Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Torcidas antifascistas organizam lado popular do futebol para combater opressões e a extrema-direita
A saúde mental é coletiva: como o movimento antimanicomial ajudou a criar uma rede de cuidado público
Com a forte mobilização do movimento antimanicomial foi possível obter ganhos como a criação das CAPS e das RAPS; o movimento busca agora a ampliação e a manutenção de políticas públicas
Por Alicia Lobato*

No dia 18 de abril, movimentos sociais tomam as ruas para visibilizar a questão da saúde mental e demandar atendimento humanizado e de qualidade l Foto: Governo da Paraíba
“Por uma sociedade sem manicômios”: foi essa frase que o movimento antimanicomial escolheu em 1987 para levar adiante suas reivindicações pelo fim do uso do eletrochoque e de práticas de torturas em instituições de saúde mental, então conhecidas como hospícios ou manicômios. E foi sob essa frase que o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental deu início a uma greve que durou oito meses e ajudou a avançar no questionamento das instituições de internação de pessoas em sofrimento psíquico e advogando por seus direitos.
Dessa mobilização surgiu a “Articulação Nacional da Luta Antimanicomial”, que tinha como o objetivo pôr fim às instituições manicomiais e lutar pela criação de políticas públicas de saúde para pessoas que precisavam de apoio psicológico.
Após 14 anos de luta, o movimento conseguiu uma vitória significativa: em 2001 foi sancionada a lei nº 10.216/2.001, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e assegura um melhor tratamento de saúde, segundo suas necessidades, além de pôr como direito, respeito e proteção contra qualquer forma de abuso.
Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), mantidos pelo SUS e criados em 1992, foram atualizados pela lei e ampliaram um entendimento da saúde mental que foi encarada a partir daquele momento de maneira intersetorial e multidisciplinar, buscando entender a integralidade do sujeito em sofrimento psíquico.
“Tivemos um cenário de ganhos no sentido de não só trazer a pauta antimanicomial para a sociedade, algo que parecia tão naturalizada a pessoa ter algum tipo de transtorno e ir para o manicômio”, afirma Vanessa Furtado, militante da luta antimanicomial e doutoranda em Psicologia na Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN). “Com a lei de 2001, foi-se criando a possibilidade de demonstrar outras formas de cuidados que não o encarceramento e a hospitalização.”
A pressão dos movimentos sociais, também ajudou na criação das redes de atenção psicossocial (RAPS), em 2011, dentro do sistema público de saúde, que contribuíram para a qualidade de vida e o fim do isolamento de pessoas neurodiversas.
“As pessoas hoje conhecem e sabem o que são os CAPS, não só pessoas que estão com casos de transtornos graves, mas outros quadros acabam sendo atendidos”, aponta Furtado, ressaltando a capilarização da rede de atenção à saúde mental.

Ativistas da luta antimanicomial participam de atividade em Macapá (AP) l Foto: Divulgação
Desigualdade regional e resistência ao conservadorismo
Com a ascensão do conservadorismo no país e o regime de austeridade do governo Bolsonaro, os equipamentos de atendimento à população sofreram duros ataques. Para manter os serviços funcionando, os movimentos têm se mobilizado em todos os estados contra o retrocesso e também pela ampliação do atendimento.
Tânia Leal, atuante no movimento antimanicomial do Amapá, conta que o estado é o que menos possui CAPS no país, com cinco unidades. Apenas a capital, no entanto, tem uma população grande o suficiente para demandar cinco unidades.
Para Leal, a luta tem sido árdua, “visto a força do conservadorismo cristão no estado – desde a sociedade até em espaços de tomada de decisão. Além disso, Macapá é a única capital brasileira que não tem uma Unidade de Acolhimento e um CAPS 24h – o que o CAPS Gentileza deveria ser, mas não é”.
Em Macapá, ainda neste mês de maio, está sendo realizada a campanha “Trancar não é Tratar”, em defesa do cuidado em liberdade, focando principalmente na defesa do SUS, que torna possível a existência de espaços como o CAPS. O lançamento da iniciativa aconteceu no dia 10 de Maio, e a programação terá oficinas de lambe, cine debate e rodas de conversa.
A militante analisa que apesar dos avanços que o movimento antimanicomial tem conquistado, no governo atual o debate sobre saúde mental e saúde pública ficou cada vez mais escanteado e, com a pandemia, o próprio movimento teve dificuldade em saber como agir contra a reforma proposta pelo governo federal.
O governo Bolsonaro também aumentou o financiamento para as comunidades terapêuticas de cunho religioso, um movimento que ganha força desde 2016, com Michel Temer. Para a pesquisadora Vanessa, esse redirecionamento exemplifica o desmantelamento das políticas públicas de atenção psicossocial.
Em 2020, a Agência Pública noticiou que apenas no primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro foram investidos em comunidades terapêuticas de orientação cristã quase 70% dos recursos enviados pelo Ministério da Cidadania a essas entidades, cerca de R$ 41 milhões foram para comunidades terapêuticas evangélicas e R$ 44 milhões para católicas.
“Os hospitais psiquiátricos, as casas terapêuticas estão recebendo recursos do governo em detrimento dos CAPS isso é um problema, tem muito município que não tem condições sozinho de manter o CAPS e a ajuda do governo federal vinha diretamente para essa política. Precisamos garantir que as unidades sejam centralizadoras da atenção do usuário, essa política precisa voltar”, afirma Vanessa.
Por conta desse novo cenário, o movimento tem buscado se inserir em outros espaços para seguir atento aos passos do governo federal. A campanha realizada pelo movimento da luta antimanicomial no Amapá, por exemplo, tem feito críticas abertas às comunidades terapêuticas. De acordo com o material da campanha divulgado pelo movimento, já foi registrada pelo Ministério Público a existência de tortura, trabalho escravo e intolerância religiosa nesses espaços.
Tânia afirma que eles têm lutado por inspeções constantes nas comunidades terapêuticas e em clínicas de reabilitação no Amapá, e acrescenta, “temos denunciado incansavelmente esses espaços, mesmo com episódios de censura e retaliação”.

Em todo o país, manifestantes que defendem os direitos das pessoas em sofrimento psiquíco tomam as ruas no dia 18 de maio l Foto: Luta Antimanicomial RJ via Brasil de Fato
Daqui em diante
Hoje, falar sobre saúde mental é assunto costumeiro na vida das pessoas e nas redes sociais. Mas, a história do movimento antimanicomial mostra que, acima de tudo, essa questão é coletiva e social. E, sendo assim, questões como classe social, gênero e raça não podem ser deixadas de lado ao pensar o cuidado, a luta e a formulação de políticas públicas.
A pesquisadora Vanessa Furtado lembra que grande parte da população residente e hospitalizada nos hospitais psiquiatricos no Brasil são declarados como negros ou pardos, e complementa, “isso ainda é reflexo desse processo de racismo instituido no Brasil é que vai gerar formas de expressão de sofrimento diferente”.
Para Tânia Leal, o cenário de desigualdade também é percebido no Amapá, onde houve um aumento visível de pessoas em situação de rua, sendo “grande parte delas usuárias dos CAPS”. Além disso, ela continua “é grande o número de pessoas em sofrimento psíquico internadas nas alas psiquiátricas dos hospitais da cidade. Apesar do contexto nocivo, o movimento da luta antimanicomial continua resistindo dia após dia”, conclui.
*Alicia Lobato é jornalista e faz parte da equipe da Escola de Ativismo.
O surgimento, a resistência e as fabulações quilombolas no livro “Narrativas do Interior”
Livro foi escrito em conjunto com a comunidade e conta a história do território, sua cultura e seus habitantes

