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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Moda e ativismo: dilemas, potências e 4 exemplos de quando vestir foi um ato político

Muito mais do que escolher roupas e seus significados, pensar ativamente a moda, é questionar a indústria na qual ela se transformou

Por Fernanda Damasceno* – 17/06/2024

Se engana quem ainda associe a moda com algo supérfluo, vazio e com pouco significado. Ao longo da história, a moda tem sido uma ferramenta de representação social – coletiva ou individual – que transmite valores e símbolos que refletem visualmente o estado em que a pessoa ou a sociedade se encontra naquele momento.

Com isso, todo o processo de criar, confeccionar e vestir uma roupa acabam por ser atos sociopolíticos e, portanto, devem ser questionados e pensados de acordo com o contexto em que nos encontramos. 

Isso porque a moda evoluiu junto com a sociedade, proporcionando episódios marcantes que mostram que vestir não está nem um pouco distante de militar – ao contrário. 

Não à toa, após as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil e escolheu como um de seus símbolos a camisa verde e amarela da seleção de futebol para exaltar o “nacionalismo” e o “orgulho” brasileiro, usar essa camisa, desde então quem usar essa camisa seja ou não com a intenção de se posicionar politicamente, inevitavelmente poderá ser confundido com um dos seguidores do ex-presidente, mesmo anos depois do ocorrido. Ainda bem que tanto a Madonna quanto à Parada do Orgulho LGBTQIAP+ de São Paulo estão se esforçando para disputar essa peça.

Mesmo assim, muito mais do que escolher roupas e seus significados, pensar ativamente a moda, é questionar a indústria na qual ela se transformou.

Isso porque, estima-se que a indústria da moda seja responsável por cerca de 10% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2), de acordo com estatísticas de um relatório Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

A produção de tecidos, como o algodão, demanda grandes volumes de água e libera produtos químicos tóxicos durante o processo de tingimento, poluindo rios e oceanos. Além disso, a busca por matérias-primas, como a viscose, contribui para o desmatamento de florestas, diminuindo a biodiversidade e intensificando as mudanças climáticas.

Em entrevista para a Escola de Ativismo, a educadora social, ativista e coordenadora de mobilização da Fashion Revolution Marina de Luca, falou um pouco sobre o assunto.

A moda como uma indústria poluente

Resíduos textêis se acumulam em rio l Foto: Greenpeace/Reprodução

A Fashion Revolution se apresenta como “o maior movimento de ativismo da moda do mundo”, e atua através da comunicação, educação, colaboração, mobilização e participação para uma nova consciência a respeito da moda.

“O Fashion Revolution surgiu em 2013, a partir da revolta de um grupo de profissionais da moda”, contou Marina. Para ela, não há separação entre a importância política da moda na sociedade e os questionamentos em como a indústria se encontra atualmente.

“Gostamos de reforçar que a moda não é só a passarela, mas sim a roupa que todas as pessoas usam, dessa forma, todas as pessoas estão envolvidas em um elo da cadeia de produção, consumo e venda” respondeu a ativista.

Atualmente um dos maiores desafios na discussão é combater o fast fashion – modelo de negócio que incentiva o consumo em excesso, tendências que sempre se renovam e ofertas quase intermináveis de roupas a preços baixos são algumas das características da fast fashion, além da produção vestuário em grandes quantidades em pouco tempo, o que traz consequências sérias para o meio ambiente.

Além do problema

Algumas alternativas a isso são os brechós, que reutilizam peças descartadas por outras pessoas, alongando a vida daquele produto e evitando desperdício. Além disso, há também o incentivo ao consumo de pequenos produtores, já que esses geralmente emitem bem menos poluentes do que as grandes lojas.

“Desejamos que a partir da nossa atuação, somada a atuação de outros coletivos, grupos organizados e sociedade civil, possamos de fato fazer a diferença na forma que a moda é feita, usada, descartada e pensada hoje em dia” contou Marina sobre a atuação do movimento Fashion Revolution.

Para além desse exemplo, trouxemos seis momentos em que a moda se mostrou política e nos fez refletir sobre determinado assunto ou sobre o momento em que vivemos.

 

Panteras Negras: o poder do povo também no vestuário

Membros do Partido dos Panteras Negras protestam em frente a um tribunal de Nova York, em 11 de abril de 1969. l Foto: David Fenton

Durante o movimento pelos direitos civis norte-americanos nos anos 60, os Panteras Negras ganharam notoriedade por sua atitude direta e seu modo de vestir: óculos de sol, calças, botas e jaquetas de couro pretas e uma boina preta. 

Além das roupas, o cabelo natural foi muito difundido pelo movimento, como forma também de resistir à imposição racista de esconder ou alisar cabelos crespos. Junto ao black power, sempre havia um pente garfo, instrumento fundamental para cuidar de cabelos crespos, da mesma forma que a escova é usada por quem tem fios lisos ou ondulados.

Dançarinas da cantora Beyoncé durante ensaio l Foto: Instagram/Reprodução

Até hoje o estilo dos Panteras Negras ainda é referência no movimento negro, mas não só: na apresentação da cantora Beyoncé no intervalo do Super Bowl em 2016 ela usou um figurino inspirado pelo cantor Michael Jackson, enquanto suas bailarinas usaram o uniforme do partido antirracista Panteras Negras.

Para a população negra, a moda nunca foi dissociada do ativismo, uma vez que o modo de se vestir pode muitas vezes salvar vidas, evitando ser perseguido ou agredido verbal ou fisicamente. Não à toa muitas pessoas negras, especialmente homens, têm a lembrança de ser ensinados desde criança a sempre estar bem vestidos e arrumados, na esperança de que a roupa certa possa evitar algum episódio de violência por conta da cor de pele.

 

Nunca mais uma moda sem indígenas!

Thelma Assis e Dandara Queiroz foram modelos do desfile de Maurício Duarte. l Foto: Reprodução/Instagram @mauricioduartebrand

Maurício Duarte é um renomado estilista indígena brasileiro que alcançou reconhecimento internacional por suas criações inovadoras que celebram a herança cultural dos povos indígenas do Brasil.

Duarte é conhecido por sua habilidade em combinar tecidos naturais, como algodão, linho e fibras vegetais, com técnicas de tingimento natural e bordados elaborados, resultando em peças que transmitem uma sensação de autenticidade e artesanato.

O trabalho do estilista é uma expressão de sua identidade indígena e um testemunho de sua dedicação à sustentabilidade e à inovação na moda. Suas roupas não adornam os corpos, elas contam histórias de luta, resistência, culturas e representatividade dos povos indígenas, que até hoje lutam contra o genocídio e por mais equidade.

Sua participação no São Paulo Fashion Week de 2023 representou um marco significativo, pois proporcionou uma plataforma que tradicionalmente era fechada somente a certos padrões, mas que vem cada vez mais se movimentando para incluir novas narrativas da moda.

A moda plus size: rompendo padrões e incluindo pessoas diversas

Sinara Assunção para Liana D_Áfrika moda. l Foto: Matheus Clima

Padrões de beleza e questões que antes não eram discutidas ganham holofotes quando a sociedade começa a questionar a falta de representatividade e de opções no mundo da moda para diferentes tamanhos e diferentes corpos. Se antes a magreza exagerada era vista como padrão a ser alcançado, atualmente o culto a dietas milagrosas é questionado e isso se reflete também na moda.

Sinara Assunção, comunicadora, produtora cultural, DJ e modelo de Belém, no Pará, falou conosco um pouco sobre o assunto: “falar sobre a falta de oportunidades para essas pessoas de diferentes corpos é também falar sobre falta de política, falta de letramento, enfim, é falar de um lugar que por muito tempo não nos pertenceu mas que existem pessoas hoje que tem mudado essa realidade”, opina.

Para a modelo, utilizar a própria moda como forma de expressão é demarcar seu lugar enquanto mulher negra, bissexual e gorda “ainda é uma barreira a ser rompida e vem sendo rompida a passos muito lentos, mas acredito que já houveram muitos avanços e é interessante que a gente olhe para eles”.

Moda e no Movimento LGBTQIA+: aliados históricos

Lírio Moraes: “Eu acho que só fui ter uma relação consciente com a moda depois da minha transição” l Foto: Instagram de Lírio Moraes/@hbrpedro

“A moda é mais do que só seguir tendências, só o consumo pelo consumo. Ela também é uma ferramenta de construção de identidade, de ativismo” nos contou Lírio Moraes, jornalista e empreendedor de moda que se identifica como uma pessoa não binária.

Lírio começou a trabalhar com moda em 2019, quando abriu um brechó junto com outros amigos “na época eu via apenas como um meio de desapegar de algumas peças que eu não usava mais e conseguir uma grana extra com isso. Mas depois da minha transição, que ocorreu de fato em 2020, eu passei a enxergar essa questão de forma mais política.”

