Se uma parte significativa da imaginação política progressista contemporânea está amarrada às ficções imperiais e masculinas sobre poder, conquista, identidade, unidade e maioria, as cozinhas abrem as apostas sobre uma outra política

Por Alana Moraes

QUEM TEM MEDO DA COZINHA?

Toda cozinha tem um cheiro, uma forma própria de organizar seus temperos e panelas, um segredo sobre o fogo e suas modulações, sobre como fazer render e aproveitar o que se tem de disponível, sobre simpatias e curas. Cheiros, truques, memórias e gestos: as cozinhas são compostas por elementos nem sempre tão imediatamente visíveis, mas que nos exigem intuição, atenção ao mundo que habitamos e um senso muito aguçado de cuidado. Ao nos tornarmos feministas da periferia do mundo, entre quebradas e subúrbios, passamos a reconhecer em nossas cozinhas as zonas de confluência contracolonial que existem nos cruzamentos entre os poderes e as resistências, entre os feitiços e os sofrimentos, entre o ordinário e o extraordinário, entre as palavras, mas também entre os silêncios – o que não pode ou não precisa ser dito, o que escapa do discurso.

O pensamento que emerge nas cozinhas é, sem dúvida, um pensamento que investiga as atuações possíveis em um mundo saturado de poder e violência colonial. Investiga os modos pelos quais podemos ainda habitar as ruínas, todas elas e nos defender. Um pensamento que atua pela diferença e singularidade, nunca pela homogeneização. Mas essa constatação nem sempre se fez evidente. Muitas de nós, traçando trajetórias escolarizadas e inevitavelmente influenciadas por um certo feminismo embranquecido, aprendemos a associar a cozinha ao lugar de subalternização e nada mais.  Atormentadas pelo fardo doméstico sustentado por nossas mães e avós, as cozinhas – e o trabalho gratuito que elas propiciam – nos pareciam um lugar em relação ao qual era preciso escapar. Por um lado, havia o menosprezo dos homens (cis-heterossexuais) pela cozinha e todo seu universo, assim como a valorização dos trabalhos considerados masculinos, daqueles que podiam se livrar da cozinha por uma fantasia de independência e autossuficiência. Por outro lado, as ideias de liberdade e emancipação, dentro da matriz de pensamento euro-americana, nos conduziam a um horizonte de desejo que estava sempre muito distante do cheiro de refogado e do feijão de molho. Aprendemos que o mundo é dividido entre dominação e autodeterminação; sujeição e esclarecimento – e nessa grande cisão, o mundo tumultuado da cozinha entre sensações, misturas, fugas e jogos de cintura parecia, inevitavelmente, tombar para o lado das opressões.

Também é possível reconhecer em nossas histórias, geração após geração, o trabalho feminino doméstico gratuito ou mal-remunerado erguendo a infraestrutura oculta do capitalismo em nossos fogões. Histórias sobre infelicidades, sonhos interrompidos, sobre não reconhecimento, adoecimento e solidão.

O Brasil é o país com mais empregadas domésticas do mundo, e, como lembra Vergés, “sobre essas vidas precárias e extenuantes para o corpo, essas vidas postas em perigo, repousam as vidas confortáveis das classes médias e do mundo dos poderosos” (1) Essa é ainda uma das expressões mais vivas da nossa colonialidade, um lugar difícil que ainda me faz constantemente pensar sobre o porquê da minha mãe ter guardado para si, como quem resguarda um segredo perigoso, o fato da minha avó, sua mãe, ter sido empregada doméstica. No entanto, a cozinha é também o lugar onde se sobrepõem os muitos cruzamentos entre poder e perigo, intimidade e domínio, o que nos destrói e o que nos vinga. Pela cozinha, aquelas que ocupam posições subalternizadas também “desenvolvem um conhecimento acerca do·a·s dominantes que constitui um arquivo de seu poder absoluto fenomenal”, como lembra Elsa Dorlin (2).