Pedro Silva e sua mãe, Lindalva, durante as celebrações do Dia do Rio Jauquara
Pedro costumava anotar e transcrever as cantigas que seu avô, seu Francisco, cururueio, cantador e tocador de viola de cocho, entoava. Mais do que seu avô, seu Francisco é memória viva da cultura do Vão Grande, uma região quilombola que reúne cinco comunidades, localizada entre duas morrarias perto de Barra do Bugre, no estado do Mato Grosso. Foram dessas anotações, num caderninho, que surgiram os primeiros rascunhos do que seria o livro “Narrativas do Interior”, lançado no dia 28 de abril.
“Pessoas especiais deixam histórias especiais”, disse emocionado Pedro Silva, ao lado de sua mãe, Lindalva, que citou como sua grande inspiração. O lançamento aconteceu pisando no chão do território durante a celebração do Dia do Rio Jauquara, que corta e alimenta a comunidade.
“O livro conta o que vocês do Vão Grande já sabem. Vamos contando as coisas bonitas mas também as dificuldades que a gente passa”, disse o autor em referência às ameaças do agronegócio e da construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) que ameaça o rio. “É uma história de respeito e de cuidado com a nossa cultura”.
Editado e publicado sem fins lucrativos pela Escola de Ativismo e a Sociedade Fé e Vida, o livro fala do território, de suas pessoas e cultura, do mutirão ou muchirum, da construção das casas, lendas, mitos, contos e causas, sabedorias e ervas medicinais. Também grava em páginas a hospitalidade das pessoas, a religiosidade e a vida do rio.
Sem mais delongas, quem quiser ler o “Narrativas do Interior” pode baixá-lo aqui.
O dia do rio
“Rio Jauquara, Rio Jauquara,
Eis aqui minha homenagem pra essas águas que não para
Rio Jauquara, Rio Jauquara,
Com suas águas cor de anil, eis aqui minha homenagem, 28 de abril”
– Dito Baiano
Como se marca um aniversário de rio que existe desde sempre? A comunidade de Vão Grande ensina que se celebra a partir da luta e do compromisso dos moradores com suas águas, de modo que, a data de fundação do Comitê Popular do Rio Jauquara, que integra o Comitê Popular do Rio Paraguai, é o aniversário do rio, em 28 de abril.
O primeiro aniversário foi em 2019, enquanto a comunidade se organizava para lutar contra a ameaça de uma PCH — uma das 135 que podem surgir no estado e colapsar o Pantanal, a principal área alagada do planeta, e atingir mais de 120 milhões de pessoas em quatro países.

Ali do sítio do Seu Antônio, que recebeu as comemorações depois de dois anos de pausa por conta da pandemia, contou-se como aquela “festa de aniversário” foi importante para a luta.
Ao articular os quilombolas e trazer para perto a comunidade, foi possível organizar um abaixo assinado contra a construção da PCH. E também mostrar, com fotos e vídeos, aos promotores e juízes quanta vida vive ali. Quanta cultura. Quanto peixe. E, claro, quanta gente.

Entre rezas antigas em palavras que o próprio Pedro Silva diz que ainda está desvendando, tocadas de viola-de-cocho, instrumento símbolo do Mato Grosso, apresentações de Cururu e Siriri, e fartas porções de vaca atolada, lambari e jaú frito, o senso de união de cinco comunidades ia se fortalecendo, em bancos de tora e tábua embaixo da sombra de uma árvore.
E, também, depois na beira do rio. Foi lá que cada comunidade do Vão Grande trouxe um pouquinho da sua água, assim como o Comitê do Rio Paraguai, e as misturaram com as águas que cruzam a frente do sítio Santo Antônio, mostrando que a luta irá continuar fluindo nas margens do Jauquara e seus quilombos, querendo os empresários e governos ou não.

Ah, e claro: toda festa tem que ter bolo.

Entenda o caso
Ao receber menos atenção que suas irmãs maiores, as chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) representam um projeto que, por sua escala, pode ser ainda mais danoso à natureza. Somente no Mato Grosso, estão previstas 135 barragens desse tipo, que podem levar ao colapso do Pantanal, maior área alagada do planeta.
Essas barragens representam um choque incalculável em uma bacia hidrográfica pertencente a 4 países – Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina –, atingindo diretamente mais de 120 milhões de pessoas.
Os quilombos que dependem diretamente do Jauquara estão nos municípios de Barra dos Bugres e Porto Estrela. São gerações de uma cultura estruturada a partir da relação direta com a natureza, tendo no rio uma centralidade. Atualmente, o projeto para a hidrelétrica tem o nome de PCH Araras.
A empresa responsável pelo empreendimento é a Prospecto Participações e Negócios, e o projeto básico já foi aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Os rios do Pantanal são conhecidos por seu período de cheia e de baixa. Esse equilíbrio delicado pode ser completamente alterado com o controle humano sobre o volume de água. Como forma de garantir que haverá sempre reserva de água para a geração de energia, os controladores das barragens determinam essa vazão.
Para a natureza e as plantações que dependem desses ciclos para manter sua vida, isso significa o fim de colheitas e de vegetações nativas. No caso dos peixes, a situação é ainda mais grave, pois sem conseguir subir ou descer o rio para se reproduzir, diversas espécies entrarão em extinção nesses rios, levando a uma sequências de mortes em cadeia. Se até mesmo grandes cidades são impactadas por essa interferência, a situação é ainda mais grave em comunidades tradicionais que dependem dos rios para seu sustento e modo de vida, como os quilombolas do Vão Grande.
Como o fim da fome passa pela luta por terra e território?
Por Bárbara Poerner*
Concentração de terras, domínio do agronegócio e avanço do garimpo ilegal impedem a consolidação da soberania alimentar, mas populações indígenas e campesinas resistem e propõem alternativas

