Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Por que o movimento indígena do Pará está mobilizado em defesa da educação? Saiba como somar na luta
Por que o movimento indígena do Pará está mobilizado em defesa da educação? Saiba como somar na luta
Ocupações, bloqueios de estrada e manifestação estão sendo utilizadas em luta contra projeto que pode prejudicar o ensino presencial nos territórios

Juventude indígena está mobilizada em diversos pontos do estado para combater a precarização da educação l Foto Marta Silva Tapajós de Fato
Desde o dia 14 de janeiro indígenas de várias regiões do Pará fazem protestos pela educação. As manifestações exigem a revogação da Lei 10.820/2024, que abre caminho para a conversão de aulas presenciais em Educação a Distância (EAD) nas comunidades quilombolas, ribeirinhas e terras indígenas. O movimento indígena também pede a exoneração de Rossieli Soares da Silva, secretário de educação do Pará e ex-ministro da Educação no governo Michel Temer.
Dentre as principais alterações previstas pela nova lei está a extinção do Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), que integra o Sistema de Organização Modular de Ensino (Some). Lideranças indígenas afirmam que o fim dos sistemas e a adesão das aulas virtuais faz parte de uma estratégia política de esvaziamento dos territórios, que tem como objetivo enfraquecer os territórios.
Os protestos no estado são apoiados por professores, que consideram a lei um ataque direto à valorização do ensino público e traz prejuízos significativos para a educação indígena, quilombola e ribeirinha.
O que está em jogo?
A mudança pode impactar o processo educacional das populações originárias e tradicionais. Com a possível mudança, muitos jovens, que querem permanecer nos territórios de origem, terão que sair das comunidades para as cidades em busca de acesso à educação.
A educação oferecida aos povos indígenas e quilombolas, que já é precarizada em todo o Brasil, deve piorar no estado do Pará com as alterações previstas pelo governo de Helder Barbalho. A maioria das aldeias e quilombos não possuem escolas e muitas crianças saem de madrugada para chegar às salas de aula. Quando há unidades educacionais nas comunidades, faltam espaços adequados e professores qualificados.
O ensino virtual não atende as comunidades. É necessário investimento em escolas e em professores e professoras que saibam ensinar valorizando as especificidades das comunidades, como a língua, os modos de vida e a cultura.
Onde estão acontecendo as ocupações?
Várias manifestações, organizadas por lideranças indígenas, estão sendo realizadas desde o dia 14 de janeiro em vários pontos do estado. Entre elas estão duas ocupações. Uma na sede da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), em Belém, e o bloqueio da BR-163, nas proximidades de Santarém e Belterra, no oeste do estado.
Em Belém, manifestantes entraram no prédio da SEDUC no dia 14 de janeiro. A ocupação se deu devido a falta de diálogo do governo com os povos indígenas para a tomada de decisão que prejudica os estudantes.
Outros ativistas indígenas fecharam um trecho da BR-163, rodovia importante para a passagem de caminhões a serviço do agronegócio. O grupo está acampado e chama a atenção para o problema com placas, apresentações e conversas. A mobilização começou no dia 16 de janeiro em apoio ao protesto que havia sido iniciado em Belém.
Professores da rede estadual de ensino do Pará também fizeram protesto pedindo a revogação da lei nº 10.820.
Como apoiar o movimento?
Ativistas de outras regiões do Brasil podem ajudar na mobilização com a divulgação da mobilização nas redes sociais. Várias organizações indigenistas e amazônidas fazem cobertura dos atos. É possível ajudar compartilhando os conteúdos nas redes sociais.
Também é possível apoiar os indígenas com doações para os grupos que estão acampados. Os manifestantes precisam de barracas, água e alimentação.
Doações em dinheiro são feitas via pix. Todo o dinheiro arrecadado será usado para comprar itens alimentícios e de higiene pessoal para a permanência dos grupos nos locais de ocupação.
Chave pix: 93991922009 ou 07.106.314/0001-12– Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) – organização que atua para promover o bem-estar dos povos indígenas da região do Baixo Tapajós, no Pará.
Por onde acompanhar?
Recomendamos a cobertura feita pelo Tapajós de Fato e pelo portal Amazônia Real, além dos perfis no Instagram de @pivide_kumaru, @thaigon_arapiun, @auriceliaarapiun, @cristian_arapiun e @alessandra_korap.
TEXTO
Leticia Queiróz
jornalista, quilombola e ativista antirracista
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Com júri popular marcado para quinta-feira (23), ativistas e familiares mobilizam por justiça para Marina Harkot
Com júri popular marcado para quinta-feira (23), ativistas e familiares mobilizam por justiça para Marina Harkot
Uma manifestação acontecerá na frente do Fórum da Barra Funda, às 11h; campanha na internet encoraja pessoas a mandarem cartas para Marina em suas redes

Foto: Reprodução via LabCidade
Em 8 de novembro de 2022, a ativista feminista e cicloativista, Marina Harkot, foi atropelada por José Maria da Costa Júnior, que dirigia embriagado, em alta velocidade e não prestou socorro. O julgamento do assassinato que deveria começar em 20 de junho de 2023, foi adiado sob justificativa de dengue do réu, se valendo, segundo suspeitas, de um atestado médico falso.
Agora, nesta quinta (23), ele irá à júri popular e a família e ativistas buscam justiça por Marina. Para pressionar, estão marcando uma manifestação na frente do Fórum Criminal da Barra Funda. Também há uma campanha online chamada “Cartas para Marina”, que convida pessoas amigas simpatizantes a postarem nas redes sobre o caso.
“O julgamento não irá trazer minha filha de volta, mas é uma resposta a essa sensação de impunidade que acompanha a nossa família e tantas outras pelo Brasil.”, disse à CNN Brasil, Maria Claudia Kohler, mãe de Marina.
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Marina foi colaboradora da Escola de Ativismo e uma amiga querida para tantas, tantos e tantes de nós. Da mobilidade ao feminismo, da pesquisa ao ativismo, ela foi uma presença brilhante e comprometida, que deixa um buraco imenso. Também nos juntamos ao clamor por justiça para Marina Harkot e lembramos que não foi acidente. Que esse julgamento seja um passo para o fim da guerra no trânsito e de suas mortes plenamente evitáveis.
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8 de janeiro: Organizações da sociedade civil lançam agenda “Democracia Forte” dois anos após tentativa de golpe
Organizações da sociedade civil lançam agenda "Democracia Forte" dois anos após tentativa de golpe
Documento construído coletivamente entre as organizações que compõem a rede do Pacto pela Democracia promove reflexão, formulação e incidência para a elaboração de mecanismos de proteção ao Estado Democrático de Direito no Brasil.

Já se passaram dois anos desde a tentativa de golpe que parou o Brasil. O maior ataque contra a democracia desde o fim da ditadura aconteceu em 8 de janeiro de 2023, quando eleitores da extrema-direita atacaram as sedes do Governo Federal em Brasília. Os manifestantes se insurgiram contra o resultado das eleições presidenciais que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva e pediram uma intervenção militar. Por conta disso, neste dia 8 de janeiro de 2025, com o caso ainda sob investigação, vários atos são realizados em todo o Brasil.
Entre as ações está o lançamento da agenda “Democracia Forte”. O documento construído coletivamente entre as organizações que compõem a rede do Pacto pela Democracia reforça o compromisso da sociedade civil em assumir a liderança de processos históricos pela defesa da democracia. O guia tem objetivo de promover reflexão, formulação e incidência para a elaboração de mecanismos de proteção ao Estado Democrático de Direito no Brasil.
A agenda conta com oito pilares essenciais à integridade do sistema democrático brasileiro. São elas:
1- Despolitização e democratização das forças de segurança
2 - Equilíbrio entre os poderes da república
3 - Defesa e fortalecimento do sistema eleitoral
4 - Responsabilização e memória dos crimes contra a democracia
5 - Participação social
6 - Educação cidadã
7 - Qualificação e promoção do debate público
8 - Combate à rede internacional de autoritarismo
Os temas têm 38 diretrizes e comentários de especialistas e ativistas do campo democrático. Entre elas estão a necessidade da construção de mecanismos que protejam ativistas e a sociedade civil de ataques coordenados.
“As ameaças à democracia que enfrentamos no Brasil são parte de uma tendência global, e para superá-las é imprescindível olhar para o que acontece em outros países. Líderes autoritários não apenas aprendem uns com os outros, como também atuam de forma coordenada – e nós também precisamos unir forças com defensores da democracia que atuam em outras partes do mundo”, comenta Pedro Telles, diretor do Democracy Hub (D-Hub) e professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV RI) no documento.
O guia destaca que a participação social é prática fundamental da democracia, assegurada por direitos e liberdades previstos na Constituição Federal de 1988, que determina a cidadania como um dos elementos fundantes do Estado Democrático de Direito no Brasil.
“Garantir as condições para que cidadãos, cidadãs e todos os agentes da sociedade possam efetivamente ocupar e participar ativamente dos espaços de construção e decisão políticas da sociedade brasileira é alicerce para o fortalecimento democrático e vacina contra iniciativas que ameaçam destruir a ordem democrática”, informa o guia.
O Pacto pela Democracia afirma que “por meio dessa agenda, seguiremos dedicando esforços para enfrentar as forças antidemocráticas no país, regenerar as feridas abertas em nossa cultura e nossas instituições democráticas, e fortalecer as estruturas que consolidem a democracia no Brasil”.
Como parte das manifestações que marcam dois anos dos ataques antidemocráticos, o Pacto pela Democracia também estendeu uma grande faixa no gramado do Congresso Nacional. A faixa com a mensagem “Ainda está aqui. Faça a democracia forte” chama atenção para a necessidade de reforçar o compromisso com o fortalecimento democrático.

