Estive em São Paulo neste final de semana. Fazia um frio impressionante. Vivo há algum tempo numa região de ar quente e úmido, me sinto desacostumada com as temperaturas baixas e com a frieza dos centros urbanos.

Passei pelo centro da cidade e o choque com a quantidade de pessoas dormindo em barracas tipo iglu ou armações de sacos de lixo e lonas foi imensa. Uma armação muito pouco protetiva do frio que fazia, apesar de parecer tudo muito bem feito pelas pessoas que ali estavam. Alguns aglomerados possuem filtros d’água, tapetes, flores e estantes para armazenamento de brinquedos e objetos.

Distribuí nessa caminhada tudo o que tinha nos bolsos, porque também nunca fui tão abordada na rua. Crianças aos montes. Mulheres. Homens. Velhos, jovens. Todo o tipo de gente, na rua. E não era pra se divertir, e não era pra protestar.

Eu só pensava no destrato. Como é que a gente pôde chegar nesse ponto, nesse nível de descaso, de não se importar. Onde é que estava o estado, os direitos humanos, o papa, o diabo?!

Uma instituição se via e muito, a polícia.

Essa não faltava.

Essa ali, estática, armada, cheia de carros, de escudos, estilo robocop – pronta para sei lá o que.

Descendo um pouco mais e buscando algum tipo de proteção do frio, tentando lidar com a indignação, olhava pro alto, tentava encontrar o mundo que tanto me encanta. Buscava ouvir as conversas das pessoas pra ver se encontrava a cidade, alguma cidade que não estivesse enterrada no descaso, no sofrimento, no congelamento.

Lembrei de um texto, A Conversa da Mesa do Lado, de Santiago Alba. Nesse texto ele conta que estava em um restaurante em Barcelona escutando uma conversa na mesa ao lado da sua, um grupo de jovens falava sobre nada. Ele analisa esta pequenez da conversa, achava tudo meio pobre, mas sentia que era algo que movimentava a vida das pessoas. Diz Alba: “a pequenez quase autista do mundo no qual se moviam as suas vidas e as suas conversas”. O mundo para Alba então seria exatamente isso, o que tem significado para nós, para o que nos marca, o que tem significado, o que nos implica, nos complica, faz com que tenhamos sensibilidade para algumas coisas e para outras, não. O mundo então seria o que nos marca, o que marca nossas conversas e o que compartilhamos.

Mundo é isso.

Com este texto em mente, fui olhando, fui explorando as mensagens, as partilhas nas paredes, as conversas entre as pessoas e o que aqueles mundos de um centro urbano, naquela tarde, diziam.

Me chamou atenção a quantidade de lambes que vestia a cidade.

Milhares de mensagens partilhadas: de “trago seu amor…” à “voto antirracista”, anúncios, comércios, serviços… me fez parar.

Nas pilastras do minhocão vi de longe um lambe gigante, muito bem feito, uma foto, ou quase uma miragem, trazia em letras pretas na parte de cima a expressão FODA-SE e mais abaixo, em clima de férias, temperatura alta, um sujeito montado em um jet ski, com o sorriso de quem está quite com suas tarefas, com a tranquilidade de quem mesmo fazendo as maiores atrocidades com a população, com a economia, com a saúde, com a educação, com a politica pública, com a vida, seguia solto e sem risco de ser preso ou pego. O sujeito que está em segundo lugar nas pesquisas para presidente, mesmo com uma lista imensa de denúncias e crimes não apurados.

O lambe se repetia por varias pilastras do minhocão.

Como um filme daqueles quando o diretor quer fixar uma ideia, dar-te uma pista da história, quando ele quer te enredar sobre algo. A foto horrível repetida com as frases em preto traduzia o acontecimento:

CRISE, FOME, TA TUDO CARO, FODA-SE.

Os lambes e as barracas enfileiradas abaixo do viaduto não deixavam duvidas do que acontecia.

Pra bom entendedor meia palavra basta, um risco é francisco.

Não é descaso. Não é pequenez. É projeto de destruição dos mundos.

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