Ação do MST relembra e pede justiça por Massacre de Eldorado dos Carajás no Rio de Janeiro em 2021 l Foto: Reprodução/MST
Vinte e um sem-terra assassinados, 69 feridos. Esse foi um dos saldos do Massacre de Eldorado de Carajás, que marcou para sempre o 17 de abril de 1996. Na ocasião, tropas da Polícia Militar do Pará forçaram violentamente a dispersão dos mais de 1500 manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que marchavam até Belém para cobrar a desapropriação de fazendas e o assentamento de famílias. A data foi carimbada como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária e é um convite para rememorar os movimentos sociais campesinos e indígenas que atuam contra a espoliação de seus territórios, pela soberania alimentar e proteção dos bens comuns da natureza.
Ayala Ferreira, da direção nacional do MST, compartilha que abril é um mês de intensas movimentações na organização, em “defesa do teto, da terra e do pão”. Ela explica que o movimento surgiu no bojo da emersão das lutas de massa no Brasil, durante e após a ditadura militar, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O momento de ebulição popular também forjou outros movimentos além dos campesinos, como é o caso do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), que hoje se consolida como uma entidade que busca construir uma matriz energética popular.
Em 1981, o acampamento Encruzilhada Natalino se tornou uma referência para a fundação do MST, que em 1984 realizou o seu 1° Encontro Nacional, na cidade de Cascavel, Paraná. Já o MAB, por conta das grandes obras de infraestrutura da ditadura, como usinas hidrelétricas, articulava ações desde 1970 a partir das reivindicações de atingidos por barragens. Seu primeiro encontro oficial foi em 1987, em Chapecó, Santa Catarina.
Essa luta, porém, começou bem antes da década de 1970. Isso porque “lamentavelmente somos um país que se instituiu legitimando a grande propriedade de terras”, analisa Ayala, ao citar a histórica Lei de Terras.
Sancionada em 1850 por Dom Pedro II, a medida dividiu ainda mais o Brasil em latifúndios ao estabelecer que só poderia adquirir terra quem a comprasse ou recebesse do Estado. O resultado foi um agravamento da concentração fundiária, que se desenrola até os dias atuais: 45% das terras no Brasil estão nas mãos de 1% das propriedades rurais, segundo dados da Oxfam.
A militante, contudo, destaca que mobilizações pela reforma agrária e democratização do acesso à terra sempre foram puxadas pela articulação popular de indígenas, quilombolas, campesinos e outros trabalhadores que vivem além da lógica do capital. “Tudo aquilo que nós tivemos de avanço e conquista, não veio sem termos instituído um mecanismo de pressão e reivindicação em torno da reforma agrária, reconhecimento de terras tradicionais e proteção de bens da natureza”, afirma.
Ayala acrescenta que nesse processo, foi possível contar com figuras mais abertas à negociação. “Na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), foi um período fecundo para o processo de implementação de políticas públicas nos nossos territórios. Mas da perspectiva da massiva distribuição de terras para trabalhadores e trabalhadoras rurais, a política foi tímida. Houve um tensionamento permanente entre os interesses do capital e agronegócio versus os interesses dos trabalhadores do campo em suas vertentes”, diz ela, ao fazer uma distinção entre os períodos históricos em que há maior diálogo, e períodos totalmente fechados, como agora com a gestão de Jair Bolsonaro.
“É o sucesso do agronegócio, e não o fracasso, que produz a fome”

s3° Congresso Nacional do MST, em Brasília. 1995 l Foto: Arquivo e Memória do MST.
Diversos projetos de lei que têm caráter anti-ambiental tramitam no Congresso Nacional com o apoio do presidente. Eles discorrem sobre a permissão da exploração em terras indígenas, como no PL 191/2020. Ou ainda são antigas sugestões que foram retomadas, como o PL 6299/2002, que sugere a flexibilização do uso de agrotóxicos. São manobras legislativas que beneficiam os setores da mineração e do agronegócio.
“O agronegócio é responsável pela manutenção da concentração da terra e pelos limites no processo de diversificação da produção agrícola”, continua a militante. “A prioridade do agro é produzir commodities, não alimentos. De modo que o agro também é responsável pela fome no Brasil – e ainda causa diversos problemas ambientais”.
A análise converge com a do pesquisador José Ribeiro Junior. “O sucesso do agronegócio convive bem com a fome, que é um problema político”, diz o geógrafo, que é um dos autores do Atlas das Situações Alimentares no Brasil. “Precisamos reconhecer os antagonismos que caracterizam nossa sociedade: não é o fracasso, e sim o sucesso do sistema agroexportador, que produz a fome”, completa.
Ele cita o professor, nutrólogo e ativista Josué de Castro, autor da obra Geografia da Fome, que discorre sobre a relação da mazela com o sistema de agroexportação. “O autor identificou que o fato da existência de grandes latifúndios e a monocultura impedia uma produção de alimentos de subsistência para os próprios trabalhadores. Ele chamou essa área de fome endêmica. Para ele, a fome era um fenômeno polimorfo”, explica Ribeiro Jr..
“Castro começou a falar da necessidade da reforma agrária. Porém, isso não viria de um estado comandado por essas oligarquias. Por isso a importância dos movimentos sociais: eles não enxergam o faminto como um beneficiário de políticas públicas, e sim como um sujeito político”, completa.
Durante o desenvolvimento do agronegócio, no Brasil e no mundo, uma das justificativas mais usadas é a da modernização do campo e consequente aumento da produtividade, que poderia cessar ou mitigar a fome. O pesquisador vê com ceticismo essa racionalização: “Há, de fato, maior produtividade, com o uso de maquinário, mas isso não significa a diminuição da fome”.
Segundo o geógrafo, isso acontece porque o agronegócio não é o único a produzi-la, mas sim um dos elementos inerentes ao capitalismo, sistema que poupa trabalho e, nesse caso, expulsa os trabalhadores do campo e de suas terras. “Quem absorve esses trabalhadores? Não há absorção, então uma categoria que produz subemprego vai produzir a fome”, explica. Ribeiro Jr. cita um sintoma relacionado: entregadores de aplicativos de delivery, que ao mesmo tempo em que entregam comida, relatam fome e fazem refeições incompletas.
Apesar da intensa produtividade, grande parte dos itens produzidos pelo agronegócio não vão parar, necessariamente, na mesa dos cidadãos. “Uma parte do que o agro produz não é pra virar alimento, e eles não estão tão preocupados em quem vai comer; se é um brasileiro ou se vai alimentar gado na China, tanto faz”, diz José Ribeiro Jr.. É por isso que, mesmo com grandes safras de soja e milho, por exemplo, milhões de brasileiros passam fome neste momento. Conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mais de 19 milhões de pessoas convivem com a mazela e outras 112 milhões – metade da população – sofrem com insegurança alimentar.
Camponeses e povos tradicionais: aliados na luta contra a fome

O agronegócio, no entanto, não é o único produtor da fome e do problema de acesso às terras. A mineração e o garimpo também são. Ao citar a pesquisadora indiana Amrita Rangasami, que analisou crises na Índia e no Pacifico, o geógrafo explica que “em uma crise de fome, é importante olhar para quem sofre mas também para quem se beneficia dela”. Isso acontece, continua ele, por conta da extrema vulnerabilidade a qual os famintos são submetidos. O peso das mazelas sociais se distribui de forma diferente. De acordo com ele, são as mulheres e pessoas não-brancas quem mais sofrem com “os processos de expropriação, perda de terras”.
Um exemplo nacional são as situações de estupro e abuso sexual em terras indígenas. O mais recente foi revelado, nesta semana, no relatório Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. No documento, constam relatos de mulheres e meninas que foram exploradas sexualmente, por garimpeiros ilegais, em troca de alimentos:
“Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. ‘Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!’, assim os [garimpeiros] falam muito para os Yanomami”.
Ainda, com o avanço da dinâmica garimpeira, várias famílias não conseguem manter seu cultivo de subsistência e ficam dependentes de trocas desiguais com os garimpeiros. “Alguns trabalham como carregadores em troca de pagamento em dinheiro ou ouro para depois comprar nas cantinas dos acampamentos, onde um quilo de arroz ou um frango congelado custam uma grama de ouro ou 400 reais”, revela o relatório.
A prática do garimpo é apoiada pelo atual governo, que empurra pela aprovação de projetos de lei que permitem a exploração de terras indígenas e são discutidos como emergenciais no Congresso. Dessa forma, a luta de povos originários em proteção de seus territórios alia-se à luta dos campesinos. Essa intersecção, para Ayala, é latente.
“Precisamos nos articular para fazer pautas em comum, seja na lutas por territórios, defesa das florestas, rios e águas. Essa mobilização dialoga com a experiência de defesa que os povos indígenas têm. E são pautas muito comuns”. A militante conta que durante o Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que reuniu mais de oito mil indígenas em Brasília na última semana, foi o MST quem assumiu a preparação e fornecimento dos alimentos para os participantes.
Caminhos possíveis