Se, por um lado, fomos aprendendo a confrontar o destino atualizado pelo patriarcado de que “lugar de mulher é na cozinha”, por outro lado, também entendemos que a cozinha é o lugar que suscita muitas cumplicidades. Na cozinha torna-se possível falar sobre o marido ou o patrão e confabular sobre as pequenas resistências de todos os dias, negociar e fabricar alianças dentro das nossas comunidades, vizinhanças. Uma espacialidade relacional na qual podemos cruzar nossas histórias e produzir inéditas coalizões entre os corpos feminilizados – aqueles que se conformaram bem demais e a um alto custo às ordenações cis-heterossexuais domésticas – e aqueles outros dissidentes que não podiam se conformar tão bem assim. Como recorda Lugones, pela cozinha podemos reconhecer que “a subjetividade que resiste com frequência expressa-se infrapoliticamente em vez de em uma política do público, a qual se situa facilmente na contestação pública” (3).

Nas cozinhas aprendemos a fazer remédios que curam, mas também venenos e vinganças; preparamos as refeições de todos os dias, mas também as conspirações silenciosas e os banquetes que sustentam as festas que finalmente abrem nossas cozinhas para vizinhas, amores secretos, para o sagrado e aos encontros inesperados que perfazem também uma erótica da convivialidade aquecida pelo fogo e pelo prazer da mistura. Nas cozinhas que se abrem para quintais, a terra e as plantas nos fazem ainda insistir na aliança com o mundo vivo, nos lembram que nos compomos com o mundo quando comemos e preparamos nosso alimento, fazemos nosso corpo, como bem sabem, por exemplo, as cozinhas Guarani.

Pela cozinha passa toda história do capitalismo colonial racializado, é verdade. Mas ao mesmo tempo é pela cozinha que somos feitas como gente, entre cheiros, memórias e segredos sobre o que os corpos não aguentam mais e do que eles desejam ser, ainda. As histórias de cozinhas são bem anteriores ao evento colonial e em muitos sentidos os modos pelos quais pessoas cultivam (ou coletam) e preparam seus alimentos expressam também os modos pelos quais elas se organizam politicamente. Na cozinha também circulam as histórias da terra e das plantas, saberes sobre substâncias que acalmam e que excitam – uma metafísica do sensível que experimenta a variação dos corpos quando o prazer e a dádiva tornam-se ainda possíveis nos interstícios do mundo da mercadoria, seus fracassos e solidões.

“Ter que estudar pra não terminar na cozinha” é o que ouvimos como conselho das nossas próprias mães e avós – mas não mais as culpamos. Sabemos o que quer dizer essa aposta para mulheres que não tiveram muitas alternativas além de ter que acolher em suas cozinhas todos aqueles que vez ou outra são expulsos dos seus trabalhos, perdem direitos a bens coletivos, adoecem. Mas entramos na universidade ou nos formamos pela luta coletiva – muito graças a elas – e encontramos com bell hooks, Audre Lorde, com Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento (4), com as histórias revolucionárias que sustentavam quilombos, terreiros e aldeias entrelaçando todo um território e suas práticas de liberdade entre combates e cuidados. As cozinhas criam e tecem uma infrapolítica composta por memórias ancestrais, conhecimentos autônomos transmitidos por gerações e sem os quais não sobreviveríamos.

Talvez o perigo da cozinha, aos olhos dos poderes coloniais, esteja na incontornável constatação da nossa amefricanidade, que Lélia Gonzalez intuía como prática existencial e categoria filosófica-política de contrafeitiçaria ao mundo colonial e seus muitos dispositivos de denegação (5). A amefricanidade sempre esteve presente “nas revoltas, na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre”, diz Lélia, também nas cozinhas e suas muitas formas de experimentação de fugitividade e proteção. Tudo começa na cozinha e termina na cozinha, a cozinha é o espaço de transmutação e transformação da mercadoria em dádiva, da fuga em resistência, do profano e do sagrado, da vida que se faz sem governo. Por que a cozinha não seria também o lugar de experimentações revolucionárias, conspirações e sustentação de outros mundos possíveis quando tudo parece desmoronar?

