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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto denunciam ataque em territórios na Bahia

Nota por Escola de Ativismo, Comissão Pastoral da Terra e Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais

01/04/2024

 

 

A escalada violenta contra as comunidades e povos tradicionais no Oeste da Bahia parece não ter fim. Nesta quinta-feira, 04 de abril de 2024, os territórios de uso coletivo das comunidades de Fecho de Pasto de Morrinhos, Entre Morros e Gado Bravo, localizados nos municípios de Jaborandi e Correntina, tiveram seus territórios violados por prepostos de fazendeiros do agronegócio.

Neste ato violento destruíram mais de 120m de cerca, arrancaram cancelas e derrubaram os ranchos usados como alojamento pelos fecheiros, deixando-os aterrorizados.

Relatam eles que seus gados podem se perder, com grandes prejuízos e riscos para a sobrevivência de suas famílias. E, mais que isso, podem se deslocar em direção à rodovia, com risco de provocar acidentes e outros transtornos. Na tentativa de evitar estas situações, as famílias se reuniram no dia 06 de abril de 2024, para recolocar a cancela que havia sido retirada e evitar que os animais fugissem, enquanto recolhem o gado solto na área do fecho. 

Mais uma vez, os fecheiros foram surpreendidos por decisão judicial que tenta criminalizá-los e impedi-los de exercer o seu direito ancestral de viver em seus territórios tradicionais, cuidando do que resta do Cerrado em pé, em benefício de todos.

Questões jurídicas

A ação que destruiu as benfeitorias das comunidades foi realizada pela Polícia Militar de Coribe em cumprimento a um mandado judicial de reintegração de posse. No entanto, a ação da polícia extrapolou a área em questão, atingindo também território de outra comunidade. A atuação da polícia parece não ter seguido o rito necessário ao cumprimento do mandado, tendo sido realizado de maneira arbitrária, uma vez que a Casa Militar foi consultada e informou não ter recebido o mandado.

O processo judicial que ensejou a decisão foi proposto pela Associação do Fecho de Pasto de Entre Morros para proteger a posse histórica e tradicional da sua área de fecho diante da invasão de uma empresa do agronegócio. Frisa-se que esta área já foi reconhecida e delimitada como Área de Fecho de Pasto pela SDA – Superintendência de Desenvolvimento Agrário, órgão gestor das terras públicas do Estado da Bahia.

Após 19 anos do início da ação judicial e 15 anos depois da sentença, o atual Juiz da Comarca de Coribe, em tutela antecipada, decidiu pelo adiantamento dos efeitos da sentença, determinando que fosse cumprida a reintegração de posse da área utilizada tradicionalmente pelos fecheiros, mas em favor da parte ré – a empresa. 

Não se pode falar em posse a ser reintegrada à empresa, já que as terras sempre estiveram em posse das comunidades até ser ameaçada pela empresa. O processo também incorreu em uma série de irregularidades e com a violação do direito à defesa da comunidade, que foi impedida de produzir provas orais, testemunhais e periciais. A empresa foi, portanto, favorecida no curso do processo, sem ter apresentado nenhuma prova da posse alegada. 

Essas irregularidades foram apontadas pela Associação de Fundo de Pasto, sem que fossem consideradas. Ao contrário, o recurso de apelação contra a decisão de reintegração, interposto em 2010, não foi, até a data de expedição do mandado de reintegração, enviado ao Tribunal, que é o órgão competente para julgar o recurso. Ato processual que deveria ter sido realizado de imediato.

Somado a esses absurdos processuais, o magistrado que sentenciou na época contra a comunidade tradicional, de maneira infundamentada e com cerceamento de defesa, foi posteriormente afastado e aposentado compulsoriamente no ano de 2015. Isso porque infringiu deveres funcionais da magistratura no período em que esteve à frente da Comarca de Coribe relacionados à questões agrárias, como abertura e trancamento de matrículas de imóveis sem observar as devidas formalidades.

Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) no Oeste da Bahia

Os territórios sob ataque receberam a visita da Comitiva da Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), entre os dias 17 e 22 de março, quando foram identificadas violações sistemáticas de direitos de povos e comunidades tradicionais. A Comitiva cumpriu diversas agendas com comunidades e órgãos públicos em Barreiras e Correntina. O objetivo da missão foi ouvir os relatos das comunidades sobre as violações de direitos ocorridas nos territórios a fim de denunciá-las aos órgãos competentes e propor recomendações que possam ajudar a frear os ataques e a garantir aos povos seu acesso à terra e aos territórios.

Omissão do Estado da Bahia

As comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto do Oeste da Bahia, lutam para que se cumpra a Constituição da Bahia, reconhecendo o direito à posse das terras pelos moradores da região, que as utilizam de forma comunal há centenas de anos. A ausência da regularização fundiária dos territórios por parte do Governo do Estado tem deixado as comunidades expostas à violência e violações de seus direitos. É urgentíssimo que o governo não mais se omita, ou mesmo deixe de ser conivente, e passe a frear a grilagem das terras nessa região, acelerando as ações discriminatórias, além do bloqueio das matrículas de fazendas que incidem irregularmente sobre as comunidades.

Fotos e divulgação: CPT, AATR e Escola de Ativismo

Do regime militar à democracia das chacinas, é preciso dizer a verdade no dia da mentira

Por Gustavo Assano – 01/04/2024

 

 

Da experiência militante do Cordão da Mentira, que há 12 anos desfila no dia do golpe militar, uma reflexão sobre a disputa histórica narrativa sobre o que foi a ditadura e o que é a democracia brasileira

Desfile de 2023 do Cordão da Mentira à frente do “Monumento às Bandeiras”, em São Paulo (SP), denuncia massacre colonial l Foto: Arquivo/Reprodução

É muito significativa a história do nascimento do Cordão da Mentira, bloco carnavalesco organizado por diferentes movimentos sociais e artistas engajados da cidade de São Paulo. Todo primeiro de abril, desde 2012, o Cordão percorre as ruas do centro de São Paulo e apresenta-se como um “desfilescracho” para “descomemorar” a realização do golpe empresarial-militar. O desfile não nasceu de uma provocação acadêmica ou vocação institucional. Surge de uma reflexão gerada por um conflito entre sambistas que frequentavam a roda do celebrado “Samba da Vela”. Numa noite de segunda-feira, no começo da década de 2010, uma ex-presa militante torturada, frequentadora do espaço, reconheceu entre os músicos da roda de samba um de seus torturadores, que respondia pelo apelido Pachequinho, ex-agente do DOPS e discípulo do abominável delegado Sérgio Fleury Paranhos. Em estado de choque e abalada, não pôde engolir a presença da face de seu passado traumático sorrindo, cantando e saboreando da fruição e descontração festiva e dignificante de canções populares de ampla tradição. Refiro-me à tradição da roda de samba brasileira, transmitida por gerações de ex-escravizados, imigrantes esbulhados e tantos agrupamentos que originaram a gente de mãos calejadas que forjaram a coragem da alegria mesmo selando caminhadas de vida marcadas por catástrofes sociais e individuais. A velha militante passou mal, e, ao ser socorrida, narrou os motivos de sua reação. Estava ali, na suposta era da “página virada”, dos balanços de superação da “ditabranda”, seu carrasco a celebrar a vida com as vozes e tradições herdadas dos degredados da terra.

O caso despertou a indignação de uma parte dos frequentadores da roda e um racha se formou no movimento. Para alguns dos sambistas que faziam parte da prestigiada roda, um impasse incontornável estava colocado. O que significa para um sambista que honra a história dos antepassados de seu ofício tomar como aceitável o convívio com um agente dos porões da ditadura? Houve um esforço de politização, de construir um debate real que apresentasse o que havia de escandaloso da situação apresentada. No entanto, tais esforços foram abafados. Pachequinho recebeu apoio dos principais integrantes da roda do Samba da Vela e seguiu até sua morte gozando do prestígio do movimento e com direito a homenagens póstumas. Gozou da ausência de incômodo compartilhada entre os facínoras da história sangrenta do Estado brasileiro. 

No entanto, uma parte dos sambistas da Vela romperam com o espaço, julgando ser insuportável conviver com tão ensurdecedor silêncio sobre o que se decidiu tomar como aceitável e natural: o apagamento de uma injustiça sem nome. Se o Estado, o STF e parte da classe política de esquerda tomava como aceitável a anistia, que acabou sendo apenas para militares, ali havia a chance de fazer diferente, de mostrar que no samba justiça não era um ritual vazio. Num primeiro momento se cogitou organizar um ato, mas logo surgiu a ideia da criação de um experimento artístico, inicialmente sugerido como uma peça de teatro, para então evoluir nas discussões para um híbrido entre procissão, teatro de rua e bloco carnavalesco. 

Assim surge a ideia do Cordão da Mentira: um ato político que jogaria todo o esforço organizativo não apenas no elenco de pautas urgentes declamadas em microfones de carro de som, mas principalmente na consistência do tratamento expressivo de uma obra de arte de intervenção no espaço público.

Ainda estávamos nos primórdios do processo da criação da Comissão Nacional da Verdade, ainda não havia se propagado a paranoia conservadora sobre o trabalho de apuração e reparação institucional sobre os crimes da ditadura, processo que, apesar dos seus limites e sabotagens limitadoras de seu alcance executivo, despertou a radicalização de extrema direita na politização das casernas. A rememoração dos crimes da ditadura ganhou aspectos de convenção de evento oficial para as primeiras gerações nascidas após o término da promulgação da constituição de 1988 e os consensos de pacificação neoliberal da democracia de presidencialismo de coalização. Era como se não houvesse urgência no ato rememorativo, como se não houvesse frescor nas consequências geradas, como se não fosse possível sentir o cheiro infecto dos porões de tortura em nossa era e como se os rastros de mutilações psíquica e em carne viva no processo de brutalização social herdados não compusessem os contornos da ordem democrática – o novo parâmetro de normalidade de médio termo que supostamente enterrou tão sombrio período da nossa história.

Assim, nos primeiros anos do Cordão, os cortejos eram pensados nos termos da tarefa de despertar as ruas de um falso senso de normalidade e superação, como se o cotidiano automatizado das ruas de São Paulo fosse em verdade um cenário de peça de teatro, uma casca de superfície desbotada que esconde uma estrutura que tem como fundamento uma máquina de moer e um sistema de iniquidades tida como face do progresso, inclusive por parte da esquerda. Era preciso dizer com todas as letras, alto e em bom som: a normalidade é uma mentira. Os números e falas eram pensados com deboche direcionado aos consensos liberais, com irreverência a uma esquerda no poder que se manteve tímida e omissa sobre os consensos coagidos da “transição para a democracia” e com forte ímpeto paródico direcionado aos resquícios da extrema-direita de outrora. Costurando uma miríade de pontos de vista que seriam divergentes em outros contextos de atuação em espaços de esquerda, todos envolvidos mergulhavam nas reuniões em debates sobre a geografia crítica da cidade, alternando homenagens em lugares em que militantes tombaram lutando por liberdade e escrachos cênicos a espaços que apoiavam ou eram centrais para fundamentar a violência institucional. Sua estética engajada inicialmente ambicionava denunciar crimes esquecidos para uma conjuntura dessensibilizada sobre este passado, tido como remoto, revelando o índice de um passado que não passa. O desafio era convencer as pessoas da atualidade deste período nefasto, a proximidade contemporânea do que a miopia despolitizante induziu a tratar como distante.

As Mães de Maio e Mães de Manguinho à frente do cortejo do Cordão da Mentira l Foto: Twitter/@RobertoSungi/Reprodução

A mentira vira “mito”

Em poucos anos, no entanto, a tomada das ruas com deboche à mentira da normalidade democrática encontrou seu limite quando a extrema-direita radicalizada tomou o poder e impôs ao país um novo patamar de autoritarismo e mentiras. De um período de apatia sobre a ditadura, vivemos agora uma disputa por hegemonia na narrativa histórica sobre o presente, em que a reconstituição mítica do golpe de 64 e a heroicização dos seus torturadores não é um caso isolado escandaloso, mas plataforma de poder com base social de massa e formulação corrente feita com paixão de militância engajada. 

Com a revelação bombástica da tentativa frustrada de instauração de uma nova ditadura militar sob o golpismo bolsonarista, esta sensação de distância fria perdeu sua razão de ser. Mesmo os mais empedernidos defensores de outrora de uma perspectiva liberal de “página virada” sobre o regime ditatorial não podem deixar de sentir no cangote os suspiros arrepiantes de um velho fantasma, recolocado em cena com nova roupagem de legitimidade social. 

No entanto, para terror dos desavisados por cegueira consentida e calafrio dos que não guardaram ilusões sobre as consequências de conciliações extorquidas, há certa dificuldade em lidar com o movimento contraditório que a nova politização conservadora coloca sobre o debate. Além do desejo por restauração de uma era de ouro defendida com mentiras, há o monopólio sobre a elocução pelo desejo por ruptura, representado pelo bolsonarismo que sobreviverá sem Bolsonaro. 

