Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Claudia Visoni
Agricultora urbana, codeputada
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

Eu me sinto muito bem com a reflexão sobre o que é realmente transformação no ativismo. Me sinto útil e podendo ter a oportunidade de refletir e direcionar energias para o que realmente importa. O ativismo visa a transformação, mas é fácil perdermos isso de vista. A reflexão nos ajuda a lembrar por que estamos aqui.
TORNAR-SE INÚTIL
Tenho a impressão de que os ativismos modernos nascem com o abolicionismo. Não sei se existiu algum outro movimento ativista coordenado ou de grande escala antes disso. São pessoas que resolveram se mobilizar em prol de uma causa, em prol de resolver uma injustiça que, em muitos casos, não as atingia diretamente – e que poderia até beneficiá-las. Conheço pouco sobre o movimento, mas muitos líderes eram pessoas de posse, ricas, que viviam em ambientes onde a escravidão era uma realidade, e uma realidade muito conveniente. São pessoas que resolvem dizer “isso está eticamente errado, é uma injustiça, as pessoas não podem ser compradas e vendidas dessa forma”.
Por que esse preâmbulo? Porque o sonho de todo ativista precisa ser se tornar inútil. Precisamos ter esse desprendimento. Ser vencedor, para o ativista, tem um gosto um pouco amargo. Vou falar do meu ativismo, da agroecologia. Eu estava aqui fazendo um canteiro na minha casa. Faço isso como pessoa, porque acho importante, mas isso é chamado de ativismo. Para a minha bisavó, isso não era ativismo, porque todo mundo plantava no quintal de casa. Não existia “o ativismo” de plantar comida no quintal. O nome disso era sobrevivência! Mas hoje em dia estou aqui, aparecendo em uma revista. A minha bisavó ia achar isso estranhíssimo. Por que entrevistar sobre algo tão banal, que todo mundo faz? No dia em que todos voltarem a fazer o que suas bisavós faziam, não vou mais precisar dar depoimento e ninguém virá filmar a Horta [das Corujas, da qual Claudia faz parte]. Não vai ter mais graça, porque todo mundo faz. Isso tem que ser a meta. Essa fala não é minha, e sim do Claudio Oliver, um ativista de agricultura urbana da Casa da Ribeira, de Curitiba. Ele diz: “as pessoas vêm aqui, nos entrevistam, tiram fotos, mas nós não fazemos nem metade do que nossas avós faziam”.
Mas o que é realmente transformação? É modificação de padrões de comportamento e padrões culturais. Tem uma frase da Margaret Mead que diz: “Não duvide que um grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou”. Transformação é mudar o mundo mudando o parâmetro e o paradigma. É estranho falar isso hoje, mas há 200 anos talvez alguém pudesse vir me dizer: “Nossa, é um absurdo as pessoas serem escravizadas!” e eu poderia responder: “Ora, por que? Está tudo normal: eles são escravos e nós, não.” Isso era aceito socialmente, mas um número de pessoas fez isso mudar. Pode ter gente que pense assim hoje, mas não é socialmente aceito e é contra a lei. Já eu, como permacultora, vejo uma série de paradigmas que precisam se transformar. Um exemplo é as pessoas acharem que inseticida é uma coisa ótima e formiga, uma coisa péssima. Na verdade, a formiga ajuda a recuperar o solo, e o inseticida dá câncer. O sinal está trocado.
PROTOTIPAGEM
Existem vários tipos de ativismo, e eu me identifico com aquele que prototipa a realidade em que quer viver, inspirado pela frase do Gandhi, “Seja a mudança que você quer ver no mundo.” Imagine que louco um lugar público onde você planta comida e qualquer pessoa pode ir lá colher… Bem, isso existe: são as hortas comunitárias, que são uma utopia que já conseguimos realizar em pequena escala. O ativismo em que eu acredito é pegar algo impossível e ir lá fazer. Isso já é uma tranformação em pequena escala. Fiquei muito feliz quando a Horta das Corujas e várias outras passaram a existir e entraram no repertório da cidade de São Paulo. Isso significa que eu não vou morrer sem ter vivido essa utopia. Já vivo ela em oitocentos metros quadrados.
O ativismo tem a característica de ficar observando o sistema e buscar uma fresta para atuar. Vou dar outro exemplo, da época da crise hídrica [do estado de São Paulo]. A situação era muito maior do que nossa possibilidade de resolver. O reservatório estava sem água, e não havia nada que três cidadãos comuns pudessem fazer para trazer chuva ou mudar a maneira como o governo estava lidando com a crise. Diante daquilo tudo, o que podíamos nós? Ensinar as pessoas a fazerem pequenas cisternas de baixo custo em suas casas. A partir de muito planejamento, criamos o movimento Cisterna Já, do qual sou fundadora junto com alguns permacultores. E tem uma liderança do Movimento de Defesa do Favelado, uma senhora chamada Teresinha Rios, que na crise hídrica começou a construir pequenas cisternas para doar, feitas com suas próprias mãos, na sua cozinha. Muita gente pensa que é impossível construir uma cisterna ou dedicar-se a essa causa. Ela foi lá e fez. Acredito muito na prototipagem.
É muito difícil querermos uma coisa que não conseguimos imaginar. Então o ativismo, para mim, tem muito a ver com o repertório da imaginação. Isso já é uma transformação: romper uma barreira mental de achar algo impossível. De repente, essa coisa acontece e passa a existir no mundo real. E, se ela existe, ela é possível – primeiro na mente, depois no discurso, e por fim na ação das pessoas. Graças ao ativismo.
Existe também o ativismo do enfrentamento e da denúncia, que é muito importante, principalmente neste momento do Brasil. Mas ele também pode ser limitante. Na minha opinião, o ativismo precisa ser propositivo. Não sou a detentora da verdade, e cada um tem sua visão, mas, para mim, a mera contestação daquilo que não achamos correto e a reivindicação de coisas que não estão ao nosso alcance não é uma postura muito ativista. Se não está na nossa mão, nós nos tornamos impotentes.
O pensamento e as palavras já são uma transformação, mas incompleta. A transformação completa é a transformação de valores e paradigmas da sociedade. Podemos convencer um governante atual de que uma causa é muito importante e ele precisa dar um apoio. Isso ajuda muito, porque são pessoas em instituições poderosas, mas essas pessoas também são efêmeras. O governo delas vai acabar. Se aquilo não tiver se transformado em um valor na sociedade, as conquistas voltarão atrás. Tempos atrás, a mulher não podia ter propriedade, dirigir ou sair de casa sozinha, e estava sujeita à violência de maridos e familiares. Hoje em dia, tudo isso é contra a lei. A mudança real está alicerçada em um novo padrão de consciência, pensamento e ética.
FASES
A transformação acontece quando um pequeno grupo de pessoas começa a falar algo que parece absurdo, como “Não podemos ter pessoas escravizadas no mundo!”, e em um primeiro momento são ridicularizadas, e depois isso passa a ser o contrato social hegemônico. Gandhi diz que primeiro eles te ignoram, depois eles riem de você, depois eles brigam com você, e depois você ganha. Nas causas ativistas, é isso que acontece.
No meu campo, quando comecei a plantar comida na minha casa, muitas pessoas próximas achavam ridículo. Se uma alface custa três reais no supermercado, porque eu gastaria horas aqui, plantando? Depois, brigaram: “Por que você está gastando horas com isso?”. Por fim, o fato de que na minha casa existe uma horta passou a ser uma realidade aceita. Na Horta das Corujas, nem mesmo passamos pela fase de ser ignorados. Tinha uma mulher ali que sempre me chamava de palhaça. Dizia que estávamos destruindo a praça, e que a agricultura na cidade não existe, que era algo só do campo. Depois fui estudar e descobri que horta vem de horto, do latim, que é o quintal no fundo das casas, onde se plantava comida e que era murado para evitar o roubo. Hoje em dia, essa mesma mulher frequenta a horta com o pai e sugere novas coisas para plantarmos. Ela ridicularizou, depois brigou, e agora frequenta. Todo dia ouvimos falar de novas hortas que vão ser instaladas em escolas, condomínios… e toda a imprensa acha bonito. Virou moda.
O meu papel como agricultora urbana ativista em trazer esse assunto à tona está menor a cada dia. Mas como a questão da agroecologia, segurança alimentar e da situação do pequeno agricultor é tão terrível, é só o começo de uma nova fase do jogo. Agora que conquistamos esses espaços na cidade, vamos usá-los a serviços dos valores em que acreditamos. E, nisso, estamos muito longe de ganhar alguma coisa. Ainda estamos saindo da primeira para a segunda fase. As pessoas riam, questionando: “vocês acham que vão alimentar o mundo com agricultura orgânica?”. Agora, enquanto alguns brigam conosco, a ONU [Organização das Nações Unidas] declara que o único jeito de alimentar o mundo é com agricultura orgânica.
CONVERGÊNCIA
Existem muitas armadilhas que impedem que o ativismo seja transformador. Uma delas é o ciúme, ou algo que talvez possamos chamar de apego egóico. “Esta é a minha causa!”: isso é a antítese do que precisamos para transformar o mundo. Não vou dizer que não sinto isso, mas tento ficar muito alerta. O ativista precisa estar sempre buscando conexões, aliados e alianças com outros ativistas de causas irmãs. Essa rede é muito importante. É como um jogo de futebol: cada pessoa tem a sua posição. Não adianta termos um time com 11 goleiros. Precisamos lidar não só com o consenso, mas também com a convergência. Posso não concordar cem por cento com alguém sobre o mundo que desejamos e como queremos chegar lá, mas temos entre nós um espaço de convergência – o mínimo para estarmos juntos nessa causa – e uma intersecção com a qual vamos trabalhar.
E é muito importante o empoderamento de quem está chegando no movimento. Quanto mais horizontal for o ativismo, mais bem sucedido ele será. Quando começamos a cercear o outro, dirigir demais e disputar poder, começam os rachas internos que atrapalham tantas causas. Tenho um pouco de problema com cadeias de comando e controle. Dentro de uma estrutura extremamente hierárquica, quem ali é ativista? Todo mundo, ou só os líderes? O que é o ativismo quando não se tem autonomia? Um ativista que não pode ter ideias e sair executando, como ele se vê?
Antes do meu ativismo começar, entrei em contato com organizações estabelecidas oferecendo ajuda com meu tempo e trabalho e percebi que não era bem vinda. Isso me gerou uma dor muito grande. Por isso, incorporei ao meu ativismo o gesto de trazer as pessoas para dentro, mostrando a todos que são muito bem-vindos. Também faz parte do meu ativismo romper as cadeias de comando e controle e romper a divisão social do trabalho. Vivemos em uma sociedade onde parte das pessoas só planeja, e parte só executa – o que é estúpido, pois quando planejamos as coisas, passamos a executá-las muito melhor, e vice-versa. Vejo muito isso na agricultura: muita gente que escreve propostas nunca pegou em uma enxada. É outra visão.
ESPÉCIE PIONEIRA
O Estado talvez seja uma das forças reacionárias da sociedade, ao menos na minha pauta. Quem ocupa esses espaços de poder são os homens brancos, velhos e ricos. A solução para enchente, para eles, é o piscinão, que já sabemos que não funciona. Eles não conseguem imaginar outra possibilidade, como os jardins de chuva. Hoje em dia tenho acesso ao poder legislativo e percebo que parecemos falar de mundos diferentes. Faço parte de um movimento chamado Bancada Ativista, cujo objetivo é colocar ativistas na política institucional. Vou dar o exemplo da formiga. A formiga é uma espécie pioneira. É o primeiro bicho que consegue habitar um solo seco, duro e degradado, onde a minhoca e outros microorganismos não conseguem viver. Ela coloca umidade, nutriente e ar dentro da terra. Quando vou para o poder legislativo, me sinto uma formiga, carregando minhas pautas.
Temos várias pessoas em posição de comando hoje que estão altamente defasadas em relação à ciência. Há muita gente tentando remendar modelos ultrapassados e tratando quem traz um paradigma mais atual como ignorantes. Precisamos ocupar esses lugares. Recentemente estive em uma reunião com a Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] sobre mudanças de normas de compostagem. A Cetesb é um órgão técnico, e eu sou uma pessoa do legislativo dando prioridade política para isso nesse momento. Os técnicos sabem que precisamos avançar na compostagem, e eu, que venho desse mundo, também sei, mas o resto da Assembleia [Legislativa de São Paulo] não sabe. Meu papel é “pinçar” esse tema e levá-lo para a esfera política. Estou ali [na Bancada Ativista] emprestando meu corpo para representar algumas causas socioambientais, principalmente a agroecologia, segurança alimentar, segurança hídrica, gestão de resíduos e também a saúde das pessoas, prejudicada pela poluição na água, ar, solo, alimentos e pelos produtos danosos que usamos cotidianamente. Tento levar essas causas para a política institucional porque estão subrepresentadas.