POR UMA POLÍTICA DE COZINHA

As cozinhas sempre foram lugares no quais misturam-se festas e resistências. No Rio de Janeiro, no final do século 19, uma das principais incursões de repressão da polícia era contra as “casas de angu”, espaços de festas sustentados por pessoas negras que se libertavam da escravidão. “Nos dicionários brasileiros, os termos angu ou zungu apresentam sentidos  pejorativos: desordem, sujeira, esconderijo. O angu alimento constitui-se também em “metáfora da cultura popular de origem negra-africana: heterogênea, confusa, díspar […].”(6)

No começo do século 20, em São Paulo, as “casas palacetes” das elites brancas constituíam-se em oposição aos chamados cortiços. Enquanto o principal “atributo” dos palacetes era a separação bem delimitada entre cozinha e o resto da casa, nos cortiços populares era muito comum que as cozinhas fossem abertas e compartilhadas. Tal configuração espacial certamente foi decisiva para articular as “Ligas de Bairro”, formas populares de organização que lograram construir a grande greve geral de 1917 na cidade de São Paulo. Para os Panteras Negras, um dos grupos de ação revolucionária mais importantes na história recente do movimento negro, as cozinhas tornaram-se espaços centrais de cuidado e combate. A organização criou um programa de ação direta no final dos anos 1960 chamado de “Programa Café da Manhã Grátis para Crianças”. As cozinhas criavam espaços de convívio nos territórios, fortaleciam as alianças intergeracionais e chamavam atenção para o fato de que não era possível ação revolucionária que não passasse pela cozinha e seu trabalho cotidiano de fazer pessoas e conspirações.

Em grande medida, as importantes greves do começo dos anos 1970 e 1980 em São Paulo e na região do ABC paulista foram asseguradas por redes de mulheres das periferias que, muitas vezes junto à igreja católica, ativavam circuitos de doação de alimentos e mesmo marmitas para que os grevistas seguissem firmes no combate do chão da fábrica. Nos anos 1980, o movimento de luta contra a carestia era articulado entre mulheres das periferias e suas cozinhas no intuito de denunciar a alta do preço dos alimentos e a farsa do “milagre econômico” criado pela ditadura militar no Brasil.

As cozinhas são espaços centrais em quilombos e aldeias, acampamentos de refugiados, ocupações, assentamentos, casas coletivas criadas e mantidas por pessoas dissidentes do regime de sexo-gênero. As longas filas dos dias de visita em penitenciárias são compostas por mulheres que lutam contra a desumanização continuadamente produzida por aquele espaço – e o fazem pelo preparo de comidas que infiltram a força de suas cozinhas e temperos para que seus amores confinados tenham força diante das torturas normalizadas por nossa sociedade encarceradora. As ocupações sem-teto de luta por moradia são fundadas pelas cozinhas, e as mulheres que as sustentam detêm uma habilidade incomparável na atuação de fazer alianças e tecer, pela inteligência anfitriã, uma política de cozinha por onde circulam prestígios e lealdades e que recostura mundos despedaçados pela política de extermínio do Estado, fabrica novos parentescos.

Ainda assim, nem sempre as tradições socialistas e comunistas foram capazes de perceber a força da cozinha como espacialidade contracolonial de luta e resistência. A política revolucionária imaginada majoritariamente pelos homens tem a ver com cenas de ruptura, excepcionalismos individuais e heroicos, comando e performance discursiva sobre o poder de “mobilizar as massas”. Nas cozinhas, ao contrário, ninguém procura convencer ou mobilizar. Ninguém está interessado em “salvar” ninguém – preparar uma boa comida não tem a ver com hegemonia, mas com uma inteligência sensível, prática e ao mesmo tempo aguçada para efetuar composições surpreendentes: “não são as razões que fazem as revoluções, são os corpos”(7). A cozinha coletiva é um espaço poroso no qual se trata de criar e fortalecer uma existência coletiva, onde a experimentação é bem mais importante do que a representação ou o discurso, as boas histórias são mais importantes do que as bandeiras. A fama de uma boa cozinheira se faz por um conjunto de habilidades que tem a ver com o poder de afetar e ser afetada, com uma disponibilidade estética e ética para compreender seu entorno e favorecer suas possibilidades – saber sentir o que se passa nos registros do invisível, cultivar uma atenção permanente para a qualidade das relações que sustentam um coletivo, sustentam o combate.

