No ativismo, há espaço para o ato individual disruptivo, carregado de força simbólica e capaz de inspirar, geração após geração. A seguir, três casos ilustrativos do poder da intervenção de uma única pessoa (ou duas) contra o Estado, as instituições planetárias, o poder e as máquinas de guerra.

XINGU VIVE

É dezembro de 2011. A então estudante Ana Gabriela Person está numa solenidade no Palácio do Planalto para receber o Prêmio Jovem Cientista das mãos da presidenta Dilma Roussef. Tudo aconteceria conforme o manjado script das cerimônias de premiação: entrega do troféu, discurso, foto com a “autoridade”. Porém, Ana Gabriela traz o rosto pintado com um grafismo indígena e a expressão “Xingu Vive” escrita no braço. A presidenta é obrigada a fazer a foto e o protesto contra a construção da Usina de Belo Monte se materializa.

A ação foi noticiada na imprensa (a imagem do protesto foi produzida por um repórter fotográfico do jornal O Estado de São Paulo) e espalhada pelas mídias sociais. Foi uma intervenção simples de poucos elementos: uma palavra-de-ordem, um pintura corporal, presença física e o momento preciso, numa típica foto-oportunidade (a tática consiste em realizar uma ação para produzir uma imagem que sintetize a mensagem política e seja distribuída pelas mídias). Naquele instante, o protesto de Ana Gabriela transformou-se num ícone do movimento pelo Xingu e contra Belo Monte.

O fato de ser “individual”, assim, não retira desse tipo de ato seu vínculo com a ação coletiva. Neste caso, a relação com um movimento mais amplo é direta. A intervenção deixa de ser “solitária” e “isolada” na medida em que se conecta a processos de luta e mobilização pré-existentes e na medida em que a repercussão do ato retroalimenta esses processos. Mesmo que hipoteticamente a pessoa que faz a ação não seja uma “militante” do movimento, não deixa, de alguma forma, de pertencer a ele. Uma noção mais alargada e extensiva de pertencimento a um coletivo pode emergir daí.

Como complemento, a conversa que a estudante teve com a presidenta também foi objeto de comentários nas mídias sociais. Gabriela pediu a Dilma que o governo desistisse de Belo Monte e salvasse o Xingu. “Ah, tá!”, respondeu a presidenta. A hashtag #ahtaatingiu os trendingtopicsno Twitter e se transformou na chave irônica do repúdio coletivo ao projeto crescimentista do governo.

Reside na ironia, aliás, boa parte da força da ação. Na foto que se tornou icônica, a jovem segura o troféu ao lado de uma Rousseff sorridente, que lhe abraça, as mãos tocando o mesmo braço que leva a mensagem “Xingu Vive”. A presidenta parece ora alheia, ora cínica em relação à palavra de ordem. E vê-se forçadamente a ser garota-propaganda de uma causa que implica diretamente seu governo.

PANTERAS NAS OLIMPÍADAS

Jogos Olímpicos do México, 1968. No segundo dia de competições, dois atletas negros norte-americanos (e um australiano, branco) sobem ao pódio depois de vencer as finais do atletismo nos 200 metros rasos. No momento de entrega das medalhas, quando o hino dos Estados Unidos começou a tocar, Tommie Smith (ouro) e John Carlos (bronze) ergueram um punho fechado com luvas pretas, as cabeças ligeiramente abaixadas, num gesto conhecido do grupo radical negro norte-americano Panteras Negras, em protesto contra a pobreza e a discriminação da população negra. O australiano não ergueu o braço, mas apoiou a intervenção. O Comitê Olímpico Internacional condenou o ato e os atletas viveram perseguição e ostracismo nos anos seguintes.

A iniciativa teve relação direta com a luta antirracista nos EUA, e não pode ser caracterizada exatamente como espontânea. Naquele ano, os atletas negros consideraram fazer o boicote dos Jogos (a pressão culminou com a exclusão da Rodésia, hoje Zimbábue, e da África do Sul). Também havia sido criado o Olympic Project for HumanRights(Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos – OPRH) para combater o racismo. A ação estava prevista para o caso de os atletas vencerem suas provas. Deu certo, ultrapassando todas as expectativas. O protesto tornou-se, sem dúvida, a imagem mais famosa das Olimpíadas daquele ano e um dos ícones do ativismo negro dos anos 60. 

COMO PARAR TANQUES DE GUERRA

Um ato individual ganha mais relevância quando lido à luz do contexto político no qual ele ocorre e do qual ele é sempre uma manifestação singular. É assim que se pode compreender o extraordinário ato solitário do homem que bloqueia uma coluna de tanques militares na Praça da Paz Celestial, no centro de Pequim, na China, em 5 de junho de 1989. Sozinho, com duas sacolas de compras nas mãos, o homem impede o avanço das máquinas de guerra um dia depois de ocorrer, naquele mesmo local, um banho de sangue perpetrado pelas forças do governo. Os protestos estudantis, iniciados devido à morte de um líder reformista, levaram uma multidão à região central de Pequim naqueles dias. A reação do governo chinês, depois de um período de impasse, foi avassaladora: tiros e bombas disparados contra a multidão, blindados passando por cima das pessoas, manifestantes detidos e executados nos dias seguintes, em número até hoje não esclarecido. Estima-se que até 10 mil pessoas tenham sido assassinadas naquela ocasião.

O ato foi fotografado e filmado e correu o mundo como uma das imagens mais impactantes do século XX. Apesar de existirem diversas versões da história, até hoje não se sabe a identidade do autor do bloqueio, que é chamado de Rebelde Desconhecido ou de TankMan (O homem dos tanques). O governo chinês nunca forneceu informações sobre o caso. Até pelo menos 2016, ainda havia pessoas encarceradas na China por causa daqueles protestos. 

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