A jornada é prototipar, transformar em política pública, e depois pegar os comportamentos residuais e mostrar que eles não servem mais. É o que deve acontecer com o agrotóxico, por exemplo. A questão é saber quantas vidas humanas vamos destruir antes disso. Primeiro vêm uns loucos que plantam sem agrotóxico, fazem agrofloresta e agroecologia. Uma série de pesquisas apontam que eles são mais bem sucedidos. Mas, em grande escala, o agrotóxico continua sendo sustentado à base de subsídio e isenção de impostos, deixando o trabalho e a despesa para o produtor orgânico. Quem planta com veneno não precisa de certificação. Quem planta sem veneno tira do bolso três mil reais por ano para a certificação e não consegue financiamento bancário, que só é dado quando o produtor comprova que comprou os insumos – que são adubo químico, agrotóxico e semente transgênica. Se o produtor chega no banco e diz que conseguiu fazer a própria semente e o próprio adubo, e que não precisa de agrotóxico porque tem plantas saudáveis, o financiamento dele é rejeitado. Existe toda uma máquina estatal impulsionando e regulamentando uma coisa tão antiética e perniciosa como o uso de veneno. A fase umdo ativismo é prototipar: pessoas que, contra tudo e todos, conseguem produzir comida sem agrotóxico. Depois, vem a fase da argumentação: mostrar que pesquisas feitas no mundo inteiro apontam que essa forma é mais produtiva, eficiente, e que agrotóxico é cancerígeno; e, ao mesmo tempo, enfrentar toda uma série de pesquisas financiadas por quem produz agrotóxico para tentar mostrar que ele não é um problema. Em seguida, vem a terceira fase: se o cigarro, que dá câncer, tem uma taxação alta, que tal colocar uma taxação crescente no agrotóxico e criar linhas de crédito para financiar a transição agroecológica? O banco pode dizer ao produtor: “Este ano, vamos te dar o financiamento, já que você comprou adubo químico, veneno e semente transgênica. Mas no ano que vem, se você não comprar nada disso, vamos dobrar seu financiamento”. Por fim, os países, como alguns no mundo já fazem, devem acabar proibindo o uso de agrotóxicos.
RECOMEÇO
Como permacultora, tento observar e imitar a natureza. Na natureza, a cobra troca de pele quando deixa de funcionar, e abre espaço para outra pele por baixo. Acredito em ir tirando o foco da estrutura que existe e ir construindo a outra. Economia participativa, outras moedas, outros sistemas de produção e troca que estão fora do mercado. A minha grande utopia é que água e comida não sejam mercadoria. Isso é um direito humano. Porque colocamos um preço e dizemos que quem não tem dinheiro não irá comer hoje? Minha forma de construir essa utopia é produzindo comida que não é mercadoria e não tem preço. Olho para o sistema e vejo que ele vai ruir – inclusive o clima. Nosso papel é ir construindo alternativas para que, quando isso acontecer, tenhamos uma estrutura nova.
Mas não vamos ganhar todas as lutas. E a história não é linear. Há uns trinta anos, veio a questão do “fim da história”, como se estivessem resolvidos os problemas da humanidade em final feliz. Tem muito retrocesso, e aí o ativismo recomeça. A diferença é que o mundo em que minha bisavó vivia englobava a agricultura urbana. Isso era uma atitude normal. Ao mesmo tempo, o mundo dela não contemplava mulheres em espaços de poder. Então hoje ela poderia achar o conteúdo meio ridículo, mas acharia a forma bacana. Ela gostaria de ver que é a sua bisneta que está liderando esse movimento, sendo que no tempo dela eram os homens que lideravam.
Keila Simpson
Travesti e ativista
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

TRÍADE
Eu represento um movimento [de pessoas trans e travestis] que está em constante conflito com a sociedade – e não porque faz conflito, mas porque a sociedade traz o conflito para dentro desta comunidade. Precisamos sempre entender que a sociedade lá fora é conservadora e muito violenta. E isso tem um motivo. Por que observamos essas violências chegando de forma tão forte, em particular para a população trans? Porque essa população resolveu não só se transformar, como também ousar. Já é uma ousadia para a sociedade que uma população considerada abjeta na sociedade queira ter voz. Pois elas tiveram voz. E é considerado mais absurdo ainda que ela queira ter vez. E aí essas pessoas tiveram, sim, vez. E, para uma sociedade violenta e discriminatória, é uma ousadia ainda maior que elas cheguem a lugares de poder. E elas chegaram. Obviamente que ainda não alcançamos a potência de que necessitamos, mas nosso percurso por essa tríade – romper um lugar de exclusão, conseguir sobreviver e se resguardar e continuar fazendo a transformação da sociedade – é algo muito difícil de digerir para quem tem a população trans como abjeta.
SEMENTE
Estamos fazendo uma importante transformação na sociedade. Estamos preparando uma sociedade brasileira não para nós que estamos aqui, mas para a geração que virá depois de nós. Quando sairmos deste plano, as pessoas que virão depois da gente irão experienciar a transformação que conseguimos fazer neste país. Até o início dos anos 1990, aqui em Salvador, onde moro, uma travesti que saísse à rua com vestido ou saia era presa somente por estar vestida assim. Hoje, essas pessoas não só podem sair da forma como quiserem, mas também ter o nome e o gênero que quiserem. É óbvio que isso é um grãozinho de areia em meio à transformação que precisamos fazer, mas são avanços que vão continuar. Conseguimos plantar uma semente, contaminar uma sociedade com direitos que foram negados desde sempre. As pessoas que agarraram esse direito, com a gana que tinham, depois de nunca ter tido nada, disseram: “Não vamos voltar atrás. Vamos ter empecilhos, nossa vida vai continuar na berlinda, nossa vida ainda vai ser muito difícil, mas a gente não vai retroceder”. Acho que essa transformção contínua é o que a população trans está reivindicando e é o que ela vai fazer da sua vida o tempo todo.
ÂMAGO DA SOCIEDADE
Não vai passar. Não é uma transformação que tem final. Nunca nos transformamos o suficiente. Se a transformação fosse uma máxima, talvez seria “continuar se transformando”. Não é um projeto de reforma de uma casa, que tem começo, meio e fim. É um movimento contínuo, pois estamos lidando com seres humanos, que são seres cuja dimensão exata não conseguimos compreender. E, cada vez que as pessoas não conseguirem compreender a dimensão humana que as pessoas trans têm, estaremos preparadas para transformar aquela mentalidade, para que a sociedade possa entender que é plural e diversa.
É muito maior que lutar por direitos. Se os direitos, por si só, bastassem… Temos diversas leis no Brasil que resguardam pessoas, órgãos, e nem sempre são respeitadas. O direito garante algumas conquistas, mas a verdadeira transformação só será feita quando a humanidade entender que ela é responsável por essa transformação. É muito mais profundo e amplo. É preciso atingir o que há de humano nas pessoas, para que elas se percebam no mundo como seres humanos e, a partir desse reconhecimento, entendam que a vida do outro é tão valiosa quando a delas. Estamos passando por um momento muito difícil no Brasil, em que se ataca pessoas por divergências partidárias, de credo, de classe, de raça. Que humanidade é essa, de pessoas que conseguem destilar tanto ódio, tanto rancor, tanta violência para com seu semelhante? O fundamental é atingir o âmago da sociedade e do ser humano e poder dizer: “respeite o outro como o outro é”. Se não conseguirmos transformar os seres humanos – a humanidade –, as leis por si só não vão garantir muita coisa.
TAREFA DO MOVIMENTO
E de que forma atingir a humanidade para uma transformação tem interface com conquista de direitos? Um exemplo é a conquista, muito nova, da retificação de nome e gênero de pessoas trans. Como o ganho jurídico que tivemos com essa ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 [1]] ajuda o meu diálogo com a sociedade? Ao chegar no meu trabalho e apresentar o meu documento com nome e gênero retificado, estarei lidando com um outro ser humano. Se eu não tiver a possibilidade de educar aquela pessoa para que ela possa me respeitar segundo o gênero e nome retificados que constam ali, eu não estarei fazendo meu papel. Não estarei mobilizando a humanidade da outra pessoa na minha frente. Muita gente destrata quem tem retificação de nome por desconhecimento ou alguma ortodoxia moral e religiosa, mas não o faz exatamente por maldade. Meu papel é orientar as pessoas que estão ali, na sua labuta, para que elas possam humanizar a pessoa que eu sou, e informá-las de que essa decisão [da ADI], embora para elas não valha nada, para mim vale muita coisa. Ser chamada pelo nome feminino e pela identidade de gênero que represento socialmente faz, para mim, uma grande diferença, ao passo que, se ela me chamar pelo nome masculino de um documento não retificado, vai me causar um grande sofrimento.
[1] Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que pessoas trans podem alterar seu nome e gênero no registro civil sem que se submetam a cirurgia ou tratamento hormonal.
Nossa prática do dia a dia é essa: fazer com que as conquistas legais apareçam, mas seguir apostando também na formação humana do dia a dia, que caminha conjuntamente com essas ações. Temos que dialogar com as pessoas, humanizar mais as relações, fazer mais didaticamente nossa tarefa enquanto movimento. Sei que é difícil estar constantemente formando e informando as pessoas, mas se quisermos mesmo promover a transformação, teremos que passar por esse processo. Nenhuma pessoa do Brasil, talvez nem mesmo um jurista, consegue ler o código penal do país de A a Z. Então, não temos como esperar que uma legislação, principalmente uma que é tão jovem, seja assimilada tão rapidamente por todos.
Certa vez fui procurada por uma moça que havia ido ao posto de saúde. Ela não tinha retificação de nome, só o nome de registro e a carteirinha do SUS [Sistema Único de Saúde] com o nome social. A atendente disse que iria se comunicar com ela pelo nome de registro porque era o que estava na identidade. Ela ficou muito angustiada e constrangida porque, é claro, não conhecia nenhuma forma de lidar com aquela situação. Iam chamar um nome de homem, e ia levantar uma mulher. Ao chegar no posto de saúde, conversei com a atendente, que era uma senhora de meia idade. Peguei os dois documentos da moça e falei “bom dia, tudo bem? Meu nome é Keila e vim conversar um pouco com a senhora. Sou amiga desta moça aqui, que veio fazer uma consulta. Ela tem o documento oficial, onde figura como cidadã, e ela tem esse outro documento de nome social, que é uma conquista nossa no Sistema Único de Saúde. As pessoas sentem constrangimento quando, na sala de espera de qualquer serviço de saúde, chama-se um nome masculino e levanta uma mulher”. Ela ficou um pouco arredia, então emendei: “Não estou aqui para atrapalhar seu trabalho. Quero apenas dialogar um pouco com você. Você gostaria de estar em um ambiente para tratar sua saúde, e ter que atender quando alguém chama um nome masculino?”. Pedi para ela virar o computador para o lado e digitei o número do cartão do SUS da moça que estava comigo. Mostrei como era simples registrar o nome social dela na ficha. A atendente virou para mim e disse: “É, tudo bem. Foi tranquilo”. Imagine se eu tivesse chegado lá gritando, dizendo “você vai ter que me atender de qualquer forma, é meu direito!”…
Desenvolvi essa visão quase que individualmente. Sempre fui muito observadora em todos os meus anos de ativismo e percebi que formas mais enfáticas e impositivas de pedir algo para alguém talvez não sejam muito bem recebidas. Precisamos pensar diferente. Sei que é muito difícil fazer isso, mas sempre chamo a atenção para o fato de que o Brasil tem dimensão continental. As leis têm diferentes interpretações. Temos que fazer nosso trabalho com as pessoas. Fui compreendendo que essa forma mais didática de lidar com as pessoas, de humanizar esse relacionamento, é muito mais simples e proveitosa do que o grito pelo grito. O sistema de saúde, por exemplo, já está tão afetado por violências, e as pessoas que trabalham lá já estão também tão completamente violentas – têm seus problemas em casa, depois chegam lá e têm que enfrentar aquela fila enorme de pessoas… isso não é justificativa, e concordo que os funcionários públicos têm que tratar todo mundo bem, mas eu entendo o lado das pessoas.
Tenho 54 anos. Não quero retificar meu nome, nem meu gênero. Por quê? A cada vez que interagir com alguém e entregar meu documento com meu nome de registro, e a pessoa ver que tenho aparência feminina, fenótipo feminino, ela terá que me respeitar no gênero feminino. Ela terá que respeitar quem está dialogando com ela, e não o documento que está na mão dela. O documento é apenas um pedaço de papel plastificado. E o ser humano que está diante dela sou eu. Ela vai dar mais importância para o quê? Pode ser difícil lidar com o ser humano, mas temos muito mais a ganhar com o diálogo.
INDIVÍDUO E COLETIVO
Algumas pessoas têm impossibilidade de acessar movimentos sociais mas também conseguem fazer uma transformação. Antes de termos cotas de gênero nas universidades, quantas pessoas trans se formaram, mesmo sem fazer parte de algum movimento. As meninas trans que vão para a Europa, por exemplo, e conseguem fazer uma transformação em nível individual, acabam contaminando outras pessoas com essa mesma chama de possibilidade. Com todas as adversidades, essas pessoas conseguiram fazer uma mudança na vida delas, na sua comunidade, na sua individualidade, na sua casa. Elas também podem ser vistas como transformadoras. A transformação da sociedade vem pela coletividade, mas as trajetórias individuais que desempenham um papel nesse processo representam um início que, lá na frente, vai se juntar a essa massa. Aí poderemos dizer: “agora caminhamos, de nome e de fato, juntas”.
Mas acho que quem vai se destacar de fato na transformação futura da humanidade é quem pensa e trabalha coletivamente, como esses coletivos tão diversos que temos no Brasil. A coletividade traz uma força maior de pessoas, pensamentos e até de críticas. Há uma diversidade e divergência de ideias, mas convergência para um bem maior. Cada pauta específica, reivindicada por um coletivo, tem sua importância. O movimento LGBTQI+ no Brasil é muito recente, tem seus 40 a 45 anos, e temos um histórico muito recente de organização e luta. Vivemos, no Brasil, uma conjuntura nacional muito estranha, mas vamos nos coligar com quem caminha coletivamente. Nunca mais poderemos nos referir a esses movimentos como minorias!
Esse é o momento de transversalizar nossas pautas coletivamente. Se não, ficamos muito ao redor do nosso umbigo, atuando para nossa comunidade, e não conseguimos interagir com a diversidade rica que é esse movimento social brasileiro e as organizações da sociedade civil. É muito importante dialogar com as pessoas – elas ouvindo minha voz, e eu a delas.
