Agricultora urbana, codeputada

O que é transformação? Como e quando ela ocorre? Afinal o que queremos transformar? O que nós transformamos e o que transformamos em nós? Na palavra em questão, transformação, pelo menos três palavras atravessam a pessoa ativista: transformaação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito. Deixar-se ou não na forma. Longe de dar respostas, as perguntas movimentaram corpo e pensamento de Claudia Visoni, Keila Simpson, Teca, Fabio Paes, João Marcelo, Lula Trindade e Tio Antônio e orientaram o comentário final de Ana Biglione.

Eu me sinto muito bem com a reflexão sobre o que é realmente transformação no ativismo. Me sinto útil e podendo ter a oportunidade de refletir e direcionar energias para o que realmente importa. O ativismo visa a transformação, mas é fácil perdermos isso de vista. A reflexão nos ajuda a lembrar por que estamos aqui.

TORNAR-SE INÚTIL 

Tenho a impressão de que os ativismos modernos nascem com o abolicionismo. Não sei se existiu algum outro movimento ativista coordenado ou de grande escala antes disso. São pessoas que resolveram se mobilizar em prol de uma causa, em prol de resolver uma injustiça que, em muitos casos, não as atingia diretamente – e que poderia até beneficiá-las. Conheço pouco sobre o movimento, mas muitos líderes eram pessoas de posse, ricas, que viviam em ambientes onde a escravidão era uma realidade, e uma realidade muito conveniente. São pessoas que resolvem dizer “isso está eticamente errado, é uma injustiça, as pessoas não podem ser compradas e vendidas dessa forma”.

Por que esse preâmbulo? Porque o sonho de todo ativista precisa ser se tornar inútil. Precisamos ter esse desprendimento. Ser vencedor, para o ativista, tem um gosto um pouco amargo. Vou falar do meu ativismo, da agroecologia. Eu estava aqui fazendo um canteiro na minha casa. Faço isso como pessoa, porque acho importante, mas isso é chamado de ativismo. Para a minha bisavó, isso não era ativismo, porque todo mundo plantava no quintal de casa. Não existia “o ativismo” de plantar comida no quintal. O nome disso era sobrevivência! Mas hoje em dia estou aqui, aparecendo em uma revista. A minha bisavó ia achar isso estranhíssimo. Por que entrevistar sobre algo tão banal, que todo mundo faz? No dia em que todos voltarem a fazer o que suas bisavós faziam, não vou mais precisar dar depoimento e ninguém virá filmar a Horta [das Corujas, da qual Claudia faz parte]. Não vai ter mais graça, porque todo mundo faz. Isso tem que ser a meta. Essa fala não é minha, e sim do Claudio Oliver, um ativista de agricultura urbana da Casa da Ribeira, de Curitiba. Ele diz: “as pessoas vêm aqui, nos entrevistam, tiram fotos, mas nós não fazemos nem metade do que nossas avós faziam”.

Mas o que é realmente transformação? É modificação de padrões de comportamento e padrões culturais. Tem uma frase da Margaret Mead que diz: “Não duvide que um grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou”. Transformação é mudar o mundo mudando o parâmetro e o paradigma. É estranho falar isso hoje, mas há 200 anos talvez alguém pudesse vir me dizer: “Nossa, é um absurdo as pessoas serem escravizadas!” e eu poderia responder: “Ora, por que? Está tudo normal: eles são escravos e nós, não.” Isso era aceito socialmente, mas um número de pessoas fez isso mudar. Pode ter gente que pense assim hoje, mas não é socialmente aceito e é contra a lei. Já eu, como permacultora, vejo uma série de paradigmas que precisam se transformar. Um exemplo é as pessoas acharem que inseticida é uma coisa ótima e formiga, uma coisa péssima. Na verdade, a formiga ajuda a recuperar o solo, e o inseticida dá câncer. O sinal está trocado.

PROTOTIPAGEM 

Existem vários tipos de ativismo, e eu me identifico com aquele que prototipa a realidade em que quer viver, inspirado pela frase do Gandhi, “Seja a mudança que você quer ver no mundo.” Imagine que louco um lugar público onde você planta comida e qualquer pessoa pode ir lá colher… Bem, isso existe: são as hortas comunitárias, que são uma utopia que já conseguimos realizar em pequena escala. O ativismo em que eu acredito é pegar algo impossível e ir lá fazer. Isso já é uma tranformação em pequena escala. Fiquei muito feliz quando a Horta das Corujas e várias outras passaram a existir e entraram no repertório da cidade de São Paulo. Isso significa que eu não vou morrer sem ter vivido essa utopia. Já vivo ela em oitocentos metros quadrados.

