanques eleitorais para dizer que não é político.
Mas deixando de lado a árvore genealógica dos Dória, o que importa notar é que, na época da Independência, a máquina de moer gente do colonialismo estava a todo vapor, com o tráfico de pessoas negras escravizadas batendo recordes históricos ano após ano. Ao se estabelecer no Rio de Janeiro, a Corte de João VI construiu na cidade aquele que se tornaria o maior porto escravista do mundo, o Cais do Valongo, cujas ruínas foram descobertas recentemente. Estima-se que, entre 1811 e 1831, 800 mil pessoas desembarcaram no Valongo para serem escravizadas no sudeste brasileiro. Isso num tempo em que a população do Rio de Janeiro era de cerca de 100 mil habitantes.
Ao mesmo tempo, não muito distante do Valongo, na região serrana de Petrópolis e Nova Friburgo, a Corte portuguesa estabeleceu na década de 1810 colônias de alemães e suíços para que a família real e seu séquito não só respirassem os “ares europeus” das montanhas, mas também desfrutassem de uma paisagem social branca. Para se estabelecerem, esses colonos combateram e derrotaram quilombolas, resolvendo duas demandas da Corte de uma só vez. Algo semelhante ocorreu no espaço urbano do Rio de Janeiro, que se tornou muito mais segregador com relação aos negros após 1808, graças à criação da polícia, que tinha como primeira função, em seus estatutos, impedir a reunião de “pretos”, fossem eles escravizados ou libertos. A simultaneidade entre o aumento do tráfico de pessoas escravizadas e a europeização dos espaços de interação social das elites demonstra que o projeto dessas elites era se imaginar na Europa sendo sustentados pela exploração brutal dos africanos e afrodescendentes.
Para a imensa maioria dos líderes brancos e proprietários da Independência do Brasil, a escravidão não era apenas herança do passado, mas projeto de futuro e garantia da grandeza e do progresso do Brasil. Figuras como José Bonifácio de Andrada e Silva, que em 1823 defendeu um projeto de nação que aboliria gradualmente a escravidão, foram excepcionais e tiveram seus planos frustrados. Além disso, importa destacar que a existência de projetos de abolição elaborado por lideranças como ele se deve principalmente ao temor de desintegração nacional por uma rebelião escrava ou por conflitos envolvendo a exigência de igualdade civil por parte da população negra livre e liberta. Na época da Independência, este temor tinha nome: Revolução de São Domingos.
A Revolução no Brasil: o que não deve ser dito
Principal colônia escravista francesa, a ilha de São Domingos foi palco do segundo movimento de Independência a atingir a vitória no continente americano, dando origem ao Haiti. A primeira independência tinha ocorrido nas Treze Colônias inglesas da América do Norte, que se rebelaram em 1776 contra tributos e decretos repressivos criados pelo rei da Inglaterra. Porém, enquanto os Estados Unidos da América foram fundados por colonos brancos que não tinham a menor pretensão de estender qualquer direito às populações negras e indígenas, o Haiti colocou em todas as principais posições de poder pessoas que tinham vivido como cativas e que conquistaram a liberdade ao longo de uma série de guerras brutais contra colonizadores franceses, espanhóis e ingleses que ao longo de décadas tentaram reescravizar sua população.
O impacto global da Revolução de São Domingos tem sofrido um apagamento que diz respeito à história global, e não apenas do Brasil. Debates sobre a origem da democracia e dos ideais de igualdade no chamado “Ocidente” ignoram completamente uma experiência revolucionária que impactou os rumos da história mundial, no mínimo, tanto quanto a Revolução Francesa. Apenas para ilustrar uma afirmativa tão chocante a ouvidos acostumados à ladainha colonizadora, o Haiti deu início a processos de abolição da escravidão que, em um século, extinguiram este regime em todo o continente americano, acabando também com o tráfico de pessoas escravizadas que os europeus haviam estabelecido na costa da África.
Como demonstra o historiador Marco Morel, no livro “A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito”, os eventos de São Domingos foram debatidos no Brasil da época da Independência tanto entre as elites, que viam neles uma ameaça, quanto entre a população racializada, que via neles uma esperança.
“Haiti é um farol elevado sobre as Antilhas, em direção ao qual os escravos e seus senhores, os oprimidos e opressores voltam seus olhares, aqueles suspirando, estes rugindo”, dizia em 1824 o Abade Grégoire, iluminista e revolucionário francês, que defendeu a Revolução Haitiana ao longo de toda sua trajetória.
Antes que o leitor me acuse de “identitarismo”, deixe-me mencionar uma autoridade de prestígio. Muito admirado até os dias de hoje, verdadeiro ídolo da sofisticação da filosofia política universal (portanto, obviamente, um europeu branco), Hegel construiu suas interpretações sobre a dialética na história enquanto devorava notícias sobre a Revolução de São Domingos. Fortemente impactado por essa experiência histórica, fez da escravidão uma metáfora política mais complexa do que as metáforas feitas pelos brancos europeus que o antecederam. Ele pôde fazê-lo porque, de maneira completamente inesperada viu cativos vencerem seus senhores e tomarem o poder na maior colônia francesa da América, que contraditoriamente haviam se apropriado das possibilidades abertas por ideais “europeus” de liberdade difundidos pela Revolução Francesa. Coloco “europeus” entre aspas porque esses ideais de liberdade também eram fruto da experiência colonial. Antes da dialética hegeliana, o ícone filosófico da Europa era Rousseau, aquele mesmo, do “bom selvagem” inspirado em leituras sobre as sociedades indígenas das Américas.
Se nem as ideias políticas iluministas europeias da época da Independência eram realmente europeias, imagine as guerras em torno dessas ideias num país de imensa maioria afroindígena. Sim, porque a Independência do Brasil foi uma guerra, lutada por cerca de 60 mil combatentes em quase todas as regiões do país, ao longo de dois anos. Uma guerra seguida por outras, algumas delas maiores ainda, como a Cabanagem, que matou um quarto da população da Amazônia. O mito de uma Independência pacífica, liderada pelo príncipe, nas margens plácidas do Ipiranga, é uma farsa que encobre, por exemplo, a imensa participação negra durante a guerra de Independência na Bahia. Porém, como a história é sempre disputa, na Bahia a festa de Dois de Julho nunca deixou que esta memória fosse apagada.
O Haiti foi um evento universal: senhores rugiam, cativos suspiravam, Hegel filosofava. Não foi diferente no Brasil. Em 1805, apenas um ano após a Independência do Haiti, diz uma autoridade policial do Rio de Janeiro que
“O Ouvidor do Crime mandara arrancar dos peitos de alguns cabras e crioulos forros, o retrato de Dessalines, Imperador da Ilha dos Negros da Ilha de São Domingos. E o que é mais notável era que estes mesmos negros estavam empregados nas tropas de Milícia do Rio de Janeiro, onde manobravam habilmente a artilharia.”
Repare que é 1805, antes da vinda da Corte, antes da Revolução Liberal, antes que as “ideias iluministas europeias” se popularizassem no país. Desde então, exemplos não faltam, em diferentes regiões. Numa revolta baiana em 1814, registrou-se o grito dado pelos rebeldes: “Liberdade! Viva os negros e seu rei!”. Na Revolução Pernambucana de 1817, negros livres foram acusados de expressar admiração “pela forma de vida dos rebeldes de São Domingos” e seu “desejo de ver o Brasil como São Domingos”. Por volta de 1824, em Segipe, o advogado negro Antonio Pereira Rebouças “foi acusado de possuir pelo menos dois livros sobre a história de Saint-Domingue, e por ter participado de uma reunião anti-portuguesa em que proferiram discursos luvando o “Rei do Haiti” e o “Grande São Domingos”
No caso da República Pernambucana de 1817, a influência do Haiti sobre lideranças negras foi imenso e a borracha usada para apagá-la tem estado nas mãos de memorialistas e historiadores acadêmicos de geração em geração. Como aponta o historiador Luiz Geraldo Silva, foram afrodescendentes que elaboraram o estandarte da revolução, as bandeiras dos novos regimentos militares e até mesmo a roupa dos futuros embaixadores da nascente república. Quando Recife foi tomada pelos revolucionários, o líder militar era Pedro da Silva Pedroso, um homem racializado como “pardo”, que se inspirava na experiência haitiana. Numa das reuniões em que foi debatido qual seria o regime político de Pernambuco após a Revolução, Pedroso ameaçou matar quem se opusesse à República, pois via nela um caminho mais promissor para a igualdade civil entre pessoas de diferentes cores. Ninguém ousou propor de novo a monarquia por ali.