E ele não está sozinho. A moda sempre foi uma grande aliada do movimento LGBTQIA+, servindo muitas vezes de vitrine para o rompimento que essa comunidade propõe trazer para a sociedade.

Isso também tem sido visto pelas empresas, já que algumas marcas têm lançado coleções específicas ou colaborações em apoio à comunidade LGBTQIA+, com parte dos lucros muitas vezes revertida para apoiar as causas da comunidade.

Lírio contou que durante boa parte da vida não teve uma boa relação com a moda, se sentido “desconfortável” com as roupas que vestia “eu acho que só fui ter uma relação consciente com a moda depois da minha transição.”

Em outras palavras, ele conta que “enquanto pessoa não binária a moda foi e ainda é a ferramenta principal na construção da minha identidade”. Durante a entrevista, o jornalista reforçou que a construção de sua autoestima vem se dando juntamente com a construção de seu estilo de se vestir, além da consciência de uma moda mais sustentável, pauta que lhe atravessa por conta de seu brechó: “a política é essencial nesses processos, para que a gente tenha uma moda pensada para corpos e estilos diversos, mais acessível e para estimular o consumo consciente”.

Vestir-se pode ser mais do que apenas uma decisão estética ou prática – pode ser um meio de expressar identidade, valores e posicionamento político. Pode ser a maneira com que pessoas consigam fazer as pazes com a própria identidade, ou também questionar a própria moda em si e desafiar padrões estéticos impostos por ela. Vestir-se sempre é político, e pode também ser um ato de dizermos ao mundo a mudança que queremos.

*Fernanda Damasceno é jornalista, produtora de conteúdo e de audiovisual. Entusiasta de artes visuais e de moda, adora escrever sobre meio ambiente e Amazônia.

De olho na COP 30: uma conversa sobre cultura, imaginação, sonho e revolta

Por Vitória Rodrigues – 12/06/2024

 

 

Encontro no Rio de Janeiro debate intersecção entre cultura, indústrias criativas e a crise climática

Foto: The People’s Palace Projects

No ano passado, pela primeira vez, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) contou com um pavilhão dedicado exclusivamente para as áreas de Entretenimento e Cultura. Com doze dias de programação, o pavilhão dedicou-se a olhar qual é o papel da cultura no combate à crise climáticas.

De olho na importância da cultura e do clima pensando na primeira COP que o Brasil receberá na história, em Belém (PA), em 2025, na última sexta-feira (07), houve um encontro no Rio de Janeiro para discutir as intersecções entre cultura, clima e incidência internacional.

O encontro, realizado pela People’s Palace Projects do Brasil, em parceria com o Perifalab, recebeu Andrew Potts, advogado especializado em políticas culturais, sobre os esforços internacionais para colocar a arte, a cultura, o patrimônio e as indústrias criativas no centro das políticas climáticas da COP.

Imaginação e sonho

A conversa foi mediada pela ativista climática, comunicadora e produtora cultural Marcele Oliveira, que já escreveu por aqui sobre seu interesse em fazer arte e cultura andarem lado-a-lado com a justiça climática. Marcele, diretora executiva do Perifalab, também é co-fundadora da Coalizão O Clima É De Mudança e Jovem Negociadora pelo Clima.

Para ela, é imprescindível manter três ideias-chave: mudança, revolta e sonho. “A imaginação é chave, porque raramente as pessoas se dispõem a sonhar com um presente justo”, complementou o advogado Andrew Potts, da Climate Heritage.

Se imaginar é arriscado, viver uma realidade que seja boa, justa e de qualidade parece distante. Para Andrew, “a nossa vida é tão enraizada nesta cultura do petróleo, que certas vezes soa assustador viver em um mundo que não é assim. Como você viveria numa cidade carbono zero? O que você comeria, como você se locomoveria?”

E como imaginar uma cultura sem isso? No Brasil, por exemplo, a exploração de recursos naturais não renováveis financia uma parte significativa da produção artística e cultural.

Neste ano, por exemplo, o edital Petrobras Cultural destinou R$250 milhões a projetos artísticos por meio de incentivos fiscais da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. A última chamada do Instituto Cultural Vale 2024 destinou R$ 30 milhões para patrocínios a projetos de todo o Brasil.

“No contexto capitalista, a gente tem uma política cultural dependente de empresas petroleiras, mineradoras, a gente tem uma política climática dependente de países que são exploradores, que colonizaram. A caneta, o dinheiro ainda está na mão de quem causou o problema. E aí, quando eu penso em capitalismo, em enfrentamento, em ecossocialismo radical, eu penso que é fazer essa denúncia de forma escalonada, então não é só numa pequena conversa, sabe?”, provoca Marcele.

“Se não tiver o dinheiro da petroleira, então qual é o dinheiro que vai financiar a cultura? Se não tiver a caneta na mão desse país, que não está nem um pouco comprometido, como que a gente faz o Sul Global crescer? É sobre influência para tomar as próprias decisões. São perguntas que não estão prontas, mas que nos guiam para enfrentar o capital”, disse Marcele.

Andrew Potts, Marcele Oliveira e Mayra Mota l Foto: The People’s Palace Projects

E os grandes espaços de produção de entretenimento também têm a sua responsabilidade. Ela disse que gostaria de convidar os produtores de grandes eventos, donos e gestores de casas, museus e espaços de cultura para uma grande roda. Nela, convocaria essas pessoas a incluir pauta climática e conscientização no escopo de nossas curadorias, nas informações que estão propagadas nos espaços de grande circulação de público.

De olho na COP

E se o caminho para a vitória política da cultura na COP30 começa com mobilizações como essa, é preciso olhar com certa crítica o que foi feito até agora. Para Andrew, o que é construído hoje nas Conferências “não leva em consideração as construções históricas e o colonialismo, além de ignorarem os facilitadores para soluções sociais e locais.”

Dentro das políticas desenvolvidas pelos países, muitas vezes só há um foco especial para o combate da crise climática através de um olhar que pensa o mundo da tecnologia e das finanças, mas acaba-se deixando de lado a cultura e os atores sociais. O advogado do Climate Heritage ainda complementa dizendo que é uma crise antropogênica, causada por determinados setores da sociedade e que é agravada pela população a partir de uma cosmovisão imposta.

Para Marcele, é urgente conectar a discussão para pensar em soluções que as periferias e as comunidades originárias e tradicionais essencialmente estão fazendo. “É respeitar a história, memória e patrimônio e usar essa mesma história, memória e patrimônio para construir narrativas.”

As narrativas construídas por produtores de arte e cultura na COP sempre estiveram nas conferências, na opinião de Andrew. Elas só precisam ser amplificadas e levadas mais a sério. Apenas no ano passado foi criado o ‘Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura’, co-presidido pela Ministra da Cultura Margareth Menezes.

Mesmo com avanços da criação do Pavilhão de Clima e Entretenimento, além da criação do Grupo de Amigos, a cultura precisa estar oficialmente dentro de uma estratégia para ações climáticas. Mas ainda assim, a cultura nunca foi mencionada nos documentos oficiais da COP.

Andrew, que acompanha os debates e as negociações com afinco, lembra que é preciso de muito mais. “Líderes e políticos se apresentaram lá dentro [do pavilhão], como o Michael Regan, da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Mas quando ele atravessou a rua e entrou no Pavilhão Azul (de negociação) votou contra a inclusão de cultura dentro do debate de mudanças climáticas.”

As mudanças climáticas já estão acontecendo e exterminando territórios, memórias e construções de culturas ao redor do mundo inteiro. É necessário garantir que a sociedade civil não esteja apenas protestando dentro das suas delimitações em conferência, mas que tenha, também, o poder de decisão para decidir os rumos de um mundo que a cada dia é mais destruído em nome do lucro e da exploração. 

Enquanto se financia a cultura, acaba-se com ela. Até quando essa atividade poderá ser realizada por grandes empresas? Até que ponto atividades que não se enxergam como conectadas ao clima poderão ser executadas? 

Sem possibilidades de vida, não há chance de sobrevivência, de clima e de cultura.

Fake news sobre chegada de Starlink no Vale do Javari promovem racismo anti-indígena

Povo Marubo, do Vale do Javari, no Amazonas, se defende de comentários discriminatórios e desrespeitosos após viralização de manchetes falsas sobre uso indevido da internet.

Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo – 12/06/2024

Instalação de uma antena Starlink na aldeia Ararimba, no Amapá l Foto: Conexão Povos da Floresta/Reprodução

Nos últimos 21 meses, a Starlink, a provedora de internet de baixa-orbitagem do bilionário Elon Musk, chegou na Amazônia trazendo internet de alta velocidade por um preço acessível onde antes era impossível. Já são mais de 66 mil assinaturas na região amazônica, muitas em povos de recente contato ou em regiões remotas. As transformações causadas pela chegada do serviço são profundas e ainda estão sendo entendidas por povos indígenas e tradicionais.

