Ativista pelos direitos das crianças e adolescentes

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: transformaação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

O OUTRO

Nasci em Santa Catarina, numa cidade serrana chamada Lages. Venho de uma família campesina produtora de feijão, milho e produtos para o autossustento, no sistema de produção em mutirão comunitário, aquilo de plantar junto, de colher junto, de comer junto e envolver-se com os diversos personagens que compõem o mundo campesino: andarilhos, peões, donos de terra. Cresci assim. No entanto, hoje sou da cidade, e essa trajetória na infância foi fundamental porque vivi a experiência da importância do outro.

Meus pais foram líderes comunitários da igreja local, visitando doentes, fazendo formações, promovendo círculos bíblicos, reuniões, formações etc. Essa identidade cristã pensando no outro é um DNA em mim.

Foi assim que conheci algumas referências do franciscanismo. Na cidade havia um franciscano que tinha um programa na rádio e na TV e que era um mobilizador nato. Conseguia reunir muitas pessoas em atos e procissões. Suas palavras convocavam as pessoas a mudarem de vida. Era mais do que um agente cristão: era um agente transformador, uma referência de comunicação e mobilização. Isso me atraía muito. Eu admirava essa capacidade de referência política e social.

ATEU 

Fiz filosofia e teologia. No seminário, eu me perguntava: como posso não acreditar nesse Deus barbudo, nesse Deus ritualístico da Igreja e assim mesmo querer estar nessa vida? Entrei para o Aspirantado, depois fui para o Noviciado, que é um ano que você fica retirado do contato das pessoas, da família – é o chamado tempo de conversão, de provação. Você recebe um hábito franciscano e trabalha, reza, medita e estuda, vivendo muitas vezes em lugares ermos.

E foi assim que eu me descobri um ateu. Não acredito em Deus, não acredito em rituais, não acredito nesse modo de fazer da igreja, então me considero um ateu. Retirei meu hábito e procurei meu mestre, expliquei o que se passava. Meu mestre, que é muito sábio, baseado na realidade e na simplicidade, me perguntou por que eu estava ali. Não foi difícil de responder, pois o motivo era o personagem histórico de Francisco de Assis, que me impactava e me dava referências.

NO TERRITÓRIO

Desde que eu me juntei aos franciscanos, sempre me aproximei das pastorais de cunho comunitário e relacional e sempre fui para o trabalho com as pessoas e com o território. Nunca escolhi ser sacristão de uma paróquia ou responsável por cultos. Morei em Agudos (SP) dos 14 aos 16 anos: eu ia para a comunidade com o violãozinho nas costas, o jornal e a bíblia. Fazíamos os chamados círculos bíblicos, líamos a bíblia, cantávamos, líamos sobre a realidade local, sobre o que estava acontecendo no mundo, discutíamos problemas internos e ali íamos criando uma roda de convivência, um intercâmbio, assumindo pequenos projetos.

Nas minhas férias, eu sempre participava de alguma experiência em movimentos e projetos sociais. Fiquei dois meses com o MST e Movimentos Campesinos no Triângulo Mineiro, depois fiz outra missão com o Movimento Pastoral da Terra em Rondônia. Na Amazônia trabalhei com povos ribeirinhos e indígenas; em São Paulo trabalhei em albergues no Glicério, próximo das pessoas em situação de rua, vivendo, comendo, dormindo com eles; e tive diversas outras experiências do campo social, sempre direto com as pessoas.

FREIREANO 

A teologia da libertação veio com o próprio estudo da teologia. Comecei a me identificar mais com o que se chama teologia especulativa, que trabalha a questão da historicidade do cristianismo e de Jesus enquanto um fenômeno cultural, social, político, religioso (de sua época) e histórico, desvestido dessa cultura romana herdada de um Deus sobrenatural. Foi de uma maneira natural que eu comecei a me identificar com as obras de Leonardo Boff e seus professores. Esse Jesus fazia sentido!

Em Petrópolis, fui morar em uma favela, no último de 400 degraus. Lá permaneci por quatro ou cinco anos. Na semana em que cheguei, voltando da faculdade de teologia, fui abordado por um grupo de crianças que me viram subindo, me arrastaram para o mato e me mostraram uma poça de sangue. Relataram que os policiais mataram e arrastaram para ali os corpos de dois adolescentes ligados ao tráfico – na verdade ligados à boca de fumo –, enquanto falavam para as crianças: “vocês serão os próximos”. Foi horrível, mas serviu como uma “educação’ sobre a comunidade. A partir desse dia, fiz um pacto na minha vida de que essa realidade, ou a gente transforma ou não dá para viver nela apenas assistindo ela passar. Fiz uma convocação pública, chamando todas as lideranças de adolescentes que tivessem algum projeto, alguma energia, alguma ideia, sem classificar em bom ou mau. Vieram meninos do tráfico, da escola de samba, da Igreja, meninos que não tinham nada. A questão era reunir todo adolescente que tinha algum incômodo ou que incomodava.