A reivindicação de igualdade civil não foi exclusivamente pernambucana, mas lá ela gerou uma tradição revolucionária que persistiu. Em 1824, o líder negro pernambucano Emiliando Mundurucu distribuiu uma quadrinha para animar suas tropas na tentativa de massacrar os portugueses residentes na cidade. Como se percebe, seus sonhos não eram europeus:
“Qual eu imito Cristóvão
Esse Imortal Haitiano
Eia! Imitai ao seu povo,
Ó meu Povo soberano”
O Cristóvão do verso era Henri Cristophe, rei do Haiti. Nascido na condição de escravo em 1767, na colônia inglesa de Granada, no Caribe, ele foi libertado aos 12 anos de idade, quando tropas francesas invadiram a ilha e recrutaram jovens negros para integrarem um Batalhão de Voluntários que lutou ao lado dos colonos brancos dos Estados Unidos em sua guerra para se separar da Inglaterra. Após combater nesta que foi a primeira guerra de Independência das Américas, ele foi reescravizado e levado para a ilha de São Domingos, a mais importante colônia francesa, onde trabalhou servindo hóspedes num hotel. Na década de 1790, tornou-se um dos principais líderes da maior insurreição escrava da história das Américas, deixando a condição de escravizado para se tornar um dos generais de Toussaint L’Ouverture. Em 1811, se tornou “o primeiro monarca coroado do Novo Mundo”, como afirmava com orgulho. Nada mais distante das biografia de d. Pedro I, legítimo herdeiro da coroa da metrópole, cujo drama pessoal é ter crescido longe dos pais, cercado de criados lhe servido.
Emiliando Mundurucu, o autor a quadrinha para Henri Cristophe, não só suspirou pelo Haiti, como também imitou o Imortal Haitiano numa longa e coerente trajetória de luta política antirracista em diversos países. Após a derrota da Confederação do Equador, en 1824, teve que fugir do país para não ser condenado e morto pela repressão. Lutou na Grã-Colômbia, não como simples soldado, mas como comandante de tropas pró-Independência. Perseguido por Bolívar, desta vez acusado de defender uma “pardocracia”, teve novamente que se exilar. Viveu então no Haiti e, por, fim, se estabeleceu nos Estados Unidos, onde nos anos 1830 foi o primeiro indivíduo da história daquele país a processar uma empresa por praticar segregação racial. Mundurucu também se tornou um importante membro do movimento abolicionista por lá e morreu em 1863, ano da Abolição nos Estados Unidos, que ele teve tempo de celebrar.
Mundurucu chegou a tentar se restabelecer em Recife, após a queda de d. Pedro I, quando o ambiente político ficou mais favorável. Acabou desistindo e voltando para os Estados Unidos, país que segregava abertamente a população de sua cor, mas onde ele se sentia menos perseguido do que no Brasil pós-Independência.
Rumo ao Bicentenário da Independência — em 2023.
Em alguma medida, a simbologia do coração tem sentido. Ao contrário da República Pernambucana, que acabou derrotada, o Brasil imperial de fato nasceu em corações europeus. A bandeira foi desenhada por um francês, assim como a coroa do imperador, os uniformes militares, etc. O hino foi composto, em sua primeira versão, por um músico português e, em sua segunda versão, pelo próprio d. Pedro I, líder da independência do Brasil, mas, vejam só, português.
Não parou por aí. A primeira proposta de escrita de história do Brasil foi elaborada por um alemão. As cores do Brasil, verde e amarelo, simbolizam duas dinastias europeias que, mesmo depois da Independência do Brasil, nunca aceitaram se misturar com “sangue brasileiro”. Pedro I casou-se duas vezes com princesas europeias, Pedro II casou-se com uma princesa europeia, a princesa Izabel casou-se com um príncipe europeu, e assim seguiria a família imperial se ela não tivesse acabado. Basta ver as posições sobre o racismo vindas dos descendentes Orleans e Bragança, aqueles que se acreditam príncipes.
Assim, num extremo oposto do caso haitiano, o Brasil independente reafirmou os valores do colonialismo e do domínio europeu. Além de ser um elogio da colonização portuguesa, a história construída desde então apagou as dissonâncias e os conflitos, afirmando que tudo aconteceu porque o príncipe quis. A formação do Haiti foi o oposto, e é por isso que desde o século XIX este país, crucial para a origem das ideias modernas sobre a democracia e a liberdade, foi isolado, combatido e difamado, como tem sido até hoje pelo supremacismo branco. Seu crime foi negar o colonialismo e dar início, em 1793, ao século das Abolições, encerrado vergonhosamente pelo Brasil em 1888.
A narrativa farsesca do 7 de setembro de fato conta a história de um país surgido dentro daquele coração inchado e desbotado que o governo ativamente colonialista (e não simplesmente colonizado) decidiu trazer da Europa. Que em 2 de julho de 2023 celebremos o bicentenário da Independência do Brasil numa data menos inchada, menos desbotada e menos embebida em formol. A data da derrota dos portugueses no maior front da guerra, vencido por guerrilheiros urbanos que se escondiam entre escarpas e barrancos diz muito mais sobre quem se sacrificou pela fundação do Brasil do que o piti de um príncipe que poucos ouviram para além das margens do Ipiranga, pátria amada, salve salve….
*André Godinho é historiador e membro do coletivo História da Disputa.
A luta pela Amazônia também é urbana: ativistas se espalham nos bairros e periferias de Manaus para demandar justiça climática
Por Alicia Lobato
Na semana em que se comemora o Dia da Amazônia, a repórter Alicia Lobato conta um pouco sobre como é ser uma ativista climática na zona urbana de Manaus. Segundo o que ela encontrou entrevistando ativistas que atuam nas periferias locais, a mobilização pelo clima em Manaus ainda está muito atrelada à agenda nacional – mas o trabalho segue firme para que as periferias também compreendam que os problemas da Amazônia também afetam o dia a dia de quem vive na cidade.
Andar por Manaus é sentir que a distância da floresta foi imposta na cidade para se fazer acreditar que a Amazônia não é aqui. Quem mora em Manaus se sente morando de costas para a floresta, já que a capital do estado do Amazonas vive em meio a uma política que busca o desenvolvimento passando por cima de toda e qualquer questão socioambiental. Em um cenário de insegurança para ativistas e organizações do terceiro setor, coletivos e ambientalistas se mobilizam do jeito que podem para continuar levantando bandeiras de luta, para seguir buscando alertar a sociedade para os graves problemas ambientais que têm ocorrido no estado.
Segundo dados disponibilizados pelo Deter, programa de monitoramento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o mês de junho contou com o maior valor de áreas com alerta de desmatamento na Amazônia Legal desde 2016. Números como esse têm se tornado frequentes e, apesar de parecer que quem vive na capital não é atingido pelo desmatamento e por outros problemas que atingem a floresta, movimentos ambientalistas querem mostrar que as mudanças climáticas pegam em cheio a população em geral.