Mas a forma discriminatória e exótica de enxergar os povos indígenas associada à disseminação de fake news ganhou força nos últimos dias desde que viralizou a notícia falsa sobre o impacto negativo do uso da internet no Vale do Javari, no Amazonas. 

A notícia original, veiculada no The New York Times tinha como título “The Internet’s Final Frontier: Remote Amazon Tribes”, na tradução para o português “A fronteira final da Internet: tribos remotas da Amazônia”. O uso do termo “tribos” já é questionado por povos originários tanto no Brasil, quanto mundo afora, preferindo “aldeias”, “territórios indígenas” ou “povos”. O termo usado pelo jornal estadunidense inclusive ecoou nos veículos brasileiros.

Após a publicação da matéria, o texto foi distorcido por sites brasileiros que afirmavam que os jovens Marubos estariam viciados em pornografia e em jogos online violentos, deixando de lado suas tradições. A comunidade e o jornalista Jack Nicas, que escreveu a matéria internacional, negam e desmentem as manchetes. O jornalista pediu: “Por favor, parem de compartilhar essa mentira”

“Dezenas de sites agregaram nossa matéria sob uma manchete que diz falsamente que o povo Marubo rapidamente tornou-se viciado em pornografia. Muitos desses sites usaram fotos do povo Marubo. Fizeram vídeos, memes. A coisa está feia. Os Marubo não são viciados em pornografia e a matéria nunca disse que eles eram”, afirmou o jornalista Jack Nicas no X, antigo Twitter. 

O povo indígena também nega. A Rede de Estudantes Indígenas do Vale do Javari divulgou uma nota de repúdio às declarações.

“Essas afirmações são não apenas infundadas, mas também desrespeitosas e discriminatórias. Elas perpetuam estereótipos negativos sobre os povos indígenas e ignoram a complexidade das questões que envolvem a introdução de novas tecnologias em suas comunidades. O acesso à internet, tem o potencial de proporcionar inúmeras vantagens, como o fortalecimento da educação, a melhoria dos serviços de saúde, a promoção da cultura indígena e a facilitação da comunicação entre aldeias distantes uma da outra, bem como se comunicar com reuniões importantes que acontecem fora da Terra Indígena Vale do Javari. Repudiamos a postura paternalista e preconceituosa implícita nessas declarações, que desconsidera a autonomia dos jovens indígenas do Vale do Javari, e sua capacidade de gerir o uso das tecnologias de acordo com suas necessidades e valores culturais”, afirma a nota.  

Matéria do New York Times foi usado como combustível para racismo anti-indígena l Foto: Google/Reprodução

As lideranças reconhecem a importância da introdução da internet e da conectividade. A Rede de Estudantes Indígenas do Vale do Javari condena qualquer tentativa de desviar o foco das verdadeiras questões que afetam os povos do Vale do Javari, como a falta de políticas públicas eficazes, a invasão de territórios por atividades ilegais e a precariedade dos serviços básicos de saúde e educação. “Estas são as questões que devem ser tratadas com urgência e seriedade pelas autoridades competentes, bem como veículos de informações”.

Mesmo desmentindo, portais e páginas brasileiras de grande repercussão, incluindo os de alcance nacional mantiveram as publicações, mostrando a falta de interesse com a verdade e com o bem-estar e saúde mental dos povos indígenas. Os textos chamam atenção pela forma exótica e estereotipada como os indígenas ainda são vistos. 

O jovem Denilson Pixi Kata Matis é indígena do povo Matis, na região do Vale do Javari. Ele informou que antes da chegada da internet, as comunidades se comunicavam através de rádio, que era ligado em hora em hora.

“Às vezes o rádio não tem uma boa comunicação. Não dá para ouvir direito. Então, era muito ruim essa questão da comunicação entre eles. Como a internet possibilita fácil acesso de informações e envio de mensagens rápidas, os líderes quiseram instalar. Então a chegada de Starlink nas aldeias foi boa, está sendo boa, na verdade. Porque melhorou a comunicação entre os familiares, da comunidade para a cidade, dos municípios de perto, até as cidades distantes. E também melhorou a questão da informação, da saúde, o contato com a SESAI [Secretaria de Saúde Indígena]. É mais fácil agora trocar conversa e falar: ‘está acontecendo isso’”.

O jovem falou que também é possível saber, sem interferências, sobre o que está acontecendo em outros países. “Não precisa outra pessoa do município comunicar sobre o que está ocorrendo ao redor do mundo. É possível saber de tudo morando na aldeia”.

A disseminação da notícia falsa nos últimos dias trouxe consequências ao povo, que tenta se defender das acusações. Após a onda de fake news, as famílias começaram a ser tratadas de forma desrespeitosa. “As informações falsas foram vazadas e colocadas fora de contexto. O New York Times, fala uma coisa e a mídia brasileira fala outra. Não existe vício ou dependência de internet. Têm a hora para ligar e a hora exata de desligar, tudo controlado pelos líderes. A comunidade vê tudo isso de uma forma maldosa. Estão com aquela sensação de querer falar para o mundo que isso não é verdade. Estão querendo sujar o nome do Vale, sujar o nome do povo”, disse Pixi Kata.

É possível pensar em uma transição energética popular? Uma experiência brasileira diz que sim

Por Bárbara Poerner – 29/05/2024

 

 

Conheça o Veredas Sol e Lares, uma usina fotovoltaica localizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, proposta pelo Movimento Atingidos por Barragens e parceiros, e desenvolvida com protagonismo das comunidades em todas as etapas

Metodologia participativa baseou o processo de construção e implementação da usina l Foto: MAB/Divulgação

No dia oito de março de 2018, Aline Ruas marchou ao lado de mais de 300 mulheres no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, reivindicando que “mulheres, água e energia não são mercadoria”. Naquele dia, uma conquista foi alcançada: o Governo do estado mineiro assinou um termo de cooperação técnica para a execução do Projeto Veredas Sol e Lares.

O Veredas Sol e Lares é uma usina solar fotovoltaica (USFV), construída sobre o lago da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Marta, que estava operando com baixíssima capacidade. Localizada no Vale do Jequitinhonha, semiárido de Minas Gerais, a região concentra intenso conflito fundiário relacionado à exploração de eucalipto e lítio.

Aline, uma das coordenadoras do Movimento Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais, conta que o movimento “elaborou um projeto que propusesse ao Estado brasileiro uma metodologia popular e participativa, na qual a energia possa realmente ser pensada através do povo, com o povo e para atender às demandas do povo”.

Atingida pela barragem do Calhauzinho, no município de Açude, ela explica que a geração da energia da usina, que começou a operar oficialmente no final de 2023, será destinada a 1.250 famílias atingidas, de 21 municípios do Vale do Jequitinhonha e Rio Pardo. Serão aproximadamente quatro mil pessoas diretamente beneficiadas. 

Hoje, a Usina integra o Plano de Recuperação e Desenvolvimento de áreas e territórios atingidos por barragens no Vale do Jequitinhonha. Além do MAB, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS) foi uma das proponentes; Efficientia S.A. e CEMIG (companhia de energia elétrica de Minas Gerais) estão como financiadoras; e PUC Minas e Axxiom Tecnologia e Inovação como parceiras executoras.

Como continuidade da agenda, foi criada, em 2022, a Associação dos Consumidores de Geração Distribuída de Minas Gerais – Veredas Sol e Lares, focada na gestão popular e social da Usina. É um modelo participativo que visa garantir o caráter do projeto e garante o título de “maior associação da América Latina de geração de energia distribuída”, afirma Aline.

A usina em ação l Foto: Arquivo/Reprodução

Energia popular = participação popular

Um dos ineditismos do Veredas Sol e Lares é centralizar o povo no processo. Mais do que um projeto energético, a iniciativa é uma experiência de desenvolvimento comunitário, no qual foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina. 

Tudo isso foi feito com metodologias integrativas, pois, para Aline, “não adiantava pensar em uma geração de energia solar em que o povo não fosse protagonista. Não trata-se de chegar e dar para o povo, é chegar e construir com ele”. 

Uma das estratégias foi incluir o Instituto Federal Campos Araçuaí (MG), Instituto Federal Campos Salinas (MG), algumas escolas, famílias agrícolas e jovens dessas instituições e de comunidades próximas para que eles se tornassem pesquisadores populares.

Tais pessoas eram responsáveis por ir a campo, fazer pesquisas, desenvolver a metodologia, dialogar com a população e articular com os outros pesquisadores das universidades parceiras. 