O ativismo tem a característica de ficar observando o sistema e buscar uma fresta para atuar. Vou dar outro exemplo, da época da crise hídrica [do estado de São Paulo]. A situação era muito maior do que nossa possibilidade de resolver. O reservatório estava sem água, e não havia nada que três cidadãos comuns pudessem fazer para trazer chuva ou mudar a maneira como o governo estava lidando com a crise. Diante daquilo tudo, o que podíamos nós? Ensinar as pessoas a fazerem pequenas cisternas de baixo custo em suas casas. A partir de muito planejamento, criamos o movimento Cisterna Já, do qual sou fundadora junto com alguns permacultores. E tem uma liderança do Movimento de Defesa do Favelado, uma senhora chamada Teresinha Rios, que na crise hídrica começou a construir pequenas cisternas para doar, feitas com suas próprias mãos, na sua cozinha. Muita gente pensa que é impossível construir uma cisterna ou dedicar-se a essa causa. Ela foi lá e fez. Acredito muito na prototipagem.

É muito difícil querermos uma coisa que não conseguimos imaginar. Então o ativismo, para mim, tem muito a ver com o repertório da imaginação. Isso já é uma transformação: romper uma barreira mental de achar algo impossível. De repente, essa coisa acontece e passa a existir no mundo real. E, se ela existe, ela é possível – primeiro na mente, depois no discurso, e por fim na ação das pessoas. Graças ao ativismo.

Existe também o ativismo do enfrentamento e da denúncia, que é muito importante, principalmente neste momento do Brasil. Mas ele também pode ser limitante. Na minha opinião, o ativismo precisa ser propositivo. Não sou a detentora da verdade, e cada um tem sua visão, mas, para mim, a mera contestação daquilo que não achamos correto e a reivindicação de coisas que não estão ao nosso alcance não é uma postura muito ativista. Se não está na nossa mão, nós nos tornamos impotentes.

O pensamento e as palavras já são uma transformação, mas incompleta. A transformação completa é a transformação de valores e paradigmas da sociedade. Podemos convencer um governante atual de que uma causa é muito importante e ele precisa dar um apoio. Isso ajuda muito, porque são pessoas em instituições poderosas, mas essas pessoas também são efêmeras. O governo delas vai acabar. Se aquilo não tiver se transformado em um valor na sociedade, as conquistas voltarão atrás. Tempos atrás, a mulher não podia ter propriedade, dirigir ou sair de casa sozinha, e estava sujeita à violência de maridos e familiares. Hoje em dia, tudo isso é contra a lei. A mudança real está alicerçada em um novo padrão de consciência, pensamento e ética.

FASES

A transformação acontece quando um pequeno grupo de pessoas começa a falar algo que parece absurdo, como “Não podemos ter pessoas escravizadas no mundo!”, e em um primeiro momento são ridicularizadas, e depois isso passa a ser o contrato social hegemônico. Gandhi diz que primeiro eles te ignoram, depois eles riem de você, depois eles brigam com você, e depois você ganha. Nas causas ativistas, é isso que acontece.

No meu campo, quando comecei a plantar comida na minha casa, muitas pessoas próximas achavam ridículo. Se uma alface custa três reais no supermercado, porque eu gastaria horas aqui, plantando? Depois, brigaram: “Por que você está gastando horas com isso?”. Por fim, o fato de que na minha casa existe uma horta passou a ser uma realidade aceita. Na Horta das Corujas, nem mesmo passamos pela fase de ser ignorados. Tinha uma mulher ali que sempre me chamava de palhaça. Dizia que estávamos destruindo a praça, e que a agricultura na cidade não existe, que era algo só do campo. Depois fui estudar e descobri que horta vem de horto, do latim, que é o quintal no fundo das casas, onde se plantava comida e que era murado para evitar o roubo. Hoje em dia, essa mesma mulher frequenta a horta com o pai e sugere novas coisas para plantarmos. Ela ridicularizou, depois brigou, e agora frequenta. Todo dia ouvimos falar de novas hortas que vão ser instaladas em escolas, condomínios… e toda a imprensa acha bonito. Virou moda.

