Travesti e ativista

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: transformaação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

TRÍADE 

Eu represento um movimento [de pessoas trans e travestis] que está em constante conflito com a sociedade – e não porque faz conflito, mas porque a sociedade traz o conflito para dentro desta comunidade. Precisamos sempre entender que a sociedade lá fora é conservadora e muito violenta. E isso tem um motivo. Por que observamos essas violências chegando de forma tão forte, em particular para a população trans? Porque essa população resolveu não só se transformar, como também ousar. Já é uma ousadia para a sociedade que uma população considerada abjeta na sociedade queira ter voz. Pois elas tiveram voz. E é considerado mais absurdo ainda que ela queira ter vez. E aí essas pessoas tiveram, sim, vez. E, para uma sociedade violenta e discriminatória, é uma ousadia ainda maior que elas cheguem a lugares de poder. E elas chegaram. Obviamente que ainda não alcançamos a potência de que necessitamos, mas nosso percurso por essa tríade – romper um lugar de exclusão, conseguir sobreviver e se resguardar e continuar fazendo a transformação da sociedade – é algo muito difícil de digerir para quem tem a população trans como abjeta.

SEMENTE 

Estamos fazendo uma importante transformação na sociedade. Estamos preparando uma sociedade brasileira não para nós que estamos aqui, mas para a geração que virá depois de nós. Quando sairmos deste plano, as pessoas que virão depois da gente irão experienciar a transformação que conseguimos fazer neste país. Até o início dos anos 1990, aqui em Salvador, onde moro, uma travesti que saísse à rua com vestido ou saia era presa somente por estar vestida assim. Hoje, essas pessoas não só podem sair da forma como quiserem, mas também ter o nome e o gênero que quiserem. É óbvio que isso é um grãozinho de areia em meio à transformação que precisamos fazer, mas são avanços que vão continuar. Conseguimos plantar uma semente, contaminar uma sociedade com direitos que foram negados desde sempre. As pessoas que agarraram esse direito, com a gana que tinham, depois de nunca ter tido nada, disseram: “Não vamos voltar atrás. Vamos ter empecilhos, nossa vida vai continuar na berlinda, nossa vida ainda vai ser muito difícil, mas a gente não vai retroceder”. Acho que essa transformção contínua é o que a população trans está reivindicando e é o que ela vai fazer da sua vida o tempo todo.

ÂMAGO DA SOCIEDADE 

Não vai passar. Não é uma transformação que tem final. Nunca nos transformamos o suficiente. Se a transformação fosse uma máxima, talvez seria “continuar se transformando”. Não é um projeto de reforma de uma casa, que tem começo, meio e fim. É um movimento contínuo, pois estamos lidando com seres humanos, que são seres cuja dimensão exata não conseguimos compreender. E, cada vez que as pessoas não conseguirem compreender a dimensão humana que as pessoas trans têm, estaremos preparadas para transformar aquela mentalidade, para que a sociedade possa entender que é plural e diversa.

É muito maior que lutar por direitos. Se os direitos, por si só, bastassem… Temos diversas leis no Brasil que resguardam pessoas, órgãos, e nem sempre são respeitadas. O direito garante algumas conquistas, mas a verdadeira transformação só será feita quando a humanidade entender que ela é responsável por essa transformação. É muito mais profundo e amplo. É preciso atingir o que há de humano nas pessoas, para que elas se percebam no mundo como seres humanos e, a partir desse reconhecimento, entendam que a vida do outro é tão valiosa quando a delas. Estamos passando por um momento muito difícil no Brasil, em que se ataca pessoas por divergências partidárias, de credo, de classe, de raça. Que humanidade é essa, de pessoas que conseguem destilar tanto ódio, tanto rancor, tanta violência para com seu semelhante? O fundamental é atingir o âmago da sociedade e do ser humano e poder dizer: “respeite o outro como o outro é”. Se não conseguirmos transformar os seres humanos – a humanidade –, as leis por si só não vão garantir muita coisa.