A resposta de Lula, pregando um quietismo de ocasião para reiterar a “página virada” já não responde aos anseios de períodos em que a politização de direita era de baixa voltagem, como no contexto das conciliações costuradas nos primeiros mandatos lulistas. Contra as mentiras do verde-amarelismo do novo conservadorismo radical brasileiro, a aposta deve ser a mentira de uma normalidade nunca conquistada? O combate às velhas mentiras será travado com a lapidação de novas? Não é possível acreditar que será um restauracionismo de um progressismo republicano desenvolvimentista que prega não haver vestígios da ditadura na democracia de chacinas que instaurará algum novo regime de verdade. Contra a atualização de símbolos da ditadura em comícios com dezenas de milhares de pessoas com camisas da CBF, a omissão como solução soa como um atestado de morte política.

Uma nova forma de politização também traz desafios para as formas de conceber o sentido combativo da memória do golpe de 64. O tema escolhido para o desfile do Cordão da Mentira deste ano foi “De golpe em golpe: tá lá um corpo estendido no chão”. O título articula o duplo movimento de duro trabalho de reflexão que a situação exige que atravessemos: por um lado, pensar sobre o mesmo fenômeno enquanto sucessão reiterada, repetitiva, de continuidade de uma tendência histórica que desdobra os massacres contínuos iniciados quando caravelas europeias primeiro atracaram em praias do “Novo Mundo”; por outro lado, trata-se de um evento excepcional, um marco inaugural que deve ser pensado nos termos de sua singularidade, os termos de situação nova inaugurando um novo patamar de modernização conservadora. O desafio está em entender que uma dimensão não desmente a outra.

reunião em cooperativa

Cortejos do Cordão da Mentira denunciam violência policial l Foto: Sato do Brasil/Cordão da Mentira/Divulgação

O dever de dizer a verdade

Por um lado, há a tendência de apagamento do sentido de continuidade de campos sociais já esbulhados e oprimidos, de tal forma que a ditadura representou a agudização e radicalização de uma vocação exterminista e desagregadora do Estado brasileiro já existente muito antes do golpe de 64. Como se os vestígios de terror ideológico e centralização do poder de dominação social fosse um ponto fora da curva nas condições normais de temperatura e pressão institucionais, como se o autoritarismo não estivesse incrustado na legalidade institucional brasileira desde o berço. O que cria a miopia, que perdurou por anos, de que em 64 o regime era brando e apenas após o AI-5 teria começado a violência aterrorizante, ignorando o trucidamento da organização sindical em meio urbano ou rural, os inquéritos sobre universidades, os expurgos entre dissidências nos meios militares de baixa patente, e tomando como fatos de menor relevância a censura, a invasão de igrejas com cúrias progressistas, suspensões de habeas corpus, etc.

Por outro lado, há o equívoco de tratar a era inaugurada pelo golpe de 64 no Brasil como mais um grão de areia no grande deserto de genocídios encadeados na história da subjugação dos povos degredados em holocaustos coloniais. Sem a devido cuidado, corre-se o risco de ignorar o salto organizativo nas formas de extirpar do território nacional toda e qualquer forma de dissidência e inconformismo – este o real propósito do golpe, e não uma reação “por incômodo com a democracia” como prega certa narrativa romântica e rósea que tenta fingir ser efetiva a conquista da liberdade democrática. É tal formulação que impede de ver, por exemplo, a ampliação do sistema carcerário como uma continuidade tendencial de forma de controle de populações pobres, afinal oprimidas desde sempre, em que a política de contra-insurgência militar contra a “ameaça comunista” passa a se voltar contra o tráfico de drogas, a justificação política e jurídica para o massacre de pobres, pretos e periféricos. Também não seria tomado como tema de reflexão a modernização do mundo do crime com o entrelaçamento entre esquadrões da morte (como o capitaneado por Fleury) e inteligência militar de polícia política, passando o know-how de perícia militar para agentes que faziam bicos de segurança ilegal para a contravenção (bicho e tráfico de drogas) enquanto trabalhavam nos porões, gerando a modernização do crime, o surgimento das disputas territoriais da era das facções, e as condições de expansão do mercado ilegal de segurança ilustrado com os serviços contratados para assassinar Marielle Franco em 2018. Ou seja, ficaria sem reflexão a especificidade da aurora do poder miliciano e sua disseminação.

Não encarar a singularidade da era inaugurada é tratar com indiferença estes temas, como se fossem indistintos a tantos outros temas da pilha secular de cadáveres empilhados em nossa história. Tal postura significaria deixar sem menção um novo patamar quantitativo e qualitativo no aprofundamento do extermínio sistemático dos povos indígenas durante a tutela militar, como comprova a quase extinção do povo kinja, autodenominação dos Waimiri Atroari, nas obras da rodovia BR 174 Manaus-Boa Vista, assim como o genocídio da população negra durante a era da democracia de chacinas, deixando sem crítica a criação da Polícia Militar nos moldes hoje naturalizados. Pior, ficaria sem debate o equívoco triunfalismo de certa esquerda que comemorou uma suposta derrota das forças militares, como se fossem uma força despolitizada e coadjuvante por mero desprestígio circunstancial, certeza que permitiu que todos ficassem de queixos caídos com a ascensão de Bolsonaro. Não haveria balanços sobre o que significa a sobrevivência de serviços de inteligência e arapongagem que continuaram em funcionamento durante o período democrático, com a manutenção de órgãos como o SNI comandados por militares. Um amontoado sem fim de injustiças que permanece sem confronto.

Não apontar a face mutilada de uma sociedade colapsada e tutelada por uma polícia, um poder militar, um sistema político, um código civil e paradigmas de desenvolvimento econômico todos legados da ditadura militar e preservados nas aspirações governativas inclusive da esquerda no poder significa uma recusa a olhar-se no espelho e, ao não ter coragem de confrontar a própria face, os próprios auto-enganos e ilusões perdidas, condena-se a viver sem perceber o real tamanho das armadilhas e batalhas do tempo presente. No dia da mentira, dia dos 60 anos do triunfo da infâmia e covardia, o dever de dizer a verdade se impõe com maior força. Muito apropriado quando o imperativo de lidar com contradições e impasses se torna um dever. Na omissão, não há confronto com a verdade, e se a verdade não é encarada, a justiça é uma mentira e as páginas viradas, meras mordaças auto-impostas, novas formas de conformismo para tornar aceitável o convívio com derrotas que calam fundo. Mas tá lá mais um corpo estendido no chão, nos lembrando de que nossos mortos têm voz, e só podem falar através de nós.

Gustavo Assano é professor e coordenador do núcleo ArtEmancipa, mestre em filosofia e doutorando em teoria literária e literatura comparada e pesquisa teatro da cidade de São Paulo há 20 anos.

Cursinhos populares estão pintando as universidades brasileiras de povo

Por Bárbara Poerner – 27/03/2024

 

 

Conheça projetos de pré-vestibulares gratuitos e voluntários que ensinam como transformar realidades por meio da educação popular

Uma turma do cursinho Afirmação, no Rio Grande do Sul l Foto: Arquivo/Reprodução

“Tenho que dizer que se pinte de preto, que se pinte de pardo”, disse o revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara em um discurso na universidade de Las Villas, em Cuba, no ano de 1959. “Não só entre os alunos, mas também entre professores. Que se pinte de operário e camponês, que se pinte de povo, porque a Universidade não é patrimônio de ninguém e pertence ao povo de Cuba”, anunciou, propondo uma revisão radical da forma como o ensino superior era visto até aquele momento na América Latina.

Mais de sessenta anos depois das palavras de Che, o acesso à educação superior ainda é muito desigual no Brasil. Embora o perfil de discentes das faculdades e universidades esteja mudando ao longo das duas últimas décadas devido às políticas de cotas e articulações de movimentos sociais, o cenário ainda é pouco diverso e, para muitos, inacessível. Isso se reflete nos dados: o número de brasileiros com 25 anos de idade que têm o ensino superior completo é de apenas 19,2%, diz o IBGE.

Os cursinhos populares são um modo de desafiar esse modus operandi. Eles são pré-vestibulares gratuitos onde, normalmente, todos os docentes e colaboradores são voluntários. O objetivo é auxiliar os estudantes a ingressarem na universidade, mas não só.  

Ao proporem uma nova lógica de acesso à educação, tais projetos impulsionam uma práxis de comunidade, solidariedade e redução das desigualdades. “Além [do Afirmação] me possibilitar ingressar na faculdade, também me possibilitou o convívio com colegas mais jovens e a formar novas opiniões em questões de gênero, raça e política. Vai muito além do cursinho, eles acolhem o aluno”, exemplifica Daiane da Silva Rosa, uma universitária que reencontrou o caminho do estudo após 20 anos sem entrar em uma sala de aula. 

Daiane foi aluna do Afirmação, cursinho popular localizado no centro de Porto Alegre (RS) e fruto de uma parceria da Escola Estadual Júlio de Castilhos com militantes do Levante Popular da Juventude. Hoje, ela estuda Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Para mim, ter passado no vestibular significa que nunca é tarde para recomeçar e poder mostrar para os meus filhos que a educação vale a pena, e que mesmo que não tenhamos condições financeiras de pagar um [cursinho] particular, eles podem conseguir também, como eu consegui”, conta a estudante. “É para que o jovem veja que pode ocupar lugar nas faculdades, que não é só quem tem dinheiro que consegue.” 

Nicoly Donati, que foi professora de química da estudante e é uma das coordenadoras do projeto, acredita que isso torna os cursinhos populares uma experiência diferente dos ambientes escolares convencionais. Para ela, “o primeiro impacto dos cursinhos populares é fazer as pessoas entenderem que a realidade delas pode ser diferente, que o lugar delas é dentro do ensino superior e esse é um direito que elas têm”.  

Para o +Nós, cursinho popular que atua em algumas cidades e bairros do estado do Rio de Janeiro, ir além das quatro paredes da sala de aula é essencial. O projeto “não tem só a intenção de ser um curso comunitário, mas sim um movimento de educação popular”, conta Ana Carolina, co-coordenadora e docente de redação, gramática e literatura na unidade do Complexo do Alemão. Ela ainda acrescenta que “defendemos abertamente o fim do vestibular, pois ele é processo de exclusão. E quem vai ser excluído são essas parcelas da população que são mais marginalizadas e que enfrentam uma desigualdade educacional muito grande”.  

Pioneiro na experiência, o atual Instituto Cultural Steve Biko começou em 1992, na cidade de Salvador (BA), como um cursinho voltado para a população preta e parda com o “propósito de inserir pessoas negras politizadas e conscientes dentro da universidade”, afirma Jucy Silva, diretora pedagógica do espaço. A ideia foi inserir uma disciplina diferente, chamada de cidadania e consciência negra, na grade do pré-vestibular.  

Desde então, muita coisa mudou no cenário educacional brasileiro. A Lei de Cotas foi aprovada em 2012 e, em meados de 2000, surgiu o ENEM. A diretora lembra que, há 30 anos, uma pessoa negra oriunda da escola pública demorava mais tempo para ingressar na universidade e não era comum vê-las ocupando cadeiras de cursinhos preparatórios. Hoje, o Steve Biko tem alunos de todas as idades, inclusive estudantes do ensino médio, e ampliou sua atuação para além das aulas preparatórias, mas Jucy destaca que ainda existe uma longa trajetória para garantir o direito ao ensino para a população preta e parda no país.

Uma turma do cursinho +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Superando os desafios 

Movimento de Educação Popular Inclusiva do Jurunas, realizado em parceria com a Universidade Estadual do Pará (UEPA), atua no bairro homônimo em Belém (PA), começou na década de 1970, passou por um hiato e voltou em meados de 2015. Gabriel Pacheco, professor de História e um dos coordenadores do projeto, explica que o critério de seleção prioriza os estudantes que já residem no bairro, a fim de facilitar a locomoção e também driblar um problema comum entre os cursinhos populares: a evasão.  

Uma estratégia do Afirmação para lidar com a mesma adversidade foi criar o grupo de acolhimento, no qual existe um contato direto com os alunos e alunas a fim de entender a realidade individual de cada. Além disso, existem os núcleos de atividades extracurriculares, comunicação, financeiro e coordenação. “Nenhum grupo tem mais importância ou mais voz do que o outro, são só grupos com tarefas diferentes”, explica Isadora Franck, professora de física e co-coordenadora.  

Tal disparidade no acesso à educação começa muito antes do ensino superior. São 52 milhões de brasileiros que não completaram o ensino médio – ou porque abandonaram, ou porque nunca frequentaram a escola; sete em cada 10 são pretos ou pardos. “O racismo provoca muito fracasso na vida escolar de um jovem negro ou uma jovem negra. O racismo tem efeitos perversos e que impede mesmo a pessoa terminar o ensino médio, a pessoa entrar na universidade. Às vezes ela entra, mas ela não consegue permanecer”, argumenta Jucy.  

Ana também cita o desafio da evasão, mas acrescenta outro que se manifesta no estado carioca: a violência. “Esse problema interfere diretamente na atuação do pré-vestibular, principalmente se ele é localizado dentro de comunidades de favela”, conta a professora, que destaca como o +Nós atua também com reforço escolar para remediar o problema e oferecer espaços seguros de acolhimento. 

reunião em cooperativa

“Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, diz professora do +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Construindo a educação popular

Desde criança, Gabriel desejava dar aulas de história. Foi no cursinho popular Jurunas onde ele conseguiu concretizar esse desejo e ampliar sua visão de mundo. Segundo o historiador em formação, fazer parte da “grande família” que é o projeto serviu para refrescar sua prática pedagógica. Ao sentir que está ajudando as pessoas com aquilo que ele sabe fazer de melhor, Gabriel acredita “que cada vez mais você está contrariando o sistema, que tenta cada vez mais fazer essas pessoas desistirem e somente aceitarem as coisas”. 