Existe uma diversidade de corpos aparecendo hoje no Brasil, uma série de novas possibilidades de corpos dissidentes. Hoje temos pessoas se identificado nem como homem, nem como mulher – a população não-binária –, meninos que têm barba e usam saia, meninas que querem usar roupa masculina… Quem vai fazer a verdadeira transformação no universo LGBTQI+ são esses corpos dissidentes. São expressões que começam na individualidade, mas logo encontram lugar coletivo para se juntar. São eles que vão demarcar que mundo queremos, que Brasil veremos daqui 10 anos. É essa diversidade que vai nos dar a exata medida da transformação que queremos fazer.
GERAÇÕES FUTURAS
Precisamos permitir que as gerações que virão depois de nós, transformem o país para outras coisas, e não para isso que estamos transformando agora. Isso [trabalhar para as próximas gerações] não é um sacrifício. É o que me motiva cada vez mais. Quem chegar depois de nós vai experimentar a transformação que estamos promovendo hoje. Vou viver mais 46 anos – serei uma travesti centenária! – e nesses 46 anos, trabalharei todos os dias da minha vida para que as populações que venham depois da gente possam, cada vez mais, ter seus direitos. Quando cheguei nesse plano, não havia nada. As pessoas eram expulsas de casa por serem trans. Agora, vemos mães e pais de pessoas trans defendendo suas filhas e filhos, na rua, na televisão. Me sentirei muito feliz ao sair desse plano, ir para um plano superior e ver que quem virá para esse mundo não será mais presa ao sair com roupas femininas, poderá ter o nome que deseja em seu registro quando e como quiser, terá uma escola mais sensibilizada para acolhê-la, uma família mais sensibilizada que não a expulsa de casa. A conjuntura pode estar em um processo difícil, mas muitas pessoas estão completamente transformadas e engrossam o coro da nossa luta. Hoje, não somos mais uma população sozinha no mundo. Nem quero e preciso ser celebrada no futuro. Não vou estar aqui mesmo para saber! Tudo que fiz nessa vida é por mim também. Só quero que a possibilidade de viver livremente prevaleça. Partirei desse plano muito satisfeita sabendo que, na minha passagem aqui, coloquei um tijolo nessa construção de Brasil que estamos fazendo. Estamos começando a construir um novo horizonte para a população LGBTQI+, em particular para a população trans. Na verdade, estamos agora construindo um Brasil para as pessoas trans.
Maria Tereza Viana de Freitas Corujo (Teca)
Ambientalista
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

PERTENCIMENTO
Sou uma ambientalista que atua em defesa de lugares de Minas Gerais que estão ameaçados ou já impactados por mineração. Comecei num movimento, em 2001, o SOS Serra da Piedade, que é onde eu tenho meu pertencimento. Eu vivia no sopé daquela serra, como artesã de brinquedos educativos, uma vida toda alternativa, indo de 15 em 15 dias à cidade, tudo construído na busca de um novo jeito de ser e de viver. Em 2001, numa audiência pública em Caeté (MG), eu, que não tinha a menor noção do que era mineração, cheguei à constatação: “Como assim? Este lugar aqui é tão especial. Como querem minerar esta serra e destruí-la?” Nestes anos todos, minha atuação se dá, além do SOS Serra da Piedade, no Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela e no Movimento pelas Serras e Águas de Minas (Movsam), que é uma articulação de vários grupos. Participo também da Articulação Popular São Francisco Vivo e da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale.
GANDARELA
O Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela tem uma luta árdua, de grande magnitude. Gandarela é a última serra onde a Vale tem um filão de minério e de água gigantesco. Ali a Vale está tentando desde 2007 implantar o projeto da mina Apollo, onde poderia centralizar todo seu staff e suas operações em Minas Gerais, e não desistiu disso. Tem sido uma longa história. Lutamos pela implantação de um parque nacional, e tentaram engavetar. Em 2014, foi criada a unidade de conservação, mas que deixou de fora o lugar em que a Vale quer fazer a mina. Em 2019, vimos o sinal de que a Vale está preparando uma próxima tentativa. Para o abastecimento de Belo Horizonte, com a perda do rio Paraopeba [por conta do crime da Vale em Brumadinho], cada vez mais a Serra do Gandarela adquire um valor fundamental. Trata-se da última grande fonte de água do território. O aquífero gigantesco da Serra do Gandarela, por si só, já era para estar livre de ameaça. Infelizmente, neste cenário atual, os atores que deveriam fazer o que tem de ser feito só continuam atuando em prol da atividade privada da mineração.
SURPRESA
A gente não compartilha estratégias, porque a gente sabe que nossos inimigos estão sempre atentos e adoram ficar mapeando o que a gente faz. Eles devem ficar surpresos em ver como nós conseguimos fazer tanta coisa. Pois as empresas têm tudo na mão: salvo exceções, elas têm prefeituras, câmaras, governos estaduais, governo federal, os sistemas de gestão, o judiciário, a mídia. Para elas, nós devemos ser sempre um ponto de interrogação: como conseguem tanto, se nós dominamos tudo?
SEM CARTILHA
Não existe formato (de atuação] – e isso eu acho maravilhoso. Porque quanto menos houver formato estabelecido, mais difícil fica para que eles possam nos mapear. A gente avalia o momento, vê o que dá para fazer, divide quem pode fazer o quê, como pode, quando pode, da forma que pode etc. Eu vi ao longo desses anos muitas iniciativas se perderem em suas trajetórias porque escolheram formatos mais arrumadinhos. No nosso caso, não há uma cartilha, e as lógicas variam de ações ligadas à visibilidade e à mobilização até ações de caráter jurídico ou técnico. Sempre tem gente técnica nos movimentos, que não têm tempo de ir para a rua, mas que ajuda com a fundamentação.
PERSPECTIVA
Quando se conhece como essa ameaça opera, quais são seus objetivos, onde ela quer chegar, quais são os seus alicerces, a gente vai percebendo que a mineração éinconciliável. Em nenhum momento, até hoje, conheci alguma proposta de mineração conciliável com o desejo de os lugares não serem impactados. Ser “contra” a mineração não é uma bandeira que se adotou por questões ideológicas, no sentido puro. É porque a atividade minerária não tem nada a ver com outras perspectivas de geração de prosperidade e de paz. A idéia de “tempo” para a mineração é o aqui-e-agora, o lucro máximo já, não importa o quê. A nossa perspectiva é a do pertencimento ao ambiente e à paisagem, aos nossos estilos de vida, aos nossos sonhos de futuro.
BEM COMUM
Minerar é tão impactante que deveria ser baseado em outras premissas. Estou indo além da idéia de “soberania nacional”. Para mim, mexer no meio ambiente ou no subsolo com atividade de mineração teria de ocorrer apenas e absolutamente quando fosse necessário para o bem comum. A quantidade e diversidade de impactos no ar, no solo, na água, na paisagem, na saúde é tão alta que se deveria extrair só o estritamente necessário do bem mineral, de maneira que cause o menor impacto, e reaproveitando tudo de modo a que nunca mais seja preciso mexer de novo naquilo. Nada a ver com a economia, mas com o impacto nas pessoas e no ambiente. É o que deveria estar sendo feito.
PARAR TUDO
Agora estamos aí com essa crueldade da questão das barragens. Como é que se pode cogitar, depois do que aconteceu em Mariana e depois do que aconteceu em Brumadinho, que as minerações continuem sendo licenciadas a rodo, quando a primeira coisa que tinha de ser feita, a nosso ver, era parar tudo? Aqui no Quadrilátero Ferrífero [1] há mais de 200 barragens, cuja noção de estabilidade perdeu qualquer sentido, porque as duas últimas que romperam não tinham estabilidade garantida. Parar isso já teria que ter acontecido de imediato. Uma tragédia da proporção desses dois crimes exigiria uma mudança imediata de atitude. Essa é uma transformação para a qual valeria a duras penas batalhar. Não poderia haver mais nenhuma barragem operando, e não só aquelas que estão a montante, qualquer uma. Resumo da ópera: a qualquer momento podem acontecer novas tragédias, e maiores.
[1] Quadrilátero Ferrífero é a região mineral existente no entorno de Belo Horizonte. O território de cerca de 7 mil quilômetros quadrados abrange 27 municípios e concentra a maior parte das jazidas e lavras de minério de ferro de Minas Gerais.
ALTERNATIVAS
Num nível mais profundo, a transformação que nos move é saber que há outras formas [de viver]. Não é verdade que nós precisamos de uma economia baseada em exportação de commodities; não é verdade que estamos melhores, prósperos ou desenvolvidos por causa da mineração. É só olhar à nossa volta, há números e dados. Sabe-se que os municípios que têm sua economia baseada em mineração não são lugares com qualidade de vida, onde as pessoas estão felizes. Ao contrário. Há uma grande falácia, um grande marketing e muita mentira sobre a “importância da mineração”. Esses territórios, onde a mineração diz ter chegado como se antes não houvesse nada, tinham outras perspectivas. Nós temos alternativas mil para, nesses lugares, termos uma divisão de renda mais justa.
DOR
Eu estava em Caeté, e quando meu irmão disse: “Teca, rompeu uma barragem em Mariana”, caí num choro convulsivo. Porque, quando você luta muitos anos sabendo do monstro com que você está lidando e de tudo o que ele pode causar, quando acontece aquilo contra o qual você lutou tanto, você não tem palavras para descrever a sensação – porque não precisava ter acontecido! A gente falou, a gente disse, a gente sabia. Quando você tem esse cenário, a dor é gigantesca. Não é só a dor da perda do rio, do sofrimento, da dor das pessoas. É a dor de se ter a certeza absoluta de que aquilo não era para ter acontecido!
BRUMADINHO
No caso de Brumadinho, já vínhamos acompanhando há anos que a a Vale não cumpria as condicionantes. Nós conhecíamos a verdadeira face daquele complexo, e nesse caso, tentamos tudo o que se podia para evitar aquelas licenças. Nós não sabíamos que a barragem estava com problema, pois o tempo inteiro tanto a Vale como o Estado afirmavam que havia um ótimo controle. Mas nós tínhamos certeza de que ali havia coisas mal resolvidas. Sabíamos que a continuidade daquele complexo teria de ser avaliada de uma forma sistêmica e muito mais embasada. No dia 11 de dezembro de 2018, [2] numa reunião com muita gente da comunidade – do lado de lá, o empreendedor atestando que estava tudo perfeito e incrível, desconstruindo e dando respostas esfarrapadas ao que a gente alegava – , houve votação e foram dadas as três licenças de uma vez. O que fez ficar sem chão a turma de lá, porque era tão surreal que tanta coisa errada fosse licenciada. Quando você sabe tudo o que o prefeito podia ter feito e não fez, tudo o que o Estado podia ter feito e não fez, então se tem a certeza absoluta de que aquelas pessoas não precisavam ter morrido. É muito duro.
[2] Pouco mais de um mês depois, em 25 de janeiro de 2019, a barragem do complexo se rompe em Brumadinho.
CRUELDADE É surreal. É irracional. Existe um sistema incrustado, tipo um câncer maligno. O pessoal de Casa Branca (Brumadinho), anos atrás, cunhou o slogan: “Mineração, um câncer no seio das Gerais”. As raízes desse sistema são tão fortes que nada mudou. Num primeiro momento depois das tragédias, o sistema se recolheu, mas agora já está de novo em ação. A Vale consegue aproveitar até momentos cruéis como este. Agora percebeu que a legislação permite que obras emergenciais sejam feitas sem nenhuma licença, só com a apresentação de aspectos técnicos. É maquiavélico. Enquanto nas minas de Brucutu (Barão de Cocais) e Cauê (Itabira), onde havia liminar para parar as operações na justiça, a Vale usou seu séquito de advogados e laudos para provar que poderia voltar a operar, em Barão de Cocais Sul-Superior e em Macacos (Nova Lima), ao contrário, fez questão de pagar multas altíssimas e descumprir os prazos para manter a situação em ponto de interrogação sobre a estabilidade das barragens. Quando a gente começa a observar isso, dizemos: “tem coisa aí!”. Por que em Gongo Soco (Barão de Cocais) ela está deixando a situação assim, e ela mesma é quem comunica a Agência Nacional de Mineração de que o talude estava se movendo (mentira, ela sabia desde 2012) e concatena tudo, dizendo que a barragem iria romper, definindo inclusive a data de rompimento, e depois entra naqueles dias com uma ação de tutela antecipada para poder fazer uma obra que está arregaçando a vila de André do Mato Dentro (Caeté)? Eu não tenho dúvida de que a Vale planejou tudo, tanto é que ela já tinha contratado o que precisava para fazer a obra e planejou o dia de comunicar que a barragem iria romper – uma coisa de uma crueldade gigantesca.
PPT
Eu tenho uma apresentação de powerpoint feita pela Vale quando quis licenciar uma megabarragem em Nova Lima (na zona de inundação alguns dos moradores tinham apenas 9 segundos para se salvar; mesmo assim a barragem foi licenciada em 2016, um ano depois do rompimento da Samarco em Mariana). Nessa apresentação sobre o programa de emergência em caso de rompimento aparece lá: “Construindo comunidades mais resilientes”. Com esse título. Ora, o que estão fazendo nos territórios por causa das barragens é treinando a população para se tornar mais “resiliente”. O sentido é: “Eu vou continuar operando, vou continuar numa boa, vocês que se acostumem.”