Perrone-Moisés lembra que foram os arqueólogos aqueles que resgataram o papel do “banquete” e da comensalidade como matriz relacional, mas também fonte de prestígio e produção política nas sociedades ameríndias. É a partir desse movimento que a antropóloga toma a festa como matriz e a relação anfitrião-convidado como modelo político: “saber cantar e dançar, ser ‘detentor’ de objetos de festa, simplesmente saber fazer festas etc. É na Festa, também obrigação de chefe índio, que as qualidades do ‘cargo’ aparecem”(8) Todas essas características compõem o clássico modelo discutido por Pierre Clastres de um “chefe sem poder”, quer dizer, um chefe sem autoridade. O chefe indígena (tal como as tias e suas cozinhas) ostenta uma grande generosidade que, nas palavras de Clastres, “parece mais do que um dever, mas uma servitude”. “Chefe é o que recebe, o que acolhe, o que dá de comer” (9), resume o antropólogo.

As cozinhas foram sendo docilizadas e interpretadas com condescendência alegórica e folclórica mesmo nos círculos militantes. A luta política, compreendida por essas tradições, seria um lugar que nos exigiria esforço e sacrifício, o abandono de qualquer espaço que envolve dependência, cheiro de refogados – a “classe em si” estaria para a cozinha como a “classe para si” estaria para os palanques. Mas mesmo do ponto de vista da crítica ao capitalismo, a cozinha nos apresenta imagens bem mais efetivas. A cozinha é um lugar que nos exige tempo, autonomia, intuição e encontro – todas as coisas que não cabem na ficção do indivíduo autossuficiente inventado pelo capitalismo, nem mesmo na virilidade heterossexista reproduzida por muitos militantes comunistas. A cozinha não precisa ser doméstica. Em tempos de alta do preço dos alimentos, pense em uma cozinha móvel, ágil, que se instala na linha de frente de uma manifestação com todos os seus aparatos transformando-se em instrumentos de combate, com suas substâncias neutralizando o gás lacrimogêneo e com sua infraestrutura aberta e imprevisível diferente dos insistentes carros de som que só falam a língua do poder e do comando.

Pelas cozinhas, nós lamentamos e odiamos juntas a vida que estamos obrigadas a viver. E por isso mesmo a cozinha foi perseguida e temida: da “caça às bruxas”, que inaugurou o capitalismo na Europa durante os séculos 16 e 17, à perseguição permanente de terreiros contemporâneos, quilombos, aldeias e ocupações, vemos um circuito integrado de poder que articula velhos e novos dispositivos de perseguição e punição contra corpos e territórios que conjuram os poderes e chantagens do Estado e da propriedade privada, dos regimes de governo sexo-político que insistem a todo custo em domesticar as nossas cozinhas e fazer dela o último bastião de sustentação do casamento heterossexual. A cozinha é também, ao contrário de sua codificação dominante pelo gênero, um espaço de confluência de dissidências às normas dominantes do gênero. Entre temperos e temperaturas, os experimentos de transmutação e transe também são preparados nas cozinhas.

Não é à toa que mais recentemente os neoliberais disseminaram a expressão “não existe almoço grátis” como emblema. Para eles é mesmo impossível (e perigoso) imaginar que ainda exista um espaço no qual o conjunto de interesses não está subordinado à “racionalidade” de maximização de ganhos individuais. Nas cozinhas coletivas, dar é receber: os circuitos de prestígio estão associados à habilidade de boa anfitriã, de nunca cobrar pelo que se oferece. A maior ofensa que pode acontecer em uma cozinha é quando se recusa receber o que lhe é oferecido – boas cozinheiras exigem bons comensais, e a melhor retribuição é a demonstração elogiosa e pública de prazer pelo que se come, pelo momento que se compartilha – quase tudo que funciona pelo prazer compartilhado é imbatível.