Faixa estendida no gramado do Congresso Nacional no dia 8 de janeiro
Foto: Scarlett Rocha/Pacto Pela Democracia
Pacto pela Democracia
Pacto pela Democracia é uma coalizão da sociedade civil que coordena os esforços de atores sociais em todo o espectro ideológico para aumentar a capacidade da sociedade civil de defender e revigorar a democracia no Brasil.
Desde 2018, o Pacto reúne mais de 200 organizações em um espaço apartidário, permitindo que diferentes agendas, visões e identidades políticas colaborem no fortalecimento dos processos e instituições democráticas, garantindo direitos e liberdades constitucionais, e aprofundando práticas e valores democráticos na sociedade brasileira diante da crise global da democracia.
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Toda foto é política: um guia para uma fotografia ativista
Toda foto é política: um guia para uma fotografia ativista
A fotógrafa Ana Mendes lista alguns princípios práticos e políticos para quem quer alinhar seu fazer fotográfico com ativismo e militância, dando dicas preciosas para ação por meio de imagens

Ana Mendes fotografando o ritual de São Bilibeu do povo Akroá Gamella. Território Taquaritiua, Baixada Maranhense. Autoria: Wacõ Akroá Gamella
Uma fotografia sempre será política. Por mais que o fotógrafo ou fotógrafa não queira, sua imagem vai deixar escapar algumas informações que podem localiza-la no espectro sociopolítico: a autoria (gênero, raça, sexo, idade), a época, o contexto, o conceito. E quem sabe até: a ética e o método utilizado. Onde foi publicada? Quem pagou por ela? Estava associada a que texto ou legenda? São perguntas que ajudam a ler uma imagem e suas intenções. Mas independente delas, imagens não são ingênuas.
E por isso, nós fotógrafos/as também não podemos ser. Se as imagens que fazemos servirão para fins de militância e ativismo é importante que tenhamos algumas coisas em mente para nos diferenciarmos da produção mainstream, isto é, a produção fotográfica dominante que está principalmente nos grandes veículos de comunicação, quando se trata de documentação/fotojornalismo.
Porque uma coisa é certa: nós ativistas, nos colocamos do lado oposto à um fazer fotográfico hegemônico, que está levando em consideração a venda de jornais para um público majoritariamente urbano, de classe média e branco. E os motivos pelo qual nós fotografamos é outro: de modo genérico utilizamos a fotografia para defender direitos independentemente da linha editorial a qual estamos sujeitos.
E vale lembrar que para além da comunicação, as intenções políticas de uma imagem aparecem em trabalhos artísticos, antropológicos, históricos, jurídicos e científicos. Por isso, as dicas aqui compartilhadas valem para diversas áreas do conhecimento que utilizam a fotografia como meio de expressão.

Ana Mendes pilotando drone junto com crianças e adultos Akroá Gamella. Território Taquaritiua, Baixada Maranhense. Autoria: Ana Mendes.
Estou começando e agora?
O que é importante para um trabalho fotográfico é o compromisso com a informação. É fundamental apurar dados e pesquisar, não espalhar notícias falsas e alarmistas. Aconteceu um ataque a uma comunidade e você recebeu fotos, vídeos e relatos de uma única fonte? Não solte isso nas mídias imediatamente. Apure. Converse sobre os detalhes com mais de uma pessoa. Fale com as lideranças, com as organizações que apoiam a comunidade e então solte a notícia.
Comprometa-se com a verdade da imagem!
O que é importante para um trabalho fotográfico é o compromisso com a informação. É fundamental apurar dados e pesquisar, não espalhar notícias falsas e alarmistas. Aconteceu um ataque a uma comunidade e você recebeu fotos, vídeos e relatos de uma única fonte? Não solte isso nas mídias imediatamente. Apure. Converse sobre os detalhes com mais de uma pessoa. Fale com as lideranças, com as organizações que apoiam a comunidade e então solte a notícia.
Parcialidade vs. imparcialidade
Ativistas costumam ser acusados de serem parciais. É verdade que eles assumem um lado da história e que o conceito de imparcialidade não cabe para explicar o seu trabalho, portanto, é necessário se munir de argumentos com bases em fatos, pesquisas (acadêmicas, censitárias, se houver), números e o máximo de informações que se possa reunir.
Uma câmera na mão e uma caderneta na mão também
Além da máquina fotográfica/celular, portanto, o que não pode faltar é um caderninho nas mãos: porque toda a fotografia precisa de identificação, isto é, legenda. O seu bloco de anotações não é uma ferramenta dispensável. Ali devem constar informações básicas: nomes das pessoas e lugares, nomes das organizações que atuam na região e contextualização sócio-histórica-política mínima.

Integrantes do Coletivo Pyhãn, do povo Akroá Gamella, fotografando o ritual de São Bilibeu. Território Taquaritiua, Baixada Maranhense. Autoria: Enh Xym Akroá Gamella
TEXTO
Ana Mendes
É fotojornalista, antropóloga, mestre em ciências sociais e atualmente doutoranda em artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Trabalha e vive há oito anos na Amazônia brasileira pesquisando e realizando projetos multimídia (fotografia, vídeo e texto) que interseccionam jornalismo, arte e antropologia.
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Bom, vamos lá, vamos entrar em campo, com dicas práticas e teóricas:
Imagine que você acabou de chegar em uma comunidade ou simplesmente foi para um outro bairro da sua cidade porque lá há algum problema que precisa ser documentado fotograficamente. Pode ser o assoreamento de rio, uma remoção de moradores para uma obra que acontecerá em breve, uma mortandade de peixes na praia, etc. Nessa situação, você é um desconhecido, mas as dicas abaixo valem para situações nas quais você é morador ou frequentador assíduo também:
- Todo lugar é uma ‘comunidade’ e tem códigos: Tu já foi em uma feira à céu aberto? Um lugar caótico, com um trânsito intenso de pessoas, sons e informações visuais? Pode não parecer, mas esse lugar é cheio de regras e territórios mais ou menos definidos. Para apontar uma câmera e começar a fotografar em qualquer local, até mesmo numa feira, é necessário estar atento a um processo de aprendizagem pelo qual você vai passar: você vai aprender uma ‘língua’ nova. Vai aprender a se comportar ali, onde andar, como falar e claro, como conseguir as fotos que quer. Respeite as regras locais.
- Quem te leva importa (ou você está sendo observado): Assim que você entra numa comunidade (com uma máquina fotográfica em mãos), as pessoas começam a te observar e se perguntam quem é você e porque está fotografando. E uma das coisas que elas vão observar é com quem você está. A pessoa que te leva a uma comunidade é uma chave que pode abrir portas, ou tranca-las. Então, se possível, certifique-se de quem vai te introduzir naquela nova realidade.
- Os moradores divergem entre si: Por mais bem organizado que seja, todo movimento social/comunidade tem conflitos internos. As vezes as divergências têm fundo político, outras vezes é meramente pessoal. Não tem como você, um recém chegado, saber. É importante que você não compre um lado da história. Tenha uma visão macro. As disputas internas não são interessantes de serem expostas, elas podem enfraquecer a luta central.
- Perca a foto: Perca muitas fotos. As pessoas querem ser ouvidas e nem sempre é uma boa hora de fotografar, às vezes é o momento de fazer conexões olho no olho. Quem está fotografando pode perder a habilidade de escutar. Ouça muito, fotografe depois. Com o tempo, você vai aprender a fazer as duas coisas ao mesmo tempo!
- Retorne o seu material: Envie as fotos que você fez para as pessoas e para as organizações comunitárias ou parceiras da comunidade. É importante que elas possam se ver no material, mas não é só isso. As fotos são ferramentas de luta. Não é incomum que as comunidades em luta por direitos não tenham um arquivo de fotos para usar. Libere o uso do seu material em alta resolução para fins de militância.
- Organize o seu acervo: Vale aqui nos perguntarmos qual o papel do fotógrafo? Publicar nas redes sociais é muito importante para escoar o material, mas não pode ser a finalidade única. As suas fotos são A História. E a História não tem prazo de validade. Daqui uma, duas, três décadas o seu material pode estar narrando fatos por aí. Mas isso só vai acontecer se você deixar suas fotos identificadas e minimamente organizadas. Se ficar tudo dentro do celular/computador, sem informação alguma, nem você mesmo vai lembrar sobre o que são as imagens dentro de pouco tempo. Crie seu próprio método de organização e acervo, mas cuide da sua produção para que ela perdure.
- Ética na fotografia: descolonizar olhares
-
Eu delineei algumas dicas práticas. Mas acho importante falarmos sobre ética, pois a fotografia tende a ser uma técnica bastante predatória. Sua origem histórica está associada ao colonialismo. As expedições exploratórias de europeus para África e América, no século XIX, levavam fotógrafos que reproduziam, em suas imagens, muitos preconceitos, especialmente o racismo. Hoje em dia, estamos rediscutindo essa maneira de fazer imagem a partir da contracolonização, descolonização ou da fotografia popular (e muitas outras abordagens) mas a herança é muito forte e por vezes, mesmo os fotógrafos mais bem intencionados, reproduzem alguns padrões. Considero que três princípios éticos fundamentais para quem está começando a fotografar de modo engajado e militante.
- Reconheça a incompletude dos estereótipos e fotografe os outros lados da história: O estereótipo é um rótulo, normalmente preconceituoso, que atribuímos a lugares e pessoas. A imprensa é campeã em mobilizar estereótipos em suas reportagens, mas a realidade é que todos nós diariamente, fazemos isso quando pensamos superficialmente sobre coisas que não conhecemos. Como fotógrafos ativistas podemos ajudar a completar as lacunas que faltam na história/narrativa das comunidades que documentamos e fugir dos estereótipos.
- Fotografe sempre a dignidade humana: Mesmo em face de uma grande violência as pessoas têm dignidade e elas, se puderem escolher, vão querer ‘estar bem na foto’. Por isso, mesmo que o tema do seu trabalho seja fotografar situações degradantes de vida/trabalho/saúde/etc. lembre-se que há pessoas ali com histórias, sonhos e afetos. Fotografe um estranho como se estivesse fotografando alguém que você quer bem.
- Lute também por um fazer fotográfico mais igualitário. Assim como diversas outras profissões você vai se deparar com um mercado de trabalho que, além de estimular a competição, é majoritariamente dominado por homens. A lei do mais forte na fotografia é a mesma da sociedade em geral: mulheres, pessoas racializadas, fotógrafos com deficiência, pessoas trans (entre outros) vão ter desvantagens nesse mercado. Infelizmente, é comum que entre colegas haja roubo de ideias, boicote, violência de gênero/classe/raça, exploração do trabalho etc. Todos nós, fotógrafos/as, devemos ser agentes de mudança dessa realidade. Para ir na contramão dessa lógica, siga firme na construção de trabalhos colaborativos com outros fotógrafos/as.
Por fim, ande em bando. Ande com outros fotógrafos/as que pensam como você porque isso vai aumentar a sua autoestima fotográfica quando tentarem desqualificar o seu trabalho porque você não tem o melhor equipamento ou simplesmente porque você não é um homem-branco-classe média/alta. E bom trabalho!
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Temos saída? Desafios e alternativas para o campo progressista após as eleições de 2024
Temos saída? Desafios e alternativas para o campo progressista após as eleições de 2024
A reportagem conversou com três parlamentares jovens para trazer pontos de vista sobre o enfrentamento à extrema-direita e o fortalecimento das pautas sociais