“Essa é uma ideia de participação onde o povo, que já conhece os seus problemas, também pode apontar soluções científicas, juntar, sistematizar e elaborar propostas de como é que ele quer esse desenvolvimento não para atender os interesses somente de fora”, continua Aline. 

Maria Aparecida, conhecida como Cida, foi uma das pesquisadoras populares em Virgem da Lapa (MG). Ela começou a participar do MAB em 2016, à convite de uma vizinha, e, desde então, integra o núcleo local do movimento. Durante a construção do Veredas, a militante compartilha que os pesquisadores “espalharam-se pelas comunidades, buscando aprender mais sobre os problemas, acesso e qualidade da energia”. Segundo ela, o aprendizado fortaleceu sua capacidade de interlocução com seu território.

“Elucidar”, inclusive, têm sido um dos principais verbos conjugados no Veredas Sol e Lares. Foram feitos estudos das contas de energia, apresentados para os cidadãos dos municípios, além de rodadas de formações e explicações sobre a tarifa social de energia elétrica. A coordenadora explica, com isso, que “o povo entendeu o que são aqueles números, o que é imposto, o que é ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação) e o que ele realmente está pagando”.

Um percalço enfrentado, contam Aline e Cida, foi o hiato que o projeto sofreu em 2020. À época, o Governo de Minas Gerais, gerido por Romeu Zema, congelou as obras e o desenvolvimento da Usina. Depois de lutas e articulações do MAB e outras entidades envolvidas, o empreendimento voltou a construção. “É muito inovador e, ao mesmo tempo, desafiador para todos os envolvidos. A CEMIG teve que buscar soluções também. A proposta que tínhamos era algo que não existia e não existe ainda”, continua Aline.

reunião em cooperativa

O Veredas Sol e Lares dá pistas de como conduzir uma agenda de enfrentamento à crise climática que contemple os direitos territoriais l Foto: Veredas Sol e Lares/Reprodução/Via Flickr

Pílula de mudança

A geração de energia fotovoltaica no Brasil está crescendo, O modelo centralizado, que é composto de grandes parques solares, já tem 18 mil usinas solares instaladas nacionalmente, capazes de produzir uma potência de 10,3 GW. Entre janeiro e setembro de 2023, houve o maior incremento da capacidade de geração solar centralizada da história no país, e ainda são previstos investimentos históricos no recurso.

Contudo, investir e construir mais parques solares não significa, necessariamente, uma transição energética. Tampouco implica justiça climática. Segundo Aline, é necessário perguntar, “para além da tecnologia, quem essa tecnologia vai atender?”.

A realidade dos dados, depoimentos e vivência de comunidades revelam que os empreendimentos energéticos de matriz renovável (hidrelétricas, eólicas ou fotovoltaicos) configuram violações territoriais e ambientais e agravam ainda mais a desigualdade social sob a escusa do desenvolvimento. Só em 2022, a Caatinga teve 4 mil hectares destruídos para a produção de energia gerada pelo sol e vento. O bioma, um dos mais eficientes em capturar carbono, sofre cada vez mais com processos de desertificação.

Embora o Brasil seja signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afirma que os povos tradicionais devem ser consultados previamente sobre esse tipo de projeto, que tem impacto direto em seus territórios, isso não é experienciado na maioria dos grandes projetos energéticos.

Por essa razão o impacto do Veredas Sol e Lares pode ser medido em números, mas também em práxis: os GW gerados que diminuem o valor das contas de luz dos moradores soma-se à experiência de lançar ao mundo uma pílula da transição energética justa e popular, dando pistas de como conduzir uma agenda de enfrentamento à crise climática que contemple os direitos territoriais, às demandas do povo e sua escuta ativa.

Um exemplo, citado por Aline, é a comunidade de Beril. A partir do Veredas, o território conseguiu ter acesso à energia elétrica no final de 2023. “Trata-se do acesso à energia solar, ao direito de se ter energia, e energia com preço justo”, defende a coordenadora do MAB MG. 

Ainda, há poucas semanas, Cida recebeu uma ligação de uma colega falando que, finalmente, iria conseguir adquirir um ventilador. “Em janeiro, [essa atingida] pagou R$ 300 de conta de luz. Esse mês, ela já teve o desconto [devido a USFV]. Ela falou para mim que, por isso, vai conseguir comprar um ventilador”, relembra a militante, ao destacar como o Veredas Sol e Lares também reduz a pobreza energética.

“Faz-se necessário pensar em uma proposta de desenvolvimento que não retire mais terras do povo. O Veredas é um pedacinho de um exemplo de uma proposta do projeto energético popular para o Brasil. Uma experiência, que se ampliada, com o povo e o meio ambiente no centro do debate, vamos estabelecer outra lógica de energia”, finaliza Aline.

Aquilombar: mobilização reúne comunidades quilombolas para exigir direitos e fortalecer tradições ancestrais 

Saiba como foi o encontro de luta, articulação e fortalecimento quilombola; estudo divulgado aponta que 98% das comunidades sofrem ameaças

Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo – 17/05/2024

Deslize para o lado para conferir fotos do evento. l Fotos: Thaiane Miranda/CONAQ

A resistência, a diversidade e as culturas dos quilombos de todo o Brasil ocuparam Brasília (DF) durante o II Aquilombar. Com o tema “Ancestralizando o Futuro”, o evento foi realizado nesta quinta-feira (16) para juntar vozes, reivindicar direitos, exigir segurança e justiça e promover a valorização das tradições quilombolas.

O evento organizado pela Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) está na segunda edição e é a maior mobilização quilombola do Brasil. Comunidades de todas as regiões e biomas formaram caravanas e participaram das discussões e manifestações. Ministros, secretários de governo e presidentes de pastas estiveram no evento e ouviram as demandas das comunidades.

Entre as principais pautas dos quilombolas está a necessidade de titulação dos territórios e de segurança de lideranças que defendem seus lugares ancestrais. 

De acordo com um estudo inédito divulgado nesta quinta-feira pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a CONAQ, mais de 98% dos territórios quilombolas estão ameaçados no país. A pesquisa traz diagnóstico sobre o impacto de obras de infraestrutura, requerimentos minerários e sobreposições de imóveis rurais nos territórios quilombolas. 

Durante o ato, lideranças quilombolas denunciaram e cobraram Justiça por quilombolas assassinados por conta de conflitos. “Muitos não estiveram aqui no Aquilombar porque tombaram por conta da luta pelo território ancestral”, disse emocionada Selma Dealdina Mbaye.  

O encontro contou também com oficinas de trança e dança, atendimento jurídico, espaço quilombinho (para crianças), rodas de conversa e feira temática quilombola com barracas para comercialização de itens produzidos nas comunidades.

Crise climática ampliará desigualdade política e impactará democracia, diz especialista

Crise climática ampliará desigualdade política e impactará democracia, diz especialista

Em entrevista, Graziela Souza, do Instituto Clima de Eleição, analisa o novo cenário imposto pela crise climática e suas consequências para as elieções e a democracia

Crédito: Montagem sobre foto de Graziela Souza/Arquivo Pessoal

O ano de 2023 foi o ano mais quente já registrado na história da América Latina. O Brasil teve um recorde de eventos climáticos extremos: foram 12, segundo dados da ONU. No mesmo ano, mais de 26 milhões de pessoas foram deslocadas por emergências relacionadas ao clima. E agora, todos os olhares estão virados para o Rio Grande do Sul, onde já são contabilizados 148 mortos e 124 desaparecidos. Há muito que poderia ser feito para evitar e mitigar o que estamos vivendo. Mas mais importante: há muito o que fazer. Ainda mais em um ano de eleições.

Por isso, a Escola de Ativismo foi conversar com Graziela Souza, cientista social, mestre em Ciência Política pela UERJ e coordenadora de relações governamentais no Instituto Clima de Eleição. Ela explicou que historicamente a pauta climática foi negligenciada por lideranças políticas, mas também porque o próprio eleitorado não mobilizou votos pela questão ambiental. “É como se no Brasil o clima e o meio ambiente fossem questões de ‘segunda ordem’, onde precisaríamos resolver uma série de problemas mais urgentes antes”, disse Graziela.

Ela explica que as consequências das mudanças climáticas acentuarão todos os tipos de desigualdade e injustiça, incluindo a política. E pontua que é preciso avaliar atentamente a postura dos candidatos e tomar cuidado com o greenwashing, principalmente extrema direita, já que a narrativa do negacionismo climático ainda é forte e um inimigo a ser combatido, e provavelmente estará bastante presente no período eleitoral. Mas acredita: “Ainda é possível termos um Brasil engajado pelo clima”.