O meu papel como agricultora urbana ativista em trazer esse assunto à tona está menor a cada dia. Mas como a questão da agroecologia, segurança alimentar e da situação do pequeno agricultor é tão terrível, é só o começo de uma nova fase do jogo. Agora que conquistamos esses espaços na cidade, vamos usá-los a serviços dos valores em que acreditamos. E, nisso, estamos muito longe de ganhar alguma coisa. Ainda estamos saindo da primeira para a segunda fase. As pessoas riam, questionando: “vocês acham que vão alimentar o mundo com agricultura orgânica?”. Agora, enquanto alguns brigam conosco, a ONU [Organização das Nações Unidas] declara que o único jeito de alimentar o mundo é com agricultura orgânica.

CONVERGÊNCIA 

Existem muitas armadilhas que impedem que o ativismo seja transformador. Uma delas é o ciúme, ou algo que talvez possamos chamar de apego egóico. “Esta é a minha causa!”: isso é a antítese do que precisamos para transformar o mundo. Não vou dizer que não sinto isso, mas tento ficar muito alerta. O ativista precisa estar sempre buscando conexões, aliados e alianças com outros ativistas de causas irmãs. Essa rede é muito importante. É como um jogo de futebol: cada pessoa tem a sua posição. Não adianta termos um time com 11 goleiros. Precisamos lidar não só com o consenso, mas também com a convergência. Posso não concordar cem por cento com alguém sobre o mundo que desejamos e como queremos chegar lá, mas temos entre nós um espaço de convergência – o mínimo para estarmos juntos nessa causa – e uma intersecção com a qual vamos trabalhar.

E é muito importante o empoderamento de quem está chegando no movimento. Quanto mais horizontal for o ativismo, mais bem sucedido ele será. Quando começamos a cercear o outro, dirigir demais e disputar poder, começam os rachas internos que atrapalham tantas causas. Tenho um pouco de problema com cadeias de comando e controle. Dentro de uma estrutura extremamente hierárquica, quem ali é ativista? Todo mundo, ou só os líderes? O que é o ativismo quando não se tem autonomia? Um ativista que não pode ter ideias e sair executando, como ele se vê?

Antes do meu ativismo começar, entrei em contato com organizações estabelecidas oferecendo ajuda com meu tempo e trabalho e percebi que não era bem vinda. Isso me gerou uma dor muito grande. Por isso, incorporei ao meu ativismo o gesto de trazer as pessoas para dentro, mostrando a todos que são muito bem-vindos. Também faz parte do meu ativismo romper as cadeias de comando e controle e romper a divisão social do trabalho. Vivemos em uma sociedade onde parte das pessoas só planeja, e parte só executa – o que é estúpido, pois quando planejamos as coisas, passamos a executá-las muito melhor, e vice-versa. Vejo muito isso na agricultura: muita gente que escreve propostas nunca pegou em uma enxada. É outra visão.

ESPÉCIE PIONEIRA

O Estado talvez seja uma das forças reacionárias da sociedade, ao menos na minha pauta. Quem ocupa esses espaços de poder são os homens brancos, velhos e ricos. A solução para enchente, para eles, é o piscinão, que já sabemos que não funciona. Eles não conseguem imaginar outra possibilidade, como os jardins de chuva. Hoje em dia tenho acesso ao poder legislativo e percebo que parecemos falar de mundos diferentes. Faço parte de um movimento chamado Bancada Ativista, cujo objetivo é colocar ativistas na política institucional. Vou dar o exemplo da formiga. A formiga é uma espécie pioneira. É o primeiro bicho que consegue habitar um solo seco, duro e degradado, onde a minhoca e outros microorganismos não conseguem viver. Ela coloca umidade, nutriente e ar dentro da terra. Quando vou para o poder legislativo, me sinto uma formiga, carregando minhas pautas.