Um dos métodos do Jurunas para abordar temas sociais foi incluir a matéria “Interdisciplinar”, onde são tratados assuntos da atualidade como feminicídio, prisões, fome, escassez hídrica e lixo. A potência do projeto, para o coordenador, está em manter o acesso ao ensino público, gratuito e de qualidade, indo na contramão do ideal de privatização. 

Os cursinhos também são espaços de formação de professores, defende Isadora. Foi o que aconteceu com ela e Nicoly. Hoje, ambas estudam o curso de licenciatura em física e química, respectivamente, motivadas pelas experiências que tiveram no Afirmação. 

Os impactos não se mantêm só na vida do estudante, mas sim ampliam-se para sua família e território. “Conseguimos fazer um trabalho que alcança essas famílias e essas comunidades formando uma rede”, diz Jucy. O estudante “consegue ter uma melhor percepção do que é ser negro na sociedade e eles também têm acesso à história dos nossos ancestrais, nossos antepassados de forma positiva e também consegue se instrumentalizar para poder combater o racismo fora do Instituto Steve Biko, dentro da universidade e também fora dela”. 

Essa prática de ensino ligada às experiências que ultrapassam o caráter conteudista tradicional estão presentes em inúmeros cursinhos populares e são, para Ana, uma formação de cidadania. Ser professora no +Nós expandiu sua leitura de mundo e, hoje, ela é adepta do verbo esperançar, de Paulo Freire . “Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, finaliza. 

Brotei: a perspectiva de uma semente de Marielle

Por Vitória Rodrigues – 13/03/2024

 

 

Com 13 anos quando Marielle foi assassinada, a ativista Vitória Rodrigues transcreve sua trajetória e angústias enquanto jovem que sonha com a política e fala sobre o impacto da ex-vereadora em sua vida

Nota da Edição: O texto foi publicado antes das revelações das investigações da Polícia Federal que culminaram na acusação dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão como mandantes.

Há exatos seis anos, eu tinha treze anos de idade e ela tinha trinta e oito. Eu estava  no último ano do ensino fundamental. E tinha o hábito de sair da escola e andar até o quarteirão ao lado, onde minha mãe trabalhava como diarista numa casa. Tinha que dar um abraço nela.

Quando cheguei lá, abracei minha mãe. Logo depois, ela minha mãe começou a limpar o chão enquanto a televisão estava ligada. Meio-dia é hora de RJTV, que eu logo comecei a ver. Mostrava as imagens de uma mulher bonita e do seu motorista, também bonito. Falava de morte. Fiquei nervosa, mas me sentei para ver o que acontecia.

Naquela época, eu já tinha alguma consciência política — como muitos da minha geração, nossa formação democrática começou pela página de Facebook Quebrando O Tabu. Mas eu não sabia quem era aquela mulher. Só sabia que me sentia triste, desolada e como se uma parte de mim tivesse ido embora também. 

Aos meus treze anos de idade, eu vi a Marielle Franco, de trinta e oito, ir embora. Diferente dos outros dias, o RJTV1 foi todo sobre o assassinato da Marielle e do Anderson. Aquilo me indicava que era sério. Diferente dos outros dias em que passava no trabalho da minha mãe, só fui embora quando o telejornal acabou.

Quando decidi partir, abracei a minha mãe e fui ao ponto de ônibus pensando que a mãe da Marielle jamais poderia abraçá-la de novo. Naquele busão sem ar-condicionado no calor da Pavuna e de São João de Meriti, minhas lágrimas angustiadas se misturaram com o meu suor. Péssimo dia.

Cheguei em casa e meu Galaxy J5 Prime nunca fez tantas pesquisas. Passaram-se horas. Queria saber quem era Marielle Franco, o que ela fazia, porque fazia. Nela, vi muito do que eu acreditava. Eu nunca tinha visto uma mulher negra e sáfica ser política. Na época eu não entendi, mas aquilo me inspirou. Muito.. Me vi nela. As notícias falsas que eu li eram numerosas e aquilo me doía o coração. Eu estava confusa, enfurecida e ensandecida.

Já depois de muito pesquisar e estudar para concurso público de ensino médio, era noite. Com a minha avó, resolvi ver o RJTV2 pra ver se tinha alguma novidade. Naquele dia, a imagem da Cinelândia tomada por pessoas me emocionou muito. Prometi que seria determinada e sensível como a Mari. Desde o dia 15 de março, espero alguma explicação para o crime. Mas criei as minhas próprias respostas a esse absurdo. E quem me ajudou foi a revolta. 

Anos de espera e de luta

A revolta pelas desigualdades que eu vivi e vivo me fez focar na educação como forma de mudar de vida — de comprar uma casa, de ter carteira assinada, de poder sonhar. Um ano depois do dia 15 de março de 2018, eu estava estudando na escola dos meus sonhos. E naquele dia, o Coletivo Feminista levou quem quisesse para o Redes da Maré, do ladinho d’onde eu havia acabado de começado a estudar.

Na favela lar da quinta vereadora mais votada em 2016, naquele dia acontecia a abertura de uma exposição que homenageava a vida de três ativistas negros: a data de falecimento de Marielle Franco também era data de nascimento de Abdias do Nascimento e de Carolina Maria de Jesus.

As pessoas faziam discursos emocionados e tinham várias fotos da Marielle. Queria ser um terço do que ela é, pensei. Naquela semana, muitos dos meus professores falaram da Mari porque a conheciam e sabiam quem ela era. Tinham votado nela. Faltava muito, mas gostaria de votar em alguém como Marielle. Poderia eu ser uma referência assim um dia?

O sonho de ser mais

Estudar do lado da Maré e da Favela de Manguinhos significava não saber se eu voltaria pra casa tranquila. O ano do primeiro aniversário de morte da Marielle foi marcado por tiroteios em que minhas aulas eram interrompidas constantemente. Fiz um projeto de lei para o Parlamento Jovem Brasileiro e comecei a achar que poderia sonhar, sim, com a política.

Quanto mais eu me envolvia com projetos e lia o que diziam referências para mim, mais ficava nítido que eu gostaria de ser eleita para fiscalizar o poder público de forma integral. Sempre que surgia uma entrevista em que a jornalista perguntava o que eu gostaria de fazer, me era simples dizer uma única palavra: política.

Minha mãe, que me abraçava e ainda abraça todo dia, costumava ficar apavorada com essa ideia de querer fazer a diferença na vida pública. Dizia que eu ia morrer como a Marielle. Isso me assustava, mas nunca me parava de idealizar essa possibilidade. Tinha um medo quando dizia que queria, sim, viver a vida partidária pelo Brasil.

E é, de fato, difícil dizer isso. Eu sou uma mulher jovem de esquerda e a política massacra a mulheres todos os dias, especialmente meninas jovens de esquerda. Não imagino as coisas que as parlamentares Brasil afora escutam e enfrentam. A Marielle enfrentou.

Acredito que se tem uma coisa que a Franco ensinou é que a política pode ser do meu jeito e para o que eu acredito. Eu sempre gostei de assistir aos discursos que o Instituto Marielle Franco publicou via YouTube e é lindo ver essa mulher que eu tanto me inspiro falando com tanta veemência. Tinha uma firmeza linda na voz dela. Sinto muitas saudades do que não vivi com Marielle. Acho que eu já a teria conhecido pessoalmente se ela estivesse aqui.

Durante o último ano do ensino médio, tive muitas dúvidas se deveria escrever minha monografia sobre as milícias no Rio de Janeiro. Com tantos acadêmicos que são homens brancos, parecia não ser pra mim discutir violência. Quando meu orientador contou que a dissertação de mestrado da Mari era sobre as Unidades de Polícia Pacificadoras, fez muito sentido querer falar de necropolítica — a minha principal inspiração política falava disso. E tanto ela dizia e lutava, que incomodava quem promove o caos que atinge diariamente o nosso povo. 

Seis anos

Já fazem seis anos daquele dia em que eu, no ensino fundamental, vi pela TV a Cinelândia tomada por gente chorando e clamando por justiça. Agora estou entrando na faculdade e vejo como a ausência da Marielle fez com que eu germinasse a presença da força em mim.

No meu coração, sinto que conheço a Marielle, sim. Sei que poucas a conheciam como ninguém, mas existe a sensação de que ela vive muito em mim. Não sei. Só sei que sinto alguma coisa muito forte quando vejo uma foto dela ou lembro dela, e sinto vontade de fazer tudo o que nunca foi feito. Essa, talvez, seja a força que ela queria transmitir.

Eu bem que fui convidada e poderia me candidatar esse ano. Mas não pensei muito porque sempre ficou muito claro com o que aprendi com ela que a revolta deve ser organizada. E antes de fazê-la, a gente precisa estudar e aprender antes de fazer o que sempre sonhamos em fazer.

Penso sempre em como seria com ela aqui. O que ela estaria achando da política federal? Será que ela teria ido na minha escola? Será que ela teria sido eleita para outro cargo? Será que eu não ia me inspirar tanto assim em alguém?

Nesses dias, fui almoçar em comemoração ao aniversário de uma pessoa importante pra mim, a Beatriz. Acabamos falando de Marielle, e algumas semanas antes dela dispersar semente, minha amiga disse que a conheceu na escadaria da Câmara Municipal. Bonita, alta, atenciosa, ela desligou o telefonema em que estava para ouvir as sugestões da Bia sobre as mudanças do clima. Ficou muito claro ali que a presença dela tinha uma aura de força muito grande. Eu queria muito ter vivenciado isso.

Não me culpo por não ter acompanhado o trabalho de Marielle Franco antes de sua morte — eu era uma criança. Criança esta que estava numa escola municipal do Rio que ela sabia, mais do que ninguém, que estava ruim. E falava disso sempre e lutava para que mudasse. E eu sou muito grata por isso. E isso me faz querer saber mais e mais sobre a Mari sempre.

Minha mãe também resolveu abraçar o questionamento pelo assassinato da Mari. Dona Regina ainda fica com receio da vida que almejo ter algum dia, mas sabe que a gente precisa estar com a caneta na mão pra fazer tudo o que os que tem a caneta na mão se recusam a escrever e assinar.

Em 2024, quero parar de perguntar quem mandou matar a Marielle. Daqui uns anos, espero fazer um texto emocionado sobre como cheguei onde ela me inspirou a sonhar em estar. Acharam que matariam ela com tiros. Estavam enganados. Os projéteis disparados viraram incontáveis sementes espalhadas pelo mundo. Eu sou apenas uma delas. E brotei.

 

Pautemos o debate sobre aborto: nossas vidas não podem mais esperar

Por Maria Paula Monteiro* – 08/03/2024

 

 

Em artigo, Maria Paula Monteiro diz que o ambiente favorável para discussão do aborto tem que ser criado. “Organize-se! A vida das mulheres não pode mais esperar”, diz.

Protesto em 2023 em São Paulo l Foto: Gabriela Moncau via Brasil de Fato/CC

Quero contar a história de Aline. Mulher negra que, aos 36 anos, se viu grávida de seu terceiro filho, depois de ter tentado se reaproximar do ex-companheiro que a violentava. Criar e cuidar de duas crianças sozinha era difícil. Faltava dinheiro para as contas básicas no fim do mês, mesmo Aline se desdobrando como doméstica durante o dia e feirante aos finais de semana. Aline se mudou do interior para a capital para viver com o companheiro e não tinha mais contato com a família. Foi espancada durante a segunda gestação e o ex-companheiro era a única pessoa que conhecia na cidade. Precisava de ajuda, mas só teve a ele para recorrer. Grávida, não tinha condições e nem queria ter mais um filho desse homem violento. Ele disse o endereço de uma senhora que fazia abortos porque também não queria outro filho.

Os atendimentos só eram feitos de madrugada para não levantar suspeitas. Aline foi até lá sozinha. E aguardou, sozinha, em um quarto escuro, porque essa mulher tinha um filho em alcoolismo que ficava agressivo quando bebia. Sozinha, Aline deitou em uma cama de lençol sujo e aguardou que aquela senhora, utilizando uma agulha de costura, finalizasse o procedimento. Sozinha, Aline voltou para casa, sentindo dores e sangrando, para começar um outro dia de trabalho e cuidado com os filhos. 

O movimento feminista é repleto de histórias como a de Aline. Algumas sobrevivem para contar os relatos, outras não tem o mesmo fim. Qual a responsabilidade do Estado nisso tudo? 

Quando centenas de mulheres se reuniram na esplanada dos ministérios, em Brasília, em agosto de 2018, a pauta do aborto parecia mais viva do que nunca. Tenho cenas gravadas na memória que nunca vou esquecer do Festival pela Vida das Mulheres: mães amamentando suas crianças enquanto participavam de rodas de conversa, batalhas de rap, trocas de saberes com parteiras, balões verdes e roxos subindo no céu durante a passeata. Foram muitas palestras, personalidades relevantes da política do país presentes, vigília e manifestação na porta do Supremo Tribunal Federal (STF), audiência pública e participações riquíssimas.