MÁSCARA
Infelizmente essas tragédias podem ser uma mola propulsora, no sentido de mostrar a verdadeira face da mineração. Com esses crimes que aconteceram, mesmo que as pessoas ainda estejam subjugadas, percebe-se que a caixa-preta da mineração está se abrindo. Infelizmente às custas de muita crueldade, está caindo a máscara de uma atividade econômica que sempre ocultou a mentira do que significava.
LUTA CONTÍNUA
Aí eu pergunto; puxa vida, esta luta nunca termina? A gente não tem de ter a expectativa de que vai terminar amanhã. A escravidão econômica, a escravidão de poder, uma contaminação de todos os espaços, nos domina desde a época em que chegaram os bandeirantes neste território abençoado de lindo, com milhões de indígenas, perfeito intacto, belíssimo. Quando se avalia como foi a luta contra a escravidão, contra a inquisição, a história da humanidade, as transformações de modelos postos como paradigmas consolidados – por mais que fossem violentos e cruéis, e talvez por isso mesmo —, vemos que essas transformações são lentas, demoradas e sofridas.
Fábio Paes
Ativista pelos direitos das crianças e adolescentes
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

O OUTRO
Nasci em Santa Catarina, numa cidade serrana chamada Lages. Venho de uma família campesina produtora de feijão, milho e produtos para o autossustento, no sistema de produção em mutirão comunitário, aquilo de plantar junto, de colher junto, de comer junto e envolver-se com os diversos personagens que compõem o mundo campesino: andarilhos, peões, donos de terra. Cresci assim. No entanto, hoje sou da cidade, e essa trajetória na infância foi fundamental porque vivi a experiência da importância do outro.
Meus pais foram líderes comunitários da igreja local, visitando doentes, fazendo formações, promovendo círculos bíblicos, reuniões, formações etc. Essa identidade cristã pensando no outro é um DNA em mim.
Foi assim que conheci algumas referências do franciscanismo. Na cidade havia um franciscano que tinha um programa na rádio e na TV e que era um mobilizador nato. Conseguia reunir muitas pessoas em atos e procissões. Suas palavras convocavam as pessoas a mudarem de vida. Era mais do que um agente cristão: era um agente transformador, uma referência de comunicação e mobilização. Isso me atraía muito. Eu admirava essa capacidade de referência política e social.
ATEU
Fiz filosofia e teologia. No seminário, eu me perguntava: como posso não acreditar nesse Deus barbudo, nesse Deus ritualístico da Igreja e assim mesmo querer estar nessa vida? Entrei para o Aspirantado, depois fui para o Noviciado, que é um ano que você fica retirado do contato das pessoas, da família – é o chamado tempo de conversão, de provação. Você recebe um hábito franciscano e trabalha, reza, medita e estuda, vivendo muitas vezes em lugares ermos.
E foi assim que eu me descobri um ateu. Não acredito em Deus, não acredito em rituais, não acredito nesse modo de fazer da igreja, então me considero um ateu. Retirei meu hábito e procurei meu mestre, expliquei o que se passava. Meu mestre, que é muito sábio, baseado na realidade e na simplicidade, me perguntou por que eu estava ali. Não foi difícil de responder, pois o motivo era o personagem histórico de Francisco de Assis, que me impactava e me dava referências.
NO TERRITÓRIO
Desde que eu me juntei aos franciscanos, sempre me aproximei das pastorais de cunho comunitário e relacional e sempre fui para o trabalho com as pessoas e com o território. Nunca escolhi ser sacristão de uma paróquia ou responsável por cultos. Morei em Agudos (SP) dos 14 aos 16 anos: eu ia para a comunidade com o violãozinho nas costas, o jornal e a bíblia. Fazíamos os chamados círculos bíblicos, líamos a bíblia, cantávamos, líamos sobre a realidade local, sobre o que estava acontecendo no mundo, discutíamos problemas internos e ali íamos criando uma roda de convivência, um intercâmbio, assumindo pequenos projetos.
Nas minhas férias, eu sempre participava de alguma experiência em movimentos e projetos sociais. Fiquei dois meses com o MST e Movimentos Campesinos no Triângulo Mineiro, depois fiz outra missão com o Movimento Pastoral da Terra em Rondônia. Na Amazônia trabalhei com povos ribeirinhos e indígenas; em São Paulo trabalhei em albergues no Glicério, próximo das pessoas em situação de rua, vivendo, comendo, dormindo com eles; e tive diversas outras experiências do campo social, sempre direto com as pessoas.
FREIREANO
A teologia da libertação veio com o próprio estudo da teologia. Comecei a me identificar mais com o que se chama teologia especulativa, que trabalha a questão da historicidade do cristianismo e de Jesus enquanto um fenômeno cultural, social, político, religioso (de sua época) e histórico, desvestido dessa cultura romana herdada de um Deus sobrenatural. Foi de uma maneira natural que eu comecei a me identificar com as obras de Leonardo Boff e seus professores. Esse Jesus fazia sentido!
Em Petrópolis, fui morar em uma favela, no último de 400 degraus. Lá permaneci por quatro ou cinco anos. Na semana em que cheguei, voltando da faculdade de teologia, fui abordado por um grupo de crianças que me viram subindo, me arrastaram para o mato e me mostraram uma poça de sangue. Relataram que os policiais mataram e arrastaram para ali os corpos de dois adolescentes ligados ao tráfico – na verdade ligados à boca de fumo –, enquanto falavam para as crianças: “vocês serão os próximos”. Foi horrível, mas serviu como uma “educação’ sobre a comunidade. A partir desse dia, fiz um pacto na minha vida de que essa realidade, ou a gente transforma ou não dá para viver nela apenas assistindo ela passar. Fiz uma convocação pública, chamando todas as lideranças de adolescentes que tivessem algum projeto, alguma energia, alguma ideia, sem classificar em bom ou mau. Vieram meninos do tráfico, da escola de samba, da Igreja, meninos que não tinham nada. A questão era reunir todo adolescente que tinha algum incômodo ou que incomodava.
Comecei com uma roda, uma metodologia muito simples e intuitiva. Pedi para me apresentarem qual era a rotina deles ali onde moravam. Depois, sugeri que organizassem essa rotina e pensassem como ela poderia ajudar a transformar a realidade, transformar a vida deles. Disse para pensarem no que quisessem, que iríamos juntos potencializar essa rotina e nessa folha em branco poderíamos mudar a realidade social. Foi um estrondo. Chamamos a metodologia de “Tatos e Passos”, porque não sabíamos o que fazer, e acabamos criando várias ocupações em escolas e becos abandonados da comunidade, com teatro, poesia e intervenções de hip hop. Fizemos o primeiro festival de funk da cidade de Petrópolis, e do Rio de Janeiro, criando os critérios do bom funk (isso foi uma transformação!), fizemos um Centro Social numa antiga creche abandonada pelo Estado, reivindicamos um Posto de Saúde, fomos reorganizando a Escola de Samba que estava muito desorganizada e conectada ao tráfico.
Esse foi o projeto que criou minha identidade pedagógica, política e metodológica. Hoje analiso que, mesmo sem conhecer a fundo Paulo Freire, toda a perspectiva era freiriana. Fazíamos rodas de conversa, círculos culturais, percorríamos a comunidade fazendo mapeamento de demandas, criávamos os temas geradores, envolvíamos o território como território educativo. O foco era a autogestão, envolvendo adultos, crianças e adolescentes desde o início. Esse projeto foi uma grande escola para aquilo que vim a ser e sou hoje.
OSVALDO CRUZ
Em Petrópolis, acabei descobrindo o Centro de Defesa dos Direitos Humanos, que tinha o Leonardo Boff como presidente. Ali conheci diversos projetos com juventude, com moradores de rua, e também comecei a trabalhar no chamado Pão e Beleza. Eu atuava no bairro Osvaldo Cruz, que era conhecido como Canto do Cemitério. Por meio do Grupo Tortura Nunca Mais, escolheram o nosso projeto na comunidade como um caso exemplar de combate à violência. Imagina uma comunidade conhecida como Canto do Cemitério e todo mundo da cidade falar sobre seu território dessa forma. O cemitério entrava na comunidade a tal ponto que não havia mapa em identidade na Prefeitura. Tivemos que descobrir que o nome original era Osvaldo Cruz. Começamos a recuperar a história do território com as crianças e as famílias. Tudo era com eles, nada sem eles, a pesquisa territorial – com camiseta e prancheta – quem gerenciava eram eles, quem escrevia o projeto e a metodologia eram eles.
MAIS POLÍTICO
Eu levei tão a sério o princípio da justiça e da liberdade na vida e no meu projeto que não percebi que naquela época estávamos vivendo a Igreja do Ratzinger, Bento XVI. Fui procurado por uma pessoa do Vaticano, que disse que eu estava sendo convidado a sair da vida religiosa porque eu era muito mais um político do que um religioso e que isso era um perigo. Eu argumentei e perguntei: que Jesus você leu, se não é um Jesus político, cultural, social, transgressor? Conclui o curso de teologia e rompi com a instituição religiosa e franciscana daquela época.
ADVOCACY
Depois disso, fui fazer um trabalho com adolescentes e jovens. Era uma organização que trabalhava com acolhimento institucional. Eu fazia uma sensibilização, seguida de uma imersão em comunidades bem periféricas e precárias, onde eles tinham um choque de realidade. Depois que voltavam, faziam um projeto de intervenção comunitária; um projeto de desalienação, busca e observação da realidade. Criamos acampamentos sociais, trabalhando temáticas como política e filosofia. Eram cinco dias, com diversas periferias e projetos.
Foi então que fui contatado pelas Aldeias Infantis SOS Brasil, para trabalhar como assessor e pensar outras possibilidades no trabalho com a juventude. Nesse meu trabalho com as Aldeias, as crianças e adolescentes criaram uma rede, passaram a se comunicar, criar eventos, atos, começaram a ser críticos em seus territórios. Começaram a falar sobre mudança social, mudança de atitude e isso começou a movimentar muita coisa. A direção ficou com medo e me retirou dessa função, me “promovendo para outra área”.
Ainda nas Aldeias, participo do Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente]. Saio do foco de gerência de projetos e programas e vou para o advocacy. Foi uma trajetória muito interessante pois novamente não optei pela institucionalidade, optei pela defesa e pelo compromisso. Criamos um grupo de articulação com organizações e movimentos progressistas que queriam mobilizar pessoas para a defesa de direitos. Essa trajetória teve muitos embates (seja com os grupos hegemônicos da Igreja até as grandes empresas maristas, salesianas etc). Criamos uma sinergia grande com os principais movimentos do país (Movimento dos Meninos de Rua, Cedeca [Centro de Defesa da Criança e do Adolescente], Centro de Defesa dos Direitos Humanos, Movimento Nacional de Direitos Humanos etc) e fui indicado pela sociedade civil para assumir a presidência do Conselho. O Conanda conseguiu articular uma agenda de mobilização popular e fizemos a primeira conferência com maior número de crianças diversificadas e diversas, desde habitantes da fronteira até indígenas, quilombolas e LGBTs. Nessa agenda de pensar na diversidade, começamos a cunhar um termo chamado invisibilidade da infância: as infâncias invisíveis.
DEMISSÃO
Como presidente do Conanda, comecei a chamar todas a redes e os movimentos para articular essa agenda abandonada ou esquecida e estabelecer um compromisso de visibilidade. O MST, à luz desse chamado pela visibilidade, organizou um Encontro Nacional de Crianças Sem Terra. Eram 1.200 crianças. Como eles não tinham capacidade para executar as doações, pediram apoio às Aldeias e nós fomos a organização executora de uma emenda parlamentar para o evento. Foi um marco histórico. 1.200 crianças do Brasil todo em Brasília, com uma metodologia participativa, popular, contando com a presença de vários educadores e grupos, Justiça, Defensoria, Poder Público e Executivo. Naquele momento soubemos que o evento estava sendo vigiado por um grupo de ultradireita, que teve acesso aos materiais e criou um vídeo fake dizendo que estava havendo “doutrinação de crianças”. Ele editou as filmagens para dar essa conotação.
Em janeiro de 2019, na época do escândalo envolvendo o filho do presidente recém-eleito, a Rede Record fez uma reportagem de mais de 18 minutos falando de um Estado paralelo que manipulava crianças. Utilizaram imagens e falas de forma completamente diferente da maneira com que nós trabalhávamos. No final da “reportagem”, aparece o logotipo das Aldeias. Depois disso, duas pessoas ligadas ao Conselho Diretor da organização pediram minha cabeça, dizendo que eu era comunista, que eu era muito crítico e incisivo e que esse governo não precisava receber críticas.
Num encontro com mais de 80 representantes de movimentos de base, movimentos populares, coletivos e núcleos na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, o MST apresentou a situação da minha demissão e fez um ato e manifesto pela defesa do direito das crianças. Todas as organizações assinaram. Foi um pacto bacana. Agora, toda essa trajetória está convergindo para uma grande articulação nacional de caráter progressista e popular na defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes. Nessa articulação estão os principais movimentos do país: crianças, movimento negro, quilombola, LGBT, MST, MTST, coletivos de periferia, organizações, mães de vítimas da violência do Estado, mães com crianças em creche, Marcha das Mulheres. O objetivo é organizar uma agenda porque não há hoje uma concepção de infância baseada na vida do povo trabalhador e dessas comunidades e grupos invisibilizados.
CURA
A transformação, para mim, tem cunho mais miúdo, mais cotidiano, mais direto, mais simples, mais real, mais concreto. É baseada na cultura, no modo como eu pego algo bruto e modifico para algo mais adequado, ou numa linguagem melhor; cultura como cultivo, quase artesanal, manual. Pego o barro, esse barro eu amasso, eu modifico, até que ele se transforme em um vaso, crie outra linguagem, outra perspectiva, uma perspectiva com objetivo, com valor agregado. Transformação, para mim, tem a ver com mudar a forma e, no campo político, isso significa mudar essa forma injusta, precária, doente. Por isso transformação não é criar algo novo, e sim curar, melhorar aquilo que já é.