“Podemos começar investindo na conscientização sobre a transversalidade da questão ambiental. Muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, já estão sofrendo com os impactos das mudanças climáticas. No entanto, nem sempre é fácil fazer a associação entre problema e solução de forma imediata. Por isso, é importante reforçar continuamente que os desastres “naturais” têm uma razão por trás deles: o modelo produtivo baseado no carbono, que beneficia alguns bilionários enquanto sacrifica todo o restante da população.” 

Leia a entrevista completa:  

Escola de Ativismo: Pela falta de recursos e planejamentos, podemos afirmar que toda a destruição RS e demais localidades afetadas pelas chuvas é culpa da falta de políticas públicas? Houve negligência dos representantes eleitos? O que eles deixaram de fazer?

Graziela Souza: Com certeza! As pessoas tomadoras de decisão devem ser responsabilizadas pelo aumento do impacto de eventos climáticos extremos, pois o Brasil dispõe de sistemas de monitoramento climático eficazes, como o CEMADEN, o METSUL e a AGAPAN, que podem alertar os governantes sobre anormalidades climáticas. No entanto, muitas vezes, pesquisadores, organizações da sociedade civil e movimentos sociais que alertam as lideranças políticas sobre as mudanças climáticas são tratados como “profetas do caos”.

O poder público gaúcho, tanto o Executivo quanto o Legislativo, deveria compreender melhor a vulnerabilidade climática histórica do Rio Grande do Sul. O Estado historicamente sofre com cheias de rios, e nos últimos anos tem sido assolado por enchentes recorrentes, como em 2020, 2021, 2022, 2023 e agora em 2024. Diante dessa realidade evidente, é crucial implementar políticas de adaptação climática para preparar o Rio Grande do Sul para o aumento das chuvas, deslizamentos de terra e ciclones. No entanto, em vez de fortalecer as legislações ambientais, a estratégia predominante de tomadores de decisão gaúchos tem sido flexibilizá-las, o que contraria a urgente necessidade de proteger o Estado contra os impactos das mudanças climáticas.

EA: As eleições deste ano são em nível municipal, mas é inegável o impacto que os eventos climáticos extremos estão tendo na opinião pública. Como você enxerga que a crise climática aparecerão nas eleições nesse ano? E para 2026? 

GS: Arrisco a dizer que, devido às enormes consequências das mudanças climáticas e seu impacto doloroso na população, a pauta climática vai mobilizar mais votos nas duas eleições, mesmo nas municipais – ao menos, esse é o nosso desejo.

A temática das mudanças climáticas deve aparecer, mas não necessariamente de forma positiva. Portanto, é preciso avaliar atentamente a postura da direita, já que a narrativa do negacionismo climático ainda é forte e um inimigo a ser combatido, e provavelmente estará bastante presente no período eleitoral. Além disso, é necessário estar atento às candidaturas que se apoiam no greenwashing, que tentam mascarar ações superficiais como se fossem esforços reais de sustentabilidade. 

EA: De que forma a crise climática impacta na possibilidade de termos uma democracia real? É possível sequer falar em democracia sem mitigação e justiça climática?

GS: Não será possível discutir qualquer assunto sem medidas de mitigação e justiça climática imediatas, pois já estamos atrasados.

Falando especificamente sobre democracia, as consequências das mudanças climáticas acentuarão todos os tipos de desigualdade e injustiça, incluindo a política. Quando grupos sociais já vulneráveis se tornam ainda mais vulneráveis, a política tende a se tornar ainda mais elitista e desconectada da realidade.

EA: O que os eleitores devem considerar ao escolher candidatos nas próximas eleições?

GS: Há muitas coisas a serem consideradas. Principalmente, é necessário avaliar se os planos de governo e os mandatos incluem uma defesa explícita de medidas de adaptação e mitigação, considerando o contexto dos territórios e das comunidades mais vulneráveis. Além disso, é crucial estar atento ao greenwashing, que pode mascarar ações ineficazes ou superficiais sob a aparência de sustentabilidade.

EA: Se alguém quer escolher um candidato tendo em vista a questão ambiental, mas não sabe bem como começar, que discursos e as pautas devem ser mais observados? Por onde começar? Os partidos políticos, ideologias e concepções dos candidatos também devem ser considerados? Por que?

GS: Se alguém quer escolher um candidato tendo em vista a questão ambiental, mas não sabe bem por onde começar, deve observar alguns aspectos fundamentais:

Discursos e Pautas: Em primeiro lugar, é importante avaliar as ideologias de candidaturas. Deve-se excluir candidaturas negacionistas e desenvolvimentistas, ou seja, aquelas que negam as mudanças climáticas ou que consideram o desenvolvimento econômico mais importante do que o meio ambiente. 

Planos de Governo e Mandatos: Avalie os planos de governo e os mandatos das candidaturas. O conhecimento sobre as vulnerabilidades climáticas do município que a liderança representará é essencial. Discursos e planos genéricos devem ser rejeitados. A candidatura deve demonstrar um entendimento claro das especificidades climáticas do Município, quais são seus problemas climáticos, quais legislações já foram aprovadas e quais ainda necessitam de aprovação.

Participação Social: Considere se a liderança fala abertamente sobre a participação social. Uma candidatura comprometida com a questão climática deve incentivar e valorizar a participação ativa da comunidade nas decisões políticas.

Reeleição: Se a liderança está buscando reeleição, avalie o histórico de suas ações. Verifique quais projetos climáticos foram propostos ou implementados durante seu mandato anterior. Renovação política é quase sempre boa, mas, muitas vezes, lideranças climáticas extremamente competentes não conseguem a reeleição. 

Partidos Políticos: Embora partidos de direita tendam a ser menos receptivos à questão ambiental, essa dinâmica pode variar no nível municipal. No entanto, infelizmente, a pauta climática ainda é mais associada a partidos de centro-esquerda e esquerda. É importante considerar essa tendência ao avaliar os candidatos.

Diversidade de Gênero e Raça: A diversidade de gênero e raça também deve ser considerada. A política institucional é dominada por homens brancos e a eleição de mulheres, negros, indígenas e quilombolas coloca no centro da tomada de decisão os grupos sociais que estão na linha de frente do impacto das mudanças climáticas. 

EA: Porque será que muitos políticos e eleitores insistem em não levar a sério a crise climática? 

GS: Historicamente a pauta climática foi negligenciada por lideranças políticas porque o próprio eleitorado não mobilizou votos pela questão ambiental. É como se no Brasil o clima e o meio ambiente fossem questões de “segunda ordem”, onde precisaríamos resolver uma série de problemas mais urgentes antes.

Em razão disso, ainda há muito a ser feito. Primeiramente, é necessário demonstrar ao eleitorado a transversalidade da questão ambiental. Como estamos observando, as consequências das mudanças climáticas se manifestam de diversas formas: aumento da pobreza, maior vulnerabilidade de pessoas — especialmente mulheres, indígenas e a população negra —, fome, impacto na economia, encarecimento e escassez de alimentos básicos, afastamento de crianças da escola e do lazer, piora na saúde mental e, sobretudo, morte de pessoas. É fundamental ressaltar essa transversalidade e tratar a pauta climática como prioritária, pois o clima é tudo e impacta em tudo.

EA: Na visão de vocês, porque a extrema-direita segue combatendo de forma tão ativa a questão das crises climáticas?

GS: O principal objetivo da extrema direita é manter o status quo, ou seja, garantir a continuidade do modelo de produção capitalista baseado na emissão de carbono. Por outro lado, os movimentos ambientalistas e de justiça climática lutam contra esse modelo, buscando sua substituição por práticas mais respeitosas com o meio ambiente.

O paradoxo é que, se a extrema direita não se opuser a esse modelo de produção, não haverá futuro para ela, pois a degradação ambiental causada por esse sistema afetará a vida no planeta como um todo. A grande questão é que quem mais sofre com os impactos das mudanças climáticas não é quem mais emite e polui. 

EA: No caso do RS, podemos trocar “desastre natural” por qual termo/nomenclatura?  

GS: Omissão governamental climática

EA: O que nossos candidatos precisam nos apresentar como soluções para grande volume de chuva, seca e outras variáveis extremas do clima?                                                    

GS: Para lidar com o grande volume de chuvas, secas e outras variáveis climáticas extremas, as candidaturas precisam apresentar soluções concretas. Isso inclui a elaboração ou aperfeiçoamento dos planos municipais de adaptação e mitigação. Esses planos devem começar com um diagnóstico climático detalhado do município, identificando as vulnerabilidades específicas de cada bairro. Com base nesse diagnóstico, devem ser definidas ações prioritárias urgentes a serem implementadas. Essas ações devem ser elaboradas com base nos territórios já afetados, considerando as características locais e as principais vulnerabilidades das comunidades.

EA: Como ajudar, nesse momento, as pessoas afetadas pela falta de políticas ambientais?