Quem ainda não ouviu ou leu nos últimos meses que “a esquerda precisa se reinventar”, que “a comunicação da esquerda precisa melhorar”, ou que “pautas identitárias tem afastado as pessoas do campo progressista” certamente esteve afastado das redes sociais. Os resultados das eleições de 2024 revelaram um sucesso de partidos considerados de centro, ou centro-direita, não só em cidades do interior do Brasil, como em capitais importantes para o cenário político-econômico do país.
Para alguns parlamentares que vivenciaram as eleições de 2024, há caminhos possíveis para fazer o enfrentamento necessário à extrema-direita, que passam pela mudança de discurso, estratégias de alcance para fora das bolhas e retomada do encantamento das pessoas pela política.
Breve cenário pós-eleições de 2024
De acordo com levantamento feito pelo Poder 360, os grandes campeões de prefeituras nas eleições de 2024 foram o PSD (891 vitórias), MDB (864 vitórias) e o PP (752 vitórias), partidos considerados de centro ou de direita (GPS Ideológico da Folha de S. Paulo). O PSD, por exemplo, elegeu o prefeito de Belo Horizonte/MG, Fuad Noman, e Eduardo Paes, também do partido, venceu em primeiro turno no Rio de Janeiro/RJ. Já o MDB venceu em cidades importantes como Belém/PA, com Igor Normando e em São Paulo/SP, com Ricardo Nunes.
Partidos considerados de direita também não se saíram mal. O PL de Jair Bolsonaro chega a 2025 com 517 prefeituras, o União Brasil (fruto da união do DEM com o PSL) venceu em 591 cidades e o Republicanos, ligado à Igreja Universal, tem 440 municípios no comando até 2029. O PL, mais à direita, fez prefeitos em 4 capitais: Aracaju, com Emília Corrêa, Cuiabá, com Abílio Brunini, Rio Branco, com Tião Bocalom, e Maceió, com João Henrique Caldas – que venceu em 1º turno com 83% dos votos válidos.
Por outro lado, os partidos e federações do campo de esquerda ou centro-esquerda amargaram números bem menos expressivos. É o caso do PSB, com 312 prefeituras, PT, com 252, e PDT com 151. Entre as capitais, o PT venceu somente em Fortaleza, com o candidato Evandro Leitão, e o PSB reelegeu João Campos como prefeito de Recife em vitória histórica, com 78,1% dos votos válidos no 1º turno.
Ao fazer um paralelo com os resultados do Brasil, o republicano de extrema-direita Donald Trump venceu as eleições norte-americanas e voltou à presidência dos Estados Unidos, após quatro anos de gestão do democrata Joe Biden. Trump retorna a Casa Branca com a promessa de realizar deportação em massa, desfinanciar escolas que abordam questões de crítica racial ou de gênero e aumentar a produção de combustíveis fósseis no país.

Prefeitos eleitos nas capitais confirmam tendência à direita e extrema-direita l Dados: TSE
Trump venceu não só no Colégio Eleitoral, em que alcançou 312 votos (o mínimo para vitória é de 270), como também venceu no voto popular, com 50% dos votos, enquanto a democrata Kamala Harris saiu do pleito com 48,3% dos votos populares e 226 no Colégio Eleitoral.
Chamas que acendem
Ativistas e pessoas progressistas no Brasil e no mundo têm se perguntado: há esperança apesar destes resultados? Qual o melhor caminho a seguir? De que forma é possível fortalecer o campo democrático, promover avanços sociais e frear o crescimento da extrema-direita?
O cenário é preocupante, mas existem figuras dentro da política institucional que estão resistindo bravamente para barrar os retrocessos e trazer à pauta debates urgentes, como desigualdade de gênero e raça, acesso à educação de qualidade, a importância de planejar cidades preocupadas com as mudanças climáticas, de promoção das infâncias.
Para entender diversos pontos de vista, a reportagem conversou com parlamentares progressistas que disputaram as eleições de 2024, buscando trazer suas visões quanto às possibilidades que os campos de esquerda e centro-esquerda têm no Brasil para os próximos anos e o que pode ser feito para não retroceder.
Iza Lourença (PSOL) – Belo Horizonte/MG
Com 21.485 votos, Iza Lourença, do PSOL, foi a 3ª vereadora mais votada nas eleições de 2024 em Belo Horizonte (MG) e a primeira mulher negra a ser reeleita na capital, triplicando sua votação. Iza tem 31 anos, é mãe, bissexual, comunicadora social pela UFMG, vem da periferia da capital e construiu sua militância a partir dos movimentos estudantil e feminista.
Para a vereadora reeleita em 2024, o campo da esquerda precisa se conectar com as candidaturas, e isso perpassa não só pela identificação, mas também pela solidariedade. Iza defende que os mandatos devem ser consequência de um trabalho territorial coletivo.
“A gente tem aqui no Barreiro (distrito de Belo Horizonte) o movimento Flores de Resistência, de mulheres das vilas da região que lutam pela dignidade menstrual, e ao lutar pelo direito de ter um absorvente, elas debatem sobre o direitos reprodutivos, sobre direito ao próprio corpo, sobre direito sexual e elas vão entendendo que elas não estão aqui nessa vida só para reproduzir. A gente tá aqui nesta vida para poder viver!”
“Então quando a gente diz que a gente luta pela liberdade, que nós somos feministas, quando a gente faz esse trabalho de solidariedade e diz para as pessoas ‘eu sei do problema que você tá passando de não ter um absorvente, de não ter fralda para o seu filho. Eu tô aqui com você, eu vou te ajudar para a gente conseguir isso e eu vou te ajudar fazendo todos os debates importantes de como essa situação é injusta’”.

A vereadora também argumenta sobre a importância de garantir a participação popular para que as políticas sociais não sejam esvaziadas e para que o país não seja entregue à extrema-direita.
“Lula fez um decreto em março do ano passado garantindo a distribuição de absorventes em farmácias populares, foi um grande avanço pra gente. Agora eu preciso pensar também quais condições eu tô dando para essa mulher poder debater politicamente para se inserir nas discussões e conhecer as lutas que acontecem sobre seus direitos.”
“Eu acho que algo que o Lula deveria apostar é na participação popular. Eu percebo que das eleições de 2022 até as eleições de 2024, nós temos as pessoas mais conservadoras, ainda achando que o que as atrapalha são as feministas, as pessoas LGBT, as cotas raciais… Então se a gente não tiver uma discussão mais profunda com as pessoas sobre racismo, direitos trabalhistas, direitos das mulheres, respeito à diversidade, a gente corre o risco de ter em 2026 um novo governo fascista no Brasil.”
Quando questionada sobre as possibilidades de aliança que o campo progressista pode traçar na política institucional, de forma estratégica para ocupar espaços e avançar, Iza diz que deve haver um limite.
“Corremos um risco mesmo de uma parte da esquerda ir para o centro com certas alianças e adaptações de discurso, e eu acho que, para a disputa de consciência que a gente precisa fazer hoje no Brasil, isso é um erro. Existem limites para a aliança, que eu acho que é com quem defende direitos trabalhistas e direitos democráticos. Não tem condições de compor com partidos que não defendem direitos democráticos e com partidos que acham que os trabalhadores têm direitos demais, que a gente precisa retirar direitos.”
Guilherme Cortez (PSOL) – Franca/SP
Guilherme Cortez é deputado estadual pelo PSOL em São Paulo, e foi candidato a prefeito de Franca nas eleições de 2024, ficando em terceiro lugar, com 14,65% dos votos. Guilherme é natural de São Paulo, capital, mas formou-se em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) no campus de Franca. Foi eleito em 2022, aos 24 anos, mesmo não sendo, segundo ele, uma prioridade do partido naquele momento.
Cortez também é fruto do movimento estudantil, e contou que, quando chegou na cidade para iniciar os estudos da graduação, vivenciou um “cenário de terra arrasada” do campo da esquerda. Vindo da efervescência das ruas durante as jornadas de junho de 2013, da organização dos movimentos sociais da capital paulista e avanço dos debates sobre direitos e diversidade, foi um choque inicial estar em uma cidade em que a esquerda estava fora do tabuleiro da política institucional.
“Acho que isso me ajudou a ter destaque, porque num lugar em que você tinha poucas lideranças sociais, eu já muito jovem comecei a organizar muita coisa, organizei a greve na Unesp, a greve geral em 2017, a campanha do PSOL da Prefeitura em 2016, sem ter nenhuma experiência com isso, organizei o diretório do PSOL, e com isso fui me tornando uma referência numa cidade em que a esquerda, principalmente em 2016, já tava enterrada. Nesse processo de reafirmação da esquerda de 2016, 2017 para cá, culminou que em 2020 eu tenha sido o 4º candidato a vereador mais votado da cidade e não fui eleito apenas porque o partido não fez quociente eleitoral, mas tive a maior votação da esquerda desde 2000.”
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 30% da população do país vive em municípios com mais de 500 mil habitantes, e somando as estimativas de população das capitais a partir do Censo de 2024, tem-se que mais de 77% da população brasileira não vive nas capitais. Esses números são importantes para demonstrar a importância de promover os ideais e as lutas progressistas no interior do país, e que os partidos e organizações políticas também se empenhem nessa construção. Cortez continua sua avaliação:
“Existe um desinteresse das cúpulas dos partidos de esquerda pela disputa do interior. Eu até entendo o motivo num jogo de custo-benefício. É uma conta matemática: os partidos querem investir a maior parte do seu fundo partidário ou da agenda dos seus deputados em São Paulo, onde se pode eleger 10 vereadores ou que se pode até eleger um prefeito, ou investir em fortalecer uma candidatura em Restinga, que é uma cidade de 8.000 habitantes? A questão é que a gente não pode fazer política só olhando pro curto prazo, se não a esquerda nunca vai governar o estado de São Paulo, ou Minas Gerais. Para vencer nos maiores colégios eleitorais do país você precisa passar pelo interior. Existem poucas figuras na esquerda que hoje buscam fazer esse trabalho no interior.”
“No interior a lógica é outra. A dimensão é menor, as pessoas se conhecem mais, portanto as coisas são vistas como se estivessem na lupa. Então a conveniência política é diferente, a politização é diferente. Se você pegar o mapa de eleição de vereadores e de prefeitos de 2024, você fala ‘nossa, São Paulo é um estado ultraconservador’ e pode até ser, mas ter essa conclusão apenas pela legenda que as pessoas se candidatam nas câmaras não é um bom termômetro. Existem muitas pessoas em cidades pequenas que se candidatam não para enriquecer, são pessoas bem intencionadas, lideranças comunitárias que têm uma perspectiva de estado social, e que por falta de alternativa se filiam a partidos da direita, porque eles são mais garantidos de se eleger.”