Encontro Nacional das Mulheres Atingidas em Defesa da Vida. Brasília, junho de 2019 l Foto: Marcelo Aguilar/Reprodução MAB
Observando o histórico de luta dos movimentos sociais, é possível projetar e construir caminhos para efetivar a reforma agrária e a soberania alimentar. Isso significa, também, estar em constante disputa, onde até os conceitos e terminologias devem ser observados. José diz que “existe um tabu em torno da fome. As pessoas não falam “fome”. Essa ideia de segurança alimentar vem de quem tem dinheiro, é um jeito específico de olhar pro fenômeno, na melhor das hipóteses, de quem administra ou faz a gestão da miséria”, analisa.
A soberania alimentar, pauta colocada pelos movimentos sociais populares, afirma que o povo deve ter autonomia para decidir como, quando e de que forma vai produzir e consumir os alimentos. “Não é só ser orgânico, mas quais as relações sociais por trás da produção. Há toda uma construção de soberania popular”, continua o geógrafo. Uma possível alternativa, para José, encontra-se no sistema agroecológico, que invés de excluir os trabalhadores da produção, os trás para perto. Contudo, ele não deixa de destacar que as soluções não são instantâneas ou individuais, mas sim iniciadas em um processo de luta coletiva e popular.
Para Ayala, um dos objetivos é derrotar o neoliberalismo e o conservadorismo que regem o país atualmente, e com isso concentrar as forças na democratização do acesso às terras. “A gente só vai avançar na conquista de território e na reforma agrária se formos capazes de mudar a relação das forças que se negociam”, afirma Ayala, que vê as pautas do MST como paralelas a todo contexto brasileiro, do campo às cidades.
“Há uma poesia que fala que a liberdade da terra e a reforma agrária são assuntos de todos que se alimentam dos frutos do trabalho e da terra. A poesia é nosso manifesto pra dizer que se nós quisermos ter alimentos saudáveis, de custo justo, superar as desigualdades sociais no Brasil, construir um país soberano, nós precisamos assumir a bandeira da democratização, do acesso a terra e da reforma agrária, assim como precisamos assumir a bandeira da democracia, educação, saúde e cultura”, finaliza Ayala.
*Bárbara Poerner é jornalista e repórter. Cofundadora do pré-vestibular popular Cursinho do Zinga.
As águas são do povo: 5 episódios da luta pelos recursos hídricos na América Latina
Será que entendemos o que é ser ativista?
Tuíra Chama – 2022
Uma convocação de textos e intervenções gráficas sobre ativismo, até 31 de maio
Serão selecionados artigos (de caráter reflexivo), textos híbridos/experimentais e intervenções gráficas sobre ativismo, ação política, estratégias e táticas, estéticas e linguagens do ativismo, de preferência que abordem a teoria e/ou a prática da luta política vinculada ao território.
O prazo para envio termina no dia 31 de maio de 2022.
Especificações
Os artigos não podem ultrapassar 30 mil caracteres e devem ser enviados com título e subtítulo e identificação de autoria (nome e uma mini-apresentação de até 3 linhas), com referências bibliográficas completas em notas de rodapé. Imagens que acompanham os textos devem ser enviadas em alta resolução, com legenda e crédito de autoria.
Textos híbridos/experimentais não precisam seguir as indicações acima, mas devem ser acompanhados de comentários explicativos sobre a proposta formal e sua disposição gráfica na edição impressa e na versão digital. O mesmo se aplica às intervenções gráficas (fotografias, ilustrações, diagramas, infográficos etc.)
Para envio de materiais e outras informações: revistatuira@ativismo.org.br
Confira aqui as edições da Tuíra.
O “Não à Guerra” na Rússia – e um breve histórico do ativismo antiguerra
Por Danilo Mekari
Até o momento, mais de 8 mil russos foram detidos em atos contrários ao conflito. Conheça destaques históricos e personagens do movimento antiguerra

Manifestantes contra a Guerra do Vietnã no campus da Universidade de Michigan, em 1969 l Foto: The Detroit News Collection
Na primeira semana após a invasão do território ucraniano, autorizada pelo presidente Vladimir Putin na quinta-feira (24/02), o movimento contrário à guerra ganhou força na Rússia.
Até o dia primeiro de março, cinco dias após o início das hostilidades, uma petição online criada pelo ativista de direitos humanos Lev Ponomarev e intitulada “Não à guerra” já havia colhido mais de um milhão de assinaturas. Também houve manifestações de grupos de professores da rede estatal russa, que publicou uma carta aberta a Putin, e de cientistas, que fizeram um manifesto antiguerra. Na imprensa, uma repórter do diário Kommersant perdeu a credencial para cobrir o Ministério das Relações Exteriores após organizar uma carta contra a guerra, assinada por cerca de cem jornalistas. Já o periódico The Insider reuniu opiniões de músicos, esportistas, cineastas e escritores que chamam a guerra de “loucura”.
Reforçando o sentimento antiguerra, o jornal Nova Gazeta, dirigido por um dos vencedores do Prêmio Nobel da Paz de 2021, Dmitri Mutarov, rodou uma edição especial bilíngue (em russo e ucraniano) e foi umas das principais vozes que incentivou a população a protestar contra a guerra. Em vídeo censurado pelo Ministério Público do país, Muratov afirma que “apenas um movimento de russos contra a guerra pode salvar a vida neste planeta”.
Toda essa mobilização virtual foi refletida nas ruas russas, em ações diretas que desafiaram a linha-dura do Kremlin. No início da pandemia de Covid-19, foi determinado que qualquer ato contrário ao governo deve ser reprimido.
No primeiro dia da invasão, russos se manifestaram na capital, Moscou, e em mais de 50 cidades. Até o momento, 8.122 pessoas foram detidas nesses atos, de acordo com a OVD-Info, organização de direitos humanos que monitora a violência policial na Rússia. Uma delas é a ativista de direitos humanos Marina Litvinovich, detida ao sair de seu apartamento pouco após convocar os russos a protestar contra a guerra.
Manifestações contrárias à guerra foram registradas dentro e fora da Rússia, como na Sibéria, em Bishkek (capital do Quirguistão) e em outras diversas cidades do mundo.

Mais de 1000 russos protestam contra a guerra. l Foto: @Nat_Vasilyeva via Twitter
Mães russas se unem contra a guerra
Para além da resistência ao conflito atual, a Rússia já foi palco de importantes ativismos antiguerra. Um dos mais relevantes é o Comitê de Mães de Soldados da Rússia (CSMR), criado em 1989 com o objetivo inicial de mudar a lei de recrutamento das forças armadas do país. Desde então, o movimento expõe violações de direitos humanos que ocorrem dentro do exército e presta assistência jurídica e material às famílias de militares mortos.
Seu ápice antiguerra foi quando protestou ativamente contra a primeira Guerra Chechena (1994-1996), organizando em março de 1995 uma marcha de Moscou à Grozny (capital da Chechênia) que denunciou as atrocidades geradas pelo conflito e buscou o apoio das mães chechenas que também se opunham à guerra. No mesmo ano, o Comitê recebeu o Prêmio da Paz Sean MacBride, laureado pelo International Peace Bureau, e foi indicado ao Nobel da Paz.