Afinal, além dos povos da floresta, a crise climática também chega nos centros urbanos podendo ser observada com a cheia intensa do Rio Negro, com o calor acima do normal e com a conta de luz mais cara.
Marrye Amorim reclama da solidão e cansaço do trabalho ativista em Manaus l Foto: Arquivo Pessoal
Por um ativismo que atua localmente
Um trabalho cansativo. É assim que a ativista socioambiental Marrye Amorim, especialista em mobilização e coordenadora de engajamento na Sea Shepherd Brasil, resume o que é ser ativista em Manaus. Ela conta que mesmo com a presença de outras organizações que estão realizando um trabalho com várias frentes, a principal dificuldade é a comunicação e o fortalecimento de uma rede ativista.
“Tentamos fazer um trabalho que não deveríamos estar fazendo, mas seguimos. Vamos reivindicando, reclamando e identificando problemas em várias frentes. Mas é revoltante e solitário” explica Marrye.
Apesar de solitário, ativistas têm encontrado formas de continuar falando de temas ambientais na capital, mesmo que individualmente e sem a visibilidade da grande mídia. O ativismo climático ganha destaque principalmente por ações de base. Por pessoas que têm tentado mudar a realidade do seu próprio bairro e entorno. Ativistas cada vez mais querem debater o tema Amazônia nos bairros periféricos da capital
Dentre as estratégias utilizadas para propor essas pautas, estão lambes, grafites e materiais visuais. O “ativismo de base” tem sido o principal objetivo de Jander Manauara, rapper e idealizador de projetos como o coletivo “Orígenes” que realiza um trabalho de articulação cultural na cidade. Uma das ações recentes do grupo foi o festival “Grito de Rua”, que organizou atividades no dia do Meio Ambiente, em maio, em um bairro periférico da capital e contou com a presença de vários movimentos sociais que falaram sobre os problemas socioambientais da cidade para crianças e adultos.
“Entender que temos problemas é importante, mas também compreender que com a arte e a educação conseguimos transformar muita coisa é essencial”, afirma Jander, que considera o ato de levar um dia de atividades para crianças como algo inovador.
O artista, que começou a ter visibilidade por conta do rap, conta que foi percebendo os problemas do seu bairro e assim foi se envolvendo cada vez mais com a comunidade. Para ele, ser ativista é estudar essas pautas locais e impulsionar transformações locais.
“Precisamos entender o que envolve a cidade de Manaus tendo o território como campo de estudo para conseguir parcerias e assim mobilizar nossas ferramentas em aliança com outros coletivos. Isso passa por entender que essas lideranças locais são importantes para fomentar a mudança desde a base”, diz.
O rapper Jander Manaura (no topo, de branco) acredita no poder da arte e da cultura para fazer comunicação socioambiental l Foto: Arquivo Pessoal
Ativistas nas cidades também sofrem com ameaças
Depois dos casos recentes de violência contra ambientalistas, como as mortes do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, este ano na região do Vale do Javari no estado do Amazonas, a segurança tem sido cada vez mais tema de reflexão entre ativistas ambientais. Para Marrye, o ativista de base por não estar conectado nas mídias sociais, não consegue ter visibilidade e consequentemente uma valorização do seu trabalho, e complementa, “eu acredito que essa visibilidade vem infelizmente com uma carga muito negativa. As pessoas que estão fazendo um trabalho muito forte, acabam sofrendo ameaças e agressões”.
Valéria Melissa, voluntária e articuladora do núcleo local de Manaus da organização Engajamundo, conta que tem tomado cuidado nos espaços que frequenta, se a sua pauta faz sentido para aquele público e se é um bom momento para começar um diálogo, sempre pensando se aquele lugar é seguro:
“Ser ativista sempre foi muito perigoso, independente da onde você esteja inserido e qual seja o seu contexto social, quando você decide ser um ativista socioambiental, pelos direitos humanos, climáticos, seja qual for sua pauta você sempre vai se sentir encurralado a respeito de como se posicionar, de como dialogar sobre aquilo que você acredita”, explica.
No entanto, se ser ativista no Brasil sempre foi perigoso, agora os casos de assassinatos têm aumentado a cada ano, mas nem todos são expostos pela mídia. Por isso a importância de uma rede de ativismo fortalecida para que consiga fortalecer a segurança entre os movimentos.
Valéria acredita que mesmo o tema Amazônia sendo amplamente discutido, pela primeira vez as pessoas estão começando a notar a importância do debate, mas quando se fala em Amazônia são poucas as vezes que ativistas da região ganham espaço para falar sobre seus trabalhos.
“Eu sinto que falta ativistas do norte falando do lugar da onde eles vem, porque a Amazônia, ela é discutida em grandes centros urbanos. Nós vemos esse diálogo ser muito ativo em São Paulo, Rio de Janeiro, mas eu sinto que ativistas locais ainda não são levados tanto em consideração”, pondera.
Para Jander, apesar de Manaus ser uma cidade acolhedora, ao mesmo tempo ocorre uma segregação onde é difícil fazer um ativismo sozinho, até mesmo por conta da segurança. “Ou você se fortalece por meio de organizações maiores ou então você sozinho vai ser um alvo. Existe muito ativismo mas são coisas bem picotadas que não conseguem se comunicar e formar uma rede maior”, lamenta o ativista.
“Precisamos despertar esse agir de forma rápida para a construção de uma sociedade com um olhar mais político”, acredita Beatriz Campelo. l Foto: Arquivo Pessoal
A resistência climática chega nas periferias
Para Beatriz Campelo, ativista do grupo de voluntários da organização Greenpeace, o momento atual pede uma soma de conhecimentos e iniciativas como uma forma de conseguir continuar na luta.
Ela analisa que mesmo com muitos falando sobre a Amazônia, a questão ambiental ainda é um assunto pouco discutido: “As discussões são dentro do âmbito internacional e nacional, mas as pessoas que sofrem diretamente com as mudanças climáticas e lutam por meio da mobilização social não ganham voz”.
Como Jander, Campelo vê nos movimentos artísticos da cidade potencial para difundir a pauta ambiental. “Uma forma que a cidade encontrou de resistir é levantando discussões sociointerculturais por meio da arte. E a arte é algo que toca, mobiliza e denuncia o silêncio e as destruições dentro do cenário atual. Precisamos despertar esse agir de forma rápida para a construção de uma sociedade com um olhar mais político”, reflete.
Marrye ressalta a importância do “trabalho de formiguinha”. “Visto que estamos em um período de negacionismo, para conversar com as pessoas, você precisa de um trabalho prévio, antes de você falar de emergência climática, justiça climática, você precisa sensibilizá-las”, diz.
Mas a ativista aponta que é essencial pensar em estratégias de cuidado e preservação para conseguir fôlego para enfrentar tantos obstáculos, violações e ameaças. “Antes de ser ativista socioambiental, eu sou uma mulher negra, eu tenho que pensar na minha resistência enquanto uma mulher negra, e me manter sã é a parte mais importante”.
Se propor a ser um agente de mudança dentro de Manaus não é fácil: é preciso de um diálogo constante e da esperança de que o ativismo vai conseguir abrir uma série de portas fechadas.
“Quando fazemos barulho de forma física isso causa muito impacto, mas uma boa forma de resistência é votar também”, diz Valéria do Engajamundo, lembrando da alta aprovação do governo do presidente atual Jair Bolsonaro na região.
Andando por Manaus é possível encontrar diversos cartazes de apoio ao governo federal. Porém Valeria tem esperança. “Pela primeira vez nós vemos lideranças indígenas tendo a voz tão forte e chegando nesses lugares”, diz, porém sem perder de vistas os desafios. “Eu sinto que eu, como ativista socioambiental, climática, dentro da minha cidade esse diálogo é mais localizado, centralizado, ele não consegue se expandir para o resto da cidade, quem dirá chegar nos grandes espaços de diálogo”, conclui.