TEIA DE CUIDADOS
É gratificante e impactante ver como essa dimensão simples de transformação traz vida, humor e vitalidade. Aqui podemos usar a palavra felicidade. Na vida das crianças e adolescentes, talvez o primeiro passo para a transformação seja a presença, o estar junto, o estar com elas. É o espírito de solidariedade. Essa capacidade de o outro sentir a presença é revolucionária na vida de crianças e adolescentes. Cito casos de meninos e meninas extremamente abandonados afetivamente, pelo sistema e pela família, todos dizendo “esse menino não presta”, “esse menino não tem jeito”. Na escola, a mesma coisa: uma lista de expulsões, advertências, conselho tutelar… Nem a Igreja quer saber desses meninos. Bastaria dizer: “oi tudo bem, estou aqui, quem é você?” Hoje vivemos em um mundo onde existe Lei, ECA, Sistema de Garantia de Direitos, e existe também um viés punitivo e judicializador das vidas, muito distante do cuidado, da relação direta, da transformação da vida.
Há o caso de um menino que passou 25 vezes pelo Sistema de Direitos, Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], Conselho Tutelar e Juizado — e foi morto. Por outro lado, há o caso de uma menina, que tinha um lugar na mesa da minha casa lá na comunidade, a comunidade que era uma grande teia de cuidado e proteção para ela. Quando chegava seis horas da tarde, a vizinha a chamava para fazer o dever de casa. Todos atuavam no cuidado. Ela não passou por nenhuma assistência institucional, mas tinha afeto e a comunidade como esse grande campo de responsabilidade, sem julgamento, sem criminalização. Hoje ela mora na mesma comunidade, está casada, tem um emprego. Que o mundo se transforme nessa teia de cuidado, mais do que em uma teia de sistemas, de processos, de leis, de tratados ou de projetos sociais. Estamos vivendo um momento em que é preciso voltar à simplicidade, às relações responsáveis. As relações comunitárias devem ser regadas com vizinhança. Isso é transformação.
João Marcelo Trindade e Luiz Cláudio (Lula) de Melo, do Somos Todos Muribeca
* A conversa contou também com a presença de Israel José da S. Filho, morador e fundador do Somos Todos Muribeca.
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

MURIBECA
No início de 1982, a política habitacional tirou parcelas da população da região central do Recife para alocá-las nas periferias da cidade. Foi quando o Banco Nacional de Habitação (BNH) construiu os prédios de Muribeca, um distrito do município de Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife. Os prédios, à época 70, totalizavam 2.240 unidades habitacionais e uma população residente de quase 9 mil pessoas. Após muita luta, veio a infraestrutura urbana de água, afastamento de esgoto, iluminação pública e transporte público.
O ano de 1991, devido à divulgação da possibilidade de se transformar Muribeca em ZEIS [Zona Especial de Interesse Social], foi um marco do crescimento da comunidade. Apareceram novas casas e comércios em construção desordenada (por assim dizer) do ponto de vista do planejamento urbano. Tanto a parte interna quanto a externa do conjunto habitacional Muribeca (espaços entre prédios, espaços destinados à circulação, estacionamento, etc…) foram ocupadas por imóveis. O comércio pujante atendia praticamente todas as necessidades dos moradores.
Por volta de 2003, após laudos apontando risco de colapso e sob a pressão de muitos protestos, a justiça decretou a desocupação de todos os prédios em troca de auxílio-moradia, que gerou êxodo da comunidade, exceto das famílias em posse irregular. Por volta de 2005, a Caixa Econômica Federal, tendo assumindo o antigo BNH, assume também a responsabilidade pelos imóveis, agora conhecidos como prédios-caixão. A demolição exigia um raio de área livre de 12 metros que, no caso de Muribeca, encontra-se toda ocupada por edificações diversas. Em 2015 a juíza manda demolir e todas as casas neste raio de 12 metros dos prédios são desocupadas com força policial.
Desconfiados do processo, das brechas e da jogada política contra o povo, alguns moradores começaram a se movimentar e estudar os processos e as artimanhas por trás deles. Tais moradores criam a associação Somos Todos Muribeca. Desde então, a luta por moradia digna, por justiça, por habitar um pedaço de chão onde uma história de vida se edifica tem sido a tônica do nosso grupo.
DESCONSTRUÇÃO [LULA]
Um exemplo de transformação está no contexto da desconstrução. Antes de enveredar para esses caminhos do ativismo, do senso comum de comunidade, eu tinha uma visão apenas de família. Aquilo que eu poderia fazer de bom, fazia para a minha família: minha mãe, meu irmão, minhas primas, etc. Se é da minha família, então eu vou ajudar. E, aqui no Somos Todos Muribeca, pude perceber que esse caminho pode vir a ser até nocivo, porque você acaba fazendo apenas pelos seus e o resto que se exploda.
O Somos Todos Muribeca transformou a minha visão a respeito daquilo que eu posso fazer: antigamente era mais limitado, mas hoje eu vejo a situação de forma mais ampla. E mudei muito também durante esses anos de relação com a região de Muribeca. Antes, minha percepção estava mais situada, era de mim, da minha rua para a comunidade. Mas isso vem mudando porque fui percebendo o entorno muito mais pela ótica da comunidade, pela ótica das igrejas, dos colégios, do lazer, do comércio, das necessidades de uma comunidade em si. Até então eu não fazia ideia do quanto é importante ter comércio aqui, um comércio local que movimenta a economia, que faz circular um dinheiro aqui mesmo em Muribeca. Não precisávamos sair para acessar o comércio, pois tínhamos tudo aqui. Eu não percebia o quanto é importante termos aqui tudo que nos era necessário. Até casa lotérica tinha em Muribeca.
CABULOSO [MARCELO]
Eu sou um cara que não consegue ficar parado. Sempre fui assim. Então, transformação é uma palavra recorrente para mim. Transformação é uma coisa que faz parte do ser humano porque o ser humano está em processo de transformação. Mas a palavra “transformação” está sempre mudando também. O oposto disso é estar sempre estagnado. Eu acordo com uma ideia em um dia e, no dia seguinte, já estou questionando essa minha ideia. Transformação é estar sempre se questionando: o que eu estou fazendo é legal? o que eu estou fazendo está ajudando apenas a mim? a minha família? a coletividade?
Desde pirralho eu sou “cabuloso” assim: questionador. Eu sempre achei que o sistema nos impõe um caminho que não é necessariamente correto. Acho que a desconstrução citada pelo Lula é por aí. Quando você questiona alguma coisa, você está desconstruindo e reconstruindo algo que você mesmo construiu.
[LULA] Que você mesmo construiu ou que te foi imposta. Que foi colocada para você ao longo de décadas de criação familiar, de escola, de igreja, etc. Dessas coisas que nos cercam enquanto sociedade. Esses padrões.
[MARCELO] Pois é. As igrejas que a gente frequentou, aquilo que você vê na mídia e das redes sociais… Os padrões da moda, sim…. Nós mesmos, inclusive, somos gente que passou por profundas transformações. Veja, por exemplo, as profundas transformações ocorridas nos veículos de informação. Aqui no Somos Todos Muribeca, vimos as transformações das revistas, dos jornais e da televisão, antes veículos quase que exclusivos, para o período das redes sociais por conta da popularização da internet. Questionar as coisas é perceber tais transformações e colocar as verdades em dúvida, é estar na suspeita, é não aceitar que existam verdades absolutas. Na minha opinião – não sei o que pensa o Lula – quem não questiona as coisas está morto. Questionar é um primeiro passo para transformar alguma coisa. Para dar um outro exemplo, não basta adotar as ideias de Paulo Freire; temos que adaptá-las, melhorá-las com a nossa prática. Porque na sua época ele mesmo fez um melhoramento naquilo que ele propôs; e nós, porque estamos vivos, estamos pensando e melhorando as coisas. Cabe a nós melhorar as coisas, transformar as coisas, mas a base são as ideias que Paulo Freire passou.
CONSTRUÇÃO [LULA]
A desconstrução da minha visão, que foi de dentro da minha bolha para a comunidade à minha volta, aconteceu como consequência da desconstrução do entorno. É bom destacar que as transformações aqui em Muribeca nos foram impostas, não foram uma escolha nossa. Isso tudo, desconstrução e construção, é mudança, é transformação. E o que mais importa é replicar a vivência que eu tenho tido nesses anos de Somos Todos Muribeca para que as pessoas compreendam o que é ser ativista. Há que se tomar cuidado, pois a postura questionadora muitas vezes é confundida como agressão, quando não é sobre isso. Precisamos desconstruir uma visão “criminosa” do ativismo, que todo ativista é um filhinho de papai, que é um drogado e não quer nada com a vida. Muita gente tem essa visão ainda, e não é por aí. Quero mostrar que lutar pela sua comunidade é ser ativista, que não apenas o Greenpeace ou o Somos Todos Muribeca são ativismos, mas que a pessoa que limpa a rua, que limpa a canaleta da rua inteira antes das chuvas, na medida em que melhora a comunidade, que melhora a vida das pessoas que moram ali, está fazendo um ativismo também. Neste sentido, todo mundo pode ser ativista.
[MARCELO] Lula falou uma coisa que me tocou. Disse que ele se transformou a partir das mudanças do coletivo, que as mudanças no coletivo afetam o pessoal dele. Quero continuar nesse raciocínio… Quando eu me transformo, e se for uma coisa boa, isso automaticamente transforma o mundo ao meu redor porque vai atingindo outras pessoas. Mas a transformação pode ser para pior. Então, me pergunto: o que é uma transformação boa? É aquela que atinge o coletivo, é aquela que melhora para a maioria. É mais ou menos assim que entendemos essa questão aqui no Somos Todos Muribeca, porque, sendo assim, não é mais sobre o Marcelo, o Lula, Israel… é sobre as mais de vinte mil pessoas que moram aqui.
COMUNIDADE [LULA]
Quero tornar as pessoas um pouco mais receptivas à coletividade. O senso de cidadania, de cuidado, de pertencimento à comunidade, identificação com a comunidade. Fazer com que as pessoas entendam que Muribeca é tua, é nossa, que a gente tem que cuidar dela. E que esse sentimento se replique para outras comunidades. Mas o que eu quero, partindo para o campo individual, é criar os meus filhos aqui como eu fui criado. Eu amo esse lugar, amo essa comunidade. Essa é minha casa. E a nossa luta principal é manter essa comunidade viva. Então não podemos esperar apenas a ação dos poderes públicos. Nós buscamos estabelecer parcerias com a Escola de Ativismo, com o Centro Popular de Direitos Humanos, com o Meu Recife, entre outros grupos que nos auxiliam.
O poder público só entende Muribeca pelo viés jurídico. Já são 13 anos nesse trabalho. Nos dez anos iniciais, nenhuma parceria externa chegou aqui. Fomos entendendo que nossa luta inclui o jurídico, mas vai além dele. Nossa luta é política, entendendo a política em sentido ampliado. Não aquela politicagem de fulano de tal que é amigo de um vereador e que pode quebrar um galho. Não é isso. Penso numa política que nos organize enquanto comunidade para chegar nos objetivos que traçamos – que são, basicamente, melhorar a vida. Então, quero mudar a visão das pessoas, trabalhar para ampliar a visão das pessoas a respeito do que é comunidade e do que é ativismo.
Eu quero mesmo é transformar um final trágico em um final feliz, justo e menos danoso. O que ocorrer aqui em Muribeca pode ocorrer em outras comunidades Brasil afora. Só aqui em Pernambuco, a Caixa Econômica Federal tem problemas com algo em torno de quase 6 mil prédios do tipo caixão, iguais aos aqui de Muribeca.
[MARCELO] Lula foi muito feliz nas colocações dele. Eu acrescentaria a importância de questionar. É importante que as pessoas comecem a questionar tudo e todos. Nesses últimos dez anos neste processo de Muribeca, muitas coisas deixaram de ser questionadas. Estou falando desde o morador do apartamento e o morador da casa até o pastor da igreja, o comerciante… além de não questionar, achavam que só a justiça resolveria o problema. Na verdade, não é assim, porque a justiça não entende as questões do povo. Ela não consegue entender a problemática, ela não consegue fazer a parte humana da coisa. A partir do momento em que o Somos Todos Muribeca começou a questionar “por que vai demolir sem dizer o motivo?”, “por que falar em demolição sem falar de indenização?”… não podemos baixar a cabeça e bater palma para o Judiciário e o Ministério Público. Essas instituições merecem nosso respeito, mas não devemos nos curvar a elas, temos que questionar.
PEDAGOGIA DA PERGUNTA [MARCELO]
Exatamente. A gente precisa questionar e se questionar o tempo todo. É incrível como que 15 mil, 20 mil pessoas que aqui viviam, como deixaram nas mãos de dez pessoas tomar conta de todo um destino. Não estou dizendo que elas fizeram pouco ou fizeram errado, não é isso. Elas fizeram com o que tinham às mãos naquela época. Me pergunto como deixamos nas mãos de tão pouca gente, é pouco representativo isso. Ao mesmo tempo, não fosse essas poucas pessoas, talvez a situação fosse ainda pior, não podemos saber.
Há uma cultura no Brasil – pelo menos aqui em Muribeca nós sentimos muito isso – que é deixar nas mãos de outras pessoas, delegar para alguns poucos as decisões dos destinos de toda uma coletividade. E o Somos Todos Muribeca não está aqui para isso, muito pelo contrário, nós queremos é mudar isso, queremos transformar essa realidade.
