O retrato que Natália Lackeski e Cadu Ronca, do Instituto Aromeiazero, fazem das mazelas e lutas dos cicloentregadores não deixa dúvida: ali está um ponto nevrálgico do sistema de exploração e, ao mesmo tempo, uma oportunidade potente de transformar os rumos das cidades, resistir à precarização e fortalecer formas de colaboração e solidariedade

Urgência e retomada

Começamos o ano de 2020 cheias de planos, metas e objetivos. Íamos colocar na rua mais uma edição presencial do curso do Viver de Bike, nosso projeto que promove a geração de renda por meio da bicicleta. Até então, era um curso presencial que abordava mecânica de bicicleta, empreendedorismo, geração de renda e pedalar na cidade. Durante as aulas, os alunos reformam bicicletas antigas e sem uso que conseguimos por meio de campanhas de doações e, no final, a bicicleta fica com eles como uma ferramenta para realizar o negócio que eles idealizam ao longo do curso. Apesar de atuarmos com uma população periférica de São Paulo, da Cidade Tiradentes ao Grajaú, o curso acontecia no Clube da Comunidade (CDC) Arena Radical, na Vila Olímpia, um dos centros financeiros da cidade. Mas este ano, depois de uma série de experimentações, decidimos inverter a lógica, indo até os territórios com um olhar de empreendedorismo e geração de renda que vê a bicicleta como ferramenta de fortalecimento das economias locais.

A pandemia veio e fez com que o curso presencial deixasse de ser uma possibilidade por enquanto. Revisitamos nossas ações para entender o papel do Viver de Bike nessa nova situação. Nosso olhar foi para urgência – os problemas de agora, principalmente a partir da pandemia – e também para a retomada – o caminho a ser construído para o que virá após a pandemia.

No âmbito da urgência, o que identificamos foi o crescimento do trabalho de ciclologística e o aumento exponencial da precarização do trabalho. A logística já era um mercado expressivo na cadeia econômica da bicicleta, mas tomou uma proporção sem precedentes com a pandemia. Vemos muita gente que perdeu o emprego ou não pôde mais exercer sua atividade profissional encontrar nos aplicativos de entrega uma forma de conseguir renda imediata. E a bicicleta é a principal porta de entrada dessas pessoas: é barata, acessível e não exige documentação específica. Além disso, a logística se tornou fundamental para que os negócios locais, que estão em situação de fragilidade, se mantenham em operação e minimizem seus prejuízos. Foi com esses elementos que repensamos o projeto Viver de Bike em 2020.

Surgiu a oportunidade de fazermos uma ação emergencial de valorização e apoio aos cicloentregadores. Assim nasceu o Pedal Contra Corona, que realizou revisões gratuitas de bike e entrega de kits com máscaras e álcool gel. Como contrapartida pela revisão gratuita, pedíamos o preenchimento de um pequeno formulário para entendermos as maiores dificuldades e preocupações dos entregadores. Conseguimos mais de 60 respostas e fizemos sete entrevistas em profundidade. Isso, somado à pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo feita pela Aliança Bike antes da pandemia foi, fundamental para construir e embasar nossa atuação nesse campo.

Contradições

Hoje, enxergamos que a maior parte das pessoas que trabalham com ciclologística são de baixa renda e moradoras de periferias. O principal motivo para elas ingressarem nesse trabalho é a necessidade de renda, e isso vem acompanhado de outros motivos, como gostar de pedalar. A indicação de amigos e redes em grupos de WhatsApp também é muito importante. Existe até uma cena de youtubers que postam vídeos sobre como acessar esse tipo de trabalho. As pessoas escolhem os aplicativos porque, além de desconhecerem outras formas de trabalhar com ciclologística que não esse modelo hegemônico, não há formalidades para iniciar a atividade: não é necessário fazer entrevista de emprego, enviar um currículo ou passar por uma formação. E, principalmente, busca-se flexibilidade de horário e maior autonomia dentro de uma hierarquia. O sentimento de ser o próprio patrão, apesar de estar repleto de contradições, perpassa a maior parte desses trabalhadores. Mas, na realidade, muitas pessoas trabalham dez horas por dia e fazem de cinco a dez entregas. A remuneração diminuiu muito no período de pandemia – especula-se que isso seja por conta do aumento do número de entregadores – enquanto o faturamento dos aplicativos cresceu 30%.