Como sobreviver a uma abordagem policial violenta – e o que fazer depois
Por Marília Parente
São inúmeros os relatos de experiências abusivas envolvendo agentes policiais; saber como se comportar em uma situação dessas é uma maneira de proteger a própria integridade física
É crime deixar, sem justificativa, de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal l Foto: Ramiro Furquim/Sul 21
Ora medo e paralisia, ora revolta e raiva. Quem já foi vítima de uma abordagem policial inadequada costuma relatar que a reação à experiência é sempre uma surpresa. E muita gente conhece essa sensação: 49 milhões de brasileiros já relataram ter sido vítimas de uma abordagem abusiva. Saber se comportar em uma situação de tensão, contudo, é a melhor forma de evitar abusos no contato com os agentes.
Militante do Movimento Negro Unificado (MNU), o professor e enfermeiro Sandro Silva aguardava um ônibus no Terminal Integrado do Barro, na Zona Oeste do Recife, quando foi abordado por uma dupla de policiais militares.
“Começaram a me perguntar o que eu estava fazendo ali e dizendo que aquele não era meu lugar. Questionei o motivo daquilo e eles me levaram para uma sala nas dependências da estação”, lembra.
Naquela noite, Sandro foi espancado pelos policiais e por vigilantes da segurança privada do terminal. “Abriram minha mochila, jogaram todos os itens no chão e pisotearam minhas coisas, procurando por algo. Levei chutes, murros, tapas e depois fui jogado para fora da sala. Até hoje, não sei como um ser humano faz uma coisa dessas com outro”, lamenta.
Sandro conta que não conseguiu reagir à abordagem. “Para ser sincero, a gente nem pensa nisso. Eu fiquei desnorteado. Milito desde os 13 anos de idade, mas nunca achei que uma coisa dessas fosse acontecer comigo”, coloca.
A experiência traumática alterou sua rotina e seu comportamento. “Procurei uma delegacia, fiz corpo de delito e pedi ajuda da Secretaria de Direitos Humanos, que me encaminhou para psicólogos. Apesar disso, tive que mudar o caminho para o trabalho, quase desenvolvi depressão e passei um bom tempo com pânico de pessoas fardadas”, comenta.
“Uma abordagem não deve ter, de forma alguma, ameaças, xingamentos, ofensas de qualquer espécie nem tampouco qualquer tipo de agressão física”, diz Rennan Castro (OAB-PE) l Foto: AlgorithmWatch
Estado de violência
De acordo com o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil- Seccional Pernambuco (OAB-PE), Rennan Castro, uma abordagem policial deve se basear na fundada suspeita, conforme o Supremo Tribunal Federal define um comportamento que indique que a pessoa praticou ou está prestes a praticar um crime. A ação só pode ser realizada por agentes do estado, geralmente os policiais militares.
“Uma abordagem não deve ter, de forma alguma, ameaças, xingamentos, ofensas de qualquer espécie nem tampouco qualquer tipo de agressão física”, explica.
Castro orienta que, em caso de revista abusiva, a população evite acionar corregedoria de polícia sem a assistência de especialistas.
“Melhor procurar organização da sociedade civil que tenha estrutura para acolher essas denúncias. Como práticas milicianas são infelizmente realidade no país, não é seguro apresentar denúncia à corregedoria sem a devida retaguarda de organizações com acúmulo na área de segurança pública”, explica.
O advogado ressalta que a própria OAB conta com plantões da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, que podem ser procurados pela população em caso de violações de direitos. “Basta ligar e pedir para falar com a Secretaria das comissões”, completa.
Mantenha a tranquilidade (e as mãos visíveis)
Segundo a Defensoria Pública do Estado Bahia (DP-BA), manter a tranquilidade e acatar às ordens do policial durante a abordagem é fundamental, ainda que a pessoa não tenha cometido nenhum delito ou considere que não há razão para a abordagem. Também é importante manter as mãos visíveis e evitar fazer movimentos bruscos, tocar o policial ou utilizar termos agressivos.
“Não discuta, não insulte e também não ameace apresentar queixa contra a(o) policial. Quaisquer irregularidades ou abusos, tendo em vista a sua própria integridade física, devem ser denunciados e apurados pelos órgãos oficiais (ouvidorias, corregedorias, Ministério Público, Defensoria Pública) no momento posterior mais conveniente”, recomenda o órgão.
Caso não esteja com os documentos de identificação em mãos, não entre em desespero. Deixar de portá-los não é crime, mas se recusar a identificar-se constitui contravenção penal.
“Se estiver sem documentos, procure se identificar de forma clara. Se lembrar, diga o número de seu RG ou CPF ou quaisquer outros dados que auxiliem a sua identificação”, diz a DP-BA.
Por outro lado, segundo o Art. 5° da Constituição Federal, todo policial em exercício deve possuir sua identificação gravada de maneira visível na parte frontal da farda, estando impedido de utilizar meios para escondê-la.
“Qualquer pessoa que seja abordada possui o direito de saber o motivo e o nome da(o) policial (inclusive o civil) e da(o) guarda que está realizando a abordagem ou a condução. É bom lembrar que deixar de se identificar ou se identificar falsamente ao preso na ocasião da sua prisão é crime (artigo 16 da Lei 13.869/2019 – Lei de Abuso da Autoridade)”, explica a DP-BA.
O órgão também elucida que a diversidade humana deve ser considerada durante a atividade policial. Assim, não é considerado ilegal ou discriminatório adotar medidas especiais para grupos sociais como mulheres, pessoas idosas, pessoas em situação de rua, adolescentes, entre outros. Pescadores e marisqueiras, por exemplo, não costumam portar seus documentos pessoais, em razão da atividade que exercem.
“Também é sabido que pessoas em situação de rua, constantemente, perdem seus documentos, circunstância que não é suficiente para configurar uma situação ilícita. Estar em situação de rua não é crime e não fundamenta por si só a revista pessoal. Nenhuma pessoa deve ser levada por policiais ou ser tratada como criminosa pelo fato de estar dormindo nas ruas. O direito de ir e vir abrange também o de estar ou ficar onde quiser estar”, orienta a DP-BA.
Segundo o Art. 249 do Código de Processo Penal, a busca em mulheres só poderá ser executada por outras mulheres. Já homens e mulheres trans, frisa a Defensoria Pública, deverão ser consultados sobre a forma de tratamento mais adequada durante uma revista ou busca pessoal.
“As pessoas trans que ainda não possuem os nomes adequados nos documentos geralmente utilizam nome social de acordo com o seu gênero, que deve ser respeitado e utilizado para se referir a elas durante todo o processo, evitando expor publicamente o nome de registro para evitar constrangimentos. Nestes casos, é importante ainda que seja assegurada a utilização de adequado pronome de tratamento”, orienta o órgão.
Jovens revindicam punição a torturadores da ditadura l Foto: Mídia Ninja
Racismo policial
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) divulgada em fevereiro deste ano aponta que 63% das pessoas abordadas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro são negras. Os locais em que elas são mais abordadas são na rua e na praia (68%), em vans ou kombis (74%), nos carros de aplicativos (72%), andando de moto (68%) e no transporte público (71%).
Foi justamente em um ônibus, que trafegava por Olinda, em Pernambuco, que o sociólogo Adeildo Araújo sentiu na pele o racismo policial.
“Eu estava dormindo e acordei com um forte tapa no peito por um policial. Depois, ele foi dando ordem para eu levantar os braços e virar de costas. De todas as pessoas do ônibus, apenas eu fui abordado”, comenta.
A ação policial causou indignação entre os demais passageiros, o que deu a Adeildo mais confiança para protestar.
“Não aceitei a abordagem e solicitei que minha bolsa fosse revistada por outro policial, informando que essa não era a maneira de abordar um cidadão. Uma discussão começou e eles acabaram descendo do ônibus”, relata.