Mães de soldados russos em marcha até a Chechênia. l Foto: Divulgação/Right Livelihood Award
Rosa Luxemburgo: profundamente antimilitarista
Uma ideia que permeia os movimentos antiguerra é a de que os soldados enviados ao front são em sua maioria jovens provenientes da classe trabalhadora, justamente a que sofre o maior impacto negativo dos conflitos. Quem seguia esse raciocínio era ninguém menos do que Rosa Luxemburgo, revolucionária polonesa de profundas convicções antimilitaristas. Para ela, caso houvesse um conflito bélico entre potências capitalistas, os trabalhadores deveriam se negar a combater e, sim, convocar uma greve geral.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Partido Social Democrata (SPD) da Alemanha, do qual fazia parte, optou por apoiar o conflito. Então, Luxemburgo ajudou a fundar a Liga Espartaquista, organização socialista que exerceu forte oposição durante a guerra, convocando manifestações e espalhando conceitos antiguerra através de panfletos.
Fiel aos seus ideais, Rosa Luxemburgo defendeu o boicote à guerra e a greve geral durante um comício em Frankfurt. Por conta de seu ativismo, foi presa em junho de 1916, onde ficou até o fim do conflito, em novembro de 1918. Já libertada veria a ascensão da República de Weimar, que contou com a ajuda de grupos paramilitares na repressão ao que consideravam a “esquerda radical”. Nesse contexto, Luxemburgo foi brutalmente assassinada no início de 1919.

História semelhante é a de Jean Jaurès, político socialista francês que tentou evitar a Primeira Guerra por vias diplomáticas, buscando costurar um entendimento entre os então rivais França e Alemanha. Comprometido com o antimilitarismo, o socialista também incentivou a greve geral da classe trabalhadora, caso o conflito estourasse. Jaurès, porém, não viveu para ver: foi assassinado em julho de 1914, logo antes da guerra eclodir, por um nacionalista francês favorável ao combate.
Presente hoje em 52 países, a Liga Internacional de Mulheres pela Paz e Liberdade (WILPF) surgiu em plena Primeira Guerra, quando mais de mil sufragistas de doze países se encontraram na Holanda, em abril de 1915. O congresso decidiu pela criação da entidade, com a intenção de desenvolver estratégias de mediação para, à época, acabar com a guerra e, visando o futuro, erradicar as causas das guerras. Não à toa, em 1919 representantes da WILPF denunciaram que o Tratado de Versalhes, acordo de paz pós-Primeira Guerra, criava condições para guerras futuras.

“Proteste e Sobreviva”
O fim dos incontáveis horrores da Segunda Guerra Mundial ficaram marcados pelo uso das bombas nucleares em Hiroshima e Nagazaki, em 1945. O rastro de mortes e destruição no território japônes foi o impulso para a criação do movimento antinuclear. Afinal, a potência destrutiva da bomba atômica era até então inédita, e o uso de armamento nuclear em futuros conflitos gerava dúvidas como: será que se aproxima o fim do mundo?
Ações históricas pelo desarmamento nuclear foram realizadas em solo europeu e estadunidense nos anos 1950 e 1960. Em Londres, a Campanha pelo Desarmamento Nuclear (CND) organizou as Marchas de Aldermaston, que reuniram milhares de pessoas em protesto pelo fim dos testes atômicos. No auge da Guerra Fria, em 1961, ano em que foi erguido o Muro de Berlim, um enorme grupo de mulheres ativistas pela paz reuniu cerca de 50 mil pessoas em 60 cidades dos Estados Unidos para aumentar a pressão contra a corrida armamentista nuclear. É considerado o maior protesto de mulheres pela paz no século 20.
Nomes importantes como o historiador Edward Palmer Thompson, o matemático Bertrand Russell e o físico Albert Einstein também se posicionaram publicamente contra as armas nucleares. Enquanto o historiador foi um importante ativista antinuclear nos anos 1980, tendo publicado o panfleto de paródia “Protest and Survive”, em resposta aos conselhos do governo britânico sobre como sobreviver a um ataque nuclear (chamado “Protect and Survive”), o matemático e o cientista assinaram o influente Manifesto Russell-Einstein, publicado em 1955.

“Vietnã para os vietnamitas”
Assim que uma guerra eclode (ou está prestes a eclodir), é natural que surja um movimento local de resistência – e, a depender da importância geopolítica do conflito, pode tomar outras proporções, como no caso da Guerra do Vietnã (1955-1975).
A partir de 1966, quando a participação estadunidense no front se intensificou, uma série de manifestações estudantis contra a guerra tomaram as ruas das grandes cidades do país. Milhares de jovens se recusaram a servir o exército e serem enviados aos campos de batalha, defendendo um “Vietnã para os vietnamitas” e iniciando uma série de ações que se espalharam pelo globo e deixaram um profundo legado à contracultura, movimento libertário e antiautoritário que, através de uma ruptura política e comportamental, dava espaço para novas visões de mundo e tinha no pacifismo um de seus pilares.
Até mesmo veteranos de guerra se organizaram para protestar contra o conflito no sudeste asiático. Além da iminente retirada das tropas estadunidenses no Vietnã, o movimento antiguerra derrubou a obrigatoriedade do serviço militar nos EUA e, tendo a juventude como a sua principal força-motora, influenciou a aprovação de uma emenda à Constituição que baixou o direito ao voto de 21 para 18 anos, em 1971.
Primeira mulher eleita para o Congresso estadunidense, em 1916, Jeannette Rankin já havia votado contra a entrada do país na Segunda Guerra Mundial e reforçou a campanha contrária à Guerra do Vietnã. Ela liderou uma marcha ao Capitólio que reuniu cinco mil mulheres, em janeiro de 1968. As protestantes vestiam preto e caminhavam em silêncio, e Rankin carregava uma placa com os dizeres “Acabe com a guerra no Vietnã e com a crise social em casa!”

O movimento negro, que lutava por direitos civis e contra o racismo, também se manifestou. Martin Luther King, em seu discurso “Para além do Vietnã”, condenou a guerra “enquanto seu dever como pastor” mas também pontuou que não fazia sentido “levar jovens negros, feridos por essa sociedade, para um lugar a oito mil quilemetros de distância para garantir liberdades no Sudeste da Ásia que eles mesmo não podiam encontrar na Georgia ou no Harlem”.
O movimento dos Panteras Negras foi ainda mais radical: “O interesse do negro estadunidense reside num Vietnã livre e independente, um Vietnã forte que não é uma marionete da Supremacia Branca Internacional. Se as nações da Ásia, América Latina e África estão livres e fortes, então o negro aqui estará a salvo, seguro e livre para viver com dignidade e respeito”.