Guilherme defende que o campo da esquerda deve voltar a fazer campanhas que mexam com o sentimento de esperança e que gerem entusiasmo da população. Para ele, exemplos de lideranças políticas que conseguiram fazer isso em 2024 são Natália Bonavides (PT), de Natal/RN, e João Campos (PSB), de Recife/PE.
“Acho que a esquerda tem que ser mais autêntica. Se o bolsonarismo ‘enverga’ a vara para um lado e conquista as pessoas, sem ter vergonha de mostrar o que eles pensam, a esquerda deveria fazer o mesmo. Falta à esquerda um projeto capaz de convencer e empolgar as pessoas. O João Campos vai para o centro e consegue empolgar. Não defendo a política dele, mas a maneira como ele consegue mobilizar as pessoas dialoga, ele aponta um projeto que dá esperança. A Natália Bonavides, por outro lado, é uma nova liderança que aponta mais para a esquerda, e que também consegue mobilizar. Boa parte da esquerda fala de dados, e isso é importante, mas não dá para você se apoiar só nisso enquanto a extrema-direita vende fantasia e motivação. O grande desafio é mostrar para as pessoas como viver em um mundo com mais igualdade, com carbono zero, com o meio ambiente equilibrado são coisas positivas.”
Bia Bogossian (PSD) – Três Rios/RJ
Bia Bogossian (PSD) foi reeleita para seu segundo mandato como vereadora em 2024 na cidade de Três Rios/RJ, sendo a 4ª mais votada do município. Bia tem 27 anos, é jornalista, com mestrado em Administração Pública, fez parte do DCE da PUC e se formou politicamente pelo RenovaBR. Se define como uma pessoa social-democrata, avessa “aos extremos” da política e acredita que foi eleita em 2020 por ser símbolo de uma possibilidade de renovação, por ter estudado e se preparado para ocupar o cargo de vereadora.
Na sua primeira eleição, foi candidata pelo PSB, partido considerado de centro-esquerda, do qual ela foi filiada de 2016 a 2024, e se filiou ao PSD, mais à direita, em 2024. “Foi por pragmatismo e faz parte do interior, né? A gente não tem partidos de esquerda muito fortes, e aqui eu não consegui montar a nominata sozinha, então não consegui continuar no PSB. Estou no PSD, mas o que me alegra e me deixa mais tranquila, é que o PSD tem uma vertente mais à esquerda no estado do Rio, acho que pelo Eduardo Paes (prefeito do Rio), hoje apoiar o Lula. Me questionam por estar no PSD, que o partido vai interferir no mandato, mas isso não acontece. Mandato de vereador, no interior, não tem ninguém querendo interferir. Seria diferente se fosse o mandato de um deputado, aí o debate é outro…”, conta.

Para Bia, a extrema direita não se fortalece tanto defendendo questões políticas e econômicas, mas sim na pauta de costumes. A vereadora argumenta que é preciso pensar em outra estratégia de comunicação.
“Penso um pouco nesse caminho ‘Janonista’ e do que o André Janones traz como estratégias de comunicação, se rendendo aos padrões até da extrema-direita, em uma guerra de narrativa. Que consiga conquistar e trazer mais aliados de uma maneira mais popular. Acho que a gente de centro-esquerda e esquerda fica em um discurso um pouco mais acadêmico, mais distante da base… É preciso voltar a comunicar com as pessoas que estão acreditando nesse falso discurso da extrema-direita, de valores falsos. A gente tem que pensar em estratégias para viralizar, mas sem abandonar as pautas.”
TEXTO
Maria Paula Monteiro
É jornalista pela UFMG, vive em Belo Horizonte e é ativista feminista e LGBTQIAPN+. Passou pelas redações da RecordTV Minas e do Jornal Estado de Minas. Entusiasta do jornalismo de causas, focado na defesa dos direitos humanos, atua como instrutora de treinamentos para comunicadores em ferramentas Google para jornalistas pelo Instituto FALA!.
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O que movimentos sociais ocuparem as eleições pode significar para a democracia e a esquerda brasileira?

Por Tereza Mansi
As eleições municipais brasileiras se tornaram um terreno estratégico onde forças progressistas e a crescente extrema-direita se enfrentam intensamente. Nesse cenário, as candidaturas oriundas de movimentos sociais desempenham um papel muito importante, pois desafiam a hegemonia de grupos políticos tradicionais e inserem na pauta eleitoral as demandas da população mais vulnerável. Esses movimentos, formados por trabalhadores rurais, comunidades periféricas e organizações da sociedade civil, têm sido a linha de frente na resistência democrática, em um contexto político marcado pela polarização e desigualdade.
O Brasil, assim como outras democracias, testemunha o avanço de lideranças autoritárias e populistas, com discursos que minam a democracia, criminalizam os movimentos sociais, fomentam o ódio e excluem socialmente grupos historicamente marginalizados. Em oposição a esse fenômeno, lideranças provenientes desses movimentos criminalizados pela extrema-direita, têm trazido às eleições locais uma resposta firme, baseada em justiça social, defesa dos direitos humanos, combate às desigualdades e promoção da participação popular.
Essas candidaturas oferecem uma oportunidade única de renovação para as forças progressistas, sobretudo a esquerda, que, após anos de estagnação, encontra nelas um caminho promissor para rejuvenescer suas lideranças e se rearticular politicamente. Enquanto a direita se renova rapidamente, apresentando novas figuras, como influenciadores digitais ou personagens que se beneficiam de discursos populistas simplificados, a esquerda tem, em grande parte, recorrido aos mesmos nomes que há décadas a representam.
A recente eleição de Lula, por exemplo, foi fundamental para frear o avanço da extrema-direita, mas evidenciou a dificuldade da esquerda em promover uma renovação de suas lideranças. Nesse contexto, as candidaturas vindas dos movimentos sociais emergem como uma força transformadora, trazendo uma esperança renovada para a esquerda brasileira.
Candidaturas Coletivas e a Superação do Individualismo
A inserção dos movimentos de base nas disputas eleitorais não é um fenômeno novo, mas tem ganhado relevância e organização nos últimos anos, particularmente após os retrocessos políticos iniciados com o golpe de 2016. O apoio à candidaturas de lideranças comunitárias e ativistas ligados a movimentos sociais se intensificou diante da necessidade urgente de impedir o avanço da extrema-direita e suas agendas excludentes. Movimentos como os de trabalhadores rurais, feministas, indígenas, quilombolas e da juventude passaram a articular suas próprias lideranças e a construir projetos políticos que transcendem os interesses particulares e se voltam às demandas coletivas das suas bases.
Diferentemente dos mandatos coletivos, que surgiram nos últimos anos e enfrentam desafios impostos pelo modelo jurídico e político vigente no Brasil, as candidaturas oriundas de movimentos sociais têm se consolidado como alternativas mais estruturadas. Enquanto os mandatos coletivos buscam romper a lógica institucional que privilegia o protagonismo individual e a personalização das lideranças, enfrentam barreiras significativas, como a ausência de regulamentação específica e a centralização do poder de voz e voto no titular, o que frequentemente limita a plena expressão da coletividade eleita para o exercício do cargo. Em contraste, as candidaturas ligadas a movimentos sociais, que também resultam de processos democráticos e organizados, como as coletivas, acabam sendo favorecidas pela própria estrutura institucional, conferindo-lhes maior estabilidade.
Isso significa que, mesmo concorrendo com um nome individual, as candidaturas vindas dos movimentos sociais, também representam as demandas, aspirações e projetos de grupos inteiros que compartilham uma história comum de organização e luta. Não são apenas figuras isoladas no palco político, mas porta-vozes de movimentos que, historicamente, têm sido a linha de frente na defesa dos direitos humanos e da justiça social no Brasil. E essa dimensão coletiva não é um mero detalhe: ela molda a forma como esses candidatos e candidatas entendem a política e suas responsabilidades enquanto representantes do movimento.
A Transição dos Movimentos para o Espaço Eleitoral
A candidatura de lideranças vindas diretamente dos movimentos sociais – especialmente em tempos de polarização e desinformação – os obriga a irem além das suas próprias organizações, buscando construir laços em comunidades, periferias, sindicatos, para se conectarem diretamente à população.
Esses espaços, antes dominados por partidos e organizações tradicionais, agora se veem ocupados por iniciativas comunitárias que englobam desde as cozinhas solidárias (onde se distribui comida e se constroem laços de afeto), os debates políticos e até os cineclubes. Essas ações não são isoladas, mas parte de um esforço coordenado para escutar as queixas, demandas e dilemas da população, criando um retrato autêntico da realidade local, ao mesmo tempo em que oferecem momentos de lazer e atendem necessidades urgentes.
Esse trabalho de base tem sido feito em todos os cantos do Brasil, impulsionado por movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que sozinho lançou mais de 700 candidaturas nas eleições municipais, espalhadas em 12 partidos, elegendo 133 vereadores no país. Trata-se, portanto, de um movimento massivo de inserção política que transcende o campo partidário, buscando construir um projeto que reflita a diversidade e a complexidade da sociedade brasileira. Cada candidato ou candidata, ao participar dessas campanhas, tem a oportunidade de aprender diretamente com a população, compreendendo suas necessidades e formando uma visão mais ampla e conectada com as realidades locais.
Oportunidade de Mistura e de Aprendizado Político
Além de fortalecer os laços com a base, as candidaturas oriundas dos movimentos sociais, especialmente do MST, permitem uma mistura de pautas e lutas. As lideranças que emergem desses movimentos estão em contato direto com ativistas que debatem questões culturais, de saúde, infância, direitos indígenas e LGBTQIA+, ao mesmo tempo em que se engajam nas lutas mais tradicionais do campo progressista, como a reforma agrária, a agroecologia, o combate aos agrotóxicos e a promoção da agricultura familiar. Essa diversidade de pautas faz com que cada campanha seja uma verdadeira escola política, na qual candidatos e candidatas saem com uma formação sólida, prontos para o enfrentamento das questões estruturais que atravessam o Brasil contemporâneo.
É importante destacar que, independentemente dos resultados das urnas, cada um desses candidatos saiu vitorioso de alguma forma. As campanhas servem como processos intensivos de formação política, onde as lideranças ganham experiência no combate à desinformação, na articulação de políticas públicas e no enfrentamento direto à extrema-direita. A jornada eleitoral, portanto, não é apenas sobre conquistar cargos, mas sobre preparar novos quadros mais capacitados para defender a democracia e promover as transformações sociais que o Brasil tanto necessita.
Este momento eleitoral, portanto, como já dito, vai além de uma simples disputa por cargos políticos. Ele é, na verdade, uma transição que projeta novos nomes e novas lideranças, criando a possibilidade de uma renovação há muito tempo necessária dentro da esquerda brasileira.
Assim, as candidaturas que emergem dos movimentos sociais trazem uma nova energia e perspectivas para o campo progressista. Elas são o resultado de um esforço coletivo, não apenas de resistir ao avanço da extrema-direita, mas também de propor um futuro em que a política seja construída de baixo para cima, com base nas necessidades reais do povo.
Os movimentos sociais, em especial o MST, têm vivenciado uma renovação em suas dinâmicas internas ao elegerem suas lideranças para disputar cargos eletivos, assumindo um protagonismo na formação política de base que antes era domínio quase exclusivo dos partidos. Essa nova configuração política fortalece a esquerda, que se torna mais conectada às lutas populares, ganhando não apenas representatividade, mas também maior capacidade de enfrentar os desafios impostos pela extrema direita e pelo neoliberalismo. Com isso, os movimentos se posicionam como forças essenciais para a construção de uma alternativa política genuinamente enraizada nas demandas do povo.
Tereza Mansi é advogada e ativista pelos direitos humanos. Faz parte do Coletivo de Direitos Humanos do MST em Pernambuco, é Membra da Executiva da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) e membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE.
Internet, conexão e reexistência: inovação e ancestralidade nas criptofestas amazônicas
Internet, conexão e reexistência: inovação e ancestralidade nas criptofestas amazônicas
Em artigo, Paula Amaral analisa o movimento das criptofestas, espaços que reúnem ativistas da internet e movimentos digitais, na Amazônia