Após o incidente, Adeildo chegou a registrar denúncia na corregedoria de polícia, mas nunca teve retorno.
“Quando você é pego de surpresa não é nada fácil lidar com o racismo. Se não fosse minha formação política antirracista, esse episódio poderia ter deixado sequelas profundas em minha vida. É tão chocante que nunca esperamos que acoteça conosco”, conclui.
Para o pesquisador do CESeC e coordenador do levantamento Elemento Suspeito, Pedro Paulo da Silva, traços da cultura negra costumam ser percebidos como suspeitos pelos policiais.
“Junto ao levantamento estatístico, também realizamos grupos focais com policiais militares. Quando perguntamos o que era um elemento suspeito, para eles, era o menino de cabelo amarelo, na régua, cheio de pintas. Então a gente vê que os policiais percebem o elemento suspeito a partir da estética favelada”, explica.
Quando a polícia comete um crime?
Ainda que esteja exercendo sua função de controle social, o policial ou guarda municipal pode cometer crimes durante uma abordagem. Caso identifique algum dos comportamentos abaixo, não deixe de registrar a ocorrência em delegacia ou corregedoria da instituição ligada ao profissional de segurança pública:
Crime de turtura
O policial não pode ameaçar, bater ou praticar quaisquer atividades de tortura para forçar alguém a confessar um crime. Isso inclui processos de inquirição nas dependências de delegacias.
Crime de injúria
Durante a abordagem, o policial não pode xingar o cidadão de “Ladrão”, “vagabundo”, “noia”, “moleque”, dentre outras ofensas. Tal conduta constitui crime de injúria e pode ser considerada abuso de autoridade.
O agente do estado também não pode se referir de forma ofensiva contra familiares de pessoas suspeitas de crimes nem familiares de pessoas presas. A vítima de crime de injúria pode ingressar com ação penal e indenizatória.
Crime de injúria racial
O policial também não está autorizado a ofender alguém com base em raça, cor, etnia, religião ou origem. Neste caso, a pena pelo crime de injúria é mais grave.
Abuso de autoridade (Lei 13.869 de 2019)
É crime deixar, sem justificativa, de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal, bem como não comunicar, imediatamente, a prisão de um cidadão e o local em que se encontra detida a seus familiares ou pessoa por ele indicada. O policial também comete um delito se não entregar à pessoa presa, dentro de 24 horas, a nota de culpa assinada pela autoridade responsável, o motivo da prisão e os nomes das testemunhas.
O policial não pode constranger a pessoa presa ou detenta, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a exemplo de expor seu corpo ou parte dele à curiosidade pública e submetê-la a situação vexatória não prevista em lei. Constitui ainda abuso de autoridade submeter, sem consentimento, a pessoa presa a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito, assim como impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada da pessoa presa com sua advogada(o).
Pessoas de diferentes sexos devem ser, necessariamente, mantidas presas em diferentes celas. Vale ressaltar que a pessoa trans deve cumprir sua detenção em espaço de confinamento condizente com a identidade de gênero com que se identifica.
Violação domiciliar
É crime invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, o imóvel alheio e suas dependências. Para entrar na casa de alguém, o agente de segurança precisa estar munido de determinação judicial ou contar com a autorização de seus ocupantes.
Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento
O funcionário público pode ser preso por extravio, sonegação ou inutilização por de qualquer documento que está em seu poder em razão do seu cargo, a exemplo de RG e CNH obtidos após uma blitz. De acordo com o Art. 314 do Código Penal, o cometimento do delito pode acarretar em pena de reclusão de um a quatro anos.
Corrupção passiva
Trata-se da solicitação, recebimento ou promessa de vantagem indevida praticada pelo agente público em razão de sua função. Segundo o Art. 317 do Código Penal, a pena para o delito é de reclusão de dois a 12 anos e multa.
Ativistas protestam em aniversário dos bombardeios atômicos por não-proliferação nuclear
Por Sara Herschander, para o Waging Nonviolence
No 77º aniversário dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, japoneses realizaram protestos criativos, vigílias e ações diretas demandando a eliminação das armas nucleares.
“Nagasaki nunca mais!”, disse Takashi Miyata, um sobrevivente da bomba nuclear. l Foto: Otosection/Reprodução
Lutadores e lutadoras anti-nucleares em todo o mundo marcaram o 77º aniversário dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki esta semana, enquanto líderes mundiais se reuniam este mês para discutir o estado do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, ou TNP.
Durante uma vigília no Parque da Paz de Nagasaki na terça-feira, o hibakusha de 82 anos – o termo japonês para sobrevivente de bombardeios atômicos – Takashi Miyata criticou a invasão russa da Ucrânia e implorou ao Japão e a outros países que trabalhassem juntos em prol da não-proliferação nuclear.
“Eu vivo estes 77 anos perseverando contra a dor”, disse Miyata. “Continuaremos a perseverar e cooperar juntos com a sociedade civil global, acreditando em um futuro brilhante, esperançoso e livre de armas nucleares”.
Miyata tinha cinco anos de idade quando os EUA lançaram a primeira bomba atômica sobre Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, matando cerca de 140.000 pessoas. Uma segunda bomba foi lançada sobre Nagasaki três dias depois, matando 70.000 pessoas. Ambos os bombardeios deixaram centenas de milhares de sobreviventes, muitos dos quais morreram de doenças relacionadas.
Em junho, Miyata se manifestou fora de uma reunião discutindo o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, ou TPNW, em Viena, na Áustria.
“Por favor, visite Nagasaki. Ver é acreditar”, gritou Miyata fora da reunião, usando um colete que dizia hibakusha. “Nagasaki nunca mais! Acabem com a violência na Ucrânia!”, protestou.
Os Estados Unidos e os outros oito países com armas nucleares do mundo se recusaram a assinar o tratado, o primeiro acordo juridicamente vinculativo do mundo para proibir de forma abrangente as armas nucleares. O TPNW foi adotado pela ONU no ano passado e já foi ratificado por mais de 50 países.
Em todo o mundo, os ativistas antinucleares também marcaram o aniversário dos atentados atômicos com protestos criativos, vigílias e ações diretas apelando para a eliminação das armas atômicas.
Na segunda-feira, cerca de 40 ativistas no estado de Washington, nos EUA, bloquearam o tráfego durante uma demonstração relâmpago da multidão na Base Naval Kitsap-Bangor, lar da maior concentração de ogivas nucleares nos Estados Unidos.
Enquanto isso, milhares de pessoas em todo o mundo compartilharam fotos de cegonhas de origami – os tsuru, um símbolo de paz – e postaram mensagens antinucleares nas mídias sociais.
Em Nova York, no segundo dia do mês de revisão do TNP nas Nações Unidas, cerca de 200 manifestantes antiguerra marcharam para a missão dos Estados Unidos, onde realizaram um protesto contra a proliferação nuclear.
Dentro da conferência, o Secretário Geral da ONU. António Guterres emitiu um alerta sobre os riscos da proliferação nuclear em meio à invasão russa da Ucrânia — que alimentou novos temores sobre a possibilidade de uma guerra nuclear.
“Temos tido uma sorte extraordinária até agora”, disse Guterres. “Mas, a sorte não é uma estratégia. Nem é um escudo contra tensões geopolíticas que se transformam em conflito nuclear”.
“Hoje, a humanidade está a apenas um mal-entendido, um erro de cálculo, da aniquilação nuclear”. disse.
Os críticos do tratado, incluindo aqueles reunidos fora da conferência, observaram que desde sua implementação em 1970, o número de países com armas nucleares ainda aumentou de cinco para nove, e o desarmamento total continua muito fora do alcance.
Embora o TNP tenha sido amplamente bem-sucedido na redução dos arsenais nucleares de seus picos durante a Guerra Fria, as tensões entre os Estados nucleares mais poderosos do mundo continuam altas.