COZIDOS, MEXIDÕES, MOQUECAS, FEIJOADAS, MUNGUNZÁS: A ARTE DE COMPOSIÇÃO DE UMA POLÍTICA POR VIR

A cozinha guarda poder e perigo, prazer e também segredos sobre combates e fugas. Não apenas como resistência, mas as cozinhas coletivas são capazes de fabricar uma política que torna visível um outro mundo que já existe e está entre nós. É a cozinha que ainda conecta aldeias, quilombos, ocupações, vizinhanças – a cozinha aberta e coletiva desativa as cercas da propriedade privada e celebra a persistência de paixões não proprietárias que as sustentam; celebra a política como festa e técnicas de composição entre diferenças e nos convida a pensar sobre o encontro afro-indígena que nos constituiu longe das cercas e da vigilância, desafiando também o pensamento colonial cujo centro repousa em estratégias continuadas de separação: o corpo da consciência; a festa da política; a assembleia da cozinha. São espacialidades de fugitividade que possibilitam, inventam e sustentam refúgios – a cozinha é a vida ela mesma produzida por uma ontologia da mistura onde tudo é sempre incompleto, sempre aberto, que nos exige uma atenção permanente ao que se passa entre os corpos, seus desejos e aflições – sempre inconstâncias, porque tudo está em cozimento.

Se uma parte significativa da imaginação política progressista contemporânea está amarrada às ficções imperiais e masculinas sobre poder, conquista, identidade, unidade e maiorias – as cozinhas abrem as apostas sobre uma outra política. Se olharmos bem, a experiência coletiva e comum mais permanente entre os mais pobres ao longo dos séculos tem muito mais a ver com cozinhas do que com fábricas ou com o trabalho assalariado. Durante muito tempo as esquerdas pensaram a cozinha como uma “fase inferior” do trabalho operário, um lugar ligado às necessidades nutricionais do trabalhador, mas nunca um lugar de criação e luta.

Nossas culturas alimentares – insistentemente ameaçadas pela monocultura e pela indústria de alimentos –- nos oferecem mais do que “subsistência”, mas um deslocamento ontológico. Nas cozinhas coletivas dos acampamentos sem-teto, por exemplo, emerge uma noção de pessoa feita entre cheiros, sabores e um renovado circuito de prazer e curas na qual “ser um é tornar-se com muitos” (10). São interdependências táticas que deslocam o ordenamento doméstico e generificado do neoliberalismo para experimentar uma espacialidade feita da confusão entre corpos, sabores e saberes, do que circula entre nós e do que podemos sustentar por nós mesmos sem pedir permissão. Misturas heterogêneas – como nas feijoadas ou cozidos – que resistem às sínteses e depurações – escapando assim da escassez imaginativa daqueles que pensam a classe trabalhadora sempre como “falta”, nunca como excesso e esbanjamento.

Em um momento difícil no qual vemos a reorganização de forças neocoloniais que ameaçam a vida na terra – de humanos e outras criaturas –, sobrou pouca coisa na qual ainda podemos nos apoiar para procurar saídas. Vivemos uma crise sem precedentes das formas tradicionais de representação: os partidos e organizações de esquerda parecem girar em torno dos mesmos lugares de concentração de poder controlado por poucas lideranças que insistem em querer nos esclarecer, emancipar, mostrar um caminho de salvação que, coincidentemente, nunca passa pela cozinha. Como convocaram recentemente os zapatistas, diante do fim desse mundo que vivemos e de tudo que ainda tem que acabar, nos resta afirmar uma política pela vida. Não aceitaremos a vida regulada, conduzida, uma vida que nos resta nesse latifúndio pandêmico, desejamos a vida em todas as suas possibilidades. Uma política pela vida atua contra a obstrução coletiva na capacidade de imaginar outras formas de existência coletiva – aqui e agora. Como nos convoca também Denise Ferreira da Silva, é urgente pensar uma outra política que recusa a herança colonial e que “exige que libertemos o pensamento das amarras da certeza e abracemos o poder da imaginação para criar a partir de impressões vagas e confusas, ou incertas, que Kant (1724-1804) postulou serem inferiores às produzidas pelas ferramentas formais do Entendimento” (11)

E SE NÓS VOLTÁSSEMOS A PENSAR PELA COZINHA?

QUAIS IMAGENS SOBRE LUTA, POLÍTICA E VIVER JUNTO SE ABRIRIAM?

Por fim, que também é um começo, queremos lançar um convite – como nos bons aperitivos que abrem o apetite entre cachaças, torresmos ou bolinhos de arroz feitos com o que já temos. O convite é para uma cartografia aberta e experimental que se divirta para compor uma coleção de teses presentes em nossas cozinhas – ou nas cozinhas que ainda desejamos fazer. São lições, receitas alteradas e abertas, segredos e intuições, conspirações e sabotagens que aprendemos durante nossa vida nas cozinhas e que podem nos ajudar a imaginar essa outra politica – uma política de cozinha para os tempos de catástrofe.