Jovens dançando Carimbó.
Foto: Lírio Moraes
Após a pandemia do COVID-19 o processo de virtualização da vida se intensificou: forçada a reduzir o contato físico, a sociedade migrou para o digital, transformando a forma como trabalhamos, nos relacionamos, consumimos e nos expressamos. Isso também evidenciou desigualdades, principalmente regionais, trazendo à tona a realidade de uma Região Norte do Brasil onde a conectividade significativa não é a realidade de todos e as disparidades e vulnerabilidades atingem um número grande de pessoas, em um retrato de gênero, raça e classe.
Neste cenário, a sociedade civil, ativistas, coletivos, acadêmicos e estudantes se veem diante de um desafio: como amplificar o debate sobre Cidadania Digital? A popularização do movimento das criptofestas no Norte do país tem sido um dos caminhos propostos ao criarem um ambiente e espaço seguro e plural para a diversidade de vivências pensarem em autonomia e segurança digital, através da cultura popular e da conexão com o território, buscando impacto social. Mas antes, convém entender o cenário do qual estamos falando.
Os números da desigualdade têm localização precisa
Quando se analisa o impacto da tecnologia nesses territórios, as disparidades regionais e sociais se tornam mais evidentes, embora 90,4% dos domicílios na Região Norte possuam acesso à internet, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE (2021), a conectividade é mais elevada em áreas urbanas, com 94,1% dos domicílios conectados, enquanto nas zonas rurais o índice é de 81%. Assim como, estudos indicam que a velocidade e a estabilidade da internet na região são inferiores às de outras regiões, afetando atividades como educação a distância e teletrabalho e, consequentemente, o acesso de qualidade às redes digitais.
Nos últimos dois anos o cenário mudou bastante, já que as antenas da Starlink, do bilionário Elon Musk, permitem acesso à internet via satélite, facilitando a conexão com a rede. Segundo a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) a empresa já tem clientes privados em 697 dos 772 municípios da Amazônia Legal (formada por Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão).
O custo elevado da internet também é um fator que conta bastante para a falta de conectividade. Dados apontam que 25% da população da região paga entre R$91 e R$100, e 32% paga entre R$100 e R$150 por sua conexão principal, tornando a internet na Região Norte a mais cara do Brasil. Esse conjunto de fatores é justificativa de um diagnóstico onde a conectividade significativa não acontece no Norte, apenas 11% da população da Região apresenta condições satisfatórias de conectividade.
Em torno desse cenário e números que apresentam indicadores sociodemográficos bem definidos a pessoas de corpos negros, periféricos, LGBT+ e de classes desfavorecidas, a sociedade civil avança com os debates, assim como procura democratizar espaços e o acesso à informação sobre tecnologia e direitos humanos. Seja em pressões ao senado para a regulamentação de projetos de lei que ampliem a infraestrutura da internet para regiões isoladas, assim como na frente de justificar a importância de regulamentação de novas tecnologias como a Inteligência Artificial ou a inclusão de disciplinas sobre Educação Digital na educação básica ou criação de cursos e oficinas gratuitas para a capacitação da população para o uso eficaz e seguro das ferramentas digitais, para assim usufruir da amplificação dos benefícios da conectividade.
O movimento das CriptoParties no Brasil
Temos visto nos últimos anos a expansão do movimento das criptofestas no Brasil. O movimento surgiu como resposta às crescentes preocupações com a vigilância em massa e a privacidade online. Esses encontros oferecem oficinas práticas, debates e palestras que abordam desde o uso de ferramentas de criptografia até práticas seguras de navegação na internet.
Deste modo, as CriptoFestas desempenham um papel crucial na educação digital, especialmente em um país com desigualdades de acesso e conhecimento tecnológico. Ao promoverem a conscientização sobre a importância da privacidade e segurança online, esses eventos capacitam os participantes a adotarem práticas mais seguras no uso da internet.
No Brasil, destacam-se eventos como a CryptoRave, realizada em São Paulo desde 2014, que se consolidou como o maior encontro de segurança, hacking, privacidade e software livre do país. Outro evento de relevância é a CriptoFunk, realizada no Rio de Janeiro, que combina debates, oficinas e festas, promovendo a autonomia e liberdade das pessoas frente à influência das tecnologias em suas vidas.
Em Pernambuco, a CriptoFrevo se destaca como a primeira CriptoFesta com identidade pernambucana, unindo cultura popular, tecnologia, segurança e privacidade da informação na internet. O evento busca integrar elementos culturais locais, como o frevo, às discussões sobre segurança digital.

Ativistas colam lambes durante criptofesta
Foto: Tainá Barral
Navegando até o Norte: Rios, Criptofestas e a Cultura Digital no Norte
Nos últimos anos houve um aumento significativo em números de lares conectados à rede, mas o Norte ainda é a segunda região do país com a conectividade mais precária, segundo a TIC Domicílios (2021). Os desafios para a inclusão digital são agravados pelas dimensões geográficas e pela falta de políticas públicas direcionadas. Em um retrato onde essa realidade se agrava, as criptofestas se popularizam igualmente com o avanço e crescimento dos movimentos sociais e coletivos de juventude debatendo direitos humanos, meio ambiente, cultura, comunicação e tecnologia.
Mais do que festas, elas são plataformas de resistência para corpos negros, indígenas, LGBTIA+ e periféricos, promovendo não apenas a ocupação de espaços físicos, mas também a reivindicação de presença em espaços digitais. Em um território frequentemente descrito como “vazio” por discursos hegemônicos, as criptofestas da região Norte simbolizam a ocupação e a valorização da pluralidade amazônica, o protagonismo nortista frente a debates que são realizados em outras regiões, mas dessa vez na voz das identidades do próprio território. O movimento de criptofestas tem o papel essencial de ser um espaço de protagonismo e conscientização, onde questões tecnológicas, frequentemente vistas como inacessíveis, são desmistificadas e tornadas compreensíveis para todos.

Diretoria atual da Na Cuia em Belém (PA)
Foto: Andreson Almeida
Essas cosmovisões e construções coletivas sobre Tecnologia, Cultura, Comunicação, Segurança e Meio Ambiente são algumas pontes de ligações entre esses movimentos, nas suas particularidades e histórias, podemos citar a CryptoBera de Porto Velho (RO) e a CriptoCuia em Belém (PA), duas criptofestas que relatam Amazônias, entre as múltiplas que nós temos em um território extenso como da Região Norte. Além da proposta de falar sobre Tecnologia, Cultura Popular e Digital e Meio Ambiente, essas iniciativas trazem histórias coletivas em suas construções que falam sobre o território e identidade como um ponto fundamental na construção de discussões e debates.
A Cryptobera aconteceu em agosto de 2024, organizada pelo coletivo C-Partes, e parceiros como REQ Unique, MAB Rondônia e Coletivo SOMAR, em Porto Velho (RO), foi a primeira criptofesta realizada na região Norte. Crypto vem de Criptofestas e Bera vem de beiradeiro um termo que refere-se a quem mora ou quem se conecta às margens do rio.
“O termo beiradeiro carrega uma carga histórica de resistência, embora no passado o termo tenha sido usado de forma pejorativa para descrever alguém como cafona, brega ou para ridicularizar quem nasce e quem vem das margens dos rios, hoje ele é ressignificado como uma expressão de orgulho das vivências de quem nasce à beira do rio”,afirma Karoline Seguins, Pesquisadora e Co-coordenadora de Comunicação do coletivo C-Partes, e uma das organizadoras do evento.
Para Karoline, realizar o evento foi uma forma de mostrar que a Amazônia não é apenas uma um palco de exploração, mas também pode ser um território de resistência e inovação. “O Norte tem uma voz única e essencial nas discussões sobre direitos digitais, aqui na beira do rio que podemos inovar e combinar tecnologia com ancestralidade, criando caminhos que respeitem e fortaleçam nossos corpos, culturas e territórios”, explica a pesquisadora.
E foi a partir das resistência populares e movimentos sociais que a CryptoBera trouxe essa essência para o evento, destacando que a cultura e saber que nasce na beira do rio é também tecnologia, comunicação e conexão.
Assim como na Cryptobera, o rio também faz parte da narrativa de construção do surgimento da CriptoCuia, que acontecerá em dezembro de 2024 em Belém (PA), idealizada pela Associação Cultural Na Cuia juntamente com parceiros como o Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA), o coletivo ZarabatanaINFO e a Rede Jandyras, traz em seu nome a história das populações ribeirinhas da Amazônia que usam as cuias para pegar água do rio, tomar banho, cozinhar, desafogar as canoas e “voadeiras”, consumir líquidos e outros alimentos.
A ideia de trazer o nome de um utensílio presente no imaginário e vivência popular e o Cripto, do termo criptografia, fala sobre histórias e vivências do território. Desde 2015, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu a tradição da utilização da cuia e inscreveu no Livro de Registro dos Saberes o “Modo de Fazer Cuias no Baixo Amazonas” como relevante forma de expressão da cultura brasileira. Esta ideia de que a cuia pode comportar diversas coisas ligadas ao conhecimento e a informação é um dos pontos na escolha do nome, conta Matheus Botelho, jornalista e coordenador geral da Na Cuia.
A CriptoCuia surgiu por meio de construções coletivas entre organizações e lideranças regionais inquietas com a chegada da COP30. Elas apostam que o acesso à tecnologia é um bom marcador para pensar e agir sobre esse processo.
“A partir de nossas trocas e experiências no território atuando com populações periféricas e tradicionais, percebemos a importância de potencializar debates a cerca de Segurança e Direitos Digitais, compreendendo a partir de suas realidades como a tecnologia se apresenta e lhes traz novas formas de se comunicar, interagir e relacionar com os outros e com o mundo, por meio da cultura digital e popular, sem esquecer a importância do meio ambiente como fator principal para que continuemos vivos nesse planeta”, explica Matheus.
“Por aqui, entendemos a cultura como a identidade de um povo, um conjunto de hábitos, costumes e tradições que unem um ou vários grupos sociais em um território, online ou offline”, acrescenta o jornalista ao pensar que a Cultura Popular é fundamental na hora de pensar na experiência de uma criptofesta dentro do território, um ponto de ligação e conexão de ideias onde se potencializa o saber através de uma troca de vivências e experiências com o protagonismo popular.
Correntes de conexões: Trilhando identidades do território
Na construção da CryptoBera a decisão de homenagear figuras da Cultura Popular para as trilhas parte de uma ideia de pertencimento regional intrínseco ao olhar dos organizadores “Essa visão nos motivou a homenagear figuras importantes para a Cultura de Porto Velho e assim, nomear nossas duas trilhas com essas personalidades, como Nicinha e a Sarita da Sete. Essas homenagens celebram não apenas suas memórias, mas também as lutas que elas simbolizam”, conta Karoline