GS: Os refugiados climáticos precisam de ajuda urgente. Apoiar vaquinhas organizadas por organizações ambientalistas, indígenas e quilombolas pode ser uma solução imediata. No entanto, é essencial que esse esforço seja contínuo e consolidado através do voto em candidaturas comprometidas com o clima.

EA: De que forma é possível que ativistas cobrem e pressionem candidatos para pautarem a questão das mudanças climáticas? 

GS: Ativistas podem cobrar e pressionar candidatos para pautarem a questão das mudanças climáticas de várias maneiras. Uma abordagem eficaz é por meio de iniciativas como a nossa no Clima de Eleição, que investe na formação de candidaturas e qualifica o debate público sobre o clima durante os períodos eleitorais. O engajamento contínuo é fundamental, envolvendo diversos atores e esforços colaborativos. O primeiro passo é garantir que as candidaturas reconheçam a pauta climática como uma demanda do eleitorado, pois isso é o que mais mobiliza. Para as lideranças já eleitas, é importante combater a narrativa de que os desastres climáticos são eventos naturais e a-políticos. É crucial que os tomadores de decisão sintam que negligenciar as políticas climáticas afeta diretamente a percepção do eleitorado sobre sua gestão.

EA: Ainda é possível termos um Brasil engajado pelo clima? Por onde começar?

GS: Sim. Podemos começar investindo na conscientização sobre a transversalidade da questão ambiental. Muitas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, já estão sofrendo com os impactos das mudanças climáticas. No entanto, nem sempre é fácil fazer a associação entre problema e solução de forma imediata. Por isso, é importante reforçar continuamente que os desastres “naturais” têm uma razão por trás deles: o modelo produtivo baseado no carbono, que beneficia alguns bilionários enquanto sacrifica todo o restante da população.

Devemos ter cuidado com discursos negativos e sempre oferecer possibilidades em nossas falas, destacando que a mudança é possível e urgente. 

E se a cultura fosse estratégia de mobilização para o enfrentamento à crise climática?

Na ânsia de aliviar para os verdadeiros culpados, a cultura foi usada de bode expiatório para a desinformação. Inquieta, Marcele Oliveira reflete sobre como cultura pode de forma efetiva ser aliada no combate à crise climática

Por Marcele Oliveira* – 14/05/2024

Diante das enchentes que afetaram mais de 300 municípios do Rio Grande do Sul, a internet se inundou de reflexões e tribunais da verdade que só as redes sociais podem proporcionar. Afinal, é mais fácil reclamar do show da Madonna no Rio de Janeiro e contestar um financiamento privado do que denunciar a negligência dos governantes do Rio Grande do Sul e questionar o financiamento público para o combate às consequências das mudanças climáticas. 

Não custa lembrar que a maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul, que estamos vendo em tempo real, é mais uma dentro de várias na última década e é a quarta tragédia climática na região em um intervalo de um ano. Na última semana, foram 332 municípios afetados, uma contagem 3x maior do que na última enchente (setembro de 2023) no mesmo estado, conforme relatório divulgado nos últimos dias pelo Governo do Estado do RS. Já são mais de 148 mortos e 124 desaparecidos e esse número segue crescendo, enquanto o estado de forma geral permanece embaixo d´água e com risco iminente de ruptura em ao menos 6 barragens.

O Brasil registrou recordes de desastres climáticos em 2023 e virou o ano com a promessa de um ano ainda mais quente e devastador, conforme previsão do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). O levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) apontou que 93% das cidades do país foram atingidas por algum tipo de evento extremo, deixando mais de quatro milhões de pessoas sem casa. O estudo analisou tempestades, inundações, enxurradas ou alagamentos nos últimos 10 anos. “No período de 2013 a 2022, mais de 2,2 milhões de moradias foram danificadas em todo o país por causa desses eventos” aponta a reportagem, onde a gravidade da situação na região Sul já era apontada, seguidas pelas regiões Nordeste e Sudeste.

A discussão sobre adaptação das cidades, e o valor exorbitante que isso custa, não se atém somente ao dinheiro. O cenário que estamos assistindo de correntes  de solidariedade puxadas, em suma, pela sociedade civil, é crucial para ajudar a construir, mas não vão ser esses milhões em doações que vão impedir um novo deslizamento ou enchente acontecer.

A culpa, que as redes tentaram jogar na Madonna, no Rio, em Deus e no acaso, é compartilhada entre muitas instâncias, mas nesse texto me limito a pensar sobre cultura, responsabilidade do poder público e pressão popular. 

Afinal, o que ainda é possível se fazer num cenário como esse, de tragédia e desinformação?

Além dos avisos científicos, aqui ressalto os chamados das comunidades originárias, indígenas e quilombolas, que protegem diferentes biomas mediante a ameaças do agronegócio e da mineração, o grito das periferias, que há muito lidam com problemas relacionados a saneamento e direito à cidade, e os sinais da natureza, cada vez mais quente, seca e feroz. “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas” escreveram no nosso hino nacional, mas essas margens estão desmanteladas e quem grita à beira do rio não tem a voz ecoada. O nosso país é o que mais mata ativistas ambientais no mundo. 

É necessário conscientizar que cobrar o poder público de forma sazonal, na hora em que o desastre acontece, é primordial, mas insuficiente. Redes de solidariedade, essas que tantas vidas salvam, são essenciais, mas não são garantia de reconstrução. Mobilizações que acontecem depois que uma árvore é derrubada, conscientizam, mas não trazem aquela árvore de volta. Somente doar não vai resolver, porque a quantidade de territórios que irão necessitar desse tipo de suporte estão fora da nossa conta. 

A sabedoria popular não mente quando nos lembra que: “ é melhor prevenir do que remediar.” Em janeiro de 2024, quando o Rio de Janeiro esteve debaixo d’água, surgiu a campanha “RJ Não é Disney”, onde organizações da sociedade civil como o Perifalab, a Coalizão O Clima é de Mudança, a Casa Fluminense e o Meu Rio, acompanhadas de mais cinquenta outras organizações, convocaram territórios afetados pelas fortes chuvas para cobrar a implementação do Plano de Adaptação Climática do estado. Estado este cujo governante, enquanto os números de mortes aumentavam, estava literalmente de rolé na Disney. É mole?

Manifestação no Palácio Guanabara, Rio de Janeiro, 27/01/2024. l Foto: Acervo Pessoal

Na cidade maravilhosa também foi necessário lutar pelo básico. Ações como o anúncio de ponto facultativo enquanto a cidade estava ainda em estágio de atenção por previsão de chuvas fortes, a criação do cartão Recomeçar para quem perdeu tudo com as chuvas e até cobertura emergencial – e não ilusória – das grandes mídias em relação às chuvas e aos afetados, só ocorreram após muita pressão. A nossa pressão sim, faz diferença, pois aponta um caminho que vai além da empatia e foca na garantia de legislações adequadas para o cenário de crise climática.

Em 12 de abril deste ano foi divulgado, na Audiência Pública “O Diagnóstico do Cumprimento das Leis Climáticas do Estado do Rio de Janeiro”, um relatório produzido pela Frente Parlamentar de Justiça Climática do Rio de Janeiro, conduzida pelo mandato do deputado Flávio Serafini, que aponta que dos 10 instrumentos colocados por meio da Lei 5690/2010 sobre Mudanças Climáticas, somente dois foram de fato executados – ainda assim com ressalvas.

Audiência Pública da Comissão Cumpra-se na ALERJ em 12/04/2024 l Foto: Acervo Pessoal.

Planos de Adaptação, estaduais, municipais e nacionais, podem ter caráter de prevenção e abarcar diversas abordagens. Vão desde a construção de estruturas hídricas e destinação adequada do lixo à drenagem/desassoreamento de rios e recomposição de matas ciliares nas encostas. Também incluem soluções que façam com que esse concreto todo que espalhamos por aí absorva a água da chuva de forma inteligente e inovadora – tudo baseado em conhecimento científico. Parece distante, impossível, mas esses planos são, ou pelo menos deveriam ser, prioridade dentro do cenário de emergência climática. Como acharemos soluções se a gente não buscar?

O Rio Botas, na Baixada Fluminense, e o Rio Acari, na Zona Norte do Rio, deixaram bairros debaixo d’água em janeiro e ainda não receberam obras que poderiam resultar na oportunidade dessas comunidades terem a chance de não perder tudo novamente numa próxima chuva. A ineficiência e o desmantelamento de políticas públicas ambientais nos âmbitos legislativo, da vereança de uma cidade no interior até o Congresso Nacional, são por acaso? No tribunal da internet – e até na Câmara dos Deputados – parece que é. 