Comecei com uma roda, uma metodologia muito simples e intuitiva. Pedi para me apresentarem qual era a rotina deles ali onde moravam. Depois, sugeri que organizassem essa rotina e pensassem como ela poderia ajudar a transformar a realidade, transformar a vida deles. Disse para pensarem no que quisessem, que iríamos juntos potencializar essa rotina e nessa folha em branco poderíamos mudar a realidade social. Foi um estrondo. Chamamos a metodologia de “Tatos e Passos”, porque não sabíamos o que fazer, e acabamos criando várias ocupações em escolas e becos abandonados da comunidade, com teatro, poesia e intervenções de hip hop. Fizemos o primeiro festival de funk da cidade de Petrópolis, e do Rio de Janeiro, criando os critérios do bom funk (isso foi uma transformação!), fizemos um Centro Social numa antiga creche abandonada pelo Estado, reivindicamos um Posto de Saúde, fomos reorganizando a Escola de Samba que estava muito desorganizada e conectada ao tráfico.

Esse foi o projeto que criou minha identidade pedagógica, política e metodológica. Hoje analiso que, mesmo sem conhecer a fundo Paulo Freire, toda a perspectiva era freiriana. Fazíamos rodas de conversa, círculos culturais, percorríamos a comunidade fazendo mapeamento de demandas, criávamos os temas geradores, envolvíamos o território como território educativo. O foco era a autogestão, envolvendo adultos, crianças e adolescentes desde o início. Esse projeto foi uma grande escola para aquilo que vim a ser e sou hoje.

OSVALDO CRUZ

Em Petrópolis, acabei descobrindo o Centro de Defesa dos Direitos Humanos, que tinha o Leonardo Boff como presidente. Ali conheci diversos projetos com juventude, com moradores de rua, e também comecei a trabalhar no chamado Pão e Beleza. Eu atuava no bairro Osvaldo Cruz, que era conhecido como Canto do Cemitério. Por meio do Grupo Tortura Nunca Mais, escolheram o nosso projeto na comunidade como um caso exemplar de combate à violência. Imagina uma comunidade conhecida como Canto do Cemitério e todo mundo da cidade falar sobre seu território dessa forma. O cemitério entrava na comunidade a tal ponto que não havia mapa em identidade na Prefeitura. Tivemos que descobrir que o nome original era Osvaldo Cruz. Começamos a recuperar a história do território com as crianças e as famílias. Tudo era com eles, nada sem eles, a pesquisa territorial – com camiseta e prancheta – quem gerenciava eram eles, quem escrevia o projeto e a metodologia eram eles.

MAIS POLÍTICO

Eu levei tão a sério o princípio da justiça e da liberdade na vida e no meu projeto que não percebi que naquela época estávamos vivendo a Igreja do Ratzinger, Bento XVI. Fui procurado por uma pessoa do Vaticano, que disse que eu estava sendo convidado a sair da vida religiosa porque eu era muito mais um político do que um religioso e que isso era um perigo. Eu argumentei e perguntei: que Jesus você leu, se não é um Jesus político, cultural, social, transgressor? Conclui o curso de teologia e rompi com a instituição religiosa e franciscana daquela época.

ADVOCACY

Depois disso, fui fazer um trabalho com adolescentes e jovens. Era uma organização que trabalhava com acolhimento institucional. Eu fazia uma sensibilização, seguida de uma imersão em comunidades bem periféricas e precárias, onde eles tinham um choque de realidade. Depois que voltavam, faziam um projeto de intervenção comunitária; um projeto de desalienação, busca e observação da realidade. Criamos acampamentos sociais, trabalhando temáticas como política e filosofia. Eram cinco dias, com diversas periferias e projetos.

Foi então que fui contatado pelas Aldeias Infantis SOS Brasil, para trabalhar como assessor e pensar outras possibilidades no trabalho com a juventude. Nesse meu trabalho com as Aldeias, as crianças e adolescentes criaram uma rede, passaram a se comunicar, criar eventos, atos, começaram a ser críticos em seus territórios. Começaram a falar sobre mudança social, mudança de atitude e isso começou a movimentar muita coisa. A direção ficou com medo e me retirou dessa função, me “promovendo para outra área”.

Ainda nas Aldeias, participo do Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente]. Saio do foco de gerência de projetos e programas e vou para o advocacy. Foi uma trajetória muito interessante pois novamente não optei pela institucionalidade, optei pela defesa e pelo compromisso. Criamos um grupo de articulação com organizações e movimentos progressistas que queriam mobilizar pessoas para a defesa de direitos. Essa trajetória teve muitos embates (seja com os grupos hegemônicos da Igreja até as grandes empresas maristas, salesianas etc). Criamos uma sinergia grande com os principais movimentos do país (Movimento dos Meninos de Rua, Cedeca [Centro de Defesa da Criança e do Adolescente], Centro de Defesa dos Direitos Humanos, Movimento Nacional de Direitos Humanos etc) e fui indicado pela sociedade civil para assumir a presidência do Conselho. O Conanda conseguiu articular uma agenda de mobilização popular e fizemos a primeira conferência com maior número de crianças diversificadas e diversas, desde habitantes da fronteira até indígenas, quilombolas e LGBTs. Nessa agenda de pensar na diversidade, começamos a cunhar um termo chamado invisibilidade da infância: as infâncias invisíveis.