Trilha Sarita da Sete na Cryptobera
Foto: Voluntários da CryptoBera
Nilce de Souza Magalhães, a Nicinha, foi uma mulher atuante na luta dos atingidos e atingidas por barragens. Assassinada em 2016, era uma figura importante do movimento. “Nicinha a foi uma pescadora que lutou pela justiça e proteção de territórios na Amazônia, foi escolhida para representar trilha sobre segurança, vigilantismo e direitos humanos”, explica a pesquisadora.
A outra trilha vem com a representação de Sarita da Sete, mulher travesti porto velhense que viveu um momento de sua vida em situação de rua. “Sua história nos desafia a refletir sobre as vidas trans marginalizadas e ela foi escolhida para representar a trilha de tecnologia, comunicação e diversidade”, diz Karoline.“Essas figuras reforçam a importância de usar a tecnologia como uma ferramenta de resistência e de conectar à proteção digital à preservação das culturas e das identidades amazônicas, onde essas histórias não só são lembradas, mas re imaginadas de forma positiva”, conclui.
Em outra paisagem, a CriptoCuia decidiu trazer elementos da Cultura Popular paraense para a construção de trilhas, reunindo em sua programação a trilha do Carimbó debatendo temas como Conectividade Significativa, Comunicação e Tecnologias Ancestrais. Propõe, assim, pensar o Carimbó como mais do que um ritmo: é uma dança, uma identidade essencial da cultura paraense e amazônica. Com suas variações e sotaques, essa manifestação cultural é carregada das vivências de mestres e mestras, guardiões do saber transmitido pela oralidade, aliando-se assim a debates importantes quanto ao uso democrático da rede e o acesso equânime para todes.
Já a trilha da Guitarrada fala sobre Governança da Internet, Direitos Humanos e Cuidados Integrais. A guitarrada é uma prática musical que tem origem no Estado do Pará e está ligada ao surgimento da lambada nos anos de 1970, em uma mistura de ritmos criou uma fusão de criptografias musicais fazendo pensar sobre os debates de criptografia e segurança em rede. Suas músicas ecoam práticas criativas e sustentáveis em meio às baixadas e palafitas da Amazônia e lembram da urgência de proteger essa expressão em tempos de crise climática e cultural.
E por fim, a trilha do Tecnobrega para debater sobre Colonialismo de Dados, Racismo Digital e Inovação, cada um trazendo especificidades que retratam as realidades de elementos culturais e seus debates dentro da tecnologia. O Tecnobrega é um ritmo eletrônico autêntico do Pará que utiliza a tecnologia como uma ferramenta essencial, produzindo e se popularizando fora das grandes gravadoras e ganhando força entre a juventude das periferias de Belém. Com o movimento das aparelhagens paraenses, os DJs e produtores dessa cena exploram o que há de mais moderno em tecnologia – de softwares e hardwares avançados – criando mixagens que misturam ritmos e expressam o imaginário popular amazônico.
Essa reflexão é fundamental para pensar ao cenário onde a conectividade e o acesso a internet se instauram, até que propositalmente como no Norte, dentre as desigualdades em relação a outras regiões do país os espaços construídos nas criptofestas nortistas tornam-se lugar de re-existência para essas identidades que confluem na proposta de se reunir, pensar, colaborar e “fazer algo”, tal como as criptoparties se propõem mundialmente, “esses eventos funcionam como laboratórios de aprendizado coletivo, ensinando ferramentas digitais que vão além do uso cotidiano de redes sociais e aplicativos de mensagens — espaços controlados por grandes corporações que priorizam lucros sobre a privacidade e segurança das pessoas.” Conta Allan Gomes, jornalista e coordenador do Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA).
Allan ainda conta que utilizar a Cultura Popular nesse contexto é essencial, pois ela conecta as comunidades a partir de símbolos, narrativas e práticas que já lhes são familiares, tornando o debate sobre tecnologia e direitos digitais mais acessível e engajado. Isso pode se manifestar por meio de expressões artísticas locais, como música, dança e artes visuais, que traduzem conceitos complexos para práticas culturais vividas no dia a dia. Ao criar essa ponte entre tradição e inovação, reforça-se a ideia de que a tecnologia é para todos, rompendo com a exclusividade de saberes técnicos.
Dentro desses códigos de uma identidade plural do território paraense, o espaço da CriptoCuia tem se construído dentro do anseio do protagonismo de identidades anteriormente excluídas ou ignoradas nesses debates. “Quando a gente olha para as programações e visualiza temáticas sobre saberes ancestrais, racismo algoritmo, assim como contar a narrativas do próprio território, a partir do território, é pensar que a gente pode ter esse espaço de protagonismo, não só um espaço de sermos as pessoas convidadas para falar sobre as nossas histórias e sim as pessoas que produzem essas histórias, tornando-se um espaço muito afirmativo.” Conta Vic Argôlo, pesquisadora e curadora da CriptoCuia Belém.
Ela ainda conta que falta de conectividade é proposital para que as pessoas que vivem na região Norte não acessem recursos, oportunidades e espaços em contraponto às demais regiões do país. Ela também aponta que essa precariedade nada acidental é sobre controle, exploração e extrativismo intelectual. “As informações e dados sobre a Amazônia circulam em rede em tempos de Big Tech’s e satélites rodando os céus da Amazônia, mas para além disso, é importante refletir também de que forma o Norte consegue se inserir nesse espaço e disputar.” completa Vic.
Para ela, a construção de espaços como os da CriptoCuia e da CryptoBera para pessoas nortistas também denota um ambiente de acolhimento e segurança. “É um espaço feito para pessoas como nós, para que nos sintamos à vontade e acolhidos… trazendo as perspectivas e atravessamentos das nossas particularidades, que são regionais e são territoriais, assim como são atravessadas por nossos corpos também”, conclui Vic.
TEXTO
Paula Amaral
(ela/dela, elu/delu) Ativista amazônida, pessoa LGBTIA+, atua com a pauta de Cuidados Digitais e Integrais, especializada em Saúde Mental e Integral, é também, comunicadora e mobilizadora social. Atualmente é coordenadora de projetos da Na Cuia e faz parte da coalizão COP das Baixadas, participou de programas como o Cidadão Digital, sendo pessoa embaixadora do Safer Internet Day (SID) em 2024, iniciativas da ONG SaferNet Brasil.
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“A Estiagem”: Vídeo mostra como a seca tem afetado a vida nas comunidades no Baixo Tapajós
“A Estiagem”: Vídeo mostra como a seca tem afetado a vida nas comunidades no Baixo Tapajós
Após a seca de 2023, os impactos da seca histórica do rio Tapajós de 2024 foram registrados por documentário gravado na cidade de Santarém
Preocupações, mudança de vida e reflexões sobre o futuro de um rio e da própria sobrevivência. Esses são alguns temas encontrados no vídeo “A estiagem”. Produzido por Victor Souza e Rute Araújo com apoio da Escola de Ativismo através do edital audiovisual “Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, o material é focado na realidade do Baixo Tapajós durante as secas extremas provocadas pelas mudanças climáticas.
Produzido em setembro de 2024, o vídeo mostra a situação que tem afetado profundamente a vida nas comunidades ribeirinhas da região que abriga diversos povos e comunidades tradicionais no Pará. Com o material é possível conhecer as dificuldades de navegar na estiagem, entender como os trajetos são interrompidos e como são os esforços para manter o transporte entre as comunidades. Há relatos de famílias isoladas por conta do baixo nível do rio. Neste documentário vamos acompanhar de perto a jornada de barqueiros locais que enfrentam os impactos das mudanças climáticas diretamente em sua rotina e sustento.
Em um contexto de seca mais severa que o ano anterior, os relatos revelam uma adaptação forçada.
Victor Souza, documentarista amazônico e criador da produtora independente Souza.DOC, foi o diretor e montador de “A Estiagem”. Ele conta que o material se relaciona não só com o meio ambiente, mas também com a democracia. “Este ano tivemos eleições para prefeitos e vereadores. Falar sobre a situação atual da seca na região do Tapajós é também refletir sobre como os governos estão enfrentando essa questão, quais medidas estão sendo tomadas e como as políticas públicas são planejadas e implementadas”, afirmou.
O profissional explicou que o objetivo do vídeo vai além de apenas iniciar um debate. “O propósito é levar o público geral a pensar em soluções para enfrentar esse problema, além de estimular a cobrança de medidas mais concretas dos governantes para frear o avanço desse tipo de mudança climática extrema”.
“Quando vimos o edital, percebemos uma oportunidade de abordar a estiagem de forma que alcançasse mais pessoas, aproveitando a amplitude que a plataforma possui atualmente. A estiagem sempre existiu, como é destacado nas entrevistas; no entanto, a grande questão atualmente é como o fator humano e as mudanças climáticas têm agravado a situação, prolongando os períodos de seca nas regiões amazônicas, especialmente no Tapajós”., finalizou.
O edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, lançado em julho de 2024, selecionou projetos para apoiar a produção de conteúdos sobre clima e democracia. O objetivo principal é fortalecer a comunicação da agenda climática no Brasil através da produção de conteúdos informativos e criativos em formato audiovisual.
TEXTO
Letícia Queiroz
Jornalista quilombola e repórter da Escola de Ativismo
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A COP é um espaço possível de luta contra a crise climática? Oito ativistas opinam
A COP é um espaço possível de luta contra a crise climática? Oito ativistas opinam
Após a COP 29 mais uma vez não responder à altura aos desafios da crise climática, ativistas pensam sobre o espaço à luz da COP 30, a primeira a ser realizada no Brasil em 2025