“Queremos perturbar a diplomacia nuclear”, disse Ed Hedemann da Liga Resistente à Guerra, que organizou uma ação de desobediência civil que levou a 11 detenções.
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Sara Herschander é uma jornalista freelancer e produtora de áudio baseada em Nova York. Tem trabalhos publicados em The American Prospect, Documented NY, e Univision, entre outras publicações.
(Publicado originalmente em 11 de agosto de 2022 no site Waging NonViolence)
Protestos massivos dobram o governo do Panamá que adota medida contra alta dos preços
Por Sara Herschander, para o Waging Nonviolence
Após um mês de manifestações lideradas por professores, o governo anunciou medidas de controle de preços que ajudaram a mediar uma paz frágil no país
Centrais sindicais se juntaram aos protestos para demandar medidas anti-desigualdade e contra a inflação l Foto: People’s Dispatch
Os professores panamenhos voltaram à sala de aula no começo de agosto depois de uma greve de um mês que impulsionou as maiores manifestações de massa do país desde a queda do ditador Manuel Antonio Noriega em 1989.
Embora a intensidade dos protestos pelo país tenha diminuído desde que o governo do presidente Laurentino “Nito” Cortizo anunciou uma série de medidas de controle de preços em julho, as tensões permanecem altas durante as negociações entre grupos da sociedade civil e o governo. As tratativas buscam planos para enfrentar questões arraigadas na sociedade, como desigualdade, corrupção e o alto custo de vida.
“As pessoas estão nas ruas e estão cansadas de estarem com os bolsos vazios”, disse Luis Arturo Sánchez, secretário geral da associação de professores da província de Veraguas, antes de declarar uma greve por tempo indeterminado em 4 de julho.
Ele vocalizou a insatisfação de trabalhadores da construção civil, grupos indígenas e da maioria da sociedade panamenha, que estão frustrados com o aumento do preço de bens básicos como alimentos e gasolina. A frustração se transformou em unidade e eles se juntaram aos professores em manifestações por todo o país. Os ativistas ergueram barreiras em algumas das principais estradas do país, incluindo a Rodovia Pan-Americana, causando enormes bloqueios no trânsito e escassez de combustível e alimentos.
Manifestantes no Panamá também expressaram indignação por causa de um vídeo viral que mostrava legisladores do Partido Revolucionário Democrático celebrando o início da legislatura com garrafas de uísque de US$340.
“Servem-se de suas bebidas e esperam que o povo não repare”, cantavam nas ruas.
Em um esforço para acalmar a agitação, o governo negociou uma série de medidas de controle de preços com os sindicatos do país. As medidas congelaram o preço da gasolina a US$ 3,25 por galão e objetivavam também reduzir o custo de uma cesta básica de alimentos em 30%.
No entanto, o descontentamento popular é mais profundo do que aquele que vem da raiva em relação à crescente taxa de inflação no país dolarizado, que acelerou para 5,2% em junho. Apesar de alta, a taxa é pequena em comparação com a inflação global em lugares como Sri Lanka e Argentina, onde o alto custo de vida também provocou protestos nos últimos meses.
“No Panamá, por trás de cada decisão técnica, há uma decisão política para favorecer aqueles que mais ganham”, disse o economista Maribel Gordon no primeiro dia de negociações. “O nível de evasão ao imposto de renda é superior a 64%. E essa cobrança recai então sobre os trabalhadores”.
Embora o Panamá seja um dos países mais ricos da América Latina, ele tem um dos mais altos índices de desigualdade da região. Mais de um em cada cinco panamenhos vive na pobreza – e o desemprego no país está em quase 10%. A corrupção também está alta: o Panamá ocupa o 105º lugar de 180 países no Índice de Percepção da Corrupção.
Por enquanto, a Igreja Católica tem mediado as negociações entre funcionários do governo e grupos da sociedade civil, que delinearam oito prioridades para a reforma, incluindo medidas para mitigar o alto custo dos bens, financiamento da educação e transparência governamental.
“Precisamos nos congratular por termos demonstrado mais uma vez que o diálogo é o caminho para encontrar soluções”, disse José Domingo Ulloa Mendieta, arcebispo do Panamá. “Juntos, restabelecemos a paz social”.
No entanto, mesmo quando os protestos recuaram, as rodovias reabriram e os professores voltaram à sala de aula, analistas como Carlos Barsallo — ex-presidente do capítulo panamenho da Transparência Internacional — expressaram ceticismo quanto ao potencial de mudança real.
Em entrevista à EFE, Barsallo disse que imagina que as negociações irão “apagar o fogo temporariamente” e que a crise provavelmente “se repetirá se os problemas mais profundos não forem resolvidos”.
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Sara Herschander é uma jornalista freelancer e produtora de áudio baseada em Nova York. Tem trabalhos publicados em The American Prospect, Documented NY, e Univision, entre outras publicações.
(Publicado originalmente em 5 de agosto de 2022 no site Waging NonViolence)
Comunicar para mobilizar: 10 passos rápidos para comunicar seu projeto ou campanha
Muita tecnologia para pouco futebol
A colunista Luh Ferreira mostra como a camisa azul da seleção, o VAR e novas ferramentas de vigilância tem mais em comum do que poderíamos supor à primeira vista
A camisa reserva da seleção brasileira de futebol se esgotou em apenas dois dias após o seu lançamento no site oficial. Sim, me refiro à camisa azul.
Que tempo esquisitos hein, camaradas? Essa camisa azul nunca teve nenhum charme, quase ninguém tinha. Toda vez que alguém aparecia com essa camisa azul no jogo era uma tiração de sarro só:
— E aí vai ficar na reserva? Cadê? Não tinha a camisa verdadeira na loja, não?
Já a amarelinha guardava ainda a simbologia da sorte. Com ela nos sentíamos mais seguros para entrar em campo com a seleção.
O livro “Maracanã: quando a cidade era terreiro” (2021) de Luiz Antonio Simas nos diz:
‘A camisa da seleção brasileira de futebol – que já foi branca, é amarela e vez por outra azul – pareceu ser em outros tempos, não tão distantes um exemplo daquilo que o romeno Mircea Eliade, filósofo e mitólogo, chama de hierofonia: a percepção da existência do sagrado manifestada em um objeto material. A camisa uma vez trajada pelos deuses do gramado, parecia virar manto de santo, vestimenta de orixá, cocar de caboclo, capa de Exu, terno de malandro, roupa de marujo; estandarte de aldeia que buscou definir-se a partir das artes de drible e gol’ (p. 9)
Simas nos confirma a força de uma vestimenta, de uma indumentária histórica, que carrega consigo um povo e uma cultura. Ok, isso foi antes do 7×1, quando parece que a gente entrou em campo sem camisa, sem cabeça, sem corpo, sem Brasil… Bom, pulemos essa parte.
Para ler mais: A democracia securitária em meio à pandemia e uma nota sobre a revolta e o militantismo
O próprio Simas, o autor que nos inspira a escrever este texto, realiza toda uma investigação da história, da cultura, da geografia dos encantados que convivem e dão vida, graça à mistica futebolistica brasileira, Exu e seus compadres e comadres se fazem presente e dentro e fora de campo, algo que o mercado, o capital que se engendra em tudo quanto é espaço, busca acabar. Mas a verdade é que “sorte não se compra”, então sai pra lá marca estrangeira rica, que aqui tu não se cria!
Censura, perseguição religiosa, não combina com futebol.
Censura e perseguição religiosa não combinam com futebol.
Voltemos então para a tal da camisa azul, a mais nova queridinha dos brasileiros. Aquela azulzinha besta já era! A nova camisa reserva tem status de oficial, minha genty!! Carrega um azul vivo, mais que anil, e uma estampa de onça pintada fluorescente nas mangas, bem mais animada que a amarela que ficou com a marca d’água estampada em toda a camisa. Os patrocinadores investiram na onça como simbolo de sua luta e da garra, coisa bemmmmm necessária nos tempos atuais.
