Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Podcast: A luta que nós deixaram, spoilers do ativismo climático jovem
De 2019 pra cá, o movimento climático ganhou novas caras, visões e estratégias. As Juventudes mais que nunca abraçaram a causa, e não é à toa! Agoras e Futuros estão em jogo por problemas sistêmicos e estruturais da sociedade como a crise climática, o racismo ambiental, o machismo e o “adultocentrismo”. Mas será que você realmente sabe como tem sido essa luta? É sobre isso que conversamos na audioreportagem A luta que nos deixaram. O episódio conta com a participação de Isvilaine Silva, Paloma Costa e Samara Assunção. Disponível no player abaixo.
Ouça o Podcast
Ativismo, a palavra – a origem e a disputa pelo sentido do termo
Uma professora negra
Das Missões às Caravanas – mobilização para educação de jovens e adultos
Por Luciana Ferreira e Velot Wamba
“Um processo educacional que convidava a população a definir junto com a prefeitura, os investimentos a serem realizados na cidade” – assim explica Ivan Rubens Dário Jr, educador popular e geógrafo, sobre a experiência das “Caravanas do OP”. Ivan participou deste projeto que aconteceu durante o processo de construção das reuniões para o Orçamento Participativo da cidade de Suzano, região da Grande São Paulo, entre 2005 e 2008.
As Caravanas do OP tratavam a Educação de Jovens e Adultos de uma maneira ampliada. Não era apenas um processo de alfabetização convencional da leitura e da escrita, mas seguindo Paulo Freire, a aprendizagem que ela proporcionava só fazia sentido se viesse acompanhada da leitura de mundo: “a leitura de mundo precede a leitura das palavras”.
A experiência de Suzano guarda similaridades com as Missões Pedagógicas realizadas na Espanha no início do século XX assim como com as 40 horas de Alfabetização de Adultos realizada por Paulo Freire na década de 1960, em Angicos, Rio Grande do Norte, ambos momentos icônicos de como a alfabetização foi muito além de um processo de aprender a ler juntando letras.
Caravana do Orçamento Participativo em Suzano/SP
As Missões Pedagógicas na Espanha
A Espanha viu, a partir do final do século 19, uma explosão de alternativas educacionais para jovens e adultos, sobretudo a partir da emergência do sindicalismo operário e, em seu interior, das correntes anarquistas e socialistas, com a constituição das primeiras escolas operárias, casas do povo e ateneus populares, por exemplo. Como resposta, a Igreja Católica criou academias cívicas gratuitas para trabalhadores, escolas dominicais e noturnas vinculadas aos Patronatos da Juventude Operária e aos Círculos Operários de Assistência e Educação.
Assim, a educação de adultos tornou-se um direito e ganhou progressiva institucionalidade mediante leis e decretos que instituíram escolas noturnas e dominicais gratuitas, abonaram os salários dos educadores que a elas se dedicassem e normatizaram seu ensino.
Uma inciativa importante e que marcou o período foram as Missões Pedagógicas, criadas em 1922, uma exaustiva campanha de educação popular que alcançou zonas rurais de menor desenvolvimento socioeconômico. Aos adultos, as Missões dirigiam práticas de alfabetização e difusão cultural – conferências, bibliotecas e museus itinerantes, teatro, cinema e música – inspiradas nas experiências de educação informal promovidas pelos socialistas nas Casas do Povo.
Porém, a tensão crescente na Espanha resultou na sublevação militar que conduziu à Guerra Civil (1936-39), durante a qual as regiões controladas pelos republicanos foram alvo de ações educativas dirigidas aos jovens e adultos com forte conteúdo antifascista, seja no front de batalha, seja na retaguarda e nas zonas rurais. Com a vitória das forças da reação lideradas por Francisco Franco, as experiências inovadoras em educação encontraram um fim abrupto, que deu lugar a um ensino marcadamente confessional atrelado aos valores da Igreja Católica, o que representou um retrocesso atroz.
Método Paulo Freire em Angicos
Quase 30 anos depois, no Brasil, tivemos uma experiência revolucionária de alfabetização de 300 adultos no interior do Rio Grande do Norte, na cidade de Angicos, em 1963, que ensinou também direitos trabalhistas. “Depois do trabalho a gente seguia para a aula com o caderninho debaixo do braço. Aquilo mudou a minha vida, porque quando a gente não sabe ler a gente não participa de nada, a gente não é ninguém”, relembra Paulo Alves de Souza, um dos alfabetizados pelo programa em matéria que trata do legado deste projeto. “A grande originalidade foi o respeito ao analfabeto, o respeito à cultura e linguagem do analfabeto. Na época predominavam as cartilhas com a linguagem do alfabetizador, do MEC. Paulo Freire ridiculariza a cartilha do MEC. Alfabetização se faz na discussão de temas políticos”, relembra Marcos Guerra, um dos coordenadores da experiência em Angicos (veja o vídeo abaixo).
Em apenas 40 horas, um grupo de professores liderados pelo educador Paulo Freire, ensinou 300 adultos a ler e a escrever, gerando novas possibilidades de emprego, e dando aos trabalhadores o tão sonhado poder do voto. Paralelamente, ensinou os trabalhadores sobre seus direitos – especialmente os trabalhistas – o que, coincidentemente, culminou em uma greve de trabalhadores da construção civil na cidade. Ironicamente, o projeto em Angicos foi financiado pela Aliança para o Progresso, do governo dos Estados Unidos, que era um braço educacional na luta contra o avanço do comunismo na América Latina.
Vale lembrar que na década de 1960, 40% dos brasileiros eram analfabetos e só um terço das crianças frequentavam a escola. Com a ascensão da Ditadura Militar em 1964, o método Paulo Freire virou uma bandeira a ser combatida, Paulo Freire e outros responsáveis pela missão em Angicos foram perseguidos e exilados, e a experiência só voltou a ser referência e a servir de inspiração para projetos similares massivos a partir da redemocratização em 1985.