Ellen Monielle, Muriel Saragoussi, Thuane Nascimento, Nathália Purificação, Marcos Wesley, Mariana Belmont, Letícia Camargo e Marina Guião
Foto: Reprodução
A Conferência das Partes (COP), também conhecida como Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, terminou na última semana. O espaço é importante para o diálogo sobre o aumento da temperatura global e atitudes necessárias para enfrentamento do problema que afeta todo o planeta, principalmente pessoas em vulnerabilidade social, povos e comunidades tradicionais e pessoas pretas. Mas o evento mundial recebe fortes críticas de ativistas ambientais. Para ambientalistas, falta senso de urgência, ações imediatas e participação popular.
Ativistas afirmam que a COP não cumpre o que promete e algumas escolhas que envolvem o evento até parecem ironia, como a decisão de realizar a COP 29 em Baku, no Azerbaijão – lugar conhecido pela expansão da produção de combustíveis fósseis e por ter uma economia baseada na exportação de petróleo. Além disso, permitir lobistas do agronegócio a não só participarem do evento, mas também terem acesso privilegiado a espaços de negociações, conhecido como Zona Azul, onde circulam autoridades e tomadores de decisão, é colocar no mesmo lugar quem desmata e polui e quem sofre e luta contra a degradação do ambiente.
Quem faz trabalho de base nos territórios e resiste constantemente por mudanças para a sobrevivência do planeta entende que o evento precisa de reformas urgentes e que não tem sido eficaz na luta contra as mudanças climáticas como deveria ser. Pelo contrário, muites sentem que ele tem sido um verdadeiro exemplo de greenwashing.
Leia também: Greenwashing no governo, nas empresas e na COP: o que é e como identificar?
Pensando em ativismo, incidência e resistência, a Escola de Ativismo entrevistou oito ativistas para saber o que tem funcionado na COP do Clima, o que é negativo e o que deveria mudar para ser a COP ideal. As opiniões e ideias são de pessoas ativistas na causa ambiental que participam ou já participaram de COPs.
Thuane Nascimento (Thux) – Diretora executiva da PerifaConnection
Há muitas coisas que não funcionam na COP para quem é jovem, para quem quer fazer incidência, mas é um espaço muito importante quando a gente pensa que é aqui que as nossas decisões sobre a nossa vida são tomadas. Então, ocupar esses espaços, fazendo ativismo e incidência para que os países do Norte Global vejam que, sim, nós estamos incomodados, nós queremos mais, nós queremos avanço, é muito importante porque é esse lugar que reúne o mundo todo. É uma convenção, é uma grande briga de condomínio para ver quem é que vai assumir essa responsabilidade. Então eu acho que participar para poder lutar para que tanto os países que são responsáveis, mas também nosso próprio país que muitas vezes não têm ambição nessa área, como por exemplo a NDC [Contribuições Nacionalmente Determinadas] do Brasil esse ano, que foi lançada, mas faltou juventude, faltou ambição. Então dentro do nosso próprio país, por mais que se diga um líder climático, nós precisamos pressionar — e a COP é um importante ponto nisso. O Brasil tem um tamanho continental, então não é sempre que a gente consegue encontrar as pessoas, a juventude que muitas vezes não tem financiamento, consegue ir até a Brasília. Então esbarrar nos corredores para os chefes de Estado, ministros, governadores, é uma oportunidade que temos na COP de Clima.
Uma grande limitação que tem acontecido nas últimas três COPs especialmente é a de poder protestar, fazer ativismo mesmo e marcar espaço. É um impedimento da gente realmente fazer o que a gente precisa. Eu acredito que nós somos sociedade civil nós não podemos ter impedimento para poder cobrar se não a gente ficar rendido a mão dos governos.
E uma coisa que as COPs de Clima não têm, mas precisam ter, é mais povo, mais espaços para participação social. Mas eu vou falar uma coisa bem específica. As COPs têm as constituintes, hoje tem um avanço, nós temos a constituinte de juventude, a constituinte de mulheres e gênero, tem o campo de indígenas, mas hoje a COP não tem um espaço para pessoas afrodescendentes. A gente não tem esse espaço para que as pessoas da diáspora global, os negros, consigam colocar suas demandas, que não são demandas do continente africano apenas, não são demandas dos países. As pessoas negras, elas estão espalhadas ao redor do mundo e elas formam uma população muito grande, numericamente, maior que até outras, entre muitas aspas, minorias. Em alguns países, como no caso do Brasil, elas são maiorias populacionais, apesar de serem minorias de direito. Então, eu acho que na Conferência de Mudança Climática da ONU falta um espaço para o povo afrodescendente. Esse espaço está em falta, nós ainda não temos, e é uma luta que é muito difícil, pois não se entende essa negritude como um lugar para poder demandar, para poder lutar pelas mudanças climáticas, mas nós somos os mais afetados.
Muriel Saragoussi, socioambientalista, Escola de Ativismo
Apesar de ter participado de algumas COPs, eu estou cada vez mais descrente dessa incidência nas COPs, porque o que aconteceu ao longo dos anos é que foi se criando um espaço para a sociedade civil ficar ocupada com o mínimo de incidência e pressão em cima dos governos. Foram várias as tentativas e as mudanças feitas no desenho das COPs para tirar a sensação de fracasso de cima dos organizadores.
Então, primeira coisa, antigamente os presidentes iam no final das COPs, porque eles iam para assinar os acordos. Então, existia uma pressão em cima dos negociadores para que houvesse acordos minimamente significativos. Hoje os presidentes vão no comecinho, fazem promessas, vão embora e deixam os negociadores lá. Então, em vez de avançar as negociações, elas ficam estagnadas. A segunda coisa é o espaço físico. As COPs se tornaram grandes eventos, grandes negócios para as cidades que recebem elas. Tem um monte, um milhão de atividades acontecendo e nenhuma atividade efetivamente pressiona os governos a fazerem alguma coisa. Então, a sociedade é mantida ocupada durante o tempo da COP.
A COP, as últimas, foram às vezes cujo nível de democracia é bem, vamos dizer, questionável. Então, tem cada vez menos possibilidade de você fazer grandes manifestações, cada vez menos possibilidade de você impactar a sociedade, seja localmente, seja a sociedade mundial. Tem uma participação de faz de conta, uma participação educada, em que as pessoas têm os dois lugares para ficar, cada um no seu canto e ninguém atrapalha o outro de fazer aquilo que ele faz, mas também ninguém influencia o outro para tomar as decisões que efetivamente precisam ser tomadas, porque nós já não estamos na beira do abismo, nós estamos caindo no abismo e nem tivemos paraquedas, nem fizeram paraquedas, a gente tá fazendo. Então, eu estou bastante desacreditada desse modelo.
Eu acho que a gente precisa, como ativistas, conseguir fazer impacto no mundo ao mesmo tempo com grandes movimentos, se não for um movimento mais forte, mais impactante, tanto do ponto de vista da comunicação, quanto do número de pessoas ao redor do mundo que entende o que está acontecendo, nós não vamos conseguir parar esse trem desenfreado que está caindo no abismo a toda velocidade.
E o que as COPs precisam ter, eu acho que é um senso de urgência. Eu acho que precisa efetivamente entender que esse nosso planeta está mal. Está com febre alta e que a febre se livra dos vírus. E os vírus hoje somos nós, espécie humana. E a gente está criando condições para que o planeta se livre da gente. E aí o planeta vai continuar em outros termos. Então, o que as COPs precisam ter, não só as de clima, mas todas elas, é um senso de urgência e é um senso de preservação da vida humana no planeta e não só dos ricos, que esses vão sair do planeta e morar em Marte.
Nathália Purificação – quilombola, coordenadora do coletivo de comunicação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
O que funciona é a mobilização social. A COP do Clima não era espaço para movimentos sociais participarem. A incidência e as várias frentes dos movimentos sociais dentro da COP do Clima trazem o debate para mesa da população de fato. É o povo falando por meio do povo e para o povo.
Apesar de ter nossa participação, ainda é pouco. Em termos de ativismo o que falta é a maior participação de lideranças indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais. Se a resposta da justiça climática está nos modos de vida desses povos, a participação dentro de espaços como as COPs Climáticas é essencial. Além de participarem ativamente, mobilizam a população pelo interesse no tema, por serem pessoas que trabalham com ativismo social na base. Se concordamos que a participação da sociedade civil impacta nas negociações, então que ocupemos esses espaços.
Marcos Wesley – Assessor Político e Institucional do Comitê COP30
Quando falamos de COP de Clima, acredito que os pontos positivos estão na capacidade desses encontros de reunirem líderes globais, cientistas, ativistas e representantes da sociedade civil em um espaço de diálogo e tomada de decisão. O maior valor da COP está na criação de acordos multilaterais, como o Acordo de Paris, que definem metas globais para limitar o aquecimento e responsabilizam os países a apresentarem planos nacionais ambiciosos. Outro aspecto positivo é a amplificação de vozes que, historicamente, não tinham espaço nas discussões climáticas. Nas COPs mais recentes, temos visto maior participação de povos indígenas, comunidades tradicionais e jovens ativistas, o que traz mais diversidade e urgência para o debate. Isso ajuda a pressionar os tomadores de decisão a incorporarem justiça climática e soluções baseadas em conhecimento local. Além disso, as COPs oferecem uma plataforma para a troca de ideias e o fortalecimento de coalizões. Muitas vezes, as mudanças mais significativas surgem de alianças que se formam nesses eventos, tanto entre países quanto entre movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
O que não funciona nas COPs é a distância entre o discurso e a prática. Muitas vezes, os compromissos assumidos pelos governos acabam sendo vagos ou condicionados, sem mecanismos claros de monitoramento e responsabilização. Isso cria uma sensação de inércia, onde acordos são assinados, mas os avanços reais no combate à crise climática são lentos ou inexistentes.Outro ponto problemático é o espaço limitado para influenciar as negociações formais. Embora haja uma presença crescente da sociedade civil, suas demandas frequentemente ficam restritas às margens dos eventos principais, sendo mais simbólicas do que efetivas. As decisões críticas continuam sendo tomadas em salas fechadas, com pouca transparência e mínima participação daqueles que mais sofrem os impactos das mudanças climáticas. Além disso, a presença massiva de lobistas de indústrias poluentes nas COPs mina os esforços de ativismo. Eles atuam para diluir compromissos e impedir avanços significativos, tornando o evento, em alguns casos, um palco para greenwashing em vez de uma arena de transformação concreta.
A COP do Clima ideal precisaria balancear compromissos de longo prazo com ações imediatas e verificáveis. Muitas decisões são postergadas para prazos que, realisticamente, não enfrentam a urgência da crise climática. Essas mudanças poderiam transformar a COP de um espaço de negociações muitas vezes burocráticas em um verdadeiro motor de ação climática global.
Ellen Monielle – pesquisadora climática e alimentar