Martin Luther King condenou a discriminação racial em solo americano enquanto jovens negras eram enviados para morrer no Vietnã l Foto: Wikimedia Commons
O dia que o mundo disse não à guerra
Em fevereiro de 2003, um grande protesto global foi capaz de reunir entre seis e 10 milhões de pessoas em cerca de 600 cidades de todo o mundo. O motivo para o protesto massivo e pacífico foi a alta rejeição à mais uma guerra perpetrada pelos estadunidenses no Iraque.
Uma pesquisa da Universidade de Minnesota aponta que, somadas, as manifestações de 15 de fevereiro de 2003 foram o maior evento de protesto da história da humanidade. Um retrato do dia histórico está disponível no documentário We are many (Nós somos muitos), lançado em 2014 pelo diretor iraniano Amir Amirani.

Elisa Branco: uma costureira brasileira contra a Guerra da Coreia
São raros os registros de movimentos antiguerra estritamente brasileiros. Não passa em branco, no entanto, a história de resistência de uma militante comunista nascida em Barretos, no interior de São Paulo.
Filiada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e integrante da Campanha pela Paz Mundial, a costureira Elisa Branco mudou-se para a capital paulista em 1948, quando passou a colher assinaturas a favor da paz na Praça do Patriarca. No feriado de 7 de setembro de 1950, durante o desfile da Independência que ocorria no Vale do Anhangabaú, Branco e seus colegas de partido realizaram uma ação contra o apoio do Brasil aos EUA na Guerra da Coreia (1950-1953), que separou o país em duas porções (Norte e Sul). Uma faixa dizia que “Os soldados, nossos filhos, não irão para a Coreia”.
Por conta de suas ações, consideradas subversivas, passou um ano e oito meses detida no Presídio Tiradentes, fato que não a impediu de assinar uma carta intitulada “Não criamos nossos filhos para a guerra”. Por todo o seu ativismo antiguerra e a favor da paz, foi agraciada com o Prêmio Lênin da Paz em 1952.

Faça arte, não guerra
Mais do que um movimento, o sentimento antiguerra possui diversas representações nas artes. Uma das obras mais cultuadas de todos os tempos, a pintura Guernica (1937), de Pablo Picasso, retrata com abstração um vilarejo dizimado após o ataque do exército fascista de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). No mesmo contexto, outro artista bastante conhecido, Salvador Dalí, realizou o que considera uma premonição do conflito em Construção Macia com Feijão Cozido (1936).
Considerado um clássico antiguerra, o romance Matadouro Cinco (1969), do escritor estadunidense Kurt Vonnegut, constrói seu enredo a partir do bombardeio que destruiu a cidade alemã de Dresden (1945), fato que Vonnegut testemunhou quando era um prisioneiro de guerra. Outro livro muito citado quando o assunto é antiguerra é Nada de Novo no Front (1929), do alemão Erich Maria Remarque, veterano da Primeira Guerra Mundial que descreve o desgaste físico e mental que os soldados alemães enfrentaram naquele período. Exemplares da obra foram queimados pela Alemanha Nazista nos anos 1930.
O livro foi adaptado ao cinema pelo diretor Lewis Milestone e ganhou o Oscar de melhor filme em 1930. O ator e diretor Charles Chaplin também é creditado por significativas paródias de guerra, como em O Grande Ditador (1940) e Ombros, Armas! (1918). Já na música, John Lennon é sempre lembrado por ter composto aquele que muitas vezes é considerado o hino da paz, Imagine (1971), além de sucessos como Give Peace a Chance (1969) e Merry Xmas (War is Over) (1971). Também deixamos aqui a recomendação do documentário “No Vietnamese Ever Called Me a Nigger [Nenhum Vietnamita Nunca Me Chamou de Toró, na tradução de Heitor Augusto], um documentário de 1968 que retrata um protesto do movimento negro dos EUA contra a Guerra do Vietnã.
*Danilo Mekari é jornalista.
Por que as tecnologias de reconhecimento facial precisam ser banidas
Por Debora Pio*
Uso de reconhecimento facial na segurança pública reflete viés racista e classista, reforça desigualdade e viola direitos; entenda como pressionar e se proteger

Durante protestos em Hong Kong, manifestantes direcionavam lasers para sabotar câmeras de reconhecimento facial l Foto via Wikimedia Commons
Há três anos uma mulher negra estava trabalhando na avenida mais movimentada de Copacabana, no Rio de Janeiro, quando foi surpreendida com uma detenção. O motivo? Seu rosto havia sido identificado pelo recém-instalado sistema de reconhecimento facial na cidade. Sob a acusação de ser uma foragida da justiça, foi levada para a delegacia e passou muitas horas tentando provar que a situação era um equívoco. A polícia só a liberou depois de constatar que a imagem na verdade era de uma pessoa que já estava presa desde 2015. Este é apenas um caso que veio à tona, entre tantos outros que não repercutem na mídia e redes sociais.
Em seu primeiro ano de mandato, o então governador Wilson Witzel promoveu a instalação de mais de 100 câmeras de reconhecimento facial nos bairros de Copacabana e Maracanã, além do entorno do aeroporto Santos Dumont – os equipamentos custaram R$15 milhões aos cofres públicos. Na ocasião, esta iniciativa era o resultado de suas promessas de campanha: “combater a criminalidade” com tecnologia de ponta. Enquanto concorria ao pleito para o Governo do Estado, Witzel prometeu “atirar na cabecinha” de criminosos com drones que seriam adquiridos em Israel, referência na criação de aparatos de guerra. “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro….”, afirmou ele em uma de suas primeiras entrevistas depois de eleito.
O tema da segurança pública é uma questão inescapável para qualquer pessoa que se candidate a um cargo político no Rio de Janeiro – e Witzel aproveitou a crescente onda conservadora para prometer solucionar problemas históricos com algoritmos. Até agora não deu certo.
Na cidade, as câmeras de reconhecimento facial foram instaladas por uma empresa de telefonia privada que já enfrentou problemas de vazamento de dados sensíveis de seus clientes. Para completar, todo o processo foi realizado com pouco planejamento e sem nenhuma transparência, tornando inviável qualquer monitoramento por parte da sociedade civil. Em 2020, por falta de investimentos em sua manutenção, os equipamentos foram desligados. Até hoje não é possível saber quais bases de dados foram utilizadas enquanto as câmeras estiveram em funcionamento, de que maneira era realizado o monitoramento ou com quem ficaram com as informações que foram coletadas. O Governo do Estado também nunca divulgou um relatório ou documento que comprove a eficácia dos aparelhos, quantos suspeitos foram identificados e presos, qual a margem de erro ou mesmo os índices de criminalidade nas localidades onde as câmeras foram instaladas.