Quando perguntamos qual o lado ruim de se trabalhar com entrega, o medo, em geral, é muito marcante. No nosso questionário, as pessoas citavam medo de não voltar para casa, medo de pegar Covid-19, medo de serem roubados, medo de serem confundidos com assaltantes, medo da bicicleta quebrar, medo de ser mulher… Mas, mesmo em uma pandemia, o medo da violência no trânsito foi muito expressivo. Também existem preocupações com a falta de transparência dos aplicativos: os trabalhadores não sabem como nem por que são bloqueados, por exemplo.

Atualização da luta de classes

Estamos vivendo há alguns anos um boom de inovação e startups. E vemos grandes startups de entrega ganharem um cartaz de inovação usando a velha exploração de uma classe não privilegiada. Não há nada de inovador nisso: é a tecnologia sendo usada para explorar o trabalho humano. As pessoas são pegas em uma armadilha de trabalho que quase inviabiliza que elas saiam desse modelo ou busquem outros sonhos. Se você trabalha dez horas por dia e ainda tem que ir e vir de casa, como você vai se dedicar a qualquer outra coisa?

É diferente de um comerciante, que abre a banquinha dele e depende do cliente chegar ou não para ele faturar. No caso de um aplicativo, existe um intermediário que controla o fluxo de clientes. Não é um trabalho conforme a CLT, mas está longe de ser autônomo.Se o aplicativo se apropria muito da situação, ele corre risco trabalhista. Então, ele fica no limite da responsabilidade possível, oferecendo nada além do mínimo.

É uma atualização da luta de classes. Quem produz não possui os meios de produção. O intermediário introduz uma tecnologia. A legislação trabalhista já não dá conta dessa realidade e o regime da CLT já não é atraente em um cenário em que os trabalhadores desejam autonomia sobre o próprio tempo – ainda que essa autonomia não seja realizada nos aplicativos. Os sindicatos perdem força e os aplicativos emergem como um símbolo forte, oferecendo uma “solução” problemática para quem fica mais vulnerável nesse cenário econômico. Não é à toa que o Audino Vilão, quando fala de Karl Marx, usa o exemplo do entregador de aplicativo.

Falamos muito de empatia, de pensar no outro, mas na hora de termos a comodidade de pedir um lanche para ser entregue em casa em plena chuva, esquecemos que alguém vai pegar essa chuva por nós. É uma falta de senso de ação e reação parecida com a que acontece quando alguém joga algo no lixo e acha que aquele lixo vai desaparecer. Temos que ter esse olhar sistêmico sobre os serviços que acessamos para conter a desumanização do trabalho.

Alternativas

Em última instância, a entrega de bicicleta só pode ser justa e eficiente para todos sem intermediários, porque o valor pago aos intermediários absorve os benefícios, direitos e grande parte dos valores que deveriam pertencer a quem está fazendo a entrega ou aos próprios restaurantes. Mas, enquanto existirem, os aplicativos seguirão possibilitando a geração de renda de milhares de pessoas que precisam sobreviver. Eles precisam se responsabilizar por esse papel social, compreendendo quem são seus colaboradores, a fragilidade em que se encontram e, principalmente, a questão estratégica desse modelo de negócio: sem o entregador e o restaurante, o aplicativo não é nada.

A primeira solução, então, é uma revisão dos próprios procedimentos dos aplicativos e uma atuação mais transparente, incluindo a participação dos próprios entregadores na configuração da tecnologia.