A seleção brasileira vai à campo vestida de Juma Marruá, trabalhada na réiva?!
A patrocinadora que sempre lucrou muito com as vendas de camisa, ainda mais nessa fase bozónarista, busca atingir agora o público mais progressista? O animal print fresh pode dar alguma vida, tanto à desenxabida seleção brasileira, quanto à camisa reserva.
Pois bem, falando em futebol… confesso, sempre gostei muito! De jogar e de acompanhar os campeonatos, de ir ao estádio, de assistir pela TV. Torço ou já torci muito para o time do Palmeiras (que nos últimos anos vêm fazendo bonito até…) mas a presença do VAR me afastou do futebol e da torcida. Não consigo acompanhar e nem entender porque uma coisa destas apareceu no esporte. O VAR tornou-se o verdadeiro juiz do jogo. O juiz, que sempre foi aquela pessoa com a qual todos eram obrigados a lidar, porque estava em suas mãos a definição das jogadas, e portanto para lidar com ele e suas intervenções tinha que ter a ginga, sabedoria brasileira, arte de fazer sem ter feito… Juiz passou a ser um moribundo, desconsiderado, chutado mais que a bola, que corre de lá pra cá em campo só esperando o momento polêmico acontecer, para gesticular o perverso quadrado com as mãos que aponta “é lance para o VAR” e aí tudo pára. As câmeras entram em cena e ali se vão os segundo mais enfadonhos de todo o jogo… enquanto se espera o momento em que a maldita da câmera vai dizer se foi ou não pênalti, se o gol valeu ou não, se foi mão na bola ou bola na mão.
Se o VAR estivesse presente na copa do mundo de 1986, Dieguito Maradona teria seu famoso gol “mano de Dios” invalidado e o que seria do futebol sem esse lance? E quantos lances incríveis vêm sendo impedidos, corrigidos, massacrados por conta dessa tela vigilante que vêm orientando e até mesmo paralisando o futebol brasileiro nos últimos anos?
É tanta paralisia, é tanta pressão, é tanta desconfiança e preocupação com o que acontece fora de campo, uma vez que a vigilância está ali presente, que a coisa só poderia descambar para onde? Em violência. É impressionante a quantidade de xingamentos, de pontapés, de descontentamento expressos em um jogo. Até técnico agora quer entrar em campo pra tretar com juiz, que situação… A brincadeira, a alegria acabou.
O livro de Simas (2021) nos apresenta a história da construção do estádio do Maracanã e as reformas que mudaram completamente a experiência de quem o frequenta, transformações que vêm acontecendo em todo o mundo futebolístico, que podem mudar completamente a maneira como enxergamos o esporte e cultura que ele carrega.
Tais mudanças, que vão desde a destruição da geral, que trazia todo um misticismo, toda uma cultura das periferias para o centro, onde torcer não significava apenas comprar um ingresso e incentivar o seu time, mas marcar presença em um lugar, num espaço-tempo do encantado, onde tudo no mundo poderia esperar, pois ali no gramado, quando o juiz apitasse o início do jogo, coisas inacreditáveis, sagradas e profanas poderiam acontecer. Dependia mais da fé e da sorte do que da competência da turma.
Hoje, como alerta Simas, não há mais estádio, mas arena. Não existe mais manto sagrado, mas uma camisa que mais parece um outdoor. Não existe mais torcedor, e sim clientes.
O VAR, a vigilância e o mercado da bola não combinam com o futebol.
Nos anos 2000, quando acompanhava os campeonatos e jogava futebol na escola, aparecia vez ou outra uma expressão que circulava entre os boleiros famosos e, obviamente chegava na nossa vila:
“É muita tecnologia para pouco futebol”
Lembro bem que nessa época chegavam nas quadras, nos campinhos, aquelas chuteiras coloridas, com travas incríveis, tinha também as camisas de tecido dry fit, os jogadores patrocinados pelas marcas… enfim… tudo isso aí a turma dizia que era tecnologia. Mas o que importava mesmo era se a pessoa jogava bola, se tinha aquele cacoete no modo de andar que nem o Pagão, se trançava as pernas do adversário no elástico, se tinha estilo na cobrança de falta – que era gol na certa do Zico, se driblava com a alegria do Garrincha. Eram essas tecnologias que realmente importavam, que todo mundo que curte futebol se esforça para fazer e ver.
Essas tecnologias combinam demais com o futebol.
Outra coisa que me fez lembrar esta expressão entre tecnologias e capacidades nessa semana, foi a notícia de que os milicos adquiriram um software que tem a capacidade de capturar e analisar dispositivos celulares smartphone, extraindo dados de e-mails, nuvens, redes sociais e aplicativos de mensagem, mesmo de conversas apagadas. A empresa que vendeu a tecnologia, sem licitação, já lucrou mais de R$ 70 milhões de reais em equipamentos de vigilância, todos com dispensa de licitação com a justificativa de que não existem empresas habilitadas a oferecer este serviço. Tudo à serviço da segurança cibernética. Será?
Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, os responsáveis pela compra deste e de outras tecnologias são os mesmos milicos aliados de Bozó que questionam a lisura do processo eleitoral e das urnas eletrônicas! Vejam só…Quando a gente acha que já viu de tudo da prática vigilantista…. chega um VAR para pegar geral.
Afinal, são os mesmos milicos, que compõe o governo federal e recentemente gastaram outros milhões em próteses penianas e caixas e caixas de comprimidos viagra.
É muita tecnologia pra pouco futebol mesmo, né?
Quem tem o direito de sonhar?
por Marcele Oliveira*
A ativista Marcele Oliveira conta sobre a resistência climática que vêm das favelas, periferias e subúrbios fluminenses e se pergunta como sonhar em conjunto é possível
“O clima hoje é de mudança. É da ousadia de querer justiça e uma vida digna para todos, todas e todes.” l Foto: @luannevesph via Instagram de Marcele Oliveira
Eu me chamo Marcele Oliveira, tenho 23 anos, sou uma jovem preta e periférica que integra a construção de uma Agenda 2030 no território de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Falante desde pequena, minha formação acadêmica e profissão em atuação é em torno da Produção Cultural e da Comunicação. A Cultura, em um momento duro da vida após a ocupação das escolas em 2016, foi uma alternativa de horizonte importante para curar a tristeza de perceber que nem sempre as ações mais radicais irão surtir os efeitos que a gente deseja. Ainda assim, não abri mão de seguir radicalizando e sonhando futuros e presentes possíveis – e hoje não dá pra falar nem de cultura, nem de futuro nem de presente sem falar de questões socioambientais e justiça climática.
Nasci em 1999 e cresci na periferia. Graças ao incentivo nos estudos e um bom ensino médio público, tive acesso ao direito do passe livre secundarista e foi ele quem me apresentou a cidade para além das ruas da minha infância e do turismo dos cartões postais. O trem lotado, a lagoa entre prédios, o mar de gente, os cortejos entre sinais, os prédios históricos, o metrô gelado, o ônibus engarrafado na Avenida Brasil que corta do Centro até Santa Cruz te mostrando quantas cidades cabem em uma só…
Tudo isso eu observava enquanto circulava entre museus, teatros, jazz e sambas que me faziam feliz – mas nunca me faziam sentir em casa. Eu nunca me senti em casa na Zona sul. Hoje, reconheço que o direito de poder ocupá-la e conhecê-la, inclusive em seus defeitos. Foi isso que me despertou a curiosidade de entender como a minha e todas as outras periferias do Rio se adaptam aos desafios colocados quando ousavam existir para além dos impedimentos da mobilidade, da violência e da falta de futuros possíveis.