Tio Antônio do Vão Grande
Agricultor
O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: trans, forma, ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.
[*] O Território Quilombola Vão Grande está localizado a 74 km do Município de Barra do Bugres e aproximadamente a 240 km de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. As serras das Araras protegem as comunidades de Morro Redondo, São José do Baixio, Camarinha, Vaca Morta e Retiro. O local, de fauna e flora exuberantes, é cortado pelo rio Jauquara, seus cânions e cachoeiras. É ali que escutamos Tio Antônio.

TIO ANTÔNIO
Depois nós vamos ali falar com a minha irmã mais velha. Eu sou o filho caçula. Ela que me criou. Era eu mamando num peito e o filho dela no outro, ao mesmo tempo assim, os dois batendo as cabecinha. Eu chamo ela de mãezinha Hortênsia. Tenho muita dó de ver ela assim tão velhinha. O filho dela trabalha de mestre nessas energias aqui [pequenas centrais hidrelétricas]. Ele foi embora daqui, sentou praça em Cáceres, mais de dois anos. Saiu de lá, foi pra Tangará da Serra trabalhar na rede de energia. Hoje ele é chefe… e foi chamando os meninos mais novos, tenho um monte de sobrinho nascido aqui que foi trabalhar em Tangará na rede elétrica. A turma foi estudando e quis arrumar emprego porque querem trabalhar, e acabam casando… toda essa rapaziada que trabalha. Qualquer problema que dá aqui nessas energias, é mais eles que vem arrumar aqui.
QUE ENERGIA É ESSA
Essa energia chegou aqui naquele ano que a Dilma [Roussef] se candidatou. Mas antes disso, esse fazendeiro aqui (que outro dia vendeu a fazenda), o Arlindo, já tinha energia. Prá cá não tinha. Porque eles tinham dinheiro. Pra nós não tinha energia. Os fazendeiros conseguiam esticar as redes para as fazendas deles. A Dilma, do PT, lançou esse projeto Luz para Todos que trouxe a luz até aqui. E foi direto na escola [2], depois foi chegando nas casas da comunidade toda. Tem lugar no meio desse mato que a rede ainda é precária. E quando chegou a luz nós não tinha muito aparelho pra cá. E com o tempo o pessoal foi comprando. Hoje muita gente tem geladeira onde dá pra guardar o peixe que pescamos. Mas na quadra de dia primeiro de ano, quadra de natal, o pessoal sofre muito porque a energia vai embora. Todo ano passamos sem energia. A rede está fraca. E no tempo de chuva, as vezes cai pau de árvore e derruba a rede. Na escola, por exemplo, o ar condicionado não foi instalado porque a rede não aguenta. Falta a trifase. A empresa que começou a obra da escola faliu, e demorou para que outra empresa terminasse. A escola ficou parada um tempo, mas ficou pronta. Já o posto de saúde está lá, quase acabado o prédio mas não tem equipamento. Estamos esperando os equipamentos para começar a funcionar.
[2] Escola Quilombola José Mariano Bento, no Território Quilombola Vão Grande.
A CASA
Ãhâ! Você vê que minha casa é meio preparada para a festa. Aqui o pessoal reúne para rezar, para festar, para encontrar e assuntar. Eu cresci vendo meu pai fazendo a festa pra São José porque ele adoeceu muito e minha avó prometeu para o santo que se ele curasse, faria festa pro santo. Ele melhorou. Ele se chamou José. E foi assim até ele morrer. E agora eu e meu irmão continuamos fazendo a devoção da reza. O que meu pai fazia, a gente continua fazendo até hoje, todo dia 18 pra 19 de março. Claro que é difícil fazer uma festa mas a comunidade toda ajuda, todo mundo traz um pouco de comida e se vier 500 pessoas, se vier mil pessoas todo mundo come. É simples mas cabe todo mundo que vem. E festa da consciência negra também.
As casa da cidade é tudo murada, e aqui é aberto, vendo a natureza, vendo as plantas, os matinho aí, os bambu, tudo verdinho… Como diz o ditado: aqui até onde não chove a mata é verde.
APRENDIZADOS
Ùhû. Filho aprende olhando os mais velhos. Nossos filhos também aprenderam comigo e com Rosenil [esposa]. Eles sabem roçar, pescar, respeitar. Eles também recebem bem todo mundo que chega aqui em casa. Porque quem conversa direito, respeita, pergunta do outro, manda recado, pergunta se está bem e como vai, será respeitado também. Nós nascemos e crescemos dormindo em rede. Todo mundo dormia em rede feita pela mão. Plantava o algodão, colhia, fiava, tecia até fazer a rede. Hoje tem uns bicos para pagar a conta de luz e a gasolina da moto, quem tem, pra comprar óleo, sal, açúcar, café, mas o grosso mesmo vem da roça, da pesca, da criação de galinha e porco. Antigamente a gente caçava, hoje não pode mais. Também porque não tem mais os bichos que tinha.
Eu tava falando: peixe tem pra todo mundo. Vai no Jauquara e pega seu peixinho pro almoço, e o que sobra, coloca no congelador e guarda pra outro dia. Aqui não se vende peixe, não pode. Mas também porque não se pega mais peixe grande. Antigamente tinha muito jaú de 70 quilos, hoje tem que bater duro para pegar um jaú de 15 quilos. A gente pescava com flecha, aprendemos. Antigamente não tinha tarrafa, rede; hoje vem gente de fora, escondido pra tarrafiar. E tem a diminuição das comidas naturais pros peixes, não dá tempo do peixe crescer muito.
QUILOMBO
Ãhâ! Nós somos uma região de quilombo. Nós moramos em comunidade. Noutro tempo nós morava aqui nesta casa, numa comparação [e risca no chão com o dedo]. Chegava um morador aqui e dizia: “vou roçar ali”, fincava uma casa e fazia morada. Aí vinha outro e mesma coisa. E assim ia juntando uma comunidade. Quando ia mudar daqui, pro lado de lá do Jauquara e fazer roça lá, ninguém impedia. Tudo trabalhava junto. Cada um tinha sua roça, mas era tudo emendado e nós roçava junto. Aqui era meu, aqui era seu, aqui de ciclano…. Se quisesse mudar, tudo bem. Cada um tinha seu rancho, punha as sementes e vivia. Com os tempo vai chegando os fazendeiros e aqueles cabeça fraca cai na conversa, vende um pedaço da terra. Os fazendeiros têm dinheiro, comprava o lote aqui mas colocava as divisa mais pra frente. Aqui é terra voluta. [3] E quem vai mexer com os fazendeiros? Depois vinha outro, e outro. E assim foi desmanchando. Nossa área era tudo isso que vocês estão vendo. Hoje nossos lotes são bem menores e os fazendeiros têm muita terra. E quando a gente descobriu, muita gente foi embora ou foi trabalhar para os fazendeiros. Mas teve muita gente nossa que resistiu. Teve muita briga. E depois veio o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e outros órgãos para demarcar as nossas terra. Meu pai e meus irmãos mais velhos, o pai da Lindalva, seu Francisco e outras pessoas mais velhas que moravam aqui. E as autoridades foram enxergando nossa história nesta terra. O que eu tenho, eu quero pros meus filhos e pros meus netos. Para eles conhecerem as belezas que a natureza criou. Hoje esses meninos tudo estão estudados na escola. Antigamente não tinha escola. Feliz mesmo daqueles que está estudando e trabalhando pra ficar aqui no nosso lugar. Tem os que fazem faculdade e vão arrumando emprego por aí, mas trabalham com a gente na nossa luta. Aqui era muita gente mesmo e na época todo mundo vivia braçal, não tinha esse negócio de empresa nem nada. Todo mundo vivia do seu braço, do seu suor, quem era nascido e criado aqui. Eu nunca trabalhei de carteira assinada. Hoje minha coluna já não aguenta muito o trabalho pesado. Meu negócio é minha roça e minha pesca. É do meu suor na lavoura. Mas hoje a tecnologia está demais, essa rapaziada quer vestir bem, quer aparecer bem, eles vão trabalhar na cidade, na firma, tem uma empresa. Lá eles casam e ficam. Alguns vão esquecendo daqui também. Mas eles voltam e eu gosto quando eles estão aqui. Infelizmente não tenho roça suficiente para manter eles todos aqui com suas famílias, mas bem que eu queria. E sempre que estão aqui a gente come uma mandioca, come um peixinho, pesca, banha no rio e anda por esses matos tudo aí.
[3] Devoluta.
SEMENTES
Você criava as galinhas soltas aí, nem vizinho… Hoje, se o meu porco vai na sua casa, você vai falar: o seu Antônio tem que fazer um chiqueiro porque o porco dele está bagunçando o meu terreno. Noutro tempo nós criava tudo junto. Os porco deles criava cá com o meu e os meu com os deles. Um dia que ia comer, a gente ia lá e pagava um, ou eles vinha aqui e pegava criação deles. Isso tem uns 40 anos atrás. Inda peguei esse tempo. Tinha uns 14 anos de idade.
Com o tempo você vai reparando mais nas coisas, observando melhor a natureza e escuitando mais o que os velhos falam. Por exemplo: as sementes antigas não tem mais. As sementes nascidas e criadas aqui no Vão, muita já acabou. Porque vem outras sementes. Nós tem a roça, nós planta e guarda a semente. Mas não é mais a semente antiga. Ela vai acabando porque vai aparecendo outras sementes. Meu pai falava: com o tempo vai aparecer outras sementes vindas não se sabe da onde, que vai abrangindo as sementes que nós planta. Porque rende melhor mas ocupa o lugar das sementes antigas.
Antes tinha mais da mandioca Aipim, Mucuna e Olho de Pomba. Hoje mais que tem é mandioca Três Mês e a Liberata. E a mandioca Cacau que apareceu agora. Mas igual a mandioca Aipim eu nunca encontrei; ela até desmancha na boca. A Mucuna é boa pra farinha. Banana Sarta Viaco eu nem conhecia. Papai e mamãe plantava banana Maranhão: hoje eu assunto as pessoas por aí, mas quase ninguém conhece. Hoje não existe mais. As frutas, as banana era muito doce, tinha até mel porque tinha muita Bojuí, abelha Borá, Europa. As banana até pretejava no pé. Daí começou os bananeiro, apareceu a Sarta Viaco e as nossas foram sumindo. Então eu vi essa mudança. Bem que meu pai falava: as nossa banana vai sumir tudo. E assim foi com a mandioca, com o feijão. Não tem mais banana Maranhão de jeito nenhum. É quase tudo Sarta Viaco. A banana maçã que tem nos mercado tudo por aí, nós tinha a Apertadinha. E tem também as doença que meu pai falava que faz sumir umas espécies também.
Antigamente o pessoal só comia gordura de porco. Hoje tem o óleo porque muita gente cria soja. E o pessoal compra porque tem as conveniência. Antes você andava por aí e só via mata, hoje vê braquiária e canavial, e soja e pasto. Antes era bananal, milharal, arroizal, mandiocal e o povo vivia disso. E dava pra produzir e vender um pouco na cidade e, com o dinheirinho, comprar sal, calçado, uma roupa ou pano pra fazer roupa. Depois dos fazendeiros, a gente pegava uma empreita de uma semana, um mês.
TEMPO
Vi muita coisa mudar aqui. Eu nasci no mato, hoje tem mais é pasto dos fazendeiros. Era só mato, capim nativo. Não tinha cerca, criação crescia tudo misturado, inclusive os pouco gadinho de cada compadre. Cerca protegia a lavoura porque os porco come tudo mesmo. Tinha muita fruta. Sem as frutífera os passarinho não vem. Ainda tem passarinho, mas antes era muita exuberância de planta, fruta, bicho, gente. A simplicidade continua. Meu pai não sabia assinar o nome, minha mãe também, mas me ensinaram tudo o que eu sei da vida.
Com os tempo, veio a proibição de cortar os matos, bom que veio essa lei… agora tem uma reserva, aqui mesmo atrás dessas serras é reserva e é bom que tenha reservinha pra ver se junta as matas, cresce as fruteiras e os passarinhos, os bichos vai juntandinho ali, devagar… senão os córregos vai secando. Essas reserva agora segura as cabeceiras dos córregos. Muitos córregos e lagoas que tinha nesta região, eu cresci vendo água nesses córgo, nas lagoa. Hoje, onde tem terra mecanizada, já cortou os córrego. Hoje eles estão secos, antigamente era uma água bonita, córrego forte. Nós tinha o Córgo do Mato aqui que corria água bonita. Nesta época de julho era tanta água que pra conversar ali perto era só falando gritado. É as árvore grande que segura os capão de mato. Ele joga água no Jauquara, mas agora é uma aguinha assim: té té té. Mesmo assim estão querendo colocar uma barragem aqui no Jauquara. E daí? como vamos viver?
PCH [4]
Quero nem pensar nisso. E nós estamos lutando para isso não acontecer. Pensar nisso até me faz mal, dá uma gastura aqui dentro assim. Porque esse lugar é a nossa vida, é a vida dessas comunidades tudo aí. A vida toda vem da água, e a água mais importante pra nós, a fonte de água mais importante pra nós é o Jauquara. E quando essa barragem estourar vai matar todo mundo. E a natureza está equilibrada, então diminuir a água significa matar as florestas, diminuir toda a vida dos bichos, dos peixes. E se não estourar enquanto for nova, vai descer um fiozinho de água. Esse vão de serra é onde essa água se mexe, aqui alaga, inunda, e esse equilíbrio que está na mão de Deus, na natureza que é essa beleza toda, não pode ficar na ponta dos dedos dos homens que cuidam do computador da PCH. Não tem empresa que segura o Jauquara, só Deus mesmo. Porque é isso, todo o equilíbrio da natureza a partir das águas do Jauquara aqui no Vão Grande ou no Vãozinho. [5]
[4] Abreviatura de “pequena central hidrelétrica”.