Culpar a Madonna parece mais simples que criticar o descaso com os alertas emitidos, a falta de protocolo em momentos de emergência e a resposta lenta para um pedido uníssono de adaptação da infraestrutura urbana. Não é mais possível viver como antes, e os governantes seguem na mesma toada, passando boi, boiada, bala, agrotóxico e desmatamento como se a relação entre a tragédia e a negligência não estivesse óbvia. E a desinformação ajuda mesmo a não estar.

Parece mais simples reivindicar o remanejamento de um orçamento privado em parceria com um orçamento municipal de Turismo e Cultura alocado em um evento há meses, gerando milhões de empregos e de acordo com a legislação, do que lembrar que o certo mesmo é ter orçamento para tudo. Se for pra ousar, que a ousadia seja em projetar medidas de financiamento tão eficazes para limpeza e reconstrução de cidades quanto para o levantamento de grandes palcos. No gráfico abaixo, retirado de uma publicação do Ipea com dados do Proclima, vemos de forma objetiva a falta de compromissos legislativos com esses planos. A nossa legislação ambiental está desatualizada.

Fonte: Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios | Ipea.

É claro que esse texto não é sobre a Madonna

Mas trago essa reflexão para reforçar que utilizar o discurso “cancele o evento cultural” – seja ele da rainha do pop ou da roda de rima – para contestar as consequências das mudanças climáticas que nos atingem não é eficiente. Se fosse pra termos um debate estratégico, estaríamos pensando que no Engenhão, em novembro de 2023, o show da Taylor Swift que ocorreu em meio a uma onda de calor no estado, e resultou na perda da vida de uma jovem, deveria obrigatoriamente gerar medidas de conscientização ambiental amplamente divulgadas e não um PL cujo objetivo principal é combater o cambismo de ingressos.  

E se formos falar em eventos, ecobag e copo eco já não são as inovações do momento. Sustentável mesmo é envolver cooperativas de resíduos sólidos e visiblizá-las ao público, valorizar trabalhos feitos por comunidades que protegem o bioma onde aquele encontro se realiza, alocar o discurso de solidariedade ao discurso de emergência, cobrança e mobilização em torno de um apoio governamental para adaptar os editais culturais considerando medidas alternativas para ondas de calor ou de chuvas excessivas. É necessário prevenir, conscientizar e politizar sim o debate nesse âmbito, onde o encontro e união de pessoas para a diversão também as sensibiliza para olhar além da tragédia em si. É uma oportunidade! 

Formada em Produção Cultural pela UFF – Niterói abordando práticas culturais como plataforma de conscientização ambiental, minha virada de chave para o tema se deu ao acompanhar um caso territorial de racismo ambiental onde a solução não chegou por nenhum outro lugar além da mobilização das pessoas para incidência em políticas públicas alinhada a valorização da ciência e proteção da história, memória e patrimônio do território.

O que é racismo ambiental?

Para contextualizar o racismo ambiental, vale pesquisar sobre o Dr. Benjamin Chavis que, na década de 80, descreveu o racismo ambiental como a discriminação racial na elaboração de políticas ambientais. Isso inclui a aplicação de regulamentos e leis, o direcionamento deliberado de comunidades racializadas para instalações de resíduos tóxicos, a sanção oficial da presença de venenos e poluentes que representam uma ameaça à vida nessas comunidades e a histórica exclusão de pessoais racializadas dos espaços de liderança nos movimentos ecológicos, conforme trazido no livro “Racismo Ambiental e Emergência Climática no Brasil”. Ou como define a Casa Fluminense no “Guia Para Justiça Climática”: “É a exposição desigual de algumas populações aos impactos e riscos socioambientais tendo como justificativa a localização geográfica, as características sociopolíticas, econômicas e ambientais de determinadas regiões e também pelo racismo estrutural que identifica os locais onde populações vulnerabilizadas vivem como potenciais zonas de sacrifício, onde ali permitem-se atividades de alto impacto socioambiental, a ocorrência de poluição, de contaminação, de recebimento de externalidades de processos sistêmicos como áreas irregulares de descarte de resíduos, deságue de efluentes etc.”

A tragédia no Rio Grande do Sul e seus desdobramentos político-sociais me lembram Realengo

Em 2019, a não implementação de um parque verde em um terreno abandonado no bairro de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, de onde sou cria, chamou atenção e olhares para a negação de direitos básicos: negação ao verde e negação da participação social. A disputa ali, como em quase todas as grandes disputas, era por terra. Terra para uso público (parque verde) ou terra para propriedade privada (prédios residenciais para militares)?  

Nessa luta, vi uma ocupação socioambiental chamada “Parquinho Verde” se fortalecer através do financiamento coletivo de um festival, o “Festival Avante Parquinho Verde”, e vi também uma agenda 2030 local ser construída, a “Agenda Realengo 2030”. Também acompanhei o início das obras do então denominado “Parque Susana Naspolini”, às vésperas do Natal de 2022, passando sem dó nem piedade o trator por cima de mais de 40 estabelecimentos  que estavam nas calçadas do terreno até então “abandonado” e, é claro, do Parquinho Verde. Passaram por cima mesmo ele sendo um ativo cultural que muito contribuiu pro debate climático e conscientização ambiental no Rio. Na época, fizemos pressão através da plataforma BONDE em parceria com o Meu Rio/NOSSAS, mas não tivemos sucesso em relação a esse tópico específico. Meses depois, 11 lojas foram inauguradas no local e organizadas por métodos não publicizados.

De forma prática, foi o Parquinho Verde e a parte ainda não totalmente desmatada do terreno onde hoje temos o parque que amenizou as ondas de calor da região, segundo o mapa abaixo, apresentado na Agenda Realengo 2030. É por motivos como esse que mobilizações como essa são tão importantes: aqui o enfrentamento é direto e o impacto territorial é real e imediato.

Mapa de calor da RA Realengo – Agenda Realengo 2030.

 No último 29 de abril, a Agenda Realengo 2030 mobilizou junto à Frente Parlamentar de Proteção e Ativação do Patrimônio da Zona Oeste um debate público onde foi apresentado o projeto de parque verde que a população havia construído coletivamente durante o 1º Curso de Políticas Públicas de Realengo e em reunião do Movimento 100% Parque Realengo Verde, esse o grande puxador dessa luta histórica. Porém, o debate não era só sobre o sonho de um parque. Era sobre as ruínas da Fábrica de Cartuchos, que estavam dentro desse terreno, e poderiam de forma estratégica serem transformadas em um espaço de memória. Mas, na prática, essas ruínas foram destruídas, apesar do planejamento sugerido pela empresa responsável pelo projeto, a Ecomimesis, indicar o contrário. 

“Por que derrubou sem necessidade?” e “por que não investiu em adaptação diante das previsões?” são perguntas que eu não paro de me fazer. Falar do Parque Realengo Verde, da luta por meio da arte, da cultura e da educação ambiental que se fez por ali, me remete à responsabilidade que temos enquanto sociedade civil na pauta climática, mas que não dá conta do todo e também não impede ativos como a especulação imobiliária, ou o desmatamento, de seguirem passando por cima. A gente atenua, atrasa, mobiliza, denuncia, mas não resolve, porque o papel de financiar, pesquisar e garantir é do Estado! 

O debate da crise climática deixou de ser sobre quem será atingido, já que no andar da atual carruagem do planeta os atingidos somam milhares de pessoas espalhadas por diversos tipos de geografias. Falar de racismo ambiental é também refletir sobre quem vai conseguir reconstruir suas casas e retomar suas vidas, tendo alternativas e garantia de suporte para se adaptar enquanto observa a infraestrutura básica da sua cidade se adaptando também. 

Adaptar é um tempo imprescindível pro debate ambiental. Adaptar nossos modos, consumos, reflexões e dinâmicas com o planeta e com a sociedade. Estou sendo redundante? Talvez. Mas ouvir falar de doação sem falar de adaptação é extremamente perigoso para o nosso futuro. Isso também é negligência. E ela vem na falta de adaptação, mediante aviso prévio, com aquele tom de negacionismo climático que passa a boiada por cima de comunidades originárias e periféricas, negando direitos básicos em nome do capital e esquecendo que as consequências vão chegar, para todos, de formas diferentes, mas sem desconto pra ninguém.

A culpa não é da chuva, mas da omissão do poder público diante da responsabilidade global perante às mudanças climáticas.  Com uma eleição municipal a caminho, uma crescente onda de desinformação e uma desordem compreensível diante de imagens estarrecedoras e a necessidade de falar tudo sobre qualquer coisa que a internet possui, para mim, duas questões ficam:

Cultura, adaptação climática e combate à desinformação não são direitos que deveriam estar garantidos no nosso novo normal? Votar em quem tem compromisso real com planos de adaptação não deveria ser, pra ontem, uma responsabilidade compartilhada?

A culpa não é mesmo da Madonna. 

Fica aí a reflexão.