Deixaremos aqui algumas pitadas iniciais para ativar o calor do pensamento.

Seguiremos recolhendo ingredientes em formas de aforismos neste email: conspire@tramadora.net

  1. Só picar uns alhos nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Toda pessoa tem um jeito próprio de descascar e preparar o alho para um refogado. Imaginem uma reunião ou assembleia na qual, a pessoa que pede a palavra, teria que descascar e picar alguns alhos enquanto fala ou faz uma proposta. Desconfie de quem não consegue realizar essa tarefa. A luta de classes se faz, afinal, pelas herdeiras das picadoras de alho contra os herdeiros daqueles que sempre se livraram e terceirizaram essa prática.
  2. Ouse provar. Não há hipótese, orientação, programa ou nenhuma grande ideia que surja sem a disposição para a experimentação. Como lembrou uma bruxa belga, Sapere Aude (ousar saber), o famoso slogan iluminista reverberado por Kant, vem, na verdade, de um verso do poeta romano Horácio no qual Sapere sugere mais “sabor” do que “saber”, ou melhor, aponta para a indissociabilidade entre saber e experimentar, conhecer e saborear.
  3. Ser alquimista. Tanto na cozinha como nos laboratórios, o primeiro aprendizado é o de que não se trata de impor forma à matéria, mas de reunir muitos materiais e elementos, combinando, experimentando, redirecionando seus fluxos na expectativa do que pode surgir. Na cozinha, na maioria das vezes, temos que criar uma refeição a partir dos ingredientes que estão ali disponíveis. Não existe aqui uma grande revelação de ruptura com o mundo que temos; ao contrário, nossa revolução será experimentada a partir desses corpos e ingredientes que já temos, de uma fina arte de composição de mundos que foram despedaçados. Arte da catálise, da alteração. Ao invés de utopias distantes, as cozinhas são lugares de fazer aqui e agora com o que temos disponível – às vezes tudo que importa é a temperatura.
  4. Conjurar as receitas dos heróis. Sabemos que a cozinha é o lugar, por excelência, das práticas anti-heroicas. Cortar cebolas, engrossar o caldo de um ensopado, fazer render o feijão, nada disso parece épico ou suficientemente revolucionário. Mas a cozinha é o espaço que conhecemos onde mais se experimenta fazer coisas que favoreçam a vida compartilhada. Estar na cozinha é ter que realizar um feito e o sucesso desse feito-feitiço é conferido por aqueles e aquelas que fazem parte da comunidade sempre provisória entre cozinheiras e comensais. Ao contrário das fábulas de salvação dos heróis, na cozinha tudo é sempre sobre relações. Mais do que “esclarecer”, a cozinha nos exige uma atenção para todas as tarefas ordinárias e invisíveis que nos mantêm vivas. Toda reunião deveria, ao menos, ter como resultado imediato uma boa refeição preparada coletivamente e de forma improvisada, com cada um trazendo para o encontro um ingrediente que possa se compor com os demais sem ter que combinar anteriormente. Lembrar que os heróis podem, por descuido, acabar se tornando o prato principal.
  5. Aceitar os riscos e tudo aquilo que escapa dos planejamentos. Todo mundo sabe que, nas cozinhas, tudo sempre pode dar errado. O bolo que sola, o angu que empelota, a massa que desanda, o feijão que salga. É difícil corrigir uma desmedida de sal ou açúcar, mais difícil ainda é voltar atrás na quantidade de pimenta que, por impulso, deixamos escapar em demasia. Na cozinha, estamos sempre lidando com os imprevistos – e longe de querer controlá-los, administrá-los ou fazer de tudo para que eles não aconteçam, na cozinha precisamos elaborar uma inteligência do imprevisto; compor com a imprevisibilidade e articular saídas para os impasses sem ter que apelar para um ambiente totalmente controlado de medidas precisas. A boa cozinheira é sempre tentada em não seguir a receita de forma precisa, mas elaborar uma outra versão dela assumindo o risco do que pode ser.
  6. “Saber de olho” e cultivar uma inteligência intuitiva. Toda boa cozinheira gosta de vangloriar-se quando afirma não trabalhar com medidas exatas porque “sabe de olho”. Saber de olho é o resultado de uma experiência senciente, uma forma de saber que depende de uma confiança aguçada nos sentidos. Para tal feito é preciso abrir-se ao mundo, apostar em uma experimentação tateante que navega com destreza entre sabores, cheiros, densidades, texturas, cor, que sabe pelo corpo.
  7. Aprender a deixar espaço para o que escapa do discurso. As conversas de cozinha sempre acontecem de um modo mais ou menos impremeditado. Pode até ser que haja um assunto anterior que levou as pessoas até ali, mas em geral, as histórias se cruzam e vão produzindo um encadeamento próprio de questões, relatos e aberturas. Muitas vezes as conversas imprevistas são importantes para que nos desloquemos de questões que estamos obcecados. Frequentemente, em nossas reuniões, as conversas que antecedem a “pauta” são mais importantes e abertas do que aquelas que estão planejadas para acontecer. Isso porque as conversas de cozinha convocam relatos sobre a vida, sobre dores e sofrimentos, sobre nossas pequenas alegrias, elas são convidativas e dificilmente estabelecem hierarquias – tudo que permanece às sombras da “política que importa” e suas performances discursivas que acabam regulando o que é legítimo de ser dito ou não, reforçando assim uma ideia de “esfera pública” que não deixa ser infiltrada por corpos e suas marcas.
  8. Cultivar uma erótica da mistura. Uma cozinha cheia é povoada de esbarrões imprevistos. O calor do fogo e os temperos elevam os sentidos que tornam-se mais aguçados à presença do outro. Nas cozinhas, precisamos nos entregar a cheiros, temperaturas, tocar em consistências e superfícies; muitas vezes, trocamos salivas entre provas e talheres divididos. Por isso mesmo a cozinha é, em muitas circunstâncias, um lugar de intimidade no qual convida-se as visitas mais próximas, uma espacialidade em que a distância entre corpos diminui drasticamente. Audre Lorde (12) fala sobre a retomada do uso do erótico contra uma tradição política que o inscreveu no registro do feminino, superficial e inferior – o erótico é a interface sensível das experiências conjuntivas que ocorrem nas cozinhas. O erótico, conta Audre, é “energia criativa fortalecida”, uma forma de relação que supõe uma experiência de gozo compartilhado – estar junto, para além dos registros sexuais, inclusive.