[5] Comunidade a jusante.
Vai secar a vida quando secar a água do Jauquara. A veia da vida de nós é a veia da água do Jauquara. Se mexer no rio vai acabar com a nossa vida. Vou repetir: A veia da água, da vida do pessoal é o Jauquara. Da cabeceira até a barra dele, toda a vida aqui depende dele. E onde não tem a água, não tem a vida.
Com o tempo a gente não aguenta mais trabalhar mesmo. Hoje, se você trabalha numa firma, você não é clandestino, tudo é fichado. Tudo é mandado pela mão do dono. Eu nunca gostei de trabalhar na mão de ninguém, não. Eu trabalho sob a minha mão e a mão de Deus. Não quero sair daqui. Quero ficar aqui no meu cantinho, cultivando da minha roça e cuidando da minha reserva. Pegando uns peixinho no Jauquara e comendo com mandioca. Quero o meu sossego. Quero ouvir esse barulho da água do rio correndo, o canto do sabiá. Passo o dia inteiro aqui escuitando essa passagem, ó! Olha como é bonito o barulho da água. Mesmo quando a pescaria não dá nada, nós está feliz sentindo o cheiro da água, a “sumarana” da água e nessa conversa aqui. No dia que nós quer trabalhar na roça, trabalha; no dia de pescar, pesca; e todo dia tem comida e nunca falta comida. Nunca passamos fome.
Meu pai falava que era pra cuidar da natureza. Pra cuidar dos mais novos. E nós estamos fazendo isso. Por isso não queremos barragem aqui nem nada. Queremos nosso sossego pra viver a vida aqui nesse cantinho. Pra manter a nossa vida tocando a lavourinha de cada um. Porque aqui tem água boa, um peixinho pra comer e pronto. Queremos a liberdade e a tranquilidade aqui deste lugar. Eu me sinto livre aqui.
O que é, afinal, a transformação no ativismo?
Ana Biglione
“A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível. Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está por vir. E o inimaginável nos é devido.”
Paul B. Preciado [1]
É um dia frio e nublado em São Paulo, em meio à fatídica semana cinza que nos faz ainda mais ativistas pela Amazônia. Abro meu computador para ler os textos que inspirarão a escrita deste texto. Logo no primeiro parágrafo, Cláudia afirma: “O ativismo visa a transformação, mas é fácil perdermos isso de vista. A reflexão nos ajuda a lembrar por que estamos aqui.”
1 Citação na contracapa da publicação de Carla Ferro. É necessário, o impossível. Carla Ferro Livros, 2017.
Minha alma acorda. Sim, a transformação que tanto desejamos enquanto ativistas pode ser óbvia, mas ela nos escapa recorrentemente. Talvez estar ciente disso seja o mais importante trabalho (e desafio) do ativista. Reconheço – em mim e em muitos ativistas – um padrão do qual não é simples fugir. Alguma questão ou situação nos sensibiliza e passamos a nos engajar, a atuar para transformar isso que nos sensibilizou. E aí entramos tão fundo, que nossa atuação se torna uma luta. E então a ação de lutar fica tão grande que nos perdemos em uma miríade de ações estruturantes da luta, sendo que em certos momentos talvez nem fosse essa a necessidade. A luta ocupa nosso ativismo. Acabamos por ofuscar nossa clareza sobre a tão desejada transformação.
Aprendi a reconhecer, com Allan Kaplan e Sue Davidoff (também ativistas, sul africanos) que todos nós, ativistas, andamos sobre esse terreno contraditório e estamos sob a máxima do que a Gestalt nomeia como teoria da mudança paradoxal, onde quanto mais tentamos mudar um comportamento, mais ele permanece o mesmo. “No ativismo, a estridência, a convicção de se estar certo, acompanhada pela determinação de mudar o que está errado são tão comuns, que a determinação, ao ficar estridente, pode passar a mimetizar as mesmas forças que estávamos querendo mudar” [2]. Como então podemos nos aventurar a transformar algo?
2 Allan Kaplan e Sue Davidoff. O ativismo delicado. The Proteus Initiative. 2014, p 4.
Na medida em que vou lendo os textos e ouvindo as diferentes vozes ativistas, vou me dando conta de máximas dessa transformação que tanto desejamos. “Não vai passar. Não é uma transformação que tem final. Nunca nos transformamos o suficiente. Se a transformação fosse uma máxima, talvez seria ‘continuar se transformando’. Não é um projeto de reforma de uma casa, que tem começo, meio e fim. É um movimento contínuo, pois estamos lidando com seres humanos, que são seres cuja dimensão exata não conseguimos compreender”, é o que diz Keila. “Transformação é estar sempre se questionando”, afirma Marcelo.
Aventurar-se a transformar algo está intimamente ligado a essas qualidades e a esse caráter continuamente reflexivo e questionador do ativismo – um desassossego interessado. É a partir dele, na sua relação com o mundo, que as pessoas se tornam ativistas, mas vai muito além disso: é a capacidade contínua e infindável de reflexão e questionamento – do mundo e de nós mesmos, das nossas próprias ações – que faz com que prestemos atenção ao que está de fato acontecendo, ajudando a nos despertar de padrões (como o da luta), a compreender melhor as situações complexas com que lidamos, e a nos movermos para direções e ações (ou não ações) que sejam repletas de sentido, despertando a transformação.
Nesse sentido, um ativista não descansa de desconfiar da sua ação e de mudá-la, não se deixa entregar à presunção de que ele tem as respostas certas para aquela determinada situação; é, sim, um ser ativamente atento ao que acontece no mundo, um constante perguntador, um inconformado, que busca compreender com profundidade o que está acontecendo, que precisa dialogar e se encontrar com os demais – incluindo os diferentes – pra ver mais e além. Ou seja, mais do que nas respostas ou ações em si, é na incessante busca por ações e respostas que o ativista zela para que uma real transformação vá acontecendo. A transformação não é algo estanque; ela se dá no constante movimento de busca por si mesma.
Ao mesmo tempo, falar da essência da transformação no ativismo é também reconhecer uma inevitável mudança de paradigma – algo profundo e duradouro, que acontece no hoje e que reverbera no amanhã. Estamos todos embrenhados em um mundo cujo paradigma atual seja, talvez, nosso maior desafio de transformação. Temos que lidar com um mundo burocrático, hierárquico, utilitarista e, nesse lidar, corremos o risco de nos tornarmos como ele: ativistas burocratas ou gestores de problemas, cooptados pela lógica instrumentalista de transformar o mundo a partir de fora dele, fortalecendo um paradigma gerencial que provê serviços de transformação social como uma commodity. Será isso transformação?
Me parece que reconhecer que o jeito como escolhemos agir e o tipo de ativismo que praticamos é tão significativo quanto a causa em que atuamos. A cada vez que nos perdemos disso, somos cooptados por um fazer desconectado de sentido, que não instiga a busca, nem abre passagem para o movimento de mudança, mas mantém o status quo e deixa de transformar.
Por fim, todos temos a vivência de que a transformação que desejamos é tanto impossível, quanto extremamente simples. Atuamos em sua complexidade e a reconhecemos na sua simplicidade. Fábio sabe que ainda que leis, projetos e sistemas sejam necessários, o que muda a vida das pessoas é a teia de cuidado informal, que vive nas relações. Teca sabe que o imediatismo por soluções não se sustenta. Tio Antônio sabe que sem as árvores frutíferas os passarinhos simplesmente não vêm. A transformação no ativismo é enorme, depende de uma multiplicidade de fatores (internos e externos) e, ainda assim, acontece no um a um, a cada pequeno passo. E esse parece ser mais um dos seus paradoxos, mais uma das bases moventes pelas quais os ativistas caminham.
Aliás, a mais árdua verdade carregada pelo ativismo é essa: a transformação que sonhamos enquanto ativistas é um grande mistério para todos nós. Se a gente soubesse exatamente como ela acontece, quais os caminhos, como ela nos afeta e qual sua cara – ela não seria transformação. Voltamos à ideia de que é justamente a busca, ativa, atenta e cuidada, por possibilidades que passam por direitos, por diálogos, por lutas, por desconstruções, por reflexões, por mobilizações e desmobilizações, pelas mais diversas ações, que vão nos mostrando, nos revelando, a partir do jeito como são vividas, a sua feição, sua forma e também aquilo que ela não é, ou não deveria ser. A busca de hoje vai transformando o amanhã, quase que ao revés. É como se o ativismo fosse uma janela para que a transformação possa ir acontecendo, para que um futuro mais coletivo e saudável a todos possa ir adentrando a nossa realidade atual e conformando-a nessa direção – que tem um rumo, mas não tem uma única resposta certa, que é de cada um, de cada causa e de todos, e que, quando atentos, vamos juntos humildemente descobrindo qual vai sendo. E seguindo.

TÁTICA / Ação individual (ou quase)
No ativismo, há espaço para o ato individual disruptivo, carregado de força simbólica e capaz de inspirar, geração após geração. A seguir, três casos ilustrativos do poder da intervenção de uma única pessoa (ou duas) contra o Estado, as instituições planetárias, o poder e as máquinas de guerra.
XINGU VIVE
É dezembro de 2011. A então estudante Ana Gabriela Person está numa solenidade no Palácio do Planalto para receber o Prêmio Jovem Cientista das mãos da presidenta Dilma Roussef. Tudo aconteceria conforme o manjado script das cerimônias de premiação: entrega do troféu, discurso, foto com a “autoridade”. Porém, Ana Gabriela traz o rosto pintado com um grafismo indígena e a expressão “Xingu Vive” escrita no braço. A presidenta é obrigada a fazer a foto e o protesto contra a construção da Usina de Belo Monte se materializa.

A ação foi noticiada na imprensa (a imagem do protesto foi produzida por um repórter fotográfico do jornal O Estado de São Paulo) e espalhada pelas mídias sociais. Foi uma intervenção simples de poucos elementos: uma palavra-de-ordem, um pintura corporal, presença física e o momento preciso, numa típica foto-oportunidade (a tática consiste em realizar uma ação para produzir uma imagem que sintetize a mensagem política e seja distribuída pelas mídias). Naquele instante, o protesto de Ana Gabriela transformou-se num ícone do movimento pelo Xingu e contra Belo Monte.
O fato de ser “individual”, assim, não retira desse tipo de ato seu vínculo com a ação coletiva. Neste caso, a relação com um movimento mais amplo é direta. A intervenção deixa de ser “solitária” e “isolada” na medida em que se conecta a processos de luta e mobilização pré-existentes e na medida em que a repercussão do ato retroalimenta esses processos. Mesmo que hipoteticamente a pessoa que faz a ação não seja uma “militante” do movimento, não deixa, de alguma forma, de pertencer a ele. Uma noção mais alargada e extensiva de pertencimento a um coletivo pode emergir daí.
Como complemento, a conversa que a estudante teve com a presidenta também foi objeto de comentários nas mídias sociais. Gabriela pediu a Dilma que o governo desistisse de Belo Monte e salvasse o Xingu. “Ah, tá!”, respondeu a presidenta. A hashtag #ahtaatingiu os trendingtopicsno Twitter e se transformou na chave irônica do repúdio coletivo ao projeto crescimentista do governo.
Reside na ironia, aliás, boa parte da força da ação. Na foto que se tornou icônica, a jovem segura o troféu ao lado de uma Rousseff sorridente, que lhe abraça, as mãos tocando o mesmo braço que leva a mensagem “Xingu Vive”. A presidenta parece ora alheia, ora cínica em relação à palavra de ordem. E vê-se forçadamente a ser garota-propaganda de uma causa que implica diretamente seu governo.
PANTERAS NAS OLIMPÍADAS
Jogos Olímpicos do México, 1968. No segundo dia de competições, dois atletas negros norte-americanos (e um australiano, branco) sobem ao pódio depois de vencer as finais do atletismo nos 200 metros rasos. No momento de entrega das medalhas, quando o hino dos Estados Unidos começou a tocar, Tommie Smith (ouro) e John Carlos (bronze) ergueram um punho fechado com luvas pretas, as cabeças ligeiramente abaixadas, num gesto conhecido do grupo radical negro norte-americano Panteras Negras, em protesto contra a pobreza e a discriminação da população negra. O australiano não ergueu o braço, mas apoiou a intervenção. O Comitê Olímpico Internacional condenou o ato e os atletas viveram perseguição e ostracismo nos anos seguintes.

A iniciativa teve relação direta com a luta antirracista nos EUA, e não pode ser caracterizada exatamente como espontânea. Naquele ano, os atletas negros consideraram fazer o boicote dos Jogos (a pressão culminou com a exclusão da Rodésia, hoje Zimbábue, e da África do Sul). Também havia sido criado o Olympic Project for HumanRights(Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos – OPRH) para combater o racismo. A ação estava prevista para o caso de os atletas vencerem suas provas. Deu certo, ultrapassando todas as expectativas. O protesto tornou-se, sem dúvida, a imagem mais famosa das Olimpíadas daquele ano e um dos ícones do ativismo negro dos anos 60.
COMO PARAR TANQUES DE GUERRA
Um ato individual ganha mais relevância quando lido à luz do contexto político no qual ele ocorre e do qual ele é sempre uma manifestação singular. É assim que se pode compreender o extraordinário ato solitário do homem que bloqueia uma coluna de tanques militares na Praça da Paz Celestial, no centro de Pequim, na China, em 5 de junho de 1989. Sozinho, com duas sacolas de compras nas mãos, o homem impede o avanço das máquinas de guerra um dia depois de ocorrer, naquele mesmo local, um banho de sangue perpetrado pelas forças do governo. Os protestos estudantis, iniciados devido à morte de um líder reformista, levaram uma multidão à região central de Pequim naqueles dias. A reação do governo chinês, depois de um período de impasse, foi avassaladora: tiros e bombas disparados contra a multidão, blindados passando por cima das pessoas, manifestantes detidos e executados nos dias seguintes, em número até hoje não esclarecido. Estima-se que até 10 mil pessoas tenham sido assassinadas naquela ocasião.

