É muito importante para nós, na Escola de Ativismo, entendermos como uma conquista se torna uma conquista. Um dos pontos que eu soube que são muito essenciais na sua luta é o selo alimentar. Como surgiu essa ideia? Por quê?
Eu comecei a trabalhar no IDEC e foi uma experiência muito interessante de reconhecer a conexão do direito da alimentação com o direito do consumidor. As pessoas pensam o consumidor como uma coisa “ah, é consumidor, é consumismo, é quem quer consumir, quer comprar”. Mas a gente tem uma construção bem importante de consumidor no sentido da cidadania, de lutar por direitos coletivos, né?
O Código de Defesa do Consumidor brasileiro é referência. Foi construído na época da redemocratização, junto com o SUS e outras coisas. Ele traz uma lógica de princípios, de como devem funcionar as relações entre pessoas e empresas. Quem detém o poder e a informação do que está sendo ofertado são as empresas, portanto, elas também têm a obrigação de garantir que os consumidores, por estarem mais vulneráveis, recebam todo tipo de informação, de apoio para que essa relação seja o mais justa possível.
Eu não conhecia tanto o tema da rotulagem, mas lá no IDEC já era uma temática que vinha se valorizando há muito tempo com pesquisas e atuações. Quando cheguei, tive essa oportunidade de discutir sobre a rotulagem nutricional, que era inicialmente apenas a tabela que fica atrás da embalagem.
Logo em seguida surgiu a iniciativa dos octógonos pretos, no Chile. Foi o primeiro país que adotou selos frontais na abordagem de advertência, e ficamos encantados com essa experiência. Nessa época, eu comecei a participar de algumas reuniões do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Lá, a gente teve uma discussão sobre isso, e falamos, “vamos incitar a Anvisa para começar a discutir sobre o tema.”
Tinha uma abertura política na época, então a Anvisa topou começar a discussão. Nem havíamos feito uma proposta, mas começou-se a discutir o que que ia ser essa rotulagem nutricional e quais eram os problemas. Conseguimos fazer uma discussão bem aberta com a participação da sociedade civil e da academia. E até com a indústria.
Fui entendendo a lógica, a dinâmica, o que a Anvisa queria propor. Fomos conversar com outros grupos. E foi assim que eu conheci um grupo que trabalha com design da informação, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) , e junto com eles, desenhamos uma proposta que achamos mais adequada para o Brasil. Eles propuseram o formato dos triângulos, e a gente na parte funcional propôs as regras da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), para dizer o que é alto em açúcar, gordura, sódio. Isso porque a conformação do selo depende das duas componentes: o design e o perfil de nutrientes.
A gente já tinha recomendação da OPAS do que deveria ser o critério para isso. Com essa proposta, a gente conseguiu fazer estudos para validar essa proposta aqui no Brasil. Fizemos um monte de campanha, porque havia a possibilidade de fazer campanha de informação em massa. Foi incrível fazer a articulação direta com diretores da Anvisa.
Quanto à ação de rua, foi uma época muito intensa de mobilização. A gente defendeu o triângulo até o final, tinha ali uma proposta muito consistente. Mas isso acabou se transformando. De todo modo, sempre foi uma construção coletiva. Não foi uma ideia, uma pessoa que veio e falou. Foi uma construção de pessoas, de inspirações e de acúmulos de experiências.
O triângulo foi considerado por eles, mas acabou perdendo pela correlação de forças com a indústria. A Anvisa acabou optando pela lupa, por ser uma mediação com a indústria, mas já foi algo positivo por si só.
Não seria a abordagem no semáforo que a indústria queria: a indústria teve que se dobrar e aceitar essa proposta, bem diferente do que eles queriam. Os critérios para dizer o que é alto [em sódio, açúcar etc.] ainda são muito flexíveis, mas chegamos num reconhecimento da necessidade de avançar com essa agenda. Com a implementação da rotulagem acontecendo, isso muda a norma social, isso muda como as pessoas se relacionam com a alimentação, e a gente quer seguir melhorando.
Você mencionou que houve esse impasse com a indústria. Como lidar com essa resistência da indústria com o que vocês queriam? O que exatamente a indústria queria e que não era conciliável para vocês? Não só para vocês, mas para a sociedade.
Eu acho que a indústria não queria nada, né? Eles queriam manter como estava, uma proposta que afetasse menos a embalagem. Diziam que o triângulo ia causar medo nas pessoas, que as pessoas iam deixar de consumir.
Fizeram previsões econômicas catastróficas, de que o mercado de alimentos ia falir. Eles queriam uma proposta, então defenderam a proposta do semáforo, que a gente já sabe que não funciona por ter impactos bem pequenos.
No começo da discussão eles achavam tudo muito fácil, porque estavam mal acostumados a lidar com a Anvisa e ganhar a causa, sabe? Depois, se assustaram e organizaram a rede de rotulagem, que é uma rede enorme com todas as associações da indústria de alimentos. Virou uma coisa muito grande de posicionamento da indústria.
Eles influenciaram ali. A gente não tem provas, detalhes, mas induziram a indicação do próximo diretor indicado, para que fosse uma pessoa mais alinhada com o interesse do lucro. Muitos conflitos de interesses nesse meio de campo que a gente não sabe…