Witzel surfou na onda conservadora e prometeu tecnologia para “combater o crime” e disse que compraria drones que iriam “mirar na cabecinha e… Fogo!” l Foto: Reprodução
Viés racista
Já há uma série de evidências que comprovam que câmeras de reconhecimento facial são ineficazes em sua proposta. Criadas nos anos 1960 para programar computadores a reconhecer rostos humanos, estas tecnologias foram sendo aprimoradas e ganhando outros usos ao longo dos anos e rapidamente caindo nas graças dos sistemas de vigilância mundo afora, tendo seus usos intensificados para controle de multidões, fronteiras e finalidades de segurança pública. Sessenta anos depois, elas seguem errando mais do que acertando, aprofundando ainda mais as desigualdades contra minorias.
Em seus estudos, a pesquisadora Joy Buolamwini, do MIT (Massaschussets Institute of Technology), provou que estes aparatos se mostravam muito mais eficazes em capturar e identificar rostos de pessoas brancas, principalmente homens. Porém, quando se tratava de identificar pessoas não-brancas, as câmeras apresentavam uma margem de 60% de erro – no caso de pessoas negras, alguns aparelhos sequer conseguiam fazer a captura destes rostos. Mesmo com todos estes problemas, sua aquisição tem crescido em larga escala, especialmente nos países pobres.
A pandemia também contribuiu para a aceleração deste processo, uma vez que as urgências impostas pelo vírus da Covid-19 impulsionaram governos a tomar decisões às pressas – e neste contexto as tecnologias que capturam dados sensíveis como biometria, temperatura corporal, predição de comportamento etc. se espalharam quase que na mesma velocidade da doença.
São Francisco representou a vanguarda do banimento do reconhecimento facial nos Estados Unidos, sendo a primeira cidade a proibir o uso destas câmeras com finalidades de segurança pública. Após o assassinato de George Floyd e ascensão global do movimento Black Lives Matter, a discussão ganhou ainda mais fôlego, tanto que as gigantes IBM, Microsoft e Amazon se comprometeram a encerrar o desenvolvimento desta tecnologia, embora nunca tenham esclarecido se a decisão abarcaria o mundo inteiro ou só os EUA.
Hoje, só nos Estados Unidos, as cidades de Nova York, Portland, Mineápolis, Cambridge, Oakland, Nova Orleans possuem leis que proíbem o reconhecimento facial. Na Europa, Alemanha, Bélgica e Eslováquia também lançaram iniciativas de banimento em seus territórios.

Joy Buolamwini, do MIT mostrou que câmeras apresentavam uma margem de erro de 60% na identificação de pessoas não-brancas l Foto: Flickr/Creative Commons
Como se proteger
O reconhecimento facial é tão frágil que o simples uso de uma máscara é capaz de derrotá-lo. Durante os protestos contra as intervenções do governo chinês em Hong Kong, em 2019, ativistas utilizaram a estratégia de apontar raios-laser para as câmeras para dificultar a identificação facial. A atitude ficou conhecida como “ciberguerra” e, de fato, funcionou para dificultar a identificação dos manifestantes.
A RightsCon lançou um manifesto mundial que pede o banimento em todas as esferas, apontando para as questões de violação à privacidade e direitos básicos de populações mais vulneráveis. O manifesto pode ser assinado por pessoas físicas e jurídicas e é uma intervenção que propõe discutir o tema globalmente. Para combater estas ferramentas em escala local, é possível solicitar através da LAI (Lei de Acesso à Informação) informações sobre o uso das câmeras na cidade ou bairro ou ainda sugerir a um parlamentar aliado que protocole um projeto de lei pelo banimento. Como estes processos são novos e ainda não se tornaram perenes, é justamente nestas brechas que se torna possível atuar pela sua não implementação.
Glossário
Reconhecimento pessoal: reconhecimento de um suspeito entre outras pessoas na delegacia. Reconhecimento fotográfico: reconhecimento do suspeito através de foto Reconhecimento facial: reconhecimento de um suspeito através de dados biométricos. |
*Debora Pio é doutoranda em Comunicação e pesquisadora do MediaLab.UFRJ. Estuda as intersecções entre tecnologia e raça.
Os tiros do Massacre de Pau D’Arco seguem matando
Por José Vargas Júnior
O advogado José Vargas Júnior, que acompanha o maior massacre no campo dos últimos 20 anos, fala sobre a potência destrutiva dos crimes estatais, sob um verniz de legitimidade construído pela justiça, sociedade e mídia

Dez camponeses foram assassinados pela polícia em Pau D’Arco, no Pará, em 24 de maio de 2017 l Foto: Arquivo/Agência Brasil
A violência do Estado é construída e tida sempre como legítima. Descobri isso muito antes de entrar na faculdade de Direito. Descobri ainda criança quando, assistindo o jornal local, fiquei atônito diante das cenas que mais tarde tomariam o mundo: Marisa Romão, repórter da afiliada do Sul do Pará da Rede Globo, acuada junto com sem terras dentro de um dos barracos de madeira existentes na curva do S, em Eldorado dos Carajás, abre uma fresta de porta e grita para os policiais militares que cercam os barracos: “Por favor, para, eu sou a repórter, só tem mulher e criança lá”. A imagem tem a estética da violência: o breu do barraco sendo iluminado por uma fresta que cega os olhos dos que fogem em pânico.
“Só tem mulher e criança” era a senha de que aquelas pessoas não estavam no rol das que podiam ser sumariamente executadas pelo Estado, ao menos não na frente das câmeras de TV. “A polícia só revidou” foi a versão oficial do Estado. “Fez uma limpa, só matou bandido” foi a versão extraoficial repetida à exaustão especialmente pelos distintos senhores do latifúndio.
A “justiça” aplicada em Eldorado dos Carajás já era descrita no primeiro parágrafo da obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault, quando cita os autos processuais que condenaram Robert-François Damiens no ano de 1757 a ser conduzido nu ao local de sua execução. Damiens também foi torturado com chumbo, azeite, piche, cera e enxofre derretidos. A partir daí, Foucault mostra como as reformas da lei penal vão décadas depois colocar fim aos suplícios, uma transformação onde o castigo vai começar a ceder lugar para um projeto humanista de recuperação do indivíduo. Mas será que algo de fato mudou?
Bem, após esta revolução do processo penal, a humanidade ainda conviveu com a escravidão negra e seus martírios, tendo o Brasil o nada honroso título de último país do mundo a abolir a escravidão. Conviveu na metade do século XX com o nazismo e todo o horror dos campos de concentração e sua máquina de moer gente. Conviveu com a segregação racial nos Estados Unidos que antecedeu e sucedeu o nazismo alemão e inspirou a política estatal do apartheid na África do Sul.
Embora a história sempre registre a existência de indivíduos que se rebelaram contra o que hoje julgamos violações contra a dignidade humana, a verdade é que elas só existiram porque adquiriram o status de “legal e justo”.
A ideia de que a justiça estava sendo feita também foi repetida naquele que foi o maior crime no campo desde as mortes em Eldorado dos Carajás, o Massacre de Pau D’Arco, em 2017. As forças policiais novamente optaram pela execução sumária de 10 trabalhadores rurais. A diferença é que agora eu não era mais um mero expectador chocado diante da TV: eu era o advogado dos trabalhadores assassinados e dos sobreviventes.
Dias difíceis antecederam o massacre, pois ele era anunciado na cidade. Dias ainda mais difíceis sucederam o massacre: acolher os sobreviventes; suportar o luto da perda de amigos; amparar a revolta de familiares que perderam pais, filhos, irmãos; afirmar a obviedade de que foi um massacre e não um confronto; tentar assegurar que o Estado investigasse seus próprios crimes.
O que quero dizer é que a violência do Estado é mais potente do que qualquer outra violência, não apenas por seu aspecto objetivo e cunho simbólico, mas porque desencadeia diversos tipos de violência.
Em 24 de maio de 2017, o Estado assassinou dez pessoas, mas muitas outras morreram naquele dia: G. aparenta estar vivo mas também foi morto, quando com 15 anos teve que enterrar seu pai, sua mãe e milhares de sonhos. Abandonou a escola, morou nas ruas, cometeu pequenos delitos para sobreviver e só recentemente saiu do abrigo para menores em que estava internado. Abrigo e internação que não passam de nomes palatáveis para a política estatal de encarceramento de jovens pobres em lugares que na maioria das vezes são infernos piores do que as prisões para adultos.
Verônica também morreu naquele dia. Ainda que tenha levado alguns meses para ser enterrada, permaneceu em pé para sepultar os dois filhos com quem morava e que cuidavam de sua saúde debilitada. Depois, deitou na cama e aguardou a morte se compadecer de seu corpo, que por um quadro de diabetes agravado por sessões de hemodiálises e depressão profunda, foi levando ela aos poucos. Primeiro perdeu uma perna, depois outra. Porém, quem a conheceu, como eu, sabe que a primeira coisa que a morte levou dela depois do assassinato dos filhos foi o brilho no olhar.
B. aguardava o pai para uma comemoração tripla: seu aniversário de seis anos, o da avó e o aniversário de casamento dos pais, todos dia 24 de maio. Ao invés disso, ela teve que enterrar seu pai. Sua avó enterrou o filho, e sua mãe o esposo. Um ano depois, enquanto deixávamos o cemitério ela me disse: “Acho que eu nunca mais vou poder acender vela de aniversário porque agora tenho que acender vela para meu pai, né?”.