O ato foi fotografado e filmado e correu o mundo como uma das imagens mais impactantes do século XX. Apesar de existirem diversas versões da história, até hoje não se sabe a identidade do autor do bloqueio, que é chamado de Rebelde Desconhecido ou de TankMan (O homem dos tanques). O governo chinês nunca forneceu informações sobre o caso. Até pelo menos 2016, ainda havia pessoas encarceradas na China por causa daqueles protestos.
QUEM COLABORA NESTA EDIÇÃO
Ana Biglione é formada em administração pela FGV-SP. Trabalha com a prática social reflexiva, uma abordagem inspirada no pensamento de Goethe. Atua com transformação social, desenvolvimento de pessoas e organizações pela Noetá, iniciativa da qual é fundadora.
Ana Lígia Leite e Aguiar é professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia. Trabalha com Crítica Biográfica, Literatura Comparada, Estudos sobre a Nação e Estudos da Imagem. Suas pesquisas se voltam ao estudo das teorias e artes anticoloniais nos Trópicos.
Cássio Martinho atua como consultor de ONGs e movimentos sociais em trabalho em rede e mobilização social. Integra a Escola de Ativismo.
Claudia Visoni, paulistana, é jornalista, permacultora e agricultora urbana há 11 anos, e ambientalista desde sempre. Atualmente está como co-deputada estadual no mandato coletivo da Bancada Ativista.
Fábio Paes é graduado em Teologia e Filosofia. Trabalhou por 12 anos como assessor nacional de Advocacy na organização Aldeias Infantis SOS Brasil. Atuou como conselheiro do Conanda por quatro anos e como seu presidente no ano de 2016.
immanens é pedagogo, atuando na encruzilhada entre educação, cultura e assistência social. Vem pesquisando a diferença e a formação de educadores em várias formas de realizar educação. Integra a Escola de Ativismo.
Jean Tible é militante e professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo. Autor de “Marx selvagem” e do “Cordel Marx indígena, preto, feminista, operário, camponês, cigano, palestino, trans”. É também co-organizador de “Junho: potência das ruas e das redes”, “Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil” e “Negri no Trópico”.
João Marcelo Trindade é tecnólogo em redes de computadores. Ligado a causas sociais (Coletividade é tudo). Fundador do Muribeca é Logo Ali e Somos Todos Muribeca. Um nerd assumido. Leitor de quadrinhos. Jogador de RPG (Vampiro a Idade das Trevas e D&D). Amante de Magic the Gathering e Pokemon TCG. Jogos de Tabuleiro, Computador e PS4.
Keila Simpson é travesti e ativista do movimento organizado LGBT desde 91. É Presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e também secretária da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Pessoas Intersexuais (ABGLT). Foi a primeira travesti a receber o prêmio Direitos Humanos 2013 da Presidência da República na sua 19ª edição.
Laurinda Gouveia é ativista angolana e participou no movimento de luta contra a ditadura de José Eduardo dos Santos. Luta pelos direitos de mulheres em situação de vulnerabilidade por meio da plataforma Ondjango Feminista.
Luciana Ferreira é educadora popular, doutoranda em educação. Curiosa com os temas água, terra e território, agroecologia, educação popular e processos de subjetivação. Integra a Escola de Ativismo.
Luciano da Silva é assentado da reforma agrária, agricultor agroecológico e técnico agrícola ligado ao Movimento dos trabalhadores, assentados e quilombolas – CETA.
Luiz Cláudio (Lula) de Melo é pai de Tainá e Iago, preza por uma sociedade justa e inclusiva e tem como base os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). É fundador do Somos Todos Muribeca. Gosta de leitura, vídeo games, board games e RPG.
Marcelo Marquesini é ativista por direitos, engenheiro florestal, mestre em ecologia e manejo de florestas tropicais, integra a Escola de Ativismo, eterno aprendiz.
Mikael Peric é bacharel em Ciências Biológicas e Mestre em Ciências pela USP. Focou sua pesquisa na Evolução Humana e nos Sistemas Complexos. Trabalha com ativismo há 10 anos, estudando e praticando a não-violência. Nas horas vagas, programa e estuda análise de dados. Integra a Escola de Ativismo.
Paola Amaris é colombiana e educadora matemática.
Sofía Marcía é nascida em Honduras, mas é nômade e tem seu coração na América Latina. É coordenadora de pesquisa na organização política feminista Luchemos, mas seu principal projeto político é sua filha Camila. Contra hegemônica, acompanha as lutas antirracistas e anticapitalistas e crê no poder das pessoas que lutam.
Suennya Seixas é uma mulher lésbica de 26 anos, gravurista e moradora de Maranguape, bairro na periferia de Olinda. Integra o coletivo Gravos e estuda artes visuais no Instituto Federal campus Olinda.
Teca (Maria Tereza Viana de Freitas Corujo) é ambientalista. Atua nos movimentos SOS Serra da Piedade, Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela e Movimento pelas Serras e Águas de Minas (Movsam).
Tio Antonio é Antonio de Souza Bento. Tem seis filhos e cinco netos. Reside na comunidade Baixio, no Território Quilombola Vão Grande, em Barra do Bugres/MT. Pescador, lavrador, mateiro e festeiro. Membro do comitê popular do Rio Jauquara. Devoto de São José para quem realiza tradicional festa, todos os anos, no dia 19 de Março.
Yadira Ansoar é cubana, cientista e fotógrafa.
Não somos mais os mesmos
Fábio Paes conta como a pandemia provocou o SEFRAS – Serviço Franciscano de Solidariedade a ampliar a escala e, principalmente, o espírito de movimento das suas ações
Caráter massivo
Ao invés de interromper suas ações após o anúncio da pandemia do novo coronavírus, o SEFRAS – Serviço Franciscano de Solidariedade decidiu ampliá-las. Criamos um plano imediato de enfrentamento junto a grupos invisíveis: crianças, adolescentes e famílias de periferias, ocupações e aldeias indígenas, comunidades imigrantes, pessoas em situação de rua e idosos sozinhos. Concedemos quarentena aos funcionários pertencentes a grupos de risco, mantivemos os demais mobilizados, criamos uma frente de voluntários e demos início às etapas do plano.
Começamos as ações com a seguinte pergunta norteadora: em um país com dramáticas estatísticas de miséria e violações de direitos, a quarentena é para quem? é um direito ou um privilégio? A partir dessa questão, vislumbramos duas atuações prioritárias: o enfrentamento da fome; e a construção de uma economia alternativa, na qual as pessoas possam produzir, consumir e redistribuir a partir da sua própria força comunitária. E, como a demanda das populações invisíveis não para de crescer nesse momento, percebemos que a metodologia do nosso trabalho não poderia mais ser baseada em um projeto de organização, nem contar com serviços oferecidos pelo poder público: teria que ser de caráter massivo, uma espécie de “estratégia de guerra”.
Ações
Na cidade de São Paulo, os franciscanos começaram a transformar os espaços de seus próprios conventos em cozinhas sociais, contando com a participação de cozinheiros voluntários. Recebemos um contêiner refrigerado de 40 pés (ou 12 metros) de comprimento para armazenar doações refrigeradas e podermos apoiar as cozinhas. A partir da mobilização de empresários, conseguimos uma tenda de 200 metros quadrados para servir 3.000 refeições diárias, que se somam às 1.500 refeições servidas nos outros pontos de entrega. Organizamos sete pontos de recebimento de doações, triagem e distribuição de alimentos. Além disso, temos entregado cestas básicas e kits de higiene a mais de 5.000 famílias em 57 comunidades, em parte graças à articulação com coletivos comunitários e movimentos sociais como a Uneafro e o Projeto de Meninos e Meninas de Rua.
O Núcleo de Convivência de Pessoas em Situação de Rua da Rua Riachuelo, que antes oferecia alimentação, banho e acompanhamento psicossocial a 800 pessoas diariamente, teve sua capacidade expandida para receber mais 500 a 600 pessoas por dia. Em parceria com a Prefeitura de São Paulo, foram abertos mais dois espaços: um, próximo do bairro da Liberdade, para atender mais 250 pessoas em situação de rua; e outro para oferecer condições de quarentena a até 50 imigrantes, complementando o acolhimento já oferecido a mais de 100 deles no Projeto Casa de Assis.
Também estamos nas periferias do Rio de Janeiro, onde realizamos distribuição de alimentos e acompanhamento das famílias. Em breve, abriremos uma tenda humanitária no centro da capital fluminense. Ela servirá para distribuição de marmitas e acompanhamento da população de rua em parceria com iniciativas locais.
Por fim, recentemente lançamos a campanha #AçãoFranciscana para arrecadar doações, mobilizar voluntários, incidir politicamente e divulgar dados sobre as populações invisíveis.
Grupos de trabalho
O SEFRAS criou um Comitê de Emergência organizado em seis grupos de trabalho. O primeiro deles está dedicado exclusivamente à questão do voluntariado. O segundo está voltado para a questão da informação e da prevenção frente ao coronavírus, com foco nos voluntários, participantes e trabalhadores. Tem um caráter de comunicação e também de alinhamento técnico relativo ao número de pessoas estão com coronavírus e à importância de materiais de prevenção. O terceiro GT cuida das doações de alimentos. O quarto está focado na mobilização e incidência política, buscando conscientizar e mobilizar a sociedade e pressionar o Estado a responder às necessidades dos grupos invisíveis. O quinto é um grupo de gestão que cuida dos aspectos organizacionais, financeiros e administrativos dos nossos processos de enfrentamento à crise. Por fim, o sexto GT, também chamado de Casa Franciscana, é responsável pela metodologia e acompanhamento de todos os projetos e ações.
Incidência política
Como parte do trabalho do quarto GT, criamos uma carta aberta ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de São Paulo exigindo a descentralização do orçamento da criança, para que fundos sejam destinados a projetos ligados àquelas que estão em situação de rua.
Também criamos um pacto pela saúde da população de rua, que reúne medidas públicas para enfrentar a pandemia. Esse pacto resultou no compromisso da Secretaria de Saúde de criar uma tenda de atendimento para vacina da influenza A e acompanhamento direto de casos. E, principalmente, ele levou a uma definição do fluxo, inédito, entre as políticas de assistência e saúde neste momento de crise.
O SEFRAS, inclusive, conta com um protocolo institucional próprio caso haja algum caso de Covid-19 em nossos espaços e ações, definido em conjunto com a Prefeitura de São Paulo. Ele permite o encaminhamento direto das pessoas doentes para a rede municipal e prevê ações de monitoramento diário de enfermeiros e técnicos da saúde para acompanhar voluntários, trabalhadores e participantes.
De ONG a movimento
O desafio do contexto é impressionante. Temos que ter muita inteligência e rapidez nas respostas. De maneira impactante, os franciscanos do SEFRAS estão saindo da postura de ONG e passando a atuar como uma organização humanitária, de voluntariado, ativismo, mobilização e ação direta. Reorganizamos os espaços: ao invés de apenas ter um espaço próprio, passamos a ocupar espaços públicos para atender a demanda da população. É o caso da Tenda com a qual ocupamos o Largo São Francisco, no centro de São Paulo.
A imprensa tem dado visibilidade ao grande trabalho realizado pelos frades e freiras que, de hábito, distribuem refeições na cidade. Contudo, com eles há uma multidão de pessoas compondo essa rede franciscana de vários rostos e idades. Nosso escritório, por exemplo, se transformou em um espaço de campanha, onde voluntários trabalham e fazem rodízio com profissionais de campo na comunicação, publicidade, organização de doações e até gestão de processos. Na ponta, estamos com mais de 230 voluntários nas ações diretas e 210 trabalhadores. Se contabilizarmos quem nos apoia em casa, nas mais variadas funções (da fabricação de máscaras ao fortalecimento da comunicação), já ultrapassamos 500 pessoas mobilizadas.
O SEFRAS não é mais o mesmo: foi instaurada em nós uma estrutura de movimento, de caráter humanitário. Nós nos transformamos em uma grande corrente feita por homens, mulheres e muita juventude.
O SEFRAS – Serviço Franciscano de Solidariedade é uma organização social sem fins lucrativos, iniciativa de frades franciscanos com o objetivo de mobilizar pessoas e instituições para a promoção e defesa de direitos humanos e ambientais no Brasil. Realiza ações diretas junto a populações mais vulneráveis, desenvolvimento de competências de pessoas e grupos e advocacy.
Fábio Paes é filósofo, ativista de direitos humanos e atual responsável pelo desenvolvimento institucional do SEFRAS .
SAIBA MAIS
SEFRAS e campanha #AçãoFransciscana: http://www.sefras.org.br/novo/ e https://www.facebook.com/sefras.org/
Canal do SEFRAS no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCdt8OiCb6uyLYuPvYWUi43Q
Como ajudar: https://franciscanos.org.br/noticias/sefras-veja-como-fazer-doacoes-para-ajudar-populacao-em-situacao-de-rua.html
Carta Aberta ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo (CMDCA): http://www.sefras.org.br/novo/carta-aberta-ao-cmdca-de-sao-paulo/
Projeto Meninos e Meninas de Rua: http://www.sefras.org.br/novo/servicos/#saopaulo
UNEAFRO: https://uneafrobrasil.org/