E o que temos hoje? 13 milhões de jovens e adultos com mais de 15 anos ainda não sabem ler nem escrever, dado que coloca o Brasil entre os dez países com mais analfabetos no mundo, segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Treinamento de professores que atuaram em Angicos, nas 40 horas de alfabetização
Alfabetização em sentido ampliado em Suzano
As Caravanas do OP foram realizadas pelos conselheiros e conselheiras do Orçamento Participativo e aconteceram em 12 regiões da cidade, para conhecer as 36 prioridades eleitas nas plenárias regionais deliberativas. “Um processo educacional que convidava a população a definir junto com a prefeitura, os investimentos a serem realizados na cidade”, assim explica Ivan Rubens Dário Jr., geógrafo com estudos na área da educação, nosso entrevistado. “Na prática, era decidir se faria creche, unidade de saúde, asfalto, enfim, serviços e obras públicas nos bairros da cidade”. Na chegada às regiões, a condução da Caravana era assumida pelos conselheiros e conselheiras, que apresentavam as características locais para os demais, discutindo três prioridades eleitas, que saíram do papel e ganharam vida no encontro com a população participante.
O processo envolvia ainda algumas assembleias nos bairros, que ofereciam diversas atividades: formação, arte, cultura pra crianças, pros adultos… Era uma partilha sobre a cidade! Uma interação com a cidade e com as pessoas que nela viviam. No caso das Caravanas do OP, o processo de Alfabetização ganhava contornos de educação, pois inspirados em educadores como Paulo Freire, o trabalho buscava alfabetizar na temática do orçamento público, lidando com números, planilhas, dados, mil palavras novas para a população, mas, principalmente, em criar um sentido político para esta atividade. Discutir sobre os rumos da cidade era decidir também sobre a vida em comunidade. Um modo de vida bom para todes.
Ivan, afinal: o que eram as caravanas do Orçamento Participativo? O que acontecia?
Ivan Rubens Dário Jr – Bem, realizadas todas as Plenárias Regionais, o conselho do OP iniciava o seu trabalho. O primeiro passo era conhecer a si mesmo: Suzano é uma cidade de muitos contrastes regionais. Demos o nome de CORPO para o Conselho do Orçamento Participativo. Devagar as pessoas dos diferentes pontos da cidade iam se conhecendo. Conheciam também os conselheiros e as conselheiras indicad@s pelo prefeito para representar as diferentes secretarias municipais. O CORPO tinha maioria popular. Neste processo percebemos que as pessoas conheciam da cidade aqueles lugares, aqueles pontos, aqueles trajetos mais usuais. Ou seja, de casa para a escola, de casa para o trabalho, um pouco do bairro, o centro da cidade, os trajetos mais utilizados e tal. Então, como decidir as prioridades para um ponto da cidade que eu mal conheço?
As caravanas eram o momento dedicado a esse tipo de conhecimento empírico da cidade. Era um dia dedicado a andar pela cidade, pelos bairros, pelas ruas, conhecer equipamentos públicos, praças, ruas e avenidas, falar com as pessoas, trocar ideia, bater papo.
Era um dia inteiro dedicado a isso. Saíamos do centro da cidade em um ônibus da prefeitura e passávamos o dia investigando, descobrindo, conhecendo um pouco mais da cidade de Suzano. O desafio era passar por todas as 12 regiões e olhar, parar, cheirar, sentir os lugares. Nesse esforço, pensar um pouco a respeito da vida e da realidade local, das necessidades locais e, desta maneira, qualificar as decisões a serem tomadas nas reuniões do CORPO. Preparávamos material de apoio com mapas da cidade, com o trajeto do ônibus, com os tempos e as paradas previstas, enfim, com a organização do dia que era definida nas reuniões anteriores à Caravana.
E tem um detalhe interessante: Suzano é conhecida como a cidade das flores. Então, quando o ônibus entrava na região Hortênsia, por exemplo, a dupla de conselheiros/as da Hortênsia apresentava a região dizendo o que sabiam a respeito dela. As características, os equipamentos públicos, os aspectos mais gerais, um pouco da história de formação daquele conjunto de bairros e loteamentos. Veja que as pessoas precisavam se preparar, estudavam bastante. Eu percebia que, ao assumirem tal responsabilidade, passavam a olhar seu bairro com mais atenção, percebiam detalhes, falavam coisas interessantíssimas e, neste processo, descobriam seu próprio bairro – menos naquilo que falta e mais naquilo que tem. Conselheiros e conselheiras faziam uma espécie de mergulho em sua região e, durante a Caravana, conheciam também as outras 11 flores (ops), regiões. Veja que todo o CORPO ia devagarinho ampliando seu olhar para a cidade: uma cidade é maior que os pontos e trechos. Uma cidade é um organismo vivo, é dinâmica, está permanentemente em processo de construção, uma cidade é também seus fluxos. Quero dizer que, ao apresentarem seu bairro, ao conhecerem um pouco mais a sua cidade, conheciam a si mesmos também. Com o tempo, me dei conta que uma espécie de “cidade subjetiva” ia se produzindo, ou seja, ao produzir uma cidade, produz-se também uma cidadania, ou melhor, um jeito de pensar a cidade, um outro olhar para a cidade e, sobretudo, de lutar por ela.
Veja que as pessoas precisavam se preparar, estudavam bastante. Eu percebia que, ao assumirem tal responsabilidade, passavam a olhar seu bairro com mais atenção, percebiam detalhes, falavam coisas interessantíssimas e, neste processo, descobriam seu próprio bairro – menos naquilo que falta e mais naquilo que tem. (…) Com o tempo, me dei conta que uma espécie de “cidade subjetiva” ia se produzindo, ou seja, ao produzir uma cidade, produz-se também uma cidadania, ou melhor, um jeito de pensar a cidade, um outro olhar para a cidade e, sobretudo, de lutar por ela.
Evidentemente que o Pensamento de Paulo Freire está muito presente em todo esse movimento, influencia isso tudo. Em Suzano particularmente, entre 2005 e 2008, nossa equipe lia o Paulo Freire. (…) Mas nossa aposta sempre foi no encontro. Porque se o ambiente é bom, se as pessoas se encontram despidas de verdades absolutas, os conhecimentos e os saberes vão nascendo. (…) Tinha gente organizando as discussões, deixando fluir as conversas, trazendo informações e elementos para o debate. Mas o que rolava mesmo era debate, conversa. Quem disse que um técnico da prefeitura sabe mais que um morador ou uma moradora do bairro?
Esta matéria fala sobre as Missões Pedagógicas na Espanha do início do século XX e sobre a alfabetização de adultos de Paulo Freire em 1963, você vê semelhanças nessas experiências com a caravana do OP?