O Festival foi organizado em virtude da audiência pública convocada entre 3 e 6 de agosto de 2018 para debater a ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, protocolada por Anis Instituto de Bioética e pelo PSOL em 2017. Dois meses depois, Jair Bolsonaro era eleito presidente do Brasil e a possibilidade de descriminalização do aborto, que parecia tão eminente à época, começou a ser abafada e atacada dia após dia.

Foram quatro anos muito difíceis para o movimento feminista, mas encontramos nesse terreno árduo muita força e solidariedade para seguir em luta. Foi também nesse período que aconteceu o crescimento da campanha “Nem Presa Nem Morta”, que luta pela descriminalização do aborto no país, e que as organizações do selo “Futuro do Cuidado”, envolvidas na pauta, também se fortaleceram. 

Durante esse tempo, vivemos o esforço de fazer valer o direito ao aborto a meninas de 10 e 11 anos que foram estupradas, nos vimos diante da necessidade de organizar logísticas de resistência em hospitais para tentar contornar a perseguição fundamentalista aos profissionais de saúde e às vítimas de violência. Digo no plural porque foi um verdadeiro esforço de ativismo, comunicação e estratégias de mobilização que envolveu diversos movimentos, de abrangências nacionais e estaduais. Sem contar as portarias e cartilhas absurdas do Ministério da Saúde, que tentaram dificultar mais o acesso ao aborto legal. Isso tudo em meio à pandemia do coronavírus.

Também nesse período vimos nossas “hermanas” conquistarem o direito ao aborto legal após anos de muita luta nas ruas. A aprovação da legalização do aborto na Argentina, no final de 2020, foi extremamente importante para potencializar as mobilizações em todos os outros países da América Latina, especialmente no Brasil, que é vizinho próximo. Em seguida, veio a descriminalização na Colômbia (2022) e no México, em 2023.  

Chegamos em 2023 no Brasil, sob um governo democrático, mas ainda com um Congresso de maioria anti-direitos. Se por um lado, em nível judicial, tivemos o voto favorável da ex-ministra Rosa Weber na ADPF 442 em setembro de 2023, as tentativas de barrar o tema entre os parlamentares não são poucas – muito menos desprezíveis. 

O PL do Estatuto do Nascituro, por exemplo, voltou para a pauta da Câmara dos Deputados no final de 2022 e conseguiu ter a votação barrada por articulação das parlamentares feministas com obstrução e pedido de vistas. Agora, pode voltar a tramitar a qualquer momento: uma deputada do Rio de Janeiro, Chris Tonietto (PL), conseguiu 305 assinaturas (59% da Câmara), para que o PL siga em regime de urgência. 

O projeto pretende tornar o aborto em crime hediondo, inclusive nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e de fetos anencéfalos, além de garantir personalidade jurídica para o feto. Com isso, até mesmo processos de fertilização in vitro seriam prejudicados, já que equipara em direitos os embriões às pessoas nascidas vivas. 

Digo isso tudo porque, enquanto ativistas de direitos humanos e pela democracia, temos a missão de nos alinharmos às mulheres feministas que estão pautando a luta urgente por aborto legal. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, mais de 5 milhões de mulheres de até 40 anos já abortaram no país. Um número muito alto se pensarmos que anualmente são feitos 1.800 abortos pelo SUS, em média, segundo a plataforma AbortoNoBrasil.info, de Instituto AzMina. 

São milhões de abortos feitos de forma insegura, que têm condições mais insalubres e perigosas a depender das condições financeiras, sociais, da região em que a pessoa se encontra. Aborto é um procedimento de baixa complexidade quando feito com medicamentos seguros e recomendados pela Organização Mundial de Saúde. É inaceitável que aborto seja uma das principais causas de morte materna no país. São mortes evitáveis.

É a vida das meninas, mulheres e demais pessoas que gestam que está em risco, diariamente. Ser militante feminista e ouvir cotidianamente relatos de violência e negligência do Estado é angustiante. Ouvi recentemente de uma feminista que admiro muito, a coordenadora da Casa Tina Martins, em Belo Horizonte, que todos os dias ela acorda com ódio. E que é esse ódio que a mobiliza para lutar todos os dias.

A criminalização do aborto hoje condena mulheres brasileiras à morte, a sequelas graves de saúde, a violências e traumas irrecuperáveis. Nossas vidas precisam indignar todo o corpo de ativistas do país, mas não só indigná-los: é preciso mobilizá-los. Temos a chance única de pressionar o STF para pautar novamente o julgamento da ADPF 442, e isso só será feito quando toda a sociedade estiver debatendo sobre aborto.

É preciso trazer o assunto e defendê-lo em todos os espaços. No grupo de amigos, nas redes sociais, na mesa do bar. É preciso, também, fortalecer as mobilizações em torno do aborto legal. A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto tem 16 Frentes Estaduais que se organizam no país, com formas de contato para poder dialogar e fortalecer.

O ambiente favorável para a discussão sobre a legalização do aborto será criado por nós. Organize-se! A vida das mulheres não pode mais esperar. 

 

*Maria Paula Monteiro é jornalista, ativista e uma das fundadoras do Coletivo Feminista Várias Marias, em Sete Lagoas, Minas Gerais.

Quais são as táticas e desafios da luta por direitos reprodutivos na América Latina

Por Luiza Ferreira – 08/03/2024

 

 

Como mulheres e pessoas que gestam na América Latina estão mudando leis injustas para garantir que aborto seja um direito, não um crime

A “onda verde” na Argentina conquistou a legalização do direito ao aborto l Foto: Emergentes via Brasil de Fato/CC

No dia 30 de setembro de 2023, a ministra Rosa Weber se aposentou do Supremo Tribunal Federal (STF), pouco antes de completar 75 anos, idade constitucional limite para integrar a Corte. Dezoito dias antes de se aposentar, ela assumiu a presidência do STF e no mesmo dia liberou para julgamento uma ação apresentada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética (ANIS) em 2017 sobre a descriminazação do aborto. Faltando oito dias para o fim de seu mandato, no dia 22 de setembro, em voto de 129 páginas, a ministra, que é relatora do caso, disse sim para que o aborto deixe de ser considerado crime se provocado até as primeiras 12 semanas de gestação.

Para a ministra, os artigos 124 e 126 do Código Penal não estão de acordo com a Constituição Federal atual, e a pena atribuída a gestante que realiza o aborto é desproporcional. A criminalização do aborto voluntário, diz ela, que aplica sanções penais às mulheres e aos profissionais que realizam tais procedimentos, “versa questão de direitos, do direito à vida e sua correlação com o direito à saúde e os direitos das mulheres”. 

No entanto, o julgamento foi suspenso depois de um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso. Tal pedido diz respeito a levar o julgamento para o plenário físico, pois ele acontecia em ambiente virtual da Corte.

No Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez decorrente de estupro, risco para a vida da pessoa que gesta e se o feto for portador de anencefalia. Se uma mulher ou pessoa com útero provoca um aborto ou autoriza alguém a realizar o procedimento em qualquer outra situação, a pena de detenção aplicada é de um a quatro anos, tanto para a pessoa que gesta quanto para a pessoa que auxiliou a realização da interrupção da gravidez.

“Embora tenhamos uma decisão no STJ que médicos não podem denunciar uma mulher ou pessoa com útero por abortos clandestinos, sabemos que, na prática, isso ainda pode acontecer e o entendimento dos juízes, especialmente de primeira instância, podem não ser o mesmo do Supremo. Então uma mulher que recorre ao aborto inseguro acaba se sujeitando a muitos riscos, seja com uma clínica clandestina, com medicamentos falsos, com métodos caseiros perigosos”, comenta Maria Paula Monteiro, jornalista, ativista e uma das fundadoras do Coletivo Feminista Várias Marias, em Sete Lagoas, Minas Gerais.

Para ela, o aborto é uma prática que nunca deixará de existir, mesmo que seja criminalizada. Por isso mesmo, a descriminalização representa um grande avanço em termos de justiça reprodutiva, e é papel do Estado se responsabilizar pela garantia do direito à vida e à saúde de pessoas que gestam.

Fundamentalismo religioso: entrave contra o direito da mulher 

Segundo Maria Paula, um dos maiores desafios do Brasil hoje é a força que tem o discurso fundamentalista na política. Discurso esse que encontra vazão no pensamento cotidiano de uma população extremamente religiosa: segundo a pesquisa Global Religion 2023, do Instituto Ipsos, 89% dos brasileiros acreditam em um poder superior e 76% seguem uma religião. 

Para a ativista, são poucas as igrejas que não misturam a fé com a política, e, com uma grande parte da população sendo religiosa e o número de grupos neopentecostais crescendo exponencialmente nos últimos anos, o discurso pró-vida entra em cena contra o menor sinal da pauta sobre o direito ao aborto alcançar novas proporções. 

“Levantam a bandeira contra o aborto, sob a crença de que assim são “a favor da vida” e demonizam totalmente mulheres que fazem a decisão por interromper a gestação, seja por qualquer motivo. Cria-se uma imagem de que as mulheres que defendem a legalização do aborto seriam assassinas, diabólicas”, diz. 

Ainda segundo a militante, entre os fundamentalistas religiosos não existe espaço para o debate sobre saúde pública, o foco é o campo da moral que pretende defender a vida mas defende, na realidade, a morte, “porque mata e persegue milhares de mulheres (e demais pessoas com útero) todos os anos”. 

Muitos desses grupos fundamentalistas, aponta, se colocarm contra o aborto até mesmo em casos de estupro, anencefalia do feto e em risco para a vida mulher, o que evidenciari a pouca importância dada para a dignidade humana para além do nascimento. 

Desde que o mundo é mundo: o aborto no Brasil 

A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021 revela que 1 em cada 7 mulheres brasileiras já passou por um aborto antes dos 40 anos. De forma alarmante, 52% dessas mulheres realizaram a interrupção da gravidez antes dos 19 anos. A disparidade é evidente, pois as mulheres negras enfrentam maior negligência e obstáculos para acessar serviços, representando 47,9% das internações e 45,2% das mortes relacionadas ao aborto.  

Ainda no Brasil, uma mulher a cada 28 internações morre no Sistema Único de Saúde, por falha na tentativa de realizar um aborto.  Segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS), só entre 2021 e 2022 foram 483 mortes. 

“Uma mulher que recorre ao aborto inseguro acaba se sujeitando a muitos riscos, seja com uma clínica clandestina, com medicamentos falsos ou com métodos caseiros perigosos”, comenta a ativista fundadora do Coletivo Várias Marias.  

A interrupção da gravidez ser algo legalizado é realidade em muitos países – inclusive acaba de se tornar um direito constitucional na França. Enquanto isso, no Brasil, mulheres tem se organizado em para tentar minimizar os impactos do aborto inseguro e por alternativas seguras para que se faça cumprir o direito das mulheres e pessoas com útero de decidirem sobre o seu próprio corpo. 

Segundo Maria Paula, foram as brasileiras que descobriram que o misoprostol, conhecido como Cytotec recomendado para tratar casos de úlcera, era um medicamento abortivo, e assim “passaram a utilizá-lo para abortar de forma mais simples e segura, no final dos anos 1980”.  

A alta demanda pelo remédio parece ter chamado a atenção das autoridades, que começaram a cercear a sua comercialização no início dos anos 1990. Oito anos depois, o misoprostol viria a ser permitido somente se administrado dentro dos hospitais, dificultando ainda mais o acesso às mulheres que procuravam um método seguro de interrupção da gravidez. O tema suscitou novas discussões no Congresso Nacional entre os anos de 2005 e 2007, durante os dois governos do presidente Lula (PT). 

“Infelizmente, a organização dos deputados anti-aborto foi muito forte, com discursos enérgicos e organização da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Contra o Aborto, que hoje conta com mais de 200 parlamentares”, relembra a ativista. 

Todos os dias, é preciso falar sobre o aborto

Nesse momento acendido pelo voto de Rosa Weber, a principal estratégia dos movimentos feministas para pressionar os demais ministros a acompanharem o voto de Rosa Weber é mobilizar o debate contínuo do tema, levando a pauta para os mais diversos canais de comunicação: nos jornais, nas revistas, nas redes sociais, entre outros.  

“É preciso tomar a narrativa como nossa, em defesa do direito à saúde, da liberdade das mulheres e por justiça reprodutiva. Precisamos seguir falando sobre aborto, em todos os lugares que estivermos, para ajudar o tema a deixar de ser um tabu”, diz Maria Paula.  

Para ela, ainda é necessário se propor a desmentir boatos e argumentos contrários apresentando dados científicos e fatos que comprovem a necessidade de incluir, de uma vez por todas, o aborto no debate da saúde pública.  

Onda verde

Assim como Maria Paula, integrante do coletivo Várias Marias, milhares de feministas e ativistas latinoamericanas tem se pronunciado cada vez mais contra a criminalização do aborto, ocupando as ruas de seus respectivos países em prol dessa luta. A onda verde, como ficou conhecida a luta pela legalização do aborto na Argentina, tomou conta da América Latina e não tem pretensão de parar até que todo o continente faça coro às políticas em defesa ao direito de decisão das mulheres e pessoas que gestam. 

Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai eram os únicos países da América Latina que haviam legalizado o aborto até dezembro de 2020. Poucos dias antes daquele ano acabar, a Argentina se juntou ao grupo. No país vizinho, o Senado do país aprovou a sua legalização até a 14ª semana da gestação. Depois de décadas de luta dos movimentos feministas argentinas pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, a lei 27.610 deu lugar à antiga lei de 1921, em vigor 101 anos depois de sancionada, e que considerava a interrupção da gravidez um crime, excetuando os casos de estupro ou risco de vida para a pessoa gestante. 

A chamada onda verde – manifestações gigantescas pelo aborto legal e seguro – que tomou conta da Argentina em 2020 transformou o país em um símbolo da luta pela descriminalização e legalização do aborto, inspirando demais movimentos feministas na América Latina.  

Dois anos depois, em fevereiro de 2022, o avanço veio da Colômbia com a descriminalização do aborto até a 24ª semana de gestação. Após o período, a interrupção só poderá ser realizada em caso de risco de vida da pessoa gestante, em caso de estupro ou malformação do feto. 

Outra vitória latinoamericana dessa vez veio do México, que descriminalizou o aborto no dia 6 de setembro deste ano. Foi a Suprema Corte mexicana que tomou essa decisão, após ter autorizado os estados a realizarem abortos no ano anterior, em 2021. No entanto, desta vez, ao declarar inconstitucional a criminalização do aborto, a Corte revogou os artigos do Código Penal que puniam essa prática, garantindo que mulheres e profissionais da saúde não sejam mais sujeitos a prisão por aborto em qualquer parte do país. 

Ainda que grande parte da América Latina mantenha a interrupção da gravidez como uma prática proibida, esses países demonstram um caminho viável na batalha pelos direitos reprodutivos das mulheres. E as decisões recentes fornecem um exemplo tangível de como políticas mais inclusivas e progressistas podem ser implementadas para garantir a autonomia e os direitos das mulheres e pessoas com útero sobre suas próprias decisões reprodutivas. São movimentos que tem servido de inspiração e modelo para as políticas brasileiras serem repensadas nesse aspecto. 

No caso da Argentina, uma das principais diferenças na mobilização, como pontua Maria Paula, é que lá a pauta é mais englobada pelos movimentos de esquerda e ativistas. Já no Brasil, o tema fica restrito não apenas à ao movimento feminista como à uma parte dele. 

“Falta envolvimento de mais pessoas com a pauta falando sobre ela nos espaços, sem tabu, abraçando a causa como prioritária, não deixando em segundo plano, tratando como identitária”, afirma a ativista. Com a reeleição do presidente Lula, há uma janela possível, acredita. Mesmo com os entraves das bancadas evangélicas e mais conservadoras, as ativistas enxergam o potencial de tão logo emplacar a descriminalização no país. Como reforçou a jornalista, os movimentos sociais e parlamentares da base progressista têm o papel fundamental de seguirem pressionando o governo federal e a imprensa para evitar o engavetamento da pauta por mais tempo.  

“As mulheres não podem mais esperar. Nunca teremos o momento ideal para tratar de aborto no país. Quem construirá esse momento somos nós mesmas”, finaliza.

 

Tecnoautoritarismo: o que a “Abin paralela” nos diz sobre mecanismos de vigilância e democracia?

Por Luiza Ferreira – 29/02/2024

 

 

Entrevista com o pesquisador Vinícius Fernandes revela alguns dos impactos e estratégias do tecnoautoritarismo no Brasil e no mundo

Crédito: Access Now via CC 4.0

No começo deste ano, a confirmação da suspeita da existência de uma Abin paralela através das investigações da Polícia Federal acrescentou ao gosto amargo do legado do bolsonarismo. Segundo as investigações, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria sido usada de forma ilegal para espionar políticos, jornalistas e autoridades adversárias ao governo de Jair Bolsonaro, com o intuito de favorecer o clã do ex-presidente.

Os ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e o ex-governador do Ceará e hoje ministro da Educação Camilo Santana estariam entre as autoridades vítimas do esquema criminoso de monitoramento. A atuação paralela da instituição se dava através da utilização do software israelense First Mile. 

A PF realizou operações contra Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Carlos Bolsonaro, onde encontrou indícios da obtenção de “materiais” ilegais através da agência, fruto do monitoramento criminoso. De acordo com as investigações, o filho do ex-presidente era quem chefiava o núcleo político da espionagem, sem o aval da Justiça, de adversários políticos, autoridades e jornalistas. A PF já teria indícios de que Jair Bolsonaro seria um dos favorecidos com informações do esquema de espionagem ilegal. 

As revelações colocam em foco a questão da atuação clandestina da agência durante o governo de Bolsonaro, e levantam sérias preocupações sobre o uso criminoso de uma instituição pública e de dispositivos de vigilância pelos governos de extrema-direita para controle e acesso à informações privilegiadas e favorecimentos pessoais. E isso também implica na segurança coletiva da população brasileira. Quem fala um pouco mais desses impactos é o pesquisador Vinícius Fernandes da Silva, da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.

Escola de Ativismo: Há novidade na atuação clandestina da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro? Como isso impacta a segurança coletiva e a privacidade dos ativistas?

Vinícius Fernandes da Silva: Sim e não. Vamos lá. A Abin foi criada em 1999, sendo sucessora direta do Serviço Nacional de Informações (SNI), o órgão responsável pelas informações que orientavam a repressão da ditadura a militantes, ativistas, partidos políticos, sindicatos, mídia, igreja, entre outros. Portanto, a Abin herdou um know how, um modus operandi do SNI, isso muito pela forma como o processo de redemocratização foi tutelado pelos militares, não havendo uma ruptura, mas sim uma continuidade. Mesmo instrutores, a mesma cartilha, reproduzindo a mesma lógica. Após a redemocratização, o uso para fins políticos já ocorreu, como no caso de 2002 com denúncias de que agentes da Abin participaram de uma operação que determinou a desistência da ex-governadora do Maranhão, Roseana Sarney, à disputa pela Presidência da República. Também tivemos um caso revelado em 2008 com grampos da agência em alguns parlamentares, no qual a Abin negou a participação, mas gerou o afastamento da cúpula do órgão.

Entretanto, neste caso recente do governo Bolsonaro, as provas são irrefutáveis. A Abin através do contrato 567/2018, de caráter sigiloso, utilizou a ferramenta de vigilância de 26 de dezembro de 2018 até 8 de maio de 2021, monitorando, segundo denúncias, adversários políticos, ativistas, senadores, governador e até ministro do Supremo Tribunal Federal STF. Na sociedade da informação atual, a utilização destas ferramentas de vigilância, no caso, o FirstMile com capacidade de monitoramento em tempo real de até 10 mil donos de celulares a cada 12 meses, gera enorme insegurança da privacidade dos ativistas.

EA: O que isso nos diz sobre o estado da vigilância hoje no mundo contra a sociedade e movimentos sociais?

VFS: Com a constante evolução tecnológica, a capacidade técnica e instrumental do Estado exercer o seu legítimo uso da força aumenta. Com isso, as ações em zonas de anomias, caracterizadas por lugares de ausência de direitos, potencializam o dano ao Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, a tecnologia fora das regras democráticas irá perpetuar ações de violência estrutural dentro da dinâmica patriarcal e eurocentrada do mundo.

Desde o caso Snowden, em 2013, quando o ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) revelou documentos da agência e da CIA sobre a espionagem em massa de cidadãos estadunidenses, além da interceptação de conversas privadas de lideranças mundiais da época, como Dilma Roussef e Angela Merkel, a tecnologia ampliou o poder do estado.

A empresa dona da tecnologia espiã, a Cognyte (ex Verint), não por acaso é uma empresa israelense, pertencente a um estado militarizado, testando suas ferramentas de vigilância contra o povo palestino. O exército brasileiro é o maior comprador da tecnologia no país, gastando mais de 82 milhões de reais entre 2014 e 2023.

Nos países latino-americanos, de histórico recente de ditaduras militares, temos ainda uma preocupação maior pela herança do estado à margem das regras com a justificativa da segurança pública dos homens de “bem”. 

EA: Qual é o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle e supervisão das atividades de inteligência, especialmente em casos de espionagem ilegal?

VFS: Como já decidido pelo STF, as atividades de inteligência da Abin não operam em campo de exceção dos direitos fundamentais. Pelo contrário, as atividades se submetem às regras do Estado Democrático de Direito e respeito aos direitos fundamentais (ADPF 695). Portanto, as ações descritas pela Abin Paralela são ilegais e devem ser julgadas de acordo com a lei.

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) provocou o STF através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 84), sugerindo que a Corte dite regras a serem seguidas até que haja uma regulamentação específica sobre o tema. A PGR entende que há uma lacuna constitucional na regulamentação da questão, então acionou o STF para que garanta balizas provisórias à salvaguarda dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, e à inviolabilidade do sigilo das comunicações pessoais e de dados, até que o Congresso faça o seu papel em legislar sobre o tema.

A última movimentação da ADO, o Ministro Cristiano Zanin, relator do caso, abriu prazo de dez dias (iniciado em 02/02) para que o Congresso Nacional preste informações sobre a regulamentação do uso de ferramentas de vigilância. É uma medida de praxe, porém mostra o interesse na celeridade do assunto na Corte.

EA: Como a utilização de informações obtidas ilegalmente pela Abin pode ter impacto na integridade de processos democráticos e nas relações políticas no Brasil? Como isso impacta na defesa da democracia brasileira?

VFS: Ainda saberemos melhor de acordo com o progresso das informações o tamanho do impacto da Abin Paralela. Os primeiros relatos, como o divulgado em reportagem da TV Band, demonstra uma lista com pelo menos 21 nomes, citando deputados, senadores da CPI da Covid, ex-bolsonaristas, ex-governador e ministros do STF.

Nessa lista, há nove senadores que integraram a CPI da Covid, entre os quais o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM) e o relator, Renan Calheiros (MDB-AL). Outro integrante da CPI que teria sido espionado é o Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), líder do governo no Congresso. Além do ex-governador de São Paulo, João Doria, entre outros nomes.

O teor político da ação demonstra a utilização das ferramentas do Estado para além das regras do jogo democrático, expondo o uso do espaço público para a manutenção do poder. As medidas necessárias devem ser tomadas, não podemos aceitar novas impunidades ou anistias.

EA: Quais são os principais mecanismos de vigilância utilizados hoje pela extrema-direita para monitorar jornalistas, políticos e autoridades, conforme indicado pela investigação em curso?

VFS: O FirstMile é mais uma das diversas tecnologias utilizadas de forma invasiva pelo Estado. Através do projeto Defendendo o Brasil do Tecnoautoritarismo, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa observou o uso de diversas ferramentas e técnicas por parte do Poder Público, como:

Projeto Excel, o projeto foi instituído pela Portaria nº26/2020, Secretaria de Operações Integradas/SEOPI visando viabilizar o compartilhamento de dados das Secretarias de Segurança Pública dos Estados à Diretoria de Inteligência/DINT para gerar uma base de dados focada em desenvolvimento de inteligência de segurança pública. A Data junto a outras entidades da sociedade civil enviaram um ofício ao Ministério Público Federal sobre o caso;

Harpia Tech e Pegasus, ambas as tecnologias visam a uma maior vigilância do cidadãos possibilitando a coleta, cruzamento e análise de dados pessoais podendo gerar perfis detalhados. Representam um evidente exemplo de software de espionagem, com a SEOPI liderando o processo de aquisição de ambas. O caso foi analisado pelo TCU que, no entanto, não impediu a contratação;

Cortex, sistema utilizado pela Agência Brasileira de Inteligência que possibilita o acesso a câmeras rodoviárias e monitoramento de pessoas. Entenda mais sobre a atuação da Data junto à sociedade civil frente ao MPF aqui.

Cadastro Base do Cidadão, uso de decreto para facilitar a interoperabilidade dentro dos sistemas públicos, inclusive quanto à serviços de inteligência. O Decreto 10.046/2019 desconsidera normas de proteção de dados pessoais e representava um risco à população pela falta de procedimentos para o tratamento de dados. O caso foi analisado em julgamento conjunto da ADI 6649 e ADPF 695, tornando-se um caso emblemático dentro da disciplina da proteção de dados pessoais.

EA: Em sua visão, existe uma tendência global de governos de extrema-direita utilizarem órgãos de inteligência para alcançar seus objetivos políticos? Vimos isso especialmente nos EUA, que utilizavam da espionagem em massa para vigiar não só a população norte-americana, mas outras…

VFS: Sim, temos diversos exemplos só do uso do First Mile ao redor do mundo, possuindo um histórico documentado de violações aos direitos humanos. Há registros da utilização das tecnologias para perseguição e violação de direitos de opositores no Sudão e, em Myanmar, os sistemas estiveram relacionados no incidente que levou a prisão de mais de 12.000 e ao assassinato de 1.600 pessoas.

EA: De que forma a sociedade civil pode se proteger contra possíveis abusos de vigilância e espionagem ilegal por parte do Estado?