DEMISSÃO 

Como presidente do Conanda, comecei a chamar todas a redes e os movimentos para articular essa agenda abandonada ou esquecida e estabelecer um compromisso de visibilidade. O MST, à luz desse chamado pela visibilidade, organizou um Encontro Nacional de Crianças Sem Terra. Eram 1.200 crianças. Como eles não tinham capacidade para executar as doações, pediram apoio às Aldeias e nós fomos a organização executora de uma emenda parlamentar para o evento. Foi um marco histórico. 1.200 crianças do Brasil todo em Brasília, com uma metodologia participativa, popular, contando com a presença de vários educadores e grupos, Justiça, Defensoria, Poder Público e Executivo. Naquele momento soubemos que o evento estava sendo vigiado por um grupo de ultradireita, que teve acesso aos materiais e criou um vídeo fake dizendo que estava havendo “doutrinação de crianças”. Ele editou as filmagens para dar essa conotação.

Em janeiro de 2019, na época do escândalo envolvendo o filho do presidente recém-eleito, a Rede Record fez uma reportagem de mais de 18 minutos falando de um Estado paralelo que manipulava crianças. Utilizaram imagens e falas de forma completamente diferente da maneira com que nós trabalhávamos. No final da “reportagem”, aparece o logotipo das Aldeias. Depois disso, duas pessoas ligadas ao Conselho Diretor da organização pediram minha cabeça, dizendo que eu era comunista, que eu era muito crítico e incisivo e que esse governo não precisava receber críticas.

Num encontro com mais de 80 representantes de movimentos de base, movimentos populares, coletivos e núcleos na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, o MST apresentou a situação da minha demissão e fez um ato e manifesto pela defesa do direito das crianças. Todas as organizações assinaram. Foi um pacto bacana. Agora, toda essa trajetória está convergindo para uma grande articulação nacional de caráter progressista e popular na defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes. Nessa articulação estão os principais movimentos do país: crianças, movimento negro, quilombola, LGBT, MST, MTST, coletivos de periferia, organizações, mães de vítimas da violência do Estado, mães com crianças em creche, Marcha das Mulheres. O objetivo é organizar uma agenda porque não há hoje uma concepção de infância baseada na vida do povo trabalhador e dessas comunidades e grupos invisibilizados.

CURA

A transformação, para mim, tem cunho mais miúdo, mais cotidiano, mais direto, mais simples, mais real, mais concreto. É baseada na cultura, no modo como eu pego algo bruto e modifico para algo mais adequado, ou numa linguagem melhor; cultura como cultivo, quase artesanal, manual. Pego o barro, esse barro eu amasso, eu modifico, até que ele se transforme em um vaso, crie outra linguagem, outra perspectiva, uma perspectiva com objetivo, com valor agregado. Transformação, para mim, tem a ver com mudar a forma e, no campo político, isso significa mudar essa forma injusta, precária, doente. Por isso transformação não é criar algo novo, e sim curar, melhorar aquilo que já é.

TEIA DE CUIDADOS

É gratificante e impactante ver como essa dimensão simples de transformação traz vida, humor e vitalidade. Aqui podemos usar a palavra felicidade. Na vida das crianças e adolescentes, talvez o primeiro passo para a transformação seja a presença, o estar junto, o estar com elas. É o espírito de solidariedade. Essa capacidade de o outro sentir a presença é revolucionária na vida de crianças e adolescentes. Cito casos de meninos e meninas extremamente abandonados afetivamente, pelo sistema e pela família, todos dizendo “esse menino não presta”, “esse menino não tem jeito”. Na escola, a mesma coisa: uma lista de expulsões, advertências, conselho tutelar… Nem a Igreja quer saber desses meninos. Bastaria dizer: “oi tudo bem, estou aqui, quem é você?” Hoje vivemos em um mundo onde existe Lei, ECA, Sistema de Garantia de Direitos, e existe também um viés punitivo e judicializador das vidas, muito distante do cuidado, da relação direta, da transformação da vida.

Há o caso de um menino que passou 25 vezes pelo Sistema de Direitos, Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], Conselho Tutelar e Juizado — e foi morto. Por outro lado, há o caso de uma menina, que tinha um lugar na mesa da minha casa lá na comunidade, a comunidade que era uma grande teia de cuidado e proteção para ela. Quando chegava seis horas da tarde, a vizinha a chamava para fazer o dever de casa. Todos atuavam no cuidado. Ela não passou por nenhuma assistência institucional, mas tinha afeto e a comunidade como esse grande campo de responsabilidade, sem julgamento, sem criminalização. Hoje ela mora na mesma comunidade, está casada, tem um emprego. Que o mundo se transforme nessa teia de cuidado, mais do que em uma teia de sistemas, de processos, de leis, de tratados ou de projetos sociais. Estamos vivendo um momento em que é preciso voltar à simplicidade, às relações responsáveis. As relações comunitárias devem ser regadas com vizinhança. Isso é transformação.

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