Além disso, quando falamos de ciclologística, os aplicativos não serão os primeiros, nem os últimos modelos. O ecossistema é muito maior. Existem empresas desse ramo que contratam seus entregadores de acordo com a CLT e operam de forma organizada e eficiente. As cooperativas também estão crescendo e se fortalecendo, embora, em geral, elas precisem de um tempo maior para se formalizar. Em São Paulo, a cooperativa que tem maior visibilidade e que está finalizando seu processo de formalização é a Giro Sustentável. Também há os coletivos, como Sinkro Mess e Señoritas Courier, que se organizam de forma similar às cooperativas, mas atuam à margem das burocracias formais e têm gestões mais dinâmicas e flexíveis parecidas com as dos coletivos que vêm dominando a cena cultural nos últimos anos. Esses grupos investem um capital social enorme para se organizar e manter uma visão de justiça social, colaboração e horizontalidade.

Uma alternativa que consegue competir em escala e complexidade com os aplicativos é o trabalho direto com os estabelecimentos. É importante lembrar que as altas taxas dos aplicativos são um problema também para eles, como apontou a pesquisa Alimentação na Pandemia, da Galunion e Associação Nacional dos Restaurantes (ANR). Para incorporar a taxas, os restaurantes precisam aumentar o preço, mas nem sempre esse aumento recebe adesão dos consumidores, e os aplicativos também fazem promoções que são parcialmente pagas pelos estabelecimentos. Negócios pequenos acabam levados à falência. Por isso, vemos também um movimento dos restaurantes desenvolverem os próprios aplicativos, automatizarem seus serviços, empregarem os próprios entregadores ou fazerem parcerias com os coletivos e empresas alternativas que citamos. E a ciclologística não é só a entrega: existe um trabalho comercial, de prospecção de clientes, atendimento, desenho de rota, entrega, coleta e prestação de contas, mas nem todo mundo tem o perfil ou desejo de realizar todas essas atividades. Os estabelecimentos podem ancorar essas etapas, empregando seus próprios entregadores, como se fazia nas farmácias e pizzarias há alguns anos.

Por fim, não podemos minimizar a importância do poder público em garantir que as entregas cada vez mais essenciais sejam feitas de forma digna. Regulamentar o serviço, aplicar os impostos e taxas (ou parte deles) em educação, conscientização e infraestrutura para ciclistas e pedestres são medidas indispensáveis. E é preciso regulamentar e fiscalizar as legislações específicas, como é a Política Municipal de Ciclologística, uma lei pioneira no Brasil mas que ainda precisa de regulamentação para ser efetivada. 

Contrafeitiço

A filósofa francesa Isabelle Stengers definiu o capitalismo como um sistema capaz de gerar enfeitiçamentos, levando ao que ela chama de “alternativas infernais”, que são igualmente ruins e não têm saída. A entrada dos trabalhadores nos aplicativos é um exemplo disso: ou você trabalha, ou você não leva renda para sua família, e quando você se submete, ainda acha que tem liberdade dentro disso. Ela também diz que é importante criar os contrafeitiços, e é aí que entra o que entendemos como hackeamento. Lançar um contrafeitiço no sistema capitalista passa pela descentralização, pelo investimento no local e pelo desenvolvimento de novas centralidades.

A periferia – que não é periferia, como dizem os muitos pensadores de quebrada – faz parte dessas outras centralidades. E a bicicleta é integrada à solução local, à possibilidade das pessoas trabalharem e gerarem renda nos seus próprios territórios, à diminuição do movimento pendular das periferias ao centro. Ela é o veículo mais eficiente em distâncias de até cinco quilômetros e não tem as externalidades que as motos e os carros têm, como barulho, poluição e mortes no trânsito. Os novos aplicativos, os sistemas próprios de entrega, as outras formas de contratação e uma regulamentação moderna para o setor também fazem parte desse hackeamento.

No Viver de Bike, colaboramos para a criação desses negócios que são urgentes. Quando falamos de empreendedorismo, além de falarmos de trabalho digno, colaborativo e que tenha impacto positivo na sociedade, falamos em criar soluções que pensam o território, que fortalecem os seus. Já o Delivery Justo, a campanha que lançamos agora dentro do Viver de Bike, pretende conectar os negócios que precisam fazer entregas com os entregadores que pedalam naquela região e com as cooperativas e coletivos locais. É um dos nossos contrafeitiços: uma campanha com olhar territorial.