VFS: A sociedade civil deve pressionar por uma regulamentação das ferramentas de inteligência dentro dos direitos fundamentais de proteção dos cidadãos. Devemos promover um ambiente em rede de fortalecimento da sociedade civil, capacitando e orientando para as melhores práticas de proteção e preservação deste espaço conquistado democraticamente. Devemos incidir nos poderes públicos para que haja um sistema de freios e contrapesos, onde os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) tenham autonomia para que exerçam as suas funções, mas com um controle externo dos outros poderes, sempre em um contexto de accountability. O controle cidadão também deve fazer parte desta narrativa, promovendo a participação de organizações do terceiro, academia, ativistas em mecanismos de transparência e efetivo diálogo com as demais instituições públicas.

EA: Quais são as medidas recomendadas para fortalecer a transparência e prestação de contas nos órgãos de inteligência, visando evitar práticas de espionagem ilegal e garantir o respeito aos direitos individuais?

VFS: É necessário um desenho normativo claro e objetivo que determine em lei as regras para a utilização destas ferramentas, a partir do artigo 5º da Constituição, dos direitos e deveres individuais e coletivos, da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, sobre interceptações telefônicas, e a Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1.999, que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Toda atividade policial deve ser resguardada pela autorização jurídica pertinente, observando a discricionariedade, o devido ordenamento legal e a proteção dos dados sensíveis dentro dos direitos fundamentais.

*Vinícius Fernandes da Silva é graduado em gestão de políticas públicas e mestre em mudança social e participação política pela USP, atuando em temas relacionados à democracia, segurança pública e artes.

O que pensam as juventudes sobre a crise do clima? 

Por Luiza Ferreira – 05/02/2024

 

 

As juventudes, que pouco contribuíram para a crise climática, serão as mais afetadas por ela, ao mesmo tempo em que são colocadas num lugar de “salvadoras”. Como elas se sentem diante de tudo isso?

Crédito: Marcio Isensee e Sá via O Eco

Thalia Oliveira, uma ativista climática e socioambiental paraense, teve que entender muito cedo o que era o racismo ambiental. “Desde os 14 anos tive que buscar entender o contexto no qual eu estava inserida nessa enorme escala de desigualdade que tanto falamos, vivendo em um território cercado por garimpo ilegal, desigualdade social, falta de acesso às coisas mais básicas como água e saneamento básico”. Diante desse cenário, o fazer ativista – participar de organizações, coletivos, conselhos, ir para as ruas, se mobilizar – surge como uma necessidade vital.

Ela hoje é Coordenadora do GT Político da Articulação pelo Conselho Nacional de Juventudes pela Ação Climática e Meio Ambiente (Conjuclima) e pensa que ”fazer parte desse conselho é ir um passo mais longe no desejo que temos de mudar o cenário atual do Brasil, é uma forma organizada de trazer esse debate para o território nacional de forma urgente”.

Segundo dados do Atlas das Juventudes, a juventude representa hoje ¼ da população brasileira. São quase 50 milhões de pessoas com idade entre 15 e 29 anos. A maioria é ainda constituída por jovens negros: 61% pardos, 10% pretos, 38% brancos, 0,5% amarelos e 0,4% indígenas, como revelam dados do IBGE (2020). 

E essa parcela da população têm se esforçado para ser ouvida. Em 2022, jovens ativistas entregaram a Carta das Juventudes pelo Clima ao presidente Lula em novembro de 2022, pontuando que a “exclusão das Juventudes da gestão governamental impacta em como elas estarão representadas, nas políticas públicas que serão implementadas, na cidadania, na participação social e no próprio direito à existência”.

“O público jovem, considerado como uma das parcelas da população mais afetadas pela pobreza, desigualdade, desemprego e mudanças climáticas, já sofre com estes impactos em seu presente. Essa realidade se agrava ainda mais quando consideramos recortes de gênero, cor e território, evidenciando o racismo ambiental e estrutural vigentes”, disseram.

Em abril de 2023, o Em Movimento, em parceria com o Engajamundo e outras organizações lançaram a pesquisa Juventudes, Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (JUMA), realizada em 2022, que avalia que 90% dos jovens brasileiros se importam com a pauta do meio ambiente.  

Outro dado relevante da pesquisa: 8 em cada 10 jovens concordam que as mudanças climáticas estão afetando a sua qualidade de vida, identificando que vivemos uma crise do clima. Quando observaram os jovens inseridos em contextos de periferia ou favelas, 7 em cada 10 revelaram a crença na relação da pauta do meio ambiente com o território onde vivem.

Mesmo com o alto índice de reconhecimento das problemáticas das mudanças climáticas, os articuladores do Conselho Nacional de Juventudes pela Ação Climática e Meio Ambiente chamam atenção para algo em particular:

“O que a pesquisa mostrou é que, quando pensam em mudanças climáticas, muitos desses jovens associam com conceitos como o derretimento de geleiras, que está totalmente desvinculado do que é a realidade brasileira. Conceitos como racismo ambiental, justiça climática e Agenda 2030 são pouco conhecidos e não chegam para a maioria dessa população jovem”, comentam.

Para Frances Andrade, ativista socioambiental do Alto Sertão Sergipano e atual Diretor Executivo da Associação de Jovens Engajamundo, as juventudes têm um papel fundamental na solução dos problemas atuais. Ele também fez parte, ao lado de outros jovens, da idealização do Conselho de Juventudes pelo Clima. 

“É importante não romantizar esse espaço e essa luta [o Conselho]. É incrível conhecer jovens ativistas das mais diversas regiões e territórios. Mas estamos aqui reunidos em prol de algo que diretamente afeta nossa existência e bem estar no planeta, ou seja, não é um motivo de alegria”, diz Frances.

Na visão do socioambientalista, o ativismo climático é uma luta necessária e ao mesmo tempo desgastante para as juventudes brasileiras, que convivem com uma realidade e uma projeção de futuro nada agradável. Para muitos recortes de juventudes negras, periféricas, LGBTQIAP+, mulheres e de comunidades tradicionais e originárias, o sofrimento é cotidiano em seus territórios já afetados pela crise climática, além de terem seus direitos constantemente violados. 

“Aos poucos estamos moldando o mundo do nosso jeitinho, para que futuramente e no nosso presente, a realidade seja apenas desfrutar de um planeta sadio e sem crise climática acelerada pela ação humana”, acrescenta. 

Ele acredita fortemente no entendimento da luta ativista enquanto uma luta coletiva, e quando perguntado sobre o que espera para o futuro dessas juventudes, ele traduz um desejo de muitos: 

“Eu espero que os jovens sejam apenas jovens, obviamente politizados e engajados em suas causas. Mas simplesmente, exercendo seu direito de ser jovem sem precisar lutar por sua existência. Porém, enquanto isso, estaremos aqui lutando para que isso aconteça”, finaliza. 

O movimento climático europeu está quebrado e estagnado: apontamentos e saídas

Por  * – 26/01/2024

*Publicado originalmente em 23 de agosto de 2023 no Waging Nonviolence e adaptado para o português por Bruno Berilli, para a Escola de Ativismo.

Adaptamos um texto sobre a crise do movimento climático europeu para nos ajudar a pensar em semelhanças e diferenças diante dos nossos próprios impasses e desafios

Na Espanha, a Alianza Contra la Pobreza Energética e a Enmedio empinaram pipas com rostos de pessoas afetadas pela pobreza energética sobre uma usina termelétrica em 11 de junho de 2023, exibindo suas reivindicações nas caudas das pipas. l Foto: Alianza Contra la Pobreza Energética

 

Para pessoas como eu, que estão entre as menos afetadas pela crescente crise climática e ocupam a posição privilegiada de serem remuneradas para encontrar uma maneira de abordá-la, há momentos que evidenciam a  realidade e a urgência do aumento das temperaturas globais médias. Agosto de 2023 foi um desses momentos e um gatilho para uma profunda reflexão.

Eu scrollei por inúmeras contas de redes sociais italianas, vendo muitos vídeos e imagens chocantes de tempestades em Veneto (atingidas por pedras de granizo do tamanho de maçãs), tornados em Milão, incêndios florestais varrendo todo o mapa da Sicília, e ouvi histórias dos meus pais na minha cidade natal em Úmbria, que estavam enfrentando temperaturas de 40 graus Celsius à sombra.

Diante de tudo isso, perguntas surgiram: “O que estou fazendo a respeito disso? Estou fazendo o suficiente? Deveria estar fazendo algo diferente?” Em seguida, eu entrei no modo profissional e pensei de maneira semelhante: “Como nossa equipe ou organização deve responder a isso? Devemos manter nosso caminho atual ou fazer algo diferente? Sabíamos que impactos como esses estariam chegando, então o que isso está mudando, se é que está mudando, a abordagem do nosso trabalho?”

A Cruz Vermelha na Grécia ajudando nos esforços de evacuação durante um incêndio florestal na ilha de Rodes em julho de 2023. l Foto: Facebook/Cruz Vermelha Helênica

Nos últimos dez anos, liderei o trabalho da 350.org na Europa e tenho dedicado grande parte dos meus pensamentos e esforços a como construir um movimento mais forte. Refletindo sobre esse período, meus questionamentos se expandiram ainda mais. Comecei a me questionar se nós, enquanto movimento climático – cidadãos preocupados, ONGs, grupos de base, o que você chamaria de sociedade civil – estamos fazendo o suficiente neste momento aqui na Europa.

Eu não tenho dúvidas que os governos, em sua maioria, não estão fazendo nem perto do que é necessário, mas estamos exercendo pressão suficiente sobre eles? Estamos levando essa realidade e urgência até as suas portas? Estamos envolvendo pessoas o suficiente para agir e intensificar essa pressão, modificando os sistemas, cultura, políticas, recursos financeiros e outras partes do quebra-cabeça que precisam ser alteradas para fazer uma diferença significativa no maior problema do nosso tempo? Mas, mais importante, estamos fazendo isso de maneira menos ou mais eficaz do que antes, e onde há espaço para melhorias?

Estava tudo bem, até deixar de estar

Nos últimos dez anos, aproximadamente, desde os preparativos para o Acordo de Paris até hoje, o movimento climático obteve grandes avanços ao colocar a crise climática no radar do público em geral. Na última pesquisa do Eurobarometer, “93 por cento dos cidadãos da União Europeia veem as mudanças climáticas como um problema sério”.

O movimento também alcançou progressos significativos ao vincular as emissões de combustíveis fósseis à crise climática. Muitas pessoas agora compreendem que agir em relação ao clima significa fazer a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. Isso é uma grande conquista: para além da nossa “bolha” no movimento, as pessoas reconhecem que temos um problema, entendem o que o está causando e, de maneira geral, sabem como resolvê-lo.

Em 2019, marcou-se o pico mais recente no impulso do movimento. Mobilizações impactantes lideradas pelo Fridays for Future e Extinction Rebellion moldaram a política europeia nas eleições de maio para um novo Parlamento Europeu. Em setembro daquele ano, aproveitamos essa onda crescente de preocupação pública, e a 350.org ajudou a coordenar a maior mobilização climática da história, com 7,6 milhões de pessoas nas ruas ao redor do mundo.

A Greve Global pelo Clima em Londres em Março de 2019. l Foto: Flickr/Garry Knight

Foi então que a energia diminuiu. A pandemia de COVID tomou o centro das atenções em 2020 e dificultou a capacidade do movimento de existir e promover mudanças, especialmente no que diz respeito a reuniões presenciais e participação em ações coletivas públicas. Em 2021, a 350.org ofereceu um espaço para reunir forças e aproveitar a oportunidade de reconstruir nossas economias, por meio de seu Encontro Global para uma Recuperação Justa.

À medida que o movimento estava recuperando o seu impulso novamente no início de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia e outra crise global se desdobrou. A interrupção significativa no fornecimento de gás nos ofereceu uma oportunidade para repensar as fontes de energia da Europa. No entanto, os governos, fortemente pressionados pelos interesses dos combustíveis fósseis, nos conduziram na direção oposta impulsionando a extração de gás e a infraestrutura de produção.

A crise energética, apesar do aumento descontrolado do custo de vida, não enfraqueceu a pressão pública para a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. O problema é que a base de apoio público a fim de impulsionar a mudança na escala necessária não se ampliou e não evoluiu de um apoio passivo para ação ativa.

Analisar os bastidores do movimento climático, compreendendo seus atores e relações, pode ajudar a explicar o porquê.

Nos bastidores: um movimento fraturado

Quando as pessoas fora do movimento pensam sobre o movimento climático nos dias de hoje, elas veem, na maioria das vezes, diferentes grupos que compartilham em grande parte uma abordagem semelhante — Letzte Generation (Última Geração) e Just Stop Oil (JSO – Apenas Parem com o Petróleo).

Um bloqueio do Letzte Generation em Berlim em junho de 2022 l Foto: Wikimedia/Stefan Müller

Grupos do tipo JSO realizam um trabalho importante. Eles conseguiram manter as questões climáticas nas manchetes nos últimos anos, com uma constante sequência de ações de desobediência. Eles forneceram uma possibilidade de atuação para pessoas que desejam agir de acordo com a escala da crise em que nos encontramos. Eles também consolidaram um formato e uma marca de maneira que é replicável, de fácil acesso e prontamente identificável.