O Orçamento Participativo tem origens no processo de redemocratização do Brasil. Ele surge de uma maneira bem experimental em pequenos municípios num esforço de democratizar a as decisões e, ao mesmo tempo, mostrar a realidade e o funcionamento da máquina pública. Suas origens estão nos governos locais e nas lutas populares. Quero dizer que os governos populares iam aprendendo a ‘pilotar’ a máquina e esse aprendizado era coletivo. Com o crescimento do Partido dos Trabalhadores e outros partidos também, com o crescimento eleitoral de lideranças políticas populares, o Orçamento Participativo foi ganhando corpo, novas experiências foram acontecendo e se espraiando pelo país. A experiência de Porto Alegre, por exemplo, deu grande visibilidade ao OP, nacional e internacionalmente. Evidentemente que o Pensamento de Paulo Freire está muito presente em todo esse movimento, influencia isso tudo. Em Suzano particularmente, entre 2005 e 2008, nossa equipe lia o Paulo Freire. Me lembro de um grande amigo, o professor Juarez Braga, um sujeito maravilhoso que representava a Secretaria de Educação no CORPO, chegando nas reuniões com livros nas mãos. Lemos juntos, dentre outras coisas, “Educação como prática da liberdade”. Depois lemos juntos “Pedagogia do Oprimido”, e o Juarez, já velhinho e franzino, falando com alegria dos livros em análises interessantíssimas que nos empolgavam muito.
Então eu acho que sim, tudo isso está relacionado e se relacionando até hoje. As experiências populares vão se fazendo e se refazendo. Em Suzano nós não seguimos protocolos. Claro que uma grande plenária popular exige uma organização. Claro que um conselho popular composto por pessoas eleitas livremente precisa de uma organização inclusive em respeito ao tempo que as pessoas estão deixando suas casas para, juntas, construírem uma grande casa chamada cidade. Mas nossa aposta sempre foi no encontro. Porque se o ambiente é bom, se as pessoas se encontram despidas de verdades absolutas, os conhecimentos e os saberes vão nascendo…
Veja, estamos falando de Educação de Jovens e Adultos. As Plenárias Populares aconteciam sempre em escolas e, apesar disso, não havia uma institucionalização. Quero dizer que não havia uma pessoa dizendo o que se deveria fazer, o que se deveria aprender, tampouco como fazer. Tinha gente organizando as discussões, deixando fluir as conversas, trazendo informações e elementos para o debate. Mas o que rolava mesmo era debate, conversa. Quem disse que um técnico da prefeitura sabe mais que um morador ou uma moradora do bairro? Claro que o técnico da prefeitura ou a secretária de Saúde, a secretária de Educação e o secretário de Obras sabem coisas fundamentais para a discussão. Mas quem sabe do bairro, da rua, é quem vive ali. Quem sabe da vida na região Hortênsia é a dona Neide que mora no Jardim Nova América, que conversa com as vizinhas, que frequenta a Unidade Básica de Saúde e participa do Conselho Gestor da Unidade, que participa da comunidade da Igreja, que organiza a barraca do pastel nos dias de festa, que visita as crianças devido ao seu trabalho na pastoral da família. Estou dando um exemplo aqui… Então esses saberes todos iam se encontrando, se enredando e, neste enlace o que saia ao final era um tecido. Fizemos inclusive uma bandeira cujos retalhos simbolizavam cada região da cidade num grande mapa de Suzano tecido pelas muitas mãos do CORPO.
Vou dizer mais umas poucas palavras para finalizar. Nosso OP em Suzano era todo pontuado por cultura. As plenárias começavam com um teatro inspirado no pensamento do Augusto Boal. Nosso material sempre trazia uma música popular, às vezes uma imagem, uma arte plástica. Apostávamos na arte também como abertura de perspectivas, abertura de pensamentos, abertura de possibilidades e horizontes. Trago este elemento para dialogar com as Missões Pedagógicas na Espanha. De alguma maneira e na medida do possível, nós realizamos uma espécie de alfabetização em Orçamento Público. Dentre as decisões do CORPO, a primeira obra inaugurada foi um Centro Cultural, o orçamento destinado à Secretaria de Cultura atingiu números incríveis e nós realizamos festivais de teatro, de cinema, de música, cursos gratuitos de violão etc… Não estou exagerando em dizer que Suzano respirava cultura e democracia.
Passados todos esses anos desta inciativa e, diante da situação da perda de direitos, do desmonte de políticas públicas que vem ocorrendo no Brasil, você vê espaço pra Caravana acontecer novamente? Qual seria o formato, a abordagem?
(risos) Vamos pensar um pouco nesta palavra, na origem (etimologia) da palavra Caravana. Pense comigo num grupo de pessoas nômades andando no deserto com seus camelos. Num deserto não tem avenidas, esquinas, sinais de trânsito, nada disso. Num deserto tem areia, vento e sol. E este grupo faz o seu percurso nômade. O que vemos hoje é um território político cada vez mais demarcado, cujos movimentos são meio que pré-definidos e controlados. Vigiados. Estamos diante de um governo genocida. O Presidente da República não gosta de gente, não gosta da vida. Ele é um cara de mal com a vida. Ele deu inúmeras declarações que nos levam a conclusão que ele prefere a morte, e ele atua para o desmonte das políticas públicas e direitos sociais que garantam, na medida do possível, vida para as pessoas. O Jair se associa a esses grupos que gostam mais de dinheiro que de gente, gostam mais de armas, têm um prazer sádico em matar, em derrubar florestas, em poluir rios, em devastar os sonhos. Eles gostam mesmo é de monocultura.
E também tem este contexto de pandemia que nos coloca em isolamento. Há alternativas? Claro que sim. Sempre há. E quando não há alternativas, isso não nos paralisa porque há também um caminho aberto para inventar, para construir alternativas. Neste sentido, há Caravanas de todo tipo a serem inventadas. Dentro da caravana tem “van”, isso mesmo, van que leva um grupo de pessoas para algum lugar na cidade, para uma viagem, para a praia. Tem as vans do SAMU, do bombeiro, do transporte público complementar. Tem aquelas vans adaptadas que viram escritório, tem as que viram casa até. Ao criar as Caravanas, vamos criando novos modos de viver na cidade, vamos criando novos encontros, novos modos de vida… Vamos criando a nós mesmos. O Paulo Freire transformou esperança em verbo: esperançar. Esperançamos caravanear por aí em nossos ativismos.