Fernando Araújo dos Santos viu seu namorado ser assassinado ser morto e foi assassinado em janeiro de 2021 l Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil
Fernando não pôde enterrar o namorado assassinado em Pau d’Arco porque ele próprio era um sobrevivente, foi incluído no programa de proteção à testemunhas, abandonou o programa e voltou para a fazenda Santa Lúcia, local do massacre. Lutava contra a morte com bom humor, fazendo piadas e dando risada. A bala disparada contra ele naquele 24 de maio de 2017 era vagarosa, só o alcançou no dia 26 de janeiro de 2021. Ele foi encontrado morto com um tiro na nuca Um dia antes me deixou mensagem falando que mais uma vez estava indo embora da Fazenda Santa Lúcia pois estava com medo de morrer.
Mas a violência do massacre de Pau D’Arco não começou naquela manhã chuvosa de 24 de maio. O assassinato a sangue frio é só uma das formas de violência que o Estado encontra para impor sua vontade, e muitas vezes tem que abrir mão desse expediente outrora enaltecido por causa da perturbação da “turma dos direitos humanos”, como diria um deputado federal que correu para defender os executores do massacre.
Os “mandados de homicídio” de Pau D’Arco foram precedidos por mandados de prisão contra 14 pessoas, dentre elas Jane e Fernando – “vulgo Homossexual”, como consta escrito no mandado, ainda que Fernando nunca tenha carregado esse apelido antes ou depois do massacre. Também foi expedido mandado de prisão contra um pobre diabo que já havia sido morto pela própria polícia meses antes; talvez tenha faltado atualizar o banco de dados de pessoas que o Estado tem alvará para assassinar, e assim saiu a ordem para prender quem já era defunto, assassinado, sepultado e devidamente esquecido.
Meses depois do massacre, o Ministério Público do Estado do Pará concluiria pela obviedade da intenção de matar os ocupantes em vez de prendê-los, pois, segundo a própria denúncia ministerial contra os executores, a maioria dos destinatários dos mandados de prisão “apresentavam, apenas, a indicação de apelidos, sem o registro de qualquer outra característica que os pudessem individualizar enquanto pessoas”.
Na vida, assim como na arte, tragédia e comédia guerreiam pelo mesmo palco e não deixa de ser curioso que todos esses mandados de prisão foram expedidos pelo judiciário com a anuência do mesmo Ministério Público. Só depois do massacre causou estranheza ao órgão que eram mandados de prisão impossíveis de cumprimento?
Meu palpite é que o MP começa a assimilar a lição secular do fim dos castigos corporais e penas de morte sumárias, mas é ainda entusiasta da violência simbólica: a criminalização dos inimigos do Estado. É claro que temos dentro dos quadros do Ministério Público honrosas exceções, inclusive no próprio Ministério Público do Estado do Pará, como a Dra. Ana Cláudia Pinho, mas a estrutura dos Ministérios Públicos brasileiros é servil à estrutura do Estado brasileiro, que por sua vez é servil aos donos do poder, que são racistas, que são misóginos, que dependem da desigualdade social para manterem seus privilégios de classe.
Devo reconhecer que talvez a lógica do Ministério Público, revestida de humanidade e mais moderna, é mais inteligente e efetiva para a defesa dos interesses dos donos do poder do que a lógica da polícia.
Hoje, mais de 200 famílias ocupam a fazenda Santa Lúcia e o principal combustível para resistir às constantes ameaças de despejo é certamente a história dos mártires que tombaram no massacre. Tivesse a polícia cumprido os mandados de prisão, tal qual a equação tantas vezes usada “Ministério Público + ordem judicial + polícias Civil e Militar = criminalização legal do movimento social”, possivelmente a Fazenda Santa Lúcia estaria regularmente reintegrada ao latifúndio, a líder do movimento que hoje dá nome à ocupação, Jane Júlia, conduzida ao Tribunal do Júri, e os sobreviventes assustados em vez de encorajados.

O advogado José Vargas Júnior denunciou a polícia pelo massacre de Pau D’Arco l Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil
Conseguimos indiciar os executores, mas é notório o desconforto que causa ao Ministério Público local todas as vezes em que é lançada a pergunta: “Doutor, mas e os mandantes?”. A resposta é sempre uma evasiva “não sabemos se existem mandantes”. Ora, os mandantes são os donos do poder. Não reconhecer a hipótese de que este sujeito (ou sujeitos) ainda que indeterminados, tenham cometido um crime já é uma afronta, pois a resposta também poderia ser mais dentro da realidade: “Infelizmente talvez não consigamos alcançar os mandantes”.
Os donos do poder sabem que seu sistema de privilégios está ruindo em todas as suas bases, o meio ambiente não aguenta mais seus assaltos, os camponeses não toleram mais produzir alimentos e passar fome, o trabalhador questiona o porquê de seus impostos que sustentam privilégios em detrimento de políticas públicas de saúde e educação.
Por isso acredito que a vitória só poderá ser nossa. Primeiro porque ou vencemos ou ninguém vencerá porque não haverá sobreviventes,nem vítimas de uma revolução social sangrenta, mas de uma inevitável revolução ambiental. Para além disso, a vitória será nossa porque a vida não desanima nunca para quem luta por justiça, porque aguentamos perseguições com coragem, porque não guardamos esperança na ressureição e sim ressuscitamos a esperança de viver, porque ouve melhor quem não é surdo para as desigualdades do mundo, porque resistir nos faz cada vez mais fortes. É penosa a solidão dos que lutam por um mundo de concentração de riquezas, de privilégios, de muito para poucos. Nada é mais radical do que nos reconhecermos impotentes quando sós, mas quase divinos quando juntos: ombro a ombro, passo a passo, sorriso a sorriso, abraço a abraço e venceremos. “Esperem sentados a rendição, nossa vitória não será por acidente”.