No entanto, um movimento climático com organizações como a JSO como sua única ponta visível não se expande efetivamente além de sua base. É um movimento que se expõe a batalhas constantes contra o establishment político e midiático que não somos capazes de vencer. Isso permite que políticos e comentaristas frequentemente escolham a dedo as ações da JSO como representativas do movimento como um todo, retratando-os como hippies extremistas, ingênuos e contrários aos interesses dos trabalhadores.

Uma mensagem mais enfática de “precisamos abandonar os combustíveis fósseis” é mais necessária do que nunca. Ao mesmo tempo, ela traz retornos decrescentes em termos de eficácia na construção do apoio público e na motivação das pessoas para agir. Uma tática de desobediência civil é tão fundamental quanto sempre foi, mas está sujeita à banalização quando sua utilização mais difundida não está conectada a uma estratégia mais ampla de levante popular (de autoria não reivindicada). Seu uso isolado corre o risco de prejudicar mais do que ajudar as comunidades que ela diz apoiar.

Na parte menos visível do espectro, encontramos outros grupos de base dentro do movimento por justiça climática. Grande parte deles está em uma posição defensiva, tendo que lutar contra toda a nova infraestrutura de combustíveis fósseis. No entanto, há também pouca energia, capacidade ou visão para a coordenação europeia entre eles, com a possível exceção de uma coordenação anti gás cada vez mais eficaz, e uma cooperação internacional em torno da campanha StopEACOP.

Os poucos projetos que tentam gerar algum tipo de convergência do movimento europeu (por exemplo, by2020weriseup, End Fossil ou Climate Justice Action) não têm obtido sucesso – com visibilidade e impacto limitados além dos círculos do movimento. A coordenação europeia é mais necessária do que nunca, e, ao mesmo tempo, não me recordo de um período na última década em que grupos em toda a Europa estivessem mais isolados uns dos outros.

O Fridays for Future não recuperou o impulso que tinha em 2019. Embora tenha participado de uma intervenção estratégica crucial junto a ONGs e outros grupos de base para interromper os fluxos financeiros para combustíveis fósseis e tenha construído alianças importantes na Alemanha com sindicatos de transporte sob a bandeira da campanha #WirFahrenZusammen (Nós Viajamos Juntos). Enquanto isso, na França, Les Soulèvements de la Terre, ou Earth Uprising, e Dernière Rénovation conseguiram incorporar muita energia do movimento e realizar mobilizações em massa disruptivas com apoio público. Mas, além da onda internacional de apoio contra a reação das autoridades francesas que os rotularam como “eco-terroristas”, essas são histórias de sucesso que não conseguiram ultrapassar as fronteiras nacionais.

Quanto a outros grupos no movimento, mesmo quando realizamos trabalhos que superam os desafios mais amplos que nosso movimento enfrenta no momento, o impacto é em pequena escala e não consegue adquirir o tipo de ressonância nacional ou internacional que grupos do tipo JSO conseguem – e incluo nisso a 350 em si, que certamente tem espaço para melhorias consideráveis.

Sendo sincero: eu aplaudo cada pessoa, grupo ou rede no movimento mais amplo que parte para a ação. Não cabe a mim dizer se suas táticas ou estratégias estão certas ou erradas, esse tipo de avaliação, e quaisquer ajustes que se sigam, só podem ocorrer por meio de autorreflexão e profunda deliberação, e não em artigos de opinião. A decisão da Extinction Rebellion do Reino Unido em 2023 de mudar significativamente sua abordagem, priorizando “relações sobre bloqueios de estradas”, é um excelente exemplo dessa autorreflexão sendo feita publicamente (e mudanças adicionais podem ocorrer, após deliberações recentes).

Eu acredito firmemente no princípio da “diversidade de táticas”, em sua conotação não violenta. Minha abordagem é mais do tipo “sim, e…” do que um julgamento raso dizendo a qualquer grupo específico o que fazer ou não fazer. Mas o equilíbrio de esforços, a forma como se conectam entre si e interagem, seus papéis diferentes em um ecossistema de movimento coeso, e como esse ecossistema como um todo redesenha as suas fronteiras — é aí que há uma oportunidade para a mudança.

Em outras palavras, o trabalho árduo e significativo de todos não está sendo integrado de maneira eficiente em um esforço mais amplo, e a realidade política na qual estamos realizando esse trabalho torna isso ainda mais desafiador.

A repressão da direita ao ativismo climático

É uma verdade consagrada no movimento climático que um dos maiores obstáculos para a ação climática e o progresso em direção a uma vida mais justa e sustentável em nosso planeta são os governos de direita e de extrema-direita. Sabemos por quê: em alguns casos, eles estão repletos de negacionistas declarados das mudanças climáticas, amplificando e apoiando a campanha de desinformação de décadas conduzida pela indústria de combustíveis fósseis. Eles têm tentado convencer o público de que está tudo bem e que não há motivo para interromper a expansão contínua e o consumo de combustíveis fósseis.

Em outros casos, adotam as vestes mais sutis dos procrastinadores climáticos – professando a importância de abordar a crise climática em sua retórica, mas na realidade defendendo uma abordagem mais “pragmática”. Na Europa, frequentemente os vemos usando a crise do gás como desculpa para apoiar a expansão da infraestrutura de gás fóssil.

Grupos do tipo JSO são vistos como um pretexto fácil para reprimir o movimento como um todo — especialmente as comunidades mais marginalizadas, onde a repressão atinge com mais intensidade.

Igualmente preocupante, à medida que governos de direita e extrema-direita assumiram o poder ao redor da Europa, surge outro padrão emergente em sua abordagem — a mais significativa repressão ao ativismo climático que já testemunhamos. Sentimos isso através do aumento da vigilância e prisões preventivas, sentenças mais severas e o uso de retórica perigosa que intensifica a divisão pública e estimula comportamentos hostis contra ativistas climáticos. Observamos isso de maneira mais evidente nas restrições cada vez mais significativas ao direito de protestar.

Isso nos afeta a todos, quer estejamos marchando pela ação climática ou por qualquer outra causa progressista. E coloca o maior fardo sobre as pessoas corajosas das comunidades marginalizadas que lideram a luta por justiça social e econômica — desde o projeto de lei policial mais recente no Reino Unido até operações policiais na Alemanha, França e além. Grupos do tipo JSO são geralmente os primeiros alvos. Eles são vistos como um pretexto fácil para reprimir o movimento (e outros movimentos progressistas) como um todo — especialmente seus grupos mais marginalizados, onde a repressão atinge com mais intensidade.

Então, de uma perspectiva externa, quando o movimento climático está competindo por atenção e apoio no espaço público, enfrenta três desafios:

  1. As ameaças pessoais e os riscos de tomar ações mais intensas estão mais altos do que nunca.
  2. Durante um período de crises sobrepostas, o movimento precisa lidar com a demanda por estabilidade, segurança e continuidade apresentada pelas forças políticas no poder. (Eles argumentam que “este não é o momento para mudar radicalmente como obtemos nossa energia e impulsionamos nossas economias.”)
  3. As forças parlamentares progressistas que poderiam ser veículos para uma alternativa radical estão enfraquecidas, com partidos de centro-esquerda se transformando cada vez mais em versões mais aceitáveis dos partidos de direita e, portanto, incapazes e relutantes em resistir a essas mudanças de cenário.

Como o nosso movimento responde a esses desafios?

Repensando o movimento climático

Movimentos liderados por aqueles que são mais afetados pelo problema são os mais fortes. Isso eu sei e acredito ser verdadeiro — até mesmo uma breve análise dos últimos séculos da história humana nos mostra isso. Nas últimas décadas, nosso movimento aqui na Europa tem passado por uma mudança fundamental e contínua para reconhecer que as comunidades na linha de frente no Sul Global são os líderes dessa luta. Essas comunidades fizeram o mínimo para causar a crise, mas estão sofrendo o máximo e estão respondendo a ela com poder e criatividade.

Historicamente na Europa, nossas preocupações com o clima têm sido em grande parte teóricas, ao contrário de serem o resultado de experiências vividas. E isso tem sido expresso principalmente por uma demografia branca, de classe média, urbana, de ambientalistas — certamente no que se refere à visibilidade, estratégia e financiamento. As partes do movimento que refletem e expressam as visões de uma base mais diversa e que buscam uma abordagem interseccional, baseada em uma experiência vivida de injustiça, ainda não fazem parte do mainstream. Eles ainda são marginalizados no que diz respeito a quais vozes são ouvidas, quem detém poder e recursos, e quem define a direção mais ampla do movimento.

Recentemente, no entanto, testemunhamos outra mudança fundamental e contínua. Os impactos climáticos, na Europa, estão se manifestando mais próximos e impactantes do que nunca. Agricultores e pescadores lidam com impactos nas colheitas e na pecuária. E pessoas em todos os lugares — especialmente aquelas mais vulneráveis devido à idade, saúde, condições de vida e econômicas — estão vendo suas vidas e meios de subsistência sendo destruídos por ondas de calor e inundações. Trabalhadores no setor dos combustíveis fósseis observam ansiosos e esperam enquanto seus horizontes de carreira são dramaticamente encurtados — sem apoio das gigantes do petróleo e gás que os empregam e continuam a obter lucros recordes.

Ativistas marcham diante do Parlamento em Londres com faixas da Energia para Todos em junho de 2023. l Foto: Twitter/Fuel Poverty Action

A base, ou pelo menos a base em potencial, de todos aqueles que consideramos como os mais afetados pela crise climática, tem estado em mudança. Em agosto de 2023, as linhas de frente do movimento climático estão em Vanuatu, onde planos estão em andamento para realocar dezenas de comunidades para terras mais seguras. E, em uma escala muito menor, elas também estão nos incêndios florestais que assolam a Sicília, nas regiões da França onde temperaturas congelantes sem precedentes estão destruindo extensas áreas de vinhedos, e nas casas de aposentados em Manchester que não conseguem pagar para manter o aquecimento ligado durante o inverno.

Essas são as novas linhas de frente da crise climática em nosso continente, e não acredito que nosso movimento tenha totalmente internalizado essa mudança fundamental em seus limites. Pessoas de cor, aquelas com renda mais baixa e outras comunidades marginalizadas são as que sofrem esses impactos primeiro e de maneira mais intensa.

Isso não é uma denúncia, é um convite para um movimento diferente.

Isso significa que uma das perguntas estratégicas mais importantes que precisamos nos fazer agora é: Como podemos nos conectar e organizar com essas linhas de frente, amplificar suas vozes, fortalecer seu poder e expandir a concepção de quem está na ponta visível de nosso movimento?

Para que nosso movimento tenha sucesso, precisamos ampliar nosso escopo garantindo que comunidades dessas linhas de frente tenham o espaço e os recursos para liderar, criar estratégias e sejam os principais representantes de nossa visão coletiva. Precisamos de um compromisso renovado com campanhas que ofereçam uma visão alternativa concreta, radical, mas alcançável para nossa economia baseada em combustíveis fósseis. Uma que trate da nossa transição de combustíveis fósseis para energias renováveis, e também da questão do acesso e da viabilidade financeira da energia. Uma visão e um caminho em direção a comunidades resilientes, que se adaptem de maneira mais eficaz à devastação cada vez maior que as temperaturas crescentes causarão em nosso continente e em outras regiões.

E sejamos honestos, essa abordagem requer mais do que apenas o movimento liderando sua própria transformação. Exige que financiadores e ONGs bem estruturadas assumam a responsabilidade por seu poder — e decisões tomadas com esse poder — que moldaram nosso movimento. Eles devem direcionar recursos para grupos e redes que personifiquem essa mudança, estabeleçam conexões entre diferentes questões, realizem uma articulação profunda com as comunidades de linha de frente e estejam conectados por uma estratégia abrangente do movimento, capaz de atingir uma grande escala. Dessa forma, na próxima vez que as empresas de energia anunciarem lucros trimestrais recordes, não serão apenas os grupos climáticos habituais que irão protestar com indignação, mas sim uma ampla revolta com a participação de pessoas que têm mais a perder e a ganhar com o funcionamento do nosso sistema de energia.

O que é necessário para recuperar o impulso e a força vai além de uma nova injeção de energia e determinação diante dos desastres climáticos que se desdobram e nos desanimam. Em vez disso, é preciso uma reconsideração verdadeira de quem compõe o movimento climático, quais são as questões que ele aborda, como ele abraça essas novas linhas de frente e de que maneira suas diferentes partes se relacionam entre si. Isso não é uma denúncia, é um convite — para um movimento diferente.