Marcele Oliveira é é produtora cultural, comunicadora e ativista climática.  Mestre de Cerimônias do Circo Voador e atual diretora executiva do Perifalab, é co-fundadora da Coalizão O Clima é de Mudança e Jovem Negociadora pelo Clima residente do Comitê RioG20.

Mobilização arrecada fundos para luta por justiça para Marina Harkot e ciclistas assassinados

Julgamento por homicídio culposo acontecerá em 20/6 e familiares e amigos da ciclista buscam financiamento coletivo para campanha

Por Escola de Ativismo – 10/05/2024

Há quase quatro anos atrás, em 08/11/2022, Marina Kohler Harkot, ciclista, ativista pelo direito à cidade, feminista e pesquisadora foi atropelada por um motorista bêbado e em alta velocidade, em São Paulo (SP), enquanto voltava para casa. Agora, em 20 de junho, começará o julgamento por júri popular do culpado pela morte. Para lutar por justiça por Marina, e para garantir que não seja só por ela, os familiares estão com uma campanha de financiamento online.

Eles consideram que apesar da morosidade da justiça, é uma vitória da pressão popular que o  empresário José Maria da Costa Júnior esteja sendo julgado por homícidio doloso, quando a maioria dos crimes de trânsito é tratado simplesmente como “acidente”.

“Esse é um julgamento que pode mudar a direção de casos futuros de atropelamentos e crimes de trânsito. É uma mobilização por justiça a Marina, mas não só a ela. Lutamos também pelas memórias de Raul Aragão, Detinha, Pedro Davison, Kauã, Mari e tantas vítimas da barbárie do trânsito brasileiro”, diz o comunicado.

“Lançamos esta campanha colaborativa para mobilização pelo causa e para pagamento dos custos dessa segunda parte do processo criminal. Temos um tempo curto para levantar os valores, por isso contamos não só com a colaboração financeira de cada um e cada uma, mas também o empenho na divulgação da campanha”, afirmam.

Para doar, acesse a página de financiamento coletivo. E para saber mais e acompanhar, acesse a página do Instagram, Pedale com Marina.

E clique na imagem abaixo para ler a Tuíra especial da Escola de Ativismo sobre a Marina.

Campanha pede doação para tratamento de Tuíre Kayapó que enfrenta um câncer

Liderança indígena da terra Las Casas esteve à frente da luta contra hidrelétricas no Xingu e ficou conhecida mundialmente por enfrentamento

Por Equipe ISA, publicado originalmente em 16/04/2024

Tuire Kayapó durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. Todo ano a liderança percorre mais de 1.110 quilômetros até Brasília, para participar das mobilizações e lutar pela floresta em pé l Foto: Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA (dir.) e Protássio Nenê (esq.)

Em 1989, Tuire Kayapó, liderança da Terra Indígena Las Casas (PA), esteve à frente da luta contra a construção de hidrelétricas no Xingu, em especial do projeto da Usina Hidrelétrica Kararaô, que mais tarde se tornou a Usina de Belo Monte.

Foi nesse ano que a liderança Kayapó protagonizou o icônico registro em que brada seu facão contra o rosto do então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, em um gesto que marcou para sempre a resistência dos povos indígenas.

Leia mais:
+Revista Tuíra, a revista da Escola de Ativismo
+ Tuíra, a imagem

Hoje, aos 56 anos, a grande guerreira Kayapó luta pela sua vida e enfrenta um câncer no colo do útero, uma doença que representa 7,5% das mortes femininas por cânceres, com estimativa de 311 mil mortes por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Durante toda sua vida Tuire defendeu incansavelmente os direitos da floresta amazônica e de seus povos: “As florestas, os rios, os povos indígenas: é a sobrevivência deles que eu defendo até hoje”, afirmou em entrevista para o #ElasQueLutam.

Para que Tuire Kayapó continue a lutar pelos direitos dos povos da floresta, ela precisa de apoio para enfrentar o câncer.

Convidamos você a fazer parte desse movimento pela vida de Tuire Kayapó! Doe e compartilhe essa campanha.

Violência contra comunicadores na Amazônia atinge 230 casos em dez anos; leia relatório

Garimpeiros, madeireiros e grileiros são os principais ameaças; veja os dados do  relatório “Fronteiras da Informação”, do Instituto Vladimir Herzog.

Por Letícia Queiroz – 09/05/2024

Apurações que envolvem crimes na Amazônia motivam ameaças, agressões e mortes l Foto: Instituto Vladimir Herzog/Reprodução

Cercados e vivendo sob ameaças e perseguições. Essa é a realidade de comunicadores da Amazônia que trabalham denunciando e dando visibilidade às invasões de territórios indígenas, garimpo ilegal, exploração de madeira e outras irregularidades que resumem uma disputa brutal por territórios e recursos. Essa briga afeta povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e defensores dos direitos humanos.  

O relatório “Fronteiras da Informação” do Instituto Vladimir Herzog, divulgou informações sobre jornalismo e violência na região. A pesquisa mostra que as apurações que envolvem crimes na Amazônia motivam ameaças, agressões e mortes, como as do jornalista Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, assassinados em junho de 2022 enquanto apuravam crimes ambientais na região do Vale do Javari, no Amazonas.

Em 10 anos, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou 230 casos de violência contra jornalistas e a liberdade de imprensa nos nove estados da Amazônia Legal. O ano das mortes de Dom e Bruno foi o pior da história: 45 casos. O dobro em relação a 2021.

O Pará é o estado mais violento para repórteres na Amazônia, segundo o relatório, com 89 casos registrados em uma década, seguido por Amazonas (38), Mato Grosso (31) e Rondônia (20).

 

O Instituto Vladimir Herzog ouviu 10 jornalistas e comunicadores populares que foram alvo de violência devido ao seu trabalho na Amazônia. As entrevistas mostram as angústias e medos de quem reporta sobre a região. Os profissionais afirmam que o contexto de hostilidade representa um ataque à democracia.

Assim como o assassinato de Dom, o ataque a eles está diretamente relacionado com a atividade como jornalista. O objetivo é sempre tentar impedir os profissionais de contar as histórias. Há relatos de sequestros, perseguições e ameaças.   

O desmatamento desenfreado é uma das principais pautas. Entre 2018 e 2021, 114 mil hectares de terras indígenas desmatadas viraram pasto, segundo dados do Mapbiomas. Nesse período, 316 territórios da Amazônia Legal registraram abertura de áreas para criação de gado ilegal. Conforme as informações mais atualizadas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) até o ano de 2022, o Brasil possuía uma população bovina de 234 milhões de cabeças.

Enquanto isso, territórios ancestrais, como as comunidades quilombolas e aldeias indígenas, são invadidos por fazendeiros que querem aumentar o tamanho das propriedades.

O Relatório da Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil é elaborado anualmente a partir dos dados coletados pela Fenaj e pelos Sindicatos de Jornalistas dos estados. A coleta se dá por meio de denúncias feitas pelas próprias vítimas da violência ou por outros jornalistas, além de ser realizada a compilação de notícias publicadas pelos veículos de comunicação.

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Segundo a Fenaj, uma das lacunas do documento é a subnotificação, já que nem todos os casos são registrados, seja por medo dos profissionais de denunciarem às autoridades locais, seja por desconhecimento dos canais seguros para realizar essas denúncias. 

O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que faz parte da estrutura do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), acompanha e contabiliza casos de pessoas ameaçadas em decorrência de suas atividades como comunicadoras, ambientalistas ou defensoras de direitos humanos.

Atualmente há 940 casos ativos em todo o Brasil, dos quais 671 são casos incluídos e 269 estão em análise. Indígenas são a maioria entre os protegidos, sendo 30% do total, seguidos por pretos (27%) e pardos (17%). Para solicitar proteção ao PPDDH, é necessário entrar em contato com o Programa por meio do disque direitos humanos (conhecido como disque 100) ou acessar o site

Jornalistas que sofreram casos de violência compartilharam algumas dicas de segurança e medidas que têm adotado. Entre elas, estão:

  • Adotar um protocolo de segurança em toda viagem a campo;
  • Estudar bem a região e colocar no cronograma compartilhado onde pretende estar em cada dia para que outras pessoas acompanhem a viagem; 
  • Evitar viajar à noite; 
  • Utilizar aparelho celular exclusivamente para atividades profissionais, diferente do aparelho pessoal; 
  • Não compartilhar a própria localização ou qualquer tipo de situação pessoal em redes sociais;
  • Certificar-se de quem são as pessoas com quem conversa em uma apuração em campo; 
  • Portar, o tempo inteiro, aparelho de GPS; 
  • Sempre estar acompanhado de guia local ou pessoa de confiança. 

Clique aqui para ler o relatório “Fronteiras da Informação” na íntegra. 

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