Simbolismo da luta

A paralisação dos entregadores em 1º de julho é uma grande vitória e um disparador importantíssimo de um contrafeitiço. Na França, os relatos são de que os entregadores conseguiram melhores remunerações e direitos depois das paralisações. Os aplicativos, em sua lógica neoliberal, dizem: “Somos a favor da greve e do direito à manifestação, mas quem sair para trabalhar no dia da greve vai receber bastante”. É importante sairmos desse encantamento, desse feitiço que busca mercantilizar tudo. A paralisação tomou proporções grandes, com cobertura da mídia, lives, posicionamento de empresas e de lideranças políticas. Estávamos um pouco carentes desse tipo de manifestação. Ela carrega o simbolismo de que, hoje, um grande movimento está sendo levantado pela classe mais precarizada, e fora de um sindicato.

Para nós, que temos esse olhar e atuamos com a bicicleta como forma de cidadania e transformação social, é muito perverso ver ela se transformar em uma ferramenta que possibilita a precarização do trabalho e a exploração das pessoas que já são historicamente subalternizadas. Na lógica dos aplicativos, as pessoas que estão na rua fazendo entregas são retratadas como indivíduos autônomos, concorrentes uns dos outros, e não como uma classe. Mesmo assim, elas conseguiram enxergar um laço de solidariedade entre si para pautar as mudanças no seu modelo de trabalho. Ainda que o número de motofretistas seja muito maior, as bicicletas e motos estão juntas nessa luta, que é uma só. Isso é muito bonito, além de urgentemente necessário para gerar serviços que tragam comodidade e efetividade, mas que também estejam pautados trabalho digno. Essa transformação é possível. E a bicicleta é uma grande aliada que deve reforçar seu papel histórico de promoção de autonomia, emancipação, independência e humanização da cidade.

Natália Lackeski é coordenadora de projetos no Instituto Aromeiazero, Bacharel em Produção Cultural pela UFF e especialista em Gestão de Inovação Social pelo Instituto Amani. Atua nas áreas de cidades sustentáveis, engajamento comunitário e cultura, com experiências no setor público e social.

Cadu Ronca é diretor e fundador do Instituto Aromeiazero. É advogado e especialista em Gestão de Sustentabilidade pela FGV-SP e em Gestão de Negócios Socioambientais pela FIA-USP / IPÊ – Instituto de Pesquisa Ecológicas. Atua na área socioambiental e de engajamento comunitário, especialmente a partir da bicicleta.

O Instituto Aromeiazero é uma organização sem fins lucrativos que promove uma visão integral da bicicleta, não só como transporte, mas também como expressão artística, oportunidade de renda, lazer, esporte e também como ferramenta de mudança no modo de vida e humanização das relações nos centros urbanos. Seus projetos, como o Viver de Bike, Bike Arte e Rodinha Zero, buscam reduzir a desigualdade social e tornar as cidades mais resilientes.

SAIBA MAIS

Site do Instituto Aromeiazero: https://www.aromeiazero.org.br/

Campanha Delivery Justo: https://www.aromeiazero.org.br/deliveryjusto

Audino Vilão explica Karl Marx: https://www.youtube.com/watch?v=y6eyQ8fgIf4se

Cooperativas e empresas de entrega justa…
 … em São Paulo:
 Giro Sustentável – https://www.instagram.com/girosustentavelentregas/
 Señoritas Courier – https://www.instagram.com/senoritas_courier/
 Sinkro Mess – https://www.instagram.com/sinkromess/

… em Porto Alegre:
 Pedal Express – https://www.instagram.com/pedalexpress/

Um olhar sobre o papel do poder público na questão da ciclologística (Cadu Ronca e Murilo Casagrande pela Agência Envolverde Jornalismo)

“Compras por aplicativos têm alta de 30% durante pandemia, diz pesquisa” (Letycia Bond pela Agência Brasil)

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Créditos das imagens: Carolina Santaella, Rogério Viduedo e Fluxos Imagens

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