Temos várias pessoas em posição de comando hoje que estão altamente defasadas em relação à ciência. Há muita gente tentando remendar modelos ultrapassados e tratando quem traz um paradigma mais atual como ignorantes. Precisamos ocupar esses lugares. Recentemente estive em uma reunião com a Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] sobre mudanças de normas de compostagem. A Cetesb é um órgão técnico, e eu sou uma pessoa do legislativo dando prioridade política para isso nesse momento. Os técnicos sabem que precisamos avançar na compostagem, e eu, que venho desse mundo, também sei, mas o resto da Assembleia [Legislativa de São Paulo] não sabe. Meu papel é “pinçar” esse tema e levá-lo para a esfera política. Estou ali [na Bancada Ativista] emprestando meu corpo para representar algumas causas socioambientais, principalmente a agroecologia, segurança alimentar, segurança hídrica, gestão de resíduos e também a saúde das pessoas, prejudicada pela poluição na água, ar, solo, alimentos e pelos produtos danosos que usamos cotidianamente. Tento levar essas causas para a política institucional porque estão subrepresentadas.

A jornada é prototipar, transformar em política pública, e depois pegar os comportamentos residuais e mostrar que eles não servem mais. É o que deve acontecer com o agrotóxico, por exemplo. A questão é saber quantas vidas humanas vamos destruir antes disso. Primeiro vêm uns loucos que plantam sem agrotóxico, fazem agrofloresta e agroecologia. Uma série de pesquisas apontam que eles são mais bem sucedidos. Mas, em grande escala, o agrotóxico continua sendo sustentado à base de subsídio e isenção de impostos, deixando o trabalho e a despesa para o produtor orgânico. Quem planta com veneno não precisa de certificação. Quem planta sem veneno tira do bolso três mil reais por ano para a certificação e não consegue financiamento bancário, que só é dado quando o produtor comprova que comprou os insumos – que são adubo químico, agrotóxico e semente transgênica. Se o produtor chega no banco e diz que conseguiu fazer a própria semente e o próprio adubo, e que não precisa de agrotóxico porque tem plantas saudáveis, o financiamento dele é rejeitado. Existe toda uma máquina estatal impulsionando e regulamentando uma coisa tão antiética e perniciosa como o uso de veneno. A fase umdo ativismo é prototipar: pessoas que, contra tudo e todos, conseguem produzir comida sem agrotóxico. Depois, vem a fase da argumentação: mostrar que pesquisas feitas no mundo inteiro apontam que essa forma é mais produtiva, eficiente, e que agrotóxico é cancerígeno; e, ao mesmo tempo, enfrentar toda uma série de pesquisas financiadas por quem produz agrotóxico para tentar mostrar que ele não é um problema. Em seguida, vem a terceira fase: se o cigarro, que dá câncer, tem uma taxação alta, que tal colocar uma taxação crescente no agrotóxico e criar linhas de crédito para financiar a transição agroecológica? O banco pode dizer ao produtor: “Este ano, vamos te dar o financiamento, já que você comprou adubo químico, veneno e semente transgênica. Mas no ano que vem, se você não comprar nada disso, vamos dobrar seu financiamento”. Por fim, os países, como alguns no mundo já fazem, devem acabar proibindo o uso de agrotóxicos.

RECOMEÇO

Como permacultora, tento observar e imitar a natureza. Na natureza, a cobra troca de pele quando deixa de funcionar, e abre espaço para outra pele por baixo. Acredito em ir tirando o foco da estrutura que existe e ir construindo a outra. Economia participativa, outras moedas, outros sistemas de produção e troca que estão fora do mercado. A minha grande utopia é que água e comida não sejam mercadoria. Isso é um direito humano. Porque colocamos um preço e dizemos que quem não tem dinheiro não irá comer hoje? Minha forma de construir essa utopia é produzindo comida que não é mercadoria e não tem preço. Olho para o sistema e vejo que ele vai ruir – inclusive o clima. Nosso papel é ir construindo alternativas para que, quando isso acontecer, tenhamos uma estrutura nova.

Mas não vamos ganhar todas as lutas. E a história não é linear. Há uns trinta anos, veio a questão do “fim da história”, como se estivessem resolvidos os problemas da humanidade em final feliz. Tem muito retrocesso, e aí o ativismo recomeça. A diferença é que o mundo em que minha bisavó vivia englobava a agricultura urbana. Isso era uma atitude normal. Ao mesmo tempo, o mundo dela não contemplava mulheres em espaços de poder. Então hoje ela poderia achar o conteúdo meio ridículo, mas acharia a forma bacana. Ela gostaria de ver que é a sua bisneta que está liderando esse movimento, sendo que no tempo dela eram os homens que lideravam.

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