TAREFA DO MOVIMENTO 

E de que forma atingir a humanidade para uma transformação tem interface com conquista de direitos? Um exemplo é a conquista, muito nova, da retificação de nome e gênero de pessoas trans. Como o ganho jurídico que tivemos com essa ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 [1]] ajuda o meu diálogo com a sociedade? Ao chegar no meu trabalho e apresentar o meu documento com nome e gênero retificado, estarei lidando com um outro ser humano. Se eu não tiver a possibilidade de educar aquela pessoa para que ela possa me respeitar segundo o gênero e nome retificados que constam ali, eu não estarei fazendo meu papel. Não estarei mobilizando a humanidade da outra pessoa na minha frente. Muita gente destrata quem tem retificação de nome por desconhecimento ou alguma ortodoxia moral e religiosa, mas não o faz exatamente por maldade. Meu papel é orientar as pessoas que estão ali, na sua labuta, para que elas possam humanizar a pessoa que eu sou, e informá-las de que essa decisão [da ADI], embora para elas não valha nada, para mim vale muita coisa. Ser chamada pelo nome feminino e pela identidade de gênero que represento socialmente faz, para mim, uma grande diferença, ao passo que, se ela me chamar pelo nome masculino de um documento não retificado, vai me causar um grande sofrimento.

[1] Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que pessoas trans podem alterar seu nome e gênero no registro civil sem que se submetam a cirurgia ou tratamento hormonal.

Nossa prática do dia a dia é essa: fazer com que as conquistas legais apareçam, mas seguir apostando também na formação humana do dia a dia, que caminha conjuntamente com essas ações. Temos que dialogar com as pessoas, humanizar mais as relações, fazer mais didaticamente nossa tarefa enquanto movimento. Sei que é difícil estar constantemente formando e informando as pessoas, mas se quisermos mesmo promover a transformação, teremos que passar por esse processo. Nenhuma pessoa do Brasil, talvez nem mesmo um jurista, consegue ler o código penal do país de A a Z. Então, não temos como esperar que uma legislação, principalmente uma que é tão jovem, seja assimilada tão rapidamente por todos.

Certa vez fui procurada por uma moça que havia ido ao posto de saúde. Ela não tinha retificação de nome, só o nome de registro e a carteirinha do SUS [Sistema Único de Saúde] com o nome social. A atendente disse que iria se comunicar com ela pelo nome de registro porque era o que estava na identidade. Ela ficou muito angustiada e constrangida porque, é claro, não conhecia nenhuma forma de lidar com aquela situação. Iam chamar um nome de homem, e ia levantar uma mulher. Ao chegar no posto de saúde, conversei com a atendente, que era uma senhora de meia idade. Peguei os dois documentos da moça e falei “bom dia, tudo bem? Meu nome é Keila e vim conversar um pouco com a senhora. Sou amiga desta moça aqui, que veio fazer uma consulta. Ela tem o documento oficial, onde figura como cidadã, e ela tem esse outro documento de nome social, que é uma conquista nossa no Sistema Único de Saúde. As pessoas sentem constrangimento quando, na sala de espera de qualquer serviço de saúde, chama-se um nome masculino e levanta uma mulher”. Ela ficou um pouco arredia, então emendei: “Não estou aqui para atrapalhar seu trabalho. Quero apenas dialogar um pouco com você. Você gostaria de estar em um ambiente para tratar sua saúde, e ter que atender quando alguém chama um nome masculino?”. Pedi para ela virar o computador para o lado e digitei o número do cartão do SUS da moça que estava comigo. Mostrei como era simples registrar o nome social dela na ficha. A atendente virou para mim e disse: “É, tudo bem. Foi tranquilo”. Imagine se eu tivesse chegado lá gritando, dizendo “você vai ter que me atender de qualquer forma, é meu direito!”… 

Desenvolvi essa visão quase que individualmente. Sempre fui muito observadora em todos os meus anos de ativismo e percebi que formas mais enfáticas e impositivas de pedir algo para alguém talvez não sejam muito bem recebidas. Precisamos pensar diferente. Sei que é muito difícil fazer isso, mas sempre chamo a atenção para o fato de que o Brasil tem dimensão continental. As leis têm diferentes interpretações. Temos que fazer nosso trabalho com as pessoas. Fui compreendendo que essa forma mais didática de lidar com as pessoas, de humanizar esse relacionamento, é muito mais simples e proveitosa do que o grito pelo grito. O sistema de saúde, por exemplo, já está tão afetado por violências, e as pessoas que trabalham lá já estão também tão completamente violentas – têm seus problemas em casa, depois chegam lá e têm que enfrentar aquela fila enorme de pessoas… isso não é justificativa, e concordo que os funcionários públicos têm que tratar todo mundo bem, mas eu entendo o lado das pessoas.

Tenho 54 anos. Não quero retificar meu nome, nem meu gênero. Por quê? A cada vez que interagir com alguém e entregar meu documento com meu nome de registro, e a pessoa ver que tenho aparência feminina, fenótipo feminino, ela terá que me respeitar no gênero feminino. Ela terá que respeitar quem está dialogando com ela, e não o documento que está na mão dela. O documento é apenas um pedaço de papel plastificado. E o ser humano que está diante dela sou eu. Ela vai dar mais importância para o quê? Pode ser difícil lidar com o ser humano, mas temos muito mais a ganhar com o diálogo.

INDIVÍDUO E COLETIVO

Algumas pessoas têm impossibilidade de acessar movimentos sociais mas também conseguem fazer uma transformação. Antes de termos cotas de gênero nas universidades, quantas pessoas trans se formaram, mesmo sem fazer parte de algum movimento. As meninas trans que vão para a Europa, por exemplo, e conseguem fazer uma transformação em nível individual, acabam contaminando outras pessoas com essa mesma chama de possibilidade. Com todas as adversidades, essas pessoas conseguiram fazer uma mudança na vida delas, na sua comunidade, na sua individualidade, na sua casa. Elas também podem ser vistas como transformadoras. A transformação da sociedade vem pela coletividade, mas as trajetórias individuais que desempenham um papel nesse processo representam um início que, lá na frente, vai se juntar a essa massa. Aí poderemos dizer: “agora caminhamos, de nome e de fato, juntas”.

Mas acho que quem vai se destacar de fato na transformação futura da humanidade é quem pensa e trabalha coletivamente, como esses coletivos tão diversos que temos no Brasil. A coletividade traz uma força maior de pessoas, pensamentos e até de críticas. Há uma diversidade e divergência de ideias, mas convergência para um bem maior. Cada pauta específica, reivindicada por um coletivo, tem sua importância. O movimento LGBTQI+ no Brasil é muito recente, tem seus 40 a 45 anos, e temos um histórico muito recente de organização e luta. Vivemos, no Brasil, uma conjuntura nacional muito estranha, mas vamos nos coligar com quem caminha coletivamente. Nunca mais poderemos nos referir a esses movimentos como minorias!

Esse é o momento de transversalizar nossas pautas coletivamente. Se não, ficamos muito ao redor do nosso umbigo, atuando para nossa comunidade, e não conseguimos interagir com a diversidade rica que é esse movimento social brasileiro e as organizações da sociedade civil. É muito importante dialogar com as pessoas – elas ouvindo minha voz, e eu a delas.

Existe uma diversidade de corpos aparecendo hoje no Brasil, uma série de novas possibilidades de corpos dissidentes. Hoje temos pessoas se identificado nem como homem, nem como mulher – a população não-binária –, meninos que têm barba e usam saia, meninas que querem usar roupa masculina… Quem vai fazer a verdadeira transformação no universo LGBTQI+ são esses corpos dissidentes. São expressões que começam na individualidade, mas logo encontram lugar coletivo para se juntar. São eles que vão demarcar que mundo queremos, que Brasil veremos daqui 10 anos. É essa diversidade que vai nos dar a exata medida da transformação que queremos fazer.

GERAÇÕES FUTURAS 

Precisamos permitir que as gerações que virão depois de nós, transformem o país para outras coisas, e não para isso que estamos transformando agora. Isso [trabalhar para as próximas gerações] não é um sacrifício. É o que me motiva cada vez mais. Quem chegar depois de nós vai experimentar a transformação que estamos promovendo hoje. Vou viver mais 46 anos – serei uma travesti centenária! – e nesses 46 anos, trabalharei todos os dias da minha vida para que as populações que venham depois da gente possam, cada vez mais, ter seus direitos. Quando cheguei nesse plano, não havia nada. As pessoas eram expulsas de casa por serem trans. Agora, vemos mães e pais de pessoas trans defendendo suas filhas e filhos, na rua, na televisão. Me sentirei muito feliz ao sair desse plano, ir para um plano superior e ver que quem virá para esse mundo não será mais presa ao sair com roupas femininas, poderá ter o nome que deseja em seu registro quando e como quiser, terá uma escola mais sensibilizada para acolhê-la, uma família mais sensibilizada que não a expulsa de casa. A conjuntura pode estar em um processo difícil, mas muitas pessoas estão completamente transformadas e engrossam o coro da nossa luta. Hoje, não somos mais uma população sozinha no mundo. Nem quero e preciso ser celebrada no futuro. Não vou estar aqui mesmo para saber! Tudo que fiz nessa vida é por mim também. Só quero que a possibilidade de viver livremente prevaleça. Partirei desse plano muito satisfeita sabendo que, na minha passagem aqui, coloquei um tijolo nessa construção de Brasil que estamos fazendo. Estamos começando a construir um novo horizonte para a população LGBTQI+, em particular para a população trans. Na verdade, estamos agora construindo um Brasil para as pessoas trans.

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