Leia mais: O que é resistência climática?
No meu território, situado numa origem de contexto militar, um possível Parque Verde está há anos sem garantias de sua implementação por conta da especulação militar-imobiliária que não arreda o pé de fazer de qualquer metro quadrado um negócio lucrativo. O Movimento 100% Parque de Realengo Verde denuncia esse caso e apresenta soluções práticas, como a Ocupação Parquinho Verde, localizada na calçada do terreno em disputa. A ocupação construiu uma horta comunitária, teto verde, composteira e um espaço para realização de eventos e encontros formativos. No espaço de eventos, tivemos um curso de Políticas Públicas de Realengo no primeiro semestre de 2022 e gerou as propostas que constroem a Agenda Realengo 2030.
Se em 8.000 metros quadrados já inventamos novos futuros, imagina com 142.000?
Fato é que um espaço público verde e de convivência traria muito mais desenvolvimento sustentável para o nosso território do que mais prédios de concreto e muros ao invés e árvores.
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Justiça Socioambiental foi um dos principais temas durante o curso de políticas públicas em Realengo. Além da ameaça de destruição do Parque – última área verde da região – o bairro vem sofrendo com constantes enchentes, fruto do descaso dos governos com a pauta da emergência climática. l Crédito: Marcele Oliveria/Reprodução
Resistir e sonhar
Ainda do lado de cá, a Teia de Solidariedade, organização de mulheres da Zona Oeste do Rio, se destaca pela proteção da identidade das mulheres negras quilombolas, indígenas, agricultoras e artesãs das Vargens e demais extremidades. Entre elas, o debate sobre empreendedorismo, empoderamento e tecnologias ancestrais de sobrevivência através de rodas de conversa, do reiki, da boa alimentação e da garantia do bem viver.
Em Sepetiba, o Instituto Arayara denunciou e, com muita luta, impediu junto ao Ministério Público a instalação de termelétricas flutuantes na baía. A baía, vale lembrar, é viva e meio de sustento de muitas famílias que são diretamente afetadas pelos efeitos colaterais da utilização de uma fonte de energia não renovável. Infelizmente, a decisão judicial já está sendo desrespeitada. Na Zona Oeste, tudo pode, não é mesmo?
Do outro lado da cidade, em Belford Roxo, a ONG Sim Eu Sou do Meio, aponta que, além de “nada de nós sem nós”, a justiça social precisa ser uma premissa essencial para a construção de uma sociedade igualitária.
Em Queimados, a Visão Coop constrói, junto a outros movimentos, a Agenda Queimados 2030 e se consolida como um laboratório de inovação cívica que organiza redes de cooperação e trabalha tecnologias sociais, digitais e verdes para a Baixada Fluminense. Em Caxias, o Movimenta Caxias e o Artivismo BXD incidem nas ruas com rodas de rima, sopão e distribuição de cestas vinculadas à proposta de construção de uma “Câmara dos Vereadores Popular” para fiscalizar e reivindicar direitos.
No Jacarézinho e na centralidade do debate de segurança pública, o Labjaca se coloca enquanto instituição que pode e vai também debater arte, cultura, esporte, educação e tudo mais o que for essencial para o desenvolvimento das favelas além do cessar fogo.
No Complexo da Maré, o data_labe é uma organização de mídia e pesquisa que realiza um projeto fixo chamado Cocozap, onde os moradores podem enviar denúncias de violações em relação ao saneamento básico do território via whatsapp, promovendo uma geração cidadã de dados que podem contestar dados oficiais que não condizem com a realidade do território.
Tempos de ousadia
Em reuniões nacionais e conferências mundiais sobre Clima, como a COP27 que esse ano rola no Egito e a Rio+30, que foi cancelada no Rio, é importante que instituições e coletivos que apresentam tecnologias verdes, sociais e faveladas com aplicações tão concretas para o enfrentamento das consequências das mudanças climáticas, tenham espaço.
Essa inserção se dá não só pela relevância dos seus trabalhos, mas também porque ocupar espaços como esses é importante para garantir, dentro das nossas condições políticas atuais, uma inserção de urgência e alerta vermelho para o Rio de Janeiro dentro da pauta Sul Global. É lá que nossas articulações de terceiro setor que pautam Justiça Climática tem uma chance real de garantir a visibilidade que pode atrair o tão necessário financiamento para alavancar seus impactos.
Essas ações e medidas urgentes, vale dizer, só são necessárias visto a ausência do Estado, que deixa lacunas e sangue nas periferias como medida de contenção da crise social vigente. Se quem cuida ou deveria cuidar não o faz, a gente se cuida, se reinventa e se propõe.
Mas, muito trabalho, vez ou outra, tira a nossa capacidade de seguir sonhando e sendo inventivo para além de apagar incêndio e salvar móveis de enchentes. Com o aumento dos preços, do trânsito, do intervalo dos trens, das injustiças e do caos, eu me pergunto: quem tem o direito de sonhar? A concretude da tragédia, da violência e do sofrimento já nem nos assustam mais. O massacre, sistemático, de corpos e corpas vulnerabilizados por suas cores, territórios e identidades é televisionado e a Justiça, aquela que deveria equilibrar a balança, não é capaz nem de descobrir onde estão os corpos.
O sonho, princípio básico da vida e da relação com a natureza e com o ancestral, como afirma Ailton Krenak, líder da União das Nações Indígenas, se torna, assim como a arte se tornou pra mim em 2016, estratégia de defesa. As tecnologias de resiliência nós já temos e aplicamos. O que queremos agora é tornar nossos sonhos mais utópicos de justiça social, de gênero, econômica e climática realidade de Leste a Oeste fluminense. A utopia, nesse caso, é viável, possível e urgente — como apontam as propostas da Agenda Rio 2030 construída pela Casa Fluminense.
O clima hoje é de mudança. É da ousadia de querer justiça e uma vida digna para todos, todas e todes da Cidade Maravilhosa e do Brasil. É da insistência em não deixar que desrespeitem a história, memória e patrimônio de nossos territórios. É das ocupações em espaços públicos e privados e principalmente dos espaços de decisão e de financiamento. É do compartilhamento da tecnologia mais milenar e ancestral que conhecemos: a capacidade de sonhar! Sonhar e acreditar que nada precisa ser como é, tudo sempre pode mudar, afinal, quem dita nossos caminhos somos nós. Precisamos, em geral, fazer parte da mudança e parar de acreditar naquilo que dizem ser “só” o que podemos. A gente pode muito, pode mesmo, pode mais e pode mais ainda quando se permite, se coloca e, em coletivo, SONHA.
Referências:
Agenda Rio 2030 – @casafluminense
Agenda Realengo 2030 – @agendarealengo2030
Movimento 100% Parque Realengo Verde – @parquederealengo
Ocupação Parquinho Verde – @parquinhoverde
Labjaca – @labjaca
Visão Coop – @visaocoop
data_labe – @data_labe
Teia de Solidariedade de Mulheres da ZO – @teiasolidariedadzo
Instituto Arayara – @arayaraoficial
Movimenta Caxias – @movimentacaxias
Artivismo BXD – @artivismo.bxd
*Marcele Oliveira é cria da Zona Oeste, produtora, comunicadora e ativista climática. Graduanda em Produção Cultural pela UFF – Niterói, mestre de cerimônias do Circo Voador e integrante da Agenda Realengo 2030 pautando políticas públicas para o território. Apresentadora, mediadora, facilitadora, produtora de conteúdo e praticante do exercício de comunicação popular e comunitária – onde a sensibilidade e o papo reto dominam e facilitam o entendimento. Pesquisa Justiça Climática e Racismo Ambiental vinculado às pautas de ocupação dos espaços públicos e direito à cidade. Mobilizadora popular no Movimento 100% Parque de Realengo Verde. O clima é de mudança! Instagram: @marceleolivv