NOTAS

1 Françoise Vé rges. Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. Sã o Paulo: Ubu, 2020

2 Elsa Dorlin. Autodefesa: uma filosofia da violência. Tradução: Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. Editora Ubu, 2020.

3 María Lugones. Rumo a um feminismo descolonial. Rev.Estud. Fem., Santa Catarina, v. 22, n. 3, set/dez, pp. 935-352, 2014.

4 bell hooks. Ensinando a transgredir: a educaç ã o como prá tica de liberdade. Traduç ã o de Marcelo Brandã o Cipolla. Sã o Paulo: Martins Fontes, 2013; Audre Lorde. Use of the Erotic: The Erotic as Power. Publicado em: Audre Lorde. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. Lélia Gonzalez. Racismo e sexismo na cultura  brasileira. Publicado em: Bianca Santana (Org.). Vozes insurgentes de mulheres negras: do século XVIII à primeira década do século XXI. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2019. Beatriz Nascimento. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Revista Afro-diá spora, Sã o Paulo, v. 3, n. 6-7, p. 41-49, 1985

5 Lélia Gonzalez. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, pp. 69-82, jan/jun, 1988

6 Carlos Eugênio Líbano Soares. Zungu: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Rio de Janeiro, 1998.

7 Comitê Invisível. Motim e destituição agora. São Paulo: n-1 edições, 2017

8 Beatriz Perrone-Moisés. Festa e Guerra. Tese (Livre-Docência). São Paulo: FFLCH/USP, 2015

9 Pierre Clastres. A Sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2004

10 Donna Haraway. Entrevista concedida a Juliana Fausto, Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski. Exibida no Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, 18 de setembro, 2014.

11 Denise Ferreira da Silva. Sobre diferença sem separabilidade. Catálogo da 32ª Bienal de São Paulo (2016)

12 Audre Lorde.

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