Eu acho que o que está funcionando na COP está fora dos espaços oficiais. A COP consegue reunir muita gente, sociedade civil, muitas organizações do mundo todo. Eu acho que são esses debates que não estão no centro das chamadas de decisões, mas são debates acessíveis em sua grande maioria. Ainda tem várias barreiras idiomáticas e logísticas, mas são acessíveis para muita gente da sociedade civil, muita gente que trabalha em organizações, que está ali representando alguém que vai levar o que foi discutido fora dos grandes espaços de tomadas de decisão para suas comunidades, para suas organizações, para ideias de implementação de projetos nas suas nos seus territórios. Então eu acho que isso a COP entrega bem.
A COP está virando cada vez mais uma feira de ciência. Não sei se foi ano passado e que eu vi que uma plataforma social levou vários criadores de conteúdo lá para a COP e tinha conteúdos assim “ai olha a COP é muito legal”. Legal para quem? Porque estar numa COP para mim, como ativista, traz uma sensação contrária. Não é legal estar ali, debatendo clima e sabendo que as decisões que vão ser tomadas, principalmente decisões de alto nível, não vão ser totalmente implementadas. Não vão chegar na comunidade no território que eu vivo. Acho que a COP está virando cada vez mais feira de ciência. Estão indo menos ativistas e mais criadores de conteúdo e também muitas pessoas despolitizadas e aí isso acaba empacando essa questão de ação e incidência efetiva dentro de debates que a gente vai ter fora do alto nível e a influência que a gente pode ter em debates de alto nível também.
A COP poderia ter povos indígenas como uma parte. Eu acho que povos indígenas teria que ter uma representação como uma parte oficial nas tomadas de decisões.
Mariana Belmont – jornalista, pesquisadora e organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil”
Eu acho que o que tem funcionado é que a gente tem visto nesses espaços mais movimento social, mais movimento indígena, mais movimento negro, inclusive reivindicando, dentro das agendas e dentro dos textos de negociação pautas sociais de direitos, de combate às desigualdades, a visibilidade para os povos indígenas, população afrodescendente. Acho que o acesso a esses lugares, mesmo ainda caro, mesmo ainda precário, longe, muito dinheiro, apesar de várias barreiras, a ampliação de pessoas que não são só pessoas brancas, homens brancos, isso tem sido ampliado. E acho que, de novo, essa conta que os países ricos não querem pagar, essa pressão para que eles paguem, está vindo da sociedade civil internacional.
A sociedade civil internacional tem impressionado muito e eu acho que é isso, no fim o futuro vai ser esse. A gente pode voltar de uma COP da biodiversidade, onde os povos afrodescendentes foram incluídos na agenda, os povos indígenas também, reconhecendo e cada vez mais os espaços reconhecem e devem reconhecer e devem falar de financiamento, de recurso para essa população que é quem preserva, está na ponta e preserva a biodiversidade, as florestas, as cidades e que segura o céu.
Para mim esses espaços também funcionam como lugares onde a gente aprende, faz conexão, faz articulação com o governo e sociedade civil, especialmente para a gente olhar dentro dos nossos países, como a gente faz incidência para a política pública em casa, como a gente conecta essas agendas e garantia de direitos.
O que não funciona muitas vezes é esse espaço, os espaços que não funcionam no ativismo. Os ativistas da sociedade civil não têm espaço de fala nas mesas de negociação, só os governos podem falar e decidir. Isso limita a participação social, isso limita o olhar ampliado de participação e de garantia de direitos, não só do Brasil, mas de vários países.
A COP do Clima não tem mais movimento negro, mais movimento indígena, mais movimento social, mais movimento de trabalhadores, mais movimento de mulheres. A COP do Clima ainda não tem esses movimentos que olhem, de fato, coletivamente para garantia de direitos. Isso precisa ser ampliado. Apesar de mais gente acessar esse espaço, mais e mais gente precisa estar nesse espaço, inclusive com mecanismos de participação mais claros, metodologias mais claras de participação e decisão nas mesas.
Letícia Camargo – gestora ambiental, ativista socioambiental e militante ecossocialista
O que é positivo? Difundir o tema, pautar a juventude, popularizar a pauta, pressionar politicamente. O que é negativo? Autopromoção de ativistas, ativistas influencers pagos por empresas sem responsabilidade socioambiental. E o que precisa mudar? Participação popular, espaços de negociação para além de chefes de estados e seus representantes.
Marina Guião – Ativista por justiça climática, estudante de Ciência Política e Relações Internacionais
Eu estou bem desesperançosa atualmente no sistema e nas COPs de clima. Mas eu acredito que o que tem funcionado é quando a gente consegue conversar na língua deles. Para uma ação ser significativa, ela tem que ser muito grande, tem que fazer muito barulho. Mas quando a gente faz uma reunião bilateral e a gente leva um texto específico, com demandas específicas, com linguagens específicas que se encaixam dentro do texto, eu acho que, infelizmente, às vezes a gente tem que aprender a falar a língua dessa galera.
Mas essas pequenas vitórias que a gente ainda tem dentro dos textos, a gente consegue manter opções boas por mais tempo para os países debaterem, acredito que seja quando a gente faz essa pressão organizada, conversa na língua deles. Isso não significa que não seja válido fazermos ações dentro das COPs, mas é porque nos últimos anos as ações estavam muito reduzidas, a gente estava em países não democráticos, a gente não podia fazer as grandes marchas do lado de fora. Então, às vezes ficava um pouco difícil só se mobilizar dentro do lugar das COPs.
Mas a sociedade civil conseguiu se mobilizar dentro das COPs e teve ações bem impactantes, que são lembradas até hoje. Até que ponto isso foi sentido dentro dessa aula de negociação, não dá para dizer que o impacto foi nulo, mas fica um pouco difícil de medir. Mas eu acredito que é essa combinação, a gente conseguir conversar na língua deles, apresentar texto, enfim, às vezes se sentar na mesa para conversar diretamente sobre questões que estão sendo negociadas, mas não dá para negar a pressão da sociedade civil do lado de fora com ações.
Sobre o que não funciona, acredito que são ações que não são bem pensadas, ou eventos em pavilhões. A COP tem lugares específicos para você fazer ações. Eu acredito que pra você fazer uma ação dentro da COP, ela precisa ou ter um objetivo muito claro de mídia, e ter muita gente, ou ter muita coisa que possa ser fotografada, ou ela precisa acontecer em momentos estratégicos em que os negociadores vão estar passando. Então não é só fazer por fazer. E uma coisa que eu acredito que não funciona são os eventos em pavilhões para incidir nas negociações.
Isso pode ter outros objetivos midiáticos. Isso pode ter outros objetivos de levar demandas para outros atores que, por algum motivo, possam estar nos pavilhões, mas dentro da COP, os pavilhões são muito desconectados da sala de negociação, e não adianta nada a gente falar sobre as nossas demandas para adaptação, para mitigação, para financiamento, qualquer coisa, no pavilhão, porque isso não vai refletir de forma nenhuma nas negociações.
Eu acho que uma coisa muito incrível que a COP do Clima tem é a People’s Plenary, é a plenária das pessoas. Só que ela é desconectada com as negociações, de certa forma. Ela é dentro de uma plenária, mas ela é um pouco desconectada. Eu acredito que uma COP do Clima ideal teria mais espaço para a Sociedade Civil, para as pessoas que estão na linha de frente falarem, se articularem dentro ou em colaboração ou ligadas com os processos das negociações. Eu gostaria que a gente tivesse mais essa plenária como protagonista porque os países não estão entregando nada.
Naquela manhã, a programação havia começado com uma sessão solene no Senado Federal, homenageando a Marcha. No mesmo dia, foi finalmente aprovado o Projeto de Lei que indicava a inclusão de Margarida Maria Alves no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.
Foi assim, que após 40 anos de um assassinato bárbaro na frente de sua casa, a grande homenageada do encontro teve sua luta em vida por ser mulher, sindicalista e trabalhadora rural que ameaçava os interesses de poderosos, reconhecida. Para além disso, suas sementes se espalharam mais longe do que ela jamais ousou imaginar. A resistência está firmada.
TEXTO
Letícia Queiroz
jornalista quilombola, repórter da Escola de Ativismo
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Produzido por Pedro Mota, o Boto de Belém, programa terá três episódios sobre justiça climática, racismo ambiental e atuação de ativistas em seus territórios
Foi lançado, nesta segunda-feira (25/8), o talk show “Fala aí, Juventudes Amazônidas!”. Apoiado pela Escola de Ativismo como parte do edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, o programa gravado nas diversas realidades de jovens da Amazônia promove uma conversa sobre racismo ambiental, justiça climática, empreendorismo, ativismo, COP30 e os impactos sociais enfrentados por corpos marcados por gênero, sexualidade e raça.
Os próximos vídeos serão lançados nas próximas segundas-feiras, dias 2 e 9 de dezembro, sempre às 11h30. Todos os materiais poderão ser assistidos no canal do Youtube da Escola de Ativismo.
O projeto foi desenvolvido por Pedro Mota, Gestor de Conhecimento na COJOVEM e mentor do grupo Jovens Pesquisadores Amazônidas para a Realidade Climática, que reúne pessoas de todos os estados da Amazônia Legal. O talk-show oferece conversas envolvente na ilha do Combu, localizada na área ribeirinha em Belém do Pará. As gravações são feitas a bordo de um ônibus, em um barco e durante caminhadas . Durante esses deslocamentos são abordados temas climáticos relevantes, como o aumento das temperaturas, as secas e as enchentes que afetam as comunidades originárias e tradicionais.
O programa trará vozes de jovens da periferia de Belém, da Ilha do Combu e da Ilha do Marajó, promovendo um bate-papo leve e dinâmico, com perguntas que exploram pautas essenciais com pessoas entrevistadas que mostrarão perspectivas diversificadas sobre os desafios climáticos que e sua atuação no ativismo ambiental e empregabilidade em seus territórios.
O apresentador Pedro Mota, conhecido como Boto de Belém, é professor de Geografia, jovem pesquisador da Amazônia, ativista ambiental e pelos direitos humanos da população jovem LGBT+ no Pará. Ele conta que o objetivo do talk show é transpor a lógica de conhecimento no Brasil sobre a região da Amazônia ser sempre o palco para outros protagonistas.
“A juventude da Amazônia está nesse palco comunicando e protagonizando suas histórias. E também expor nossa vivência, potente, vívida nos nossos territórios. Através do empreendorismo, ativismo, cultura, arte, turismo, beleza e muita Amazônia em nossas trajetórias”, explica.
Ele falou que o formato do programa permite conhecer de forma mais direta a realidade de narrativas dos entrevistados. “Isso me dava muito interesse em promover um programa no qual corpos, como o meu, jovem, amazônida e com uma história potente, pudessem também serem ouvidos, vistos. Nasce então o Fala aí, Juventudes Amazônidas. Ele existia apenas na ideia, mas com o projeto da Escola de Ativismo consegui produzir três episódios pilotos e agora está ganhando vida”, disse.
O edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, lançado em julho de 2024, selecionou projetos para apoiar a produção de conteúdos sobre clima e democracia. O objetivo principal é fortalecer a comunicação da agenda climática no Brasil através da produção de conteúdos informativos e criativos em formato audiovisual.
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