Uma configuração de movimento que nos dá uma chance decente de ter sucesso deve se parecer com isso:

  • Uma ampla aliança não vinculada de organizações setoriais que regularmente e visivelmente perturbam a vida pública, exigindo uma mudança radical de ritmo e direção na abordagem do governo à crise energética e climática. Isso seria uma mistura de sindicatos de trabalhadores e outras organizações de membros da sociedade civil. Imagine o Women’s Institute no Reino Unido, a AVIS na Itália, o Deutscher Alpenverein na Alemanha, o sindicato de serviços públicos FNV Overheid na Holanda e até mesmo os membros do clube de futebol Barcelona. O ponto é: Um pequeno número de líderes de grandes organizações com membros alinhados em torno de uma estratégia de movimento voltada para o público resultaria em grandes manifestações de pressão pública não atribuíveis a qualquer organização ou líder “causador de problemas” específico.
  • Um grupo coordenação flexível, para garantir coerência com cronogramas, narrativa e símbolos do movimento para ações devidamente integradas e disruptivas. Isso poderia incluir pessoas-chave nessas organizações, juntamente com pessoas e grupos que atuam na interseção de vários espaços no movimento — por exemplo, entre ONGs, grupos de base, sociedade civil e financiadores. Esse grupo deve trazer uma análise global para a luta e ter as conexões globais para vincular os esforços dos movimentos europeus a outras atividades em movimentos em outros lugares, incluindo ações concretas de solidariedade contra empresas europeias e financiamento que perpetua a destruição causada por combustíveis fósseis no exterior.  Alguns grupos em níveis nacionais tentaram (e estão tentando, como o Ende Gelände na Alemanha em seu mais recente conceito arrojado) algo semelhante. Outros aliados do movimento, como os Gastivistas, têm realizado trabalhos inovadores na conexão e educação de grupos que trabalham nas áreas de custo de vida, energia e crises climáticas em toda a região. A 350.org desempenhou um papel de convocação ou liderança em espaços regionais e globais semelhantes no passado, e poderíamos fazê-lo novamente.
  • Uma escola europeia de desobediência climática, talvez com a JSO ou grupos similares usando a sua expertise em organizar treinamentos em massa para membros de organizações e outras pessoas do público em geral.
  • Espaço digital para acolhimento e integração, que forneça um “kit básico” para pessoas dispostas a se envolver e agir. Em seguida, os convidaria a se conectar aos grupos indicados no movimento que possam ser os mais adequados para suas habilidades, interesses e localização geográfica. Algo desenvolvido com a experiência do Green New Deal Rising no Reino Unido (cujas chamadas de boas-vindas e processo geral de integração são alguns dos mais eficazes que já vi no movimento).
  • Frentes organizadas e fortes conexões de confiança entre elas e ONGs. Grupos na Europa já se organizaram ao longo das novas fronteiras do movimento que tenho descrito. Grupos como Alianza Contra la Pobreza Energética na Espanha, que surgiu da organização de inquilinos e está trabalhando na interseção de questões de energia e moradia. Ou grupos no Sul Global, como os Pacific Climate Warriors, cujo papel de liderança influenciou um apelo governamental em toda a região do Pacífico para energia renovável com a comunidade no centro das decisões.
  • Uma operação profunda e devidamente financiada de organização e desenvolvimento de lideranças, que realize o trabalho minucioso e complexo de construir relacionamentos com as novas comunidades na linha de frente. Um grupo de organizadores que alinhem visões, realizam trabalhos de educação política e apoiam o desenvolvimento de lideranças dentro dessas comunidades para se tornarem líderes no movimento como um todo. Um esforço que se conecte com as frentes organizadas e ajude a deslocar o centro de gravidade do movimento em direção a elas. Isso trará esses esforços de organização local para uma rede ou, pelo menos, fornecerá conexões e apoio.
  • Um núcleo de organizações de pesquisa/política/defesa de interesses que levam as demandas do movimento para os espaços políticos, garantindo que, apesar de adotarmos uma diversidade de táticas e abordagens, nossa atuação interna e externa esteja conectada, alinhada e coordenada.

Este esboço é menos um plano detalhado e mais um mapa a ser explorado. Demandará nossa capacidade coletiva de nos distanciar do momento atual, de nossas próprias áreas de foco, e olhar para o quadro geral para reavaliar a jornada que estamos trilhando.

O movimento climático do passado não terá sucesso contra os desafios atuais

Precisaremos refletir sobre o peso relativo das diferentes partes do nosso sistema. Por exemplo, será necessário um equilíbrio de táticas diferente ao longo do movimento? Em diferentes fases do ano? Também devemos considerar as partes onde precisamos construir e celebrar pontos fortes em comparação com aqueles onde precisamos abordar criticamente as fraquezas. Teremos que reimaginar nossa identidade coletiva, passando de “ativistas” para uma nova linguagem que descreva a base mais ampla de pessoas aqui na Europa com interesses muito pessoais que dependem do sucesso do movimento.

Por meio de suas relações e estrutura, precisaremos tornar nosso movimento mais resiliente e adaptável às próximas crises. Simplesmente não podemos arcar com retrocessos toda vez que um novo evento catastrófico de saúde ou geopolítico assuma o centro do palco.

As fases do movimento climático dos anos anteriores não são os movimentos que terão sucesso na luta hoje. Não será apenas o movimento climático de “manter abaixo de 1,5 graus”, nem apenas o movimento climático de “manter os combustíveis fósseis no chão”, e também não apenas aquele que nos ajudou a vencer contra as usinas de carvão ou alcançar proibições ao fracking (fraturamento hidráulico).

Precisamos ser tudo isso e também construir um movimento climático que se conecte à pobreza energética, aos impactos climáticos, à dignidade das vidas migrantes e das pessoas trans. Um movimento que tome medidas na Europa em reconhecimento e reparação da dívida histórica e das feridas que infligimos ao Sul Global, e das feridas que estamos causando às nossas comunidades geograficamente mais próximas. Esse movimento climático é muito mais diverso e interseccional, enraizado no cotidiano das pessoas, cheio de esperança e visão, com novas fronteiras e pessoas da linha de frente que o lideram.

É nossa responsabilidade e dever construí-lo.

Texto escrito por Nicolò Wojewoda, que vive na Irlanda e é o Diretor Regional para a Europa na 350.org. Ele passou mais de 10 anos liderando e apoiando campanhas impulsionadas pelas pessoas, e construindo um movimento de justiça climática mais forte e equitativo.

Afroturismo e como conhecer as histórias que a história não conta

Por Guilherme Soares Dias, do Guia Negro – 11/01/2024

 

 

Fundador do Guia Negro, Guilherme Soares Dias escreve sobre “afronta, afeto e futuro nas viagens” e o “caminho de volta e o passo à frente para um povo inteiro se reconectar e conhecer a si mesmo”.

 

Guilherme Soares / Guia Negro / Divulgação

Crédito: Guia Negro/Reprodução

Quero começar esse texto dizendo que a palavra “não” desse título é definidora para os “sim’s” que a população negra foi construindo como resistência nos últimos 500 anos no Brasil. Tivemos negada a cultura, a língua, a religiosidade, o nosso conhecimento e a partir disso usamos várias estratégias, tecnologias e sistemas para preservar e repactuar tudo o que veio de África junto com nossos antepassados.

O Guia Negro também nasce dos “não’s” transformados em “sim’s”. Quando eu, Guilherme, após um período sabático de um ano (2016) viajando por vários lugares do mundo vou buscar trabalho em San Pedro de Atacama, no Chile, e só ouvi “não” como resposta. Percebi que ali os negros estavam sempre em papel de subalternidade e que o racismo, ainda maior que o brasileiro, não ia me permitir ser contratado.

Inventei, então, um trabalho para mim: roteirizei meu próprio tour dando dicas de lugares e histórias que não eram conhecidas pelo turismo tradicional e comecei a escrever em blogs sobre dicas da região. Empreendi – a partir de uma dor – e vi meu trabalho ser visto como “encantamento de lugares”.

Foi gostoso ver o efeito das histórias que estava contando na reação das pessoas durante os walking tours e fui me especializando em descobrir novas histórias. Mas não ganhei dinheiro como minhas colegas que eram vendedoras em agências de turismo, o que fez com que após seis meses na pequena cidade do Deserto de Atacama, eu quisesse seguir novos rumos (o clima adverso também ajudou).

Voltei a São Paulo com a ideia de continuar trabalhando com conteúdo e tours afroreferenciados. Ouvi muitos “não’s” de editores de grandes veículos sobre as pautas que queria oferecer sobre protagonismo negro. O Guia Negro nasce com a proposta de compartilhar essas dicas de viagens com diversidade e histórias com protagonismo negro para inspirar novos roteiros.

Guilherme Soares / Guia Negro / Divulgação

“Nossos passos vêm de longe e a nossa caminhada é longa. Ainda não sei qual é o destino, mas sei que o trajeto tem sido de conexões, trocas, lutas, partilhas e também de muita beleza.”, diz Soares. l Crédito: Arquivo Pessoal

Quando fui provocado a escrever esse texto, pensei o que de novo eu tenho a dizer para além dos materiais já produzidos? Não sei muito a resposta. Mas sei que tem várias contribuições que fizemos (a equipe do Guia Negro e eu) ao longo dos últimos cinco anos e meio e que nem todas chegaram a um número grande de pessoas.

Uma delas é o Manifesto do Guia Negro, redigido em 2021 que lembra que: “Turismo é escolha, é comércio, é consumo, é cultura, é dinheiro que circula, é conhecimento, pode e deve ser diverso também. Há um propósito de fazer com que os negros viajem mais e entendam que ter possibilidade de lazer é para nós também. Por mais pretos viajando, por mais afroturismo, por mais valorização da cultura negra e muitas estradas a serem percorridas por todos nós!”.

De lá para cá foram mais de 600 textos, cerca de 60 entrevistas no Youtube, 5 programas de viagem (fora os não editados), 34 episódios de podcasts, 20 colunas na Folha de S. Paulo, dezenas de entrevistas sobre o tema. Mais do que números o Guia Negro tem provocado uma mudança em como as viagens são pensadas. Parte desse conhecimento tornou-se o livro “Afroturismo, afeto, afronta e futuro”, lançado por mim em dezembro de 2023.

 

Quando fui provocado a escrever esse texto, pensei o que de novo eu tenho a dizer para além dos materiais já produzidos? Não sei muito a resposta. Mas sei que tem várias contribuições que fizemos (a equipe do Guia Negro e eu) ao longo dos últimos cinco anos e meio e que nem todas chegaram a um número grande de pessoas.

Uma delas é o Manifesto do Guia Negro, redigido em 2021 que lembra que: “Turismo é escolha, é comércio, é consumo, é cultura, é dinheiro que circula, é conhecimento, pode e deve ser diverso também. Há um propósito de fazer com que os negros viajem mais e entendam que ter possibilidade de lazer é para nós também. Por mais pretos viajando, por mais afroturismo, por mais valorização da cultura negra e muitas estradas a serem percorridas por todos nós!”.

Ou o Manifesto do Afroturismo, que o classifica como afeto, afronta e futuro das viagens que diz:

“Um grupo de pessoas negras viajando é revolucionário e, ainda, causa espanto e surpresa, chega a ser até afrontoso numa sociedade em que o racismo estrutural determina que pretos devem ser duas vezes melhores do que brancos para se sobressair e sobreviver (…) Fazer turismo focado em conexão com histórias, cultura e pessoas negras é praticar o afeto. É encontrar pessoas como nós no caminho, é abraço, é conhecer quem produz a comida, as roupas. São trocas singulares que vão pra além da compra e do consumo.

Guilherme Soares / Guia Negro / Divulgação

Foto: Guia Negro/Reprodução

São viagens que nunca terminam pelas conexões e histórias que geram. Mais do que lugares provocam a possibilidade de desvendar nós mesmos, resgatar histórias, promover ligações que nem sabíamos que existiam, mas que nos constituem e nos reorganiza.

A diversidade nas viagens é o futuro, o afrofuturismo, que volta para o passado para projetar o futuro, como o símbolo do pássaro sankofa.

Afroturismo é afronta, afeto e futuro nas viagens. O caminho de volta e o passo à frente para um povo inteiro se reconectar e conhecer a si mesmo. É a potência da negritude em movimento.

Também trouxemos relatos de viajantes negros em que eles puderam se ver em um setor que até então era dominado por brancos e que foi pivô de muitos episódios de racismo. Um deles motivou a criação da primeira lei de combate ao racismo no Brasil, a Afonso Arinos.

Em 3 de julho de 1951, o presidente Getúlio Vargas sancionou a lei 1.390/51, do deputado Afonso Arinos, que em nove artigos definia como contravenção penal a discriminação racial em comércios, hotéis e órgãos públicos. O projeto foi motivado por um caso de racismo contra a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham, que ao visitar o Brasil foi impedida de se hospedar em um hotel de luxo em São Paulo por conta da sua cor de pele.

A primeira pessoa a utilizar a lei foi a jornalista Glória Maria que foi impedida pelo gerente de um hotel de entrar pela porta da frente do estabelecimento no ano de 1970. “Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, escreveu ela, no Instagram em 2019.

Mostramos que os casos de racismo no turismo ainda são frequentes e que o setor vinha se furtando em fazer o debate, formação e ações para combatê-lo. Além de denunciar as situações de racismo, passamos a pautar os eventos do setor e também a sermos propositivos dando dicas e elaborando guias negros dos destinos para ajudar viajantes a terem opções mais diversas, além de transformadoras em suas viagens. 

Nossos passos vêm de longe e a nossa caminhada é longa. Ainda não sei qual é o destino, mas sei que o trajeto tem sido de conexões, trocas, lutas, partilhas e também de muita beleza. Espero que todas as pessoas possam conhecer mais da história e cultura negra e que tenhamos mais negros e negras viajando e aproveitando a vida. Viva o afroturismo!

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