E também tem este contexto de pandemia que nos coloca em isolamento. Há alternativas? Claro que sim. Sempre há. E quando não há alternativas, isso não nos paralisa porque há também um caminho aberto para inventar, para construir alternativas. Neste sentido, há Caravanas de todo tipo a serem inventadas.
Ivan, você lançou um livro, em co-autoria com Romualdo Dias, “Pedagogias da Cidade: corpos e movimento”. É um relato sobre a sua experiência com Suzano e a política do Orçamento Participativo, certo? O livro tem muita música, muita poesia, muita cultura popular. Conta um pouco pra gente sobre essa escolha em conectar arte, orçamento e educação?
Então, é uma aposta na arte. Tem um cara de bigode grande que nos convida a “fazer da vida uma obra de arte”. Então eu me deixei levar por isso. Deixei minha escrita fluir… Uma ideia trazia uma letra de música ou uma melodia, então eu não brigava, não. Eu aceitava essa deriva e ia tentar entender porque a canção apareceu. O que ela estaria me dizendo? De onde veio a canção? Eu aceitava esses devaneios e me deixava levar. Como se ventos soprando me desviassem um pouco e, nesses percursos outras novas paisagens fossem se revelando. Deixei meu pensamento vagar como os nômades no deserto em caravanas.
Talvez eu sempre tenha me deixado derivar pela arte, sobretudo pelas canções. Escuto muita música desde muito menino. As canções foram, e ainda são, minha escola (no sentido forte da palavra), minha EJA. Assim conheci Clementina de Jesus, Ivone Lara, Cartola, Gilberto Gil, Noel Rosa, Aldir Blanc, Paulo Cesar Pinheiro… Gente mais nova como Chico Cesar, Paulinho Moska, Zélia Duncan, Adriana Calcanhoto. É tanta gente linda fazendo música. Aliás, o que seria da vida, o que seria de nós sem a música? Quero nem pensar… A arte nos atravessa… A arte produz aberturas, a arte alarga as fronteiras do possível.
Minha formação inicial é em Geografia, daí a paixão pelas cidades. Sou um andarilho, adoro vagar, andar sem destino, me perder e me encontrar como canta a Clementina de Jesus na canção “Será Mangueira”, adoro caravanear pelas cidades. Faço isso sempre que posso. Paralelo a isso, tem uma paixão pela Educação: nasci em uma família de professores e professoras. Então, à medida que fui me alfabetizando na gestão da cidade de Suzano e no orçamento público, veio o desejo de convidar mais gente para se alfabetizar também. Mais do que isso, produzir sentidos para a cidade com todo tipo de gente que mora na cidade.
Por fim, acredito na potência política da arte no sentido de abrir perspectivas para a produção de uma singularidade, nem melhor e nem pior – não se trata disso, mas singular, algum tipo de criação, de experiência estética a fim de tornar a vida um pouco melhor e mais bela.
Força Tururu: o midiativismo que mudou a cara de uma comunidade pernambucana
Organização fundada em 2008 por jovens do Tururu, localizado em Paulista, na Região Metropolitana do Recife, usa a comunicação como ferramenta para afastar os rótulos negativos sobre seu território.
Por Marília Parente
Para os integrantes do Coletivo Força Tururu (CFT), uma boa imagem é só questão de foco, ângulo e fotometria. Cansado do estigma de violência que marca os discursos produzidos pela imprensa tradicional sobre a comunidade do Tururu, localizada na cidade de Paulista, na Região Metropolitana do Recife, o grupo de jovens decidiu lançar mão dos próprios celulares, câmeras e microfones para desenvolver reportagens, filmes e videoclipes originais que ressaltam não apenas os problemas, mas a cultura e a autoestima dos moradores. Fundado em 2008, o coletivo constitui uma valiosa experiência de midiativismo de favela, que transformou a comunidade ao propor, em primeira pessoa, um espaço de negociação no qual os moradores do Tururu podem exercitar sua cidadania.
Integrante do CFT desde 2016, o historiador e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB) Elvis Pinheiro realizou seu projeto de dissertação, intitulado “Construção dos Direitos Humanos: Coletivo Força Tururu, em Paulista-PE”, a respeito da atuação do grupo pernambucano. A pesquisa, que se deu por observação participante, é produto de um acompanhamento interno das dinâmicas que estruturam a organização do grupo. “Ele é um exemplo de midiativismo de favela. Essa ideia foi desenvolvida pelo professor de Comunicação Leonardo Custódio, da Universidade de Tampere, na Finlândia. Ela se refere ao uso feito por moradores de comunidades das tecnologias da informação – como câmeras, celulares e internet – para mobilizar seu território”, explica Elvis.
De acordo com o pesquisador, o midiativismo de favela surgiu na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de denunciar a violência das operações policiais. “A polícia chega dando tiro ou alterando a cena dos crimes, mas os moradores filmam e compartilham essas ações. Alguns dos exemplos de grupos que desenvolveram essa prática são o Coletivo Papo Reto e o Voz das Comunidades”, acrescenta Elvis.
O pesquisador também chama atenção para o engajamento cultural proposto por esses grupos. “Há uma valorização da cultura dessas comunidades e iniciativas como promoção de shows e atividades culturais. O Coletivo Tururu realiza clipes com os artistas de lá, além de exaltar seus moradores, desenvolvendo sua autoestima”, continua.
Elvis pontua ainda que os coletivos midiativistas acabam esbarrando nas dificuldades para estabelecer um trabalho de promoção efetiva, já que este tipo de ação não se dá de forma capitalizada, a exemplo do que ocorre com grandes organizações, que mantêm ações regulares e efetivas graças ao apoio financeiro externo. “Seus integrantes dividem o tempo com algum emprego. Outros problemas são a falta de infraestrutura, desde a ausência de uma boa internet até dificuldades com a manutenção dos equipamentos, e as fragilidades territoriais e de raça. É possível ainda que esses grupos entrem em atrito com os interesses das lideranças políticas e religiosas de seus territórios, pois adotam posturas mais libertárias, que levam as pessoas a repensar suas posições”, acrescenta.
Apesar dos obstáculos enfrentados, coletivos como o Força Tururu possuem enorme capacidade de promover um espaço em que os indivíduos convivam com uma cultura de direitos. “Toda a cidadania básica que é negada ao morador de periferia passa a ser estimulada, a partir de uma participação horizontal. O morador se vê nas imagens produzidas, ganha vez e voz em um trabalho que pode ter grande repercussão”, conclui Elvis.
“Vez e voz”
Um dos fundadores do CFT, o educador social Cidicleiton Luiz da Silva conta que o coletivo tem suas raízes nas reuniões promovidas da Pastoral de Juventude do Meio Popular, uma articulação de orientação católica, com atuação nacional. “A gente viu a necessidade de se fortalecer coletivamente. A ideia de fundar o coletivo veio desses programas policialescos, que sempre dão um estereótipo muito negativo ao Tururu. Na época, nos deparamos com a morte de um jovem que conhecíamos, morador de uma comunidade vizinha, o Loteamento Gilberto Freyre. Apesar de o caso não ter ocorrido aqui, a imprensa citou nossa comunidade, parece que para ganhar audiência em cima da desgraça dos outros e a matéria ficar mais forte é preciso reforçar estereótipos”, conta.
O trabalho teve início com a produção do agora tradicional fanzine “Articula Tu Tururu”, que à época ainda se chamava “Nós na Fita”, de tiragem semestral e distribuição feita em escolas e instituições do Tururu. “Esse material já trouxe várias temáticas, da atuação da polícia no município à falta de água na comunidade e de medicação nos postos de saúde. Éramos jovens e queríamos vivenciar a comunidade, fazer algo por ela”, frisa Cidicleiton.
O ativista coloca, aliás, que as denúncias veiculadas pelo fanzine trouxeram algumas dificuldades para o coletivo. “Quando denunciamos a falta de materiais no posto de saúde, a enfermeira-chefe dessa unidade de saúde chegou a dizer que ia processar a gente. Isso só não aconteceu porque ela percebeu que a comunidade ficou do nosso lado nessa situação”, relata Cidicleiton. Nem sempre, contudo, o reconhecimento dos moradores foi imediato. “Algumas pessoas acham que queremos alienar através da comunicação, ou fazer um trabalho político-partidário, porque para elas não pode existir alguém fazendo algo de graça pelo bem coletivo. O Força Tururu nunca foi nosso emprego ou fonte de renda”, ressalta.
Além das fanzines, o coletivo veiculou desde o início, em seu canal do Youtube, materiais em vídeo, idealizados e executados por seus próprios integrantes. Dentre as produções, destacam-se os documentários “Tururu: Justiça, Paz e Vida” (2009), que conta a história da comunidade a partir das narrativas compartilhadas pelos moradores, e “Ele era Meu Filho” (2017), que aborda a violência policial contra a juventude periférica. “Em 2009, a gente participou de um curso da Cáritas Alemã, realizado aqui no Recife. Foram três participantes, contando comigo. Aí no final do curso as câmeras que a gente usou foram doadas para os coletivos e ONG’s que estavam participando”, conta o educador social Carmerindo de Lira Neto, que também participou da fundação do CFT.
Os conhecimentos e equipamentos obtidos alavancaram de vez as produções do grupo. “Quando fomos fazer o primeiro documentário a gente nem sabia filmar, ainda precisamos da ajuda do coletivo Gambiarra. Aí depois dessa formação, a gente começou a pegar mais em vídeo, assim como se especializar em edição. O meu processo nessa história é filmar, mas já fui até repórter em alguns vídeos, assim como fiquei responsável pela elaboração dos roteiros”, completa Neto.
Política do cotidiano
A trabalhadora informal Ana Alice Cabral de Almeida, de 22 anos, passou a integrar o Coletivo Tururu depois de participar de uma oficina promovida pelo grupo, tendo a violência das comunidades periféricas como tema. “Foi uma formação muito dinâmica, os assuntos abordados de uma maneira bem interessante, nunca tinha visto nada assim na comunidade. Eu nunca tinha me interessado por política, mas gostei tanto que acabei entrando para o coletivo”, relata. A ativista se orgulha de ter participado de diversas ações educativas no Tururu. “A primeira foi uma campanha de violência contra a mulher. Fizemos cartazes, posters, camisas e vídeos educativos para a comunidade. Mesmo sendo um trabalho voluntário, a gratidão e o retorno das pessoas faz tudo valer a pena. Aprendi a ajudar as pessoas sem querer nada em troca”, compartilha Ana Alice.
A violência contra a mulher, aliás, foi um dos objetos da pesquisa “Impactos da Violência na Vida das Pessoas”, realizada pelo CFT junto aos moradores da comunidade, no ano de 2019. Segundo o levantamento, quase metade (46,5%) do total de 71 entrevistados já presenciou algum tipo de violência doméstica durante a infância. Destes, a porcentagem de 60,6% relatou ter convivido com casos de “agressão contra a mulher”. Os resultados também apontam que 91,5% dos moradores entrevistados já presenciou algum tipo de violência na comunidade, tendo sido a maioria deles testemunha de tiroteios (81,5%), brigas (72,3%) e homicídios (64,6%).
De acordo com André Fidelis, pedagogo e integrante do CFT, o estudo foi realizado com o intuito de embasar o planejamento das atividades do grupo. “Essa pesquisa fez parte da campanha “Uma só Vida”, que teve o objetivo de debater nossa vida na comunidade, marcada por diversos traumas. Dentro da campanha, esses dados nos ajudaram a desenvolver três conjuntos de atividades: um ciclo de debates sobre segurança pública com jovens da comunidade, um processo formativo com esse público, além da organização de um núcleo de comunicação em uma escola pública”, comenta.
Fidelis chama atenção para o fato de que a Força Nacional chegou a atuar no Paulista, entre 2019 e 2021, por decisão do governo federal. Em 2018, o município havia registrado 127 Crimes Violentos Letais Intencionais, segundo levantamento da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS-PE). “Fizemos um debate junto à comunidade, sobre o porquê de a Força Nacional vir para nossa cidade e o que ela verdadeiramente traz, tendo em vista que essa ação foi pouco debatida com a população. A gente enxergou que, por muitas vezes, a Força Nacional se torna uma polícia igual à que temos aqui”, lembra.
Na ocasião, o coletivo promoveu um exercício de reflexão a respeito dos abusos policiais cometidos no Tururu. “Discutimos a necessidade de vôos rasantes de helicóptero da Polícia Militar na comunidade, abordagens que no entendimento da gente eram desnecessárias, assim como acompanhamos casos de violência policial dentro do Tururu. Quando nossos próprios dados nos mostram que a violência policial é muito presente na comunidade, é porque devemos pautar um debate ainda maior”, completa Fidelis.
Justiça, paz e vida
A violência policial, contudo, nem sempre foi um traço do Tururu. Moradora da comunidade há 21 anos, a aposentada Gênova Maria Silva, de 63 anos, descreve os pacatos primeiros anos do então Loteamento Jardim Justiça, Paz e Vida, conforme eram chamados os 23 hectares de terra cedidos pela Mitra Arquidiocesana de Olinda e Recife a 81 famílias carentes. A doação foi oficializada em setembro de 1982, pelo então arcebispo Dom Hélder Câmara. “Eu trabalhava na Igreja das Fronteiras, nas obras de Frei Francisco, uma instituição ligada a Dom Hélder. Cheguei para contribuir com a organização da comunidade, porque eles doaram o terreno, mas não tinha nada. Lutamos para conseguir água, energia elétrica, posto de saúde e transporte, pois essa região ainda era muito afastada de tudo”, lembra.
Os esforços pela transformação da área em comunidade foram concentrados pela Arquidiocese na Operação Esperança, a cujo relatório sobre o processo de urbanização da área, produzido em 1996, a reportagem teve acesso.
O documento descreve uma área de 223.100 metros quadrados, de topografia plana com duas depressões chamadas lagoa e canal, constantemente alagados. “Uma média de 400 famílias já habitam o loteamento, porém é enorme o seu estado de pobreza, uma vez que: 60% (aproximadamente) das habitações são cobertas de palha com chão batido […]. não existe rede de abastecimento de água, o que justifica o fato das famílias utilizarem precárias cacimbas, pagar bomba (pouquíssimos), não possui rede geral de esgoto e a drenagem das águas fluviais e do consumo doméstico é feita no leito das ruas, os sanitários são improvisados e na falta deste o próprio quintal serve de depósito de dejetos”, descreve o relatório.
Dona Gênova ainda se recorda das plantações de coqueiros que caracterizavam o território, bem como do esforço para erguer as primeiras casas de alvenaria. “Foi um projeto com a Cohab. Na época, ganhei um lote e resolvi vir morar aqui, construir minha casa. Foi a organização da comunidade que tornou nossas conquistas possíveis”, comenta.
Pelos serviços prestados ao Tururu, Gênova foi uma de suas três moradoras de longa data que receberam homenagem do CFT. Agora, os frutos de sua luta se materializam em um Ipê roxo, típico da região, plantado diante do prédio do Instituto Educacional e Social de Artes e Ofícios Dom Hélder Câmara, localizado na Rua Nossa Senhora do Carmo, no Tururu. “É uma emoção grande ser reconhecida por uma juventude tão atuante como uma pessoa que contribuiu com a comunidade. Tentaram construir essa imagem negativa da gente, mas hoje tem uma reação. O Coletivo Tururu mostra a comunidade combativa que somos”, conclui.
Organizações de mulheres lutam contra risco de controle reprodutivo pelo Estado
Sem diálogo amplo com a sociedade, medida do Ministério da Saúde oferta implante de anticoncepcional apenas para mulheres consideradas socialmente vulneráveis
Por Petra Fantini
O Sistema Único de Saúde (SUS) ofertará implante subdérmico entre seus métodos contraceptivos de longa duração (LARCs). Mas, para quem? Publicada em 19 de abril, a Portaria SCTIE/MS Nº 13 condiciona a incorporação do anticoncepcional de uso contínuo à criação de um programa voltado às mulheres consideradas socialmente vulneráveis. Sem delinear como o medicamento será ofertado para essa população, o texto abre brecha para interpretações eugenistas e aplicação do tratamento sem consentimento.
O público-alvo inclui mulheres em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos. Além de não considerar indivíduos transgêneros, o texto da Portaria não explica como o programa seria estruturado e não informa se o implante será exclusivamente disponibilizado para essas mulheres.
“A Portaria veio com um alvo”
Essa é a conclusão de Santuzza Alves de Souza, trabalhadora sexual coordenadora do Coletivo Rebu, que questiona a falta de diálogo do Ministério da Saúde com os grupos abarcados pela decisão. “A Portaria 13 veio de supetão, pegou a gente de surpresa. Os movimentos de mulheres em situação de rua, privadas de liberdade, trabalhadoras sexuais, entre outras, não puderam opinar”, denuncia.
O pulo do gato está no que não é dito: Santuzza pontua que o texto não diz que é um método compulsório, mas também não diz que não é. “A decisão deixa um espaço aberto para esse governo, que a gente sabe que tem todo um trabalho fascista, agir de forma higienista. Nossa preocupação é: e quem não quiser usar esse método? Será que essas mulheres em situação de rua vão poder dizer não? Será que as mulheres em privação de liberdade, que vivem sob um sistema carcerário violentíssimo, vão poder dizer não?”, questiona.
Os movimentos sociais, segundo a trabalhadora sexual, entendem que essa é uma medida racista, preconceituosa, “para que a gente não ponha filho no mundo mais”. “Entendemos que eles [o governo federal] querem nos castrar. Já vem o preconceito, o estigma, as violências, tudo. Imagina, se eu quero colocar o implante, eu tenho que ir no posto de saúde e me identificar como prostituta, que tem HIV, que é moradora de rua. Isso é muito invasivo, nos constrange”, concorda a também trabalhadora sexual Fátima Muniz, a Jade, coordenadora do coletivo Clã das Lobas.
Organizações se manifestam
Representantes das mulheres em situação de rua, com HIV/Aids, privadas de liberdade, trabalhadoras do sexo e em tratamento de tuberculose se organizam para tenta combater a medida. Os coletivos Rebu e Clã das Lobas estão entre os que assinaram a nota conjunta da campanha #EugeniaNão #AcessoUniversalSim, que lembra que “a seleção de determinados grupos para experimentos reprodutivos ou estratégias de controle natalista é uma marca indelével da história do Brasil e da saúde reprodutiva mais amplamente”.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) também se manifestou em texto pela integridade, autonomia e autodeterminação reprodutiva das mulheres. O Movimento Nacional das Cidadãs Positivas (MNCP) afirma que a decisão possui tom discriminatório. Manifestação da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras pontua, por exemplo, que “não há um motivo para limitar a terapia antirretroviral a ser utilizada para o fornecimento do implante para mulheres que vivem com HIV, uma vez que já se descartou que o dolutegravir (remédio usado no tratamento) cause malformação fetal”.
Futuro
Ofício conjunto dos Núcleos de Defesa da Mulher (Nudems) nº 03/2021 – assinado pelas coordenadoras dos Núcleos Especializados de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres das Defensorias de 13 estados –, enviado para o Ministério da Saúde em 2 de maio, questiona a fundamentação legal e técnica para essa escolha do grupo de mulheres. As defensorias ainda não obtiveram retorno sobre a demanda.
Deputadas federais de partidos de esquerda apresentaram em Plenária, em 26 de abril, um projeto de decreto legislativo para sustar a Portaria nº 13, tendo como um dos argumentos que o Relatório de Recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) concentrou sua análise em questões orçamentárias, “longe de avaliar as implicações de uma política que beira o controle de natalidade e afronta a lei que trata do planejamento familiar”. O texto ainda não foi votado.
Coletivos e organizações da campanha #EugeniaNão #AcessoUniversalSim, entraram com pedidos de Acesso à Informação para o Ministério da Saúde sobre os seguintes pontos:
- Qual o rito para elaboração da Portaria (passou pela área técnica, pelo conselho etc)?;
- Demonstrativos de cálculo que embasaram a decisão de limitar a oferta a grupos específicos;
- Estudos que levaram à edição da portaria e à escolha dos grupos definidos como vulneráveis;
- Pareceres técnicos que embasaram a edição da portaria; e
- Consultas a atores e instituições da sociedade civil que tenham acontecido, especialmente aquelas mencionadas no parecer da Conitec sobre o assunto.
Em resposta, o Ministério afirma que “os benefícios dessa tecnologia [implante subdérmico de etonogestrel] e a evidência de eficácia e segurança são reconhecidos, no entanto, o alto impacto orçamentário impossibilitou a recomendação favorável à incorporação para toda a população feminina”. O texto não apresenta os estudos solicitados no item (iii), se limitando a dizer que o segmento populacional foi “delineado pelas Secretarias de Vigilância em Saúde (SVS) e de Atenção Primária à Saúde (SAPS) do Ministério da Saúde e apresentado na 93ª Reunião da Conitec”. Leia a nota na íntegra. Não há novas ações jurídicos previstas pelo movimento por agora.
Histórico
O implante subdérmico de etonogestrel é aplicado sob a pele do braço e libera progesterona continuamente no organismo por três anos, sendo um dos métodos mais eficazes de contracepção, superior a 99%, equivalente ao da ligadura de trompas.
Segundo nota da Abrasco, em 2015 a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) já havia solicitado a incorporação do implante subdérmico com etonorgestrel, porém voltado a adolescentes entre 15 a 19 anos, tendo sido ressaltado também naquela ocasião um público preferencial designado como “populações especiais” ou “grupos vulneráveis” como beneficiários do método. A Febrasgo, inclusive, se declarou favorável à Portaria SCTIE N° 13/2021, contanto que “respeitados os critérios de elegibilidade e da autonomia da mulher”.
Na época o pleito não obteve êxito, diferente do que ocorre em 2021. O proponente desta segunda tentativa, o laboratório farmacêutico Schering-Plough, sugeriu que o método fosse disponibilizado a mulheres entre 18 e 49 anos. O Relatório de Recomendação da Conitec, no entanto, diz que “as evidências são favoráveis ao implante de etonogestrel, mas que a ampla população proposta pelo demandante [mulheres entre 18 e 49 anos] juntamente com o impacto orçamentário estimado, dificultaria a incorporação desta tecnologia no SUS”. Mantendo sua avaliação econômica, a Conitec defende que a medida vai gerar uma economia aos cofres públicos que totaliza R$ 1,2 bilhão, ao final de cinco anos.
Contatado diversas vezes, o Ministério da Saúde não respondeu os questionamentos da reportagem: o contraceptivo será de acesso universal aos usuários do SUS? Como será o funcionamento do programa? Como foram definidos os grupos de mulheres contempladas? A colocação do implante será obrigatória para esse público-alvo? Entidades representativas dessas mulheres foram consultadas para a elaboração da Portaria? Como o Ministério da Saúde responde às críticas de que a Portaria estaria tolhendo o direito reprodutivo das mulheres incluídas no programa?
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Por Penhas e Izadoras: trabalhadoras sexuais criam rede de apoio na pandemia
Coletivos de Belo Horizonte unem forças para contornar falta de trabalho e de apoio do Estado
Por Petra Fantini
Fotos de Cadu Passos
“Nós estamos fazendo o trabalho que era para ser feito pelo poder público”. A declaração de Fátima Muniz, a Jade, coordenadora do coletivo Clã das Lobas, ilustra bem como as organizações de mulheres trabalhadoras sexuais estão lidando com a pandemia de Covid-19. As crises sanitária e econômica do período, que se retroalimentam, espantaram quase todos os clientes do circuito de hotéis do centro expandido de Belo Horizonte, conhecido como hipercentro – a estimativa conta que o movimento esteja até 80% menor –, fazendo com que as trabalhadoras precisem contar com sua rede de apoio para subsistência.
Jade explica: “A maior parte dos clientes são o quê? Trabalhadores. A pessoa que tem alguma coisa pra fazer no centro, aproveita e passa nos hotéis. Mas todo mundo tá desempregado, quem tem dinheiro? Os R$ 30 reais que paga em um programa vão fazer falta na casa dele”.
“Não é só alimentação. Você tem aluguel, luz, água. Se sua criança fica doente, é um remédio que você tem que pagar. E, sem renda, você fica sem condições de fazer isso tudo”, alerta Santuzza Alves de Souza, coordenadora do Coletivo Rebu. No início da pandemia, o coletivo fez um folder orientando as trabalhadoras sobre o uso de máscara, como se comportar com o cliente e a importância de trocar de roupa ao chegar em casa, para não contaminar o lar. O kit, que continua a ser distribuído, é composto também por duas máscaras, preservativo, álcool em gel e gel lubrificante.
Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras
A pandemia de coronavírus foi o pontapé inicial de um projeto que servirá de amparo às trabalhadoras sexuais a longo prazo, se o piloto for bem-sucedido. A Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras, em funcionamento há três meses, foi pensada prevendo o fechamento dos hotéis do hipercentro onde as trabalhadoras sexuais atuam. Os estabelecimentos acabaram não fechando, mas a moradia segue acolhendo aquelas impactadas tanto pela falta de trabalho causada pela crise sanitária quanto por quaisquer outros problemas que afetem sua saúde física e mental.
O nome homenageia duas trabalhadoras sexuais. “Penha foi assassinada do meu lado, a duas portas de distância, lá no hotel. E Izadora foi uma mulher trans que foi assassinada também. São duas mulheres que morreram com violência, então queríamos homenagear uma mulher cis e uma mulher trans no nome da Casa”, conta Jade, uma das idealizadoras do projeto.
Santuzza Alves de Souza, do Coletivo Rebu
O apartamento, localizado no bairro Jardim São José, pode abrigar um número não exato de mulheres, quantas forem necessárias no momento. No início, as regras eram mais rígidas: não era permitido sair durante o período de hospedagem, para proteger as demais moradoras do risco de transmissão de Covid-19. O modelo, no entanto, não atendia à realidade das trabalhadoras. Para não as afastar, Jade decidiu ser mais maleável. Hoje, qualquer trabalhadora sexual que precise ficar por alguns dias, ou que precise morar por tempo indeterminado, é bem-vinda. A única condição é não ter filhos, pois a moradia não está preparada para receber crianças.
“Tinham muitas mulheres com a saúde mental precária. Lá elas podem ficar dois, três dias, dormir, descansar, se alimentar melhor. Ao trabalhar em hotel, você acorda pensando na diária. Eu falo isso porque eu trabalho dentro de hotel faz 20 anos. Você já acorda com uma dívida de R$ 120, R$ 170. E não tem movimento, os clientes sumiram. E os donos dos hotéis não amenizaram, não baixaram o valor diária, não”, relata a coordenadora do Clã das Lobas. Também há 20 anos atuando como trabalhadora sexual, Claudineia Mota Vieira é uma dessas mulheres que passam algumas temporadas no local, em busca de descanso e de cuidar da saúde. “A dificuldade lá fora tá muita, pra poder ficar nos hotéis paga muito caro, e não tava dando mesmo”, conta.
Além de um local para dormir e se alimentar, a Casa também oferece cursos de artesanato, aromatizantes, massagem tântrica, serviços de beleza (design de sobrancelhas e alongamento de cílios e unhas), entre outros. O objetivo é, além de entretê-las e trabalhar sua saúde mental, capacitá-las e possibilitar uma fonte de renda extra. Jade é enfática ao garantir que não quer tirar ninguém do trabalho sexual, mas que a pandemia as ensinou sobre suas próprias vulnerabilidades. “Nós temos que ter outro modo de ganhar dinheiro. Nós percebemos que estamos envelhecendo, que nós somos vulneráveis, que ninguém nos ajuda. Somos nós por nós mesmas”, diz.
As professoras das aulas são outras mulheres cis e trans trabalhadoras sexuais. Depois de capacitadas, as ex-alunas, trabalhadoras que estejam hospedadas lá ou não, podem passar o conhecimento adiante para as colegas. Os cursos e demais despesas da Casa, atualmente, são financiados pelo Fundo Elas, investimento social voltado exclusivamente para a promoção do protagonismo das mulheres, e pela Escola de Ativismo.
Dona do bar vizinho ao prédio onde fica a moradia, Maria de Fátima Santos vive uma relação de troca com as acolhidas. “Até eu de vez em quando participo dos cursos. Vou lá bater papo e acabo fazendo junto com elas, faço almoço, ajudo com alguma coisa. É bom porque eu sou sozinha, né, então é uma terapia. Vou ajudar e acabo sendo ajudada”, conta, entre risos. O movimento do seu bar, segundo Fátima, “caiu 99%” durante a pandemia. “Pra mim tá sendo ótimo. Me distrai, não fico pensando só em dívida. Me tranquiliza um pouco”, afirma.
A ilustradora Izadora Flor entrou no início do projeto. “Como todo mundo sabe, na realidade das mulheres trans a prostituição é algo que é imposto. Eu não necessariamente exerço a profissão. É bom deixar isso bem claro, assim, eu não estou com vontade. Eu trabalho com ilustração no Instagram, mais vinculado à saúde mental e sexual de mulheres trans, e tenho outros projetos pessoais voltados para a arte mesmo”, conta Iza, como é conhecida. Hoje, ela já voltou para a casa de sua família. Através do curso de massagem tântrica oferecido pelo projeto, ela ganhou uma bolsa no Kaya Terapias para seguir seus estudos.
Em julho, a participação do Fundo Elas se encerra e entra o Fundo Positivo, Fundo de Sustentabilidade às Organizações que trabalham no campo do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Mobilizado pela Aprosmig, o Fundo Positivo ficará responsável apenas pelo aluguel da Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras, portanto tanto a Associação quanto o Clã da Lobas estão em busca de parcerias e de doações para manter o pleno funcionamento do local. A longo prazo, o objetivo é mudar para um local maior, com mais estrutura, e regulamentar a Casa de Acolhimento.
Jade, trabalhadora sexual, coordenadora do Coletivo Clã das Lobas
Duas mulheres
Penha estava trabalhando em um hotel da rua Guaicurus – rua do baixo Centro de Belo Horizonte conhecida por reunir diversos hotéis onde trabalhadoras sexuais atuam – no dia em que foi assassinada no quarto, por um cliente. Ela tinha mais de 60 anos. “Foi uma dor, uma coisa assim, surreal. Foi o segundo assassinato que eu presenciei, a gente sente um pouco na alma. Pode ser uma de nós. Ela passou pela gente, riu, nos cumprimentou, entrou no quarto e meia hora depois foi morta”, conta Jade. O suspeito, que hoje responde à acusação em liberdade e ainda frequenta os hotéis da região, culpa a vítima, alegando que foi impedido de sair do quarto. Já Izadora viu o fim de sua vida em um ponto de ônibus perto de casa, a caminho do trabalho. Segundo Jade, não se sabe se o crime foi motivado por transfobia. “Ela fazia parte do Projeto Mina, da Escola de Ativismo” conta. Desde março de 2020 o Projeto Mina realizou uma inciativa que apoia ações coletivas para a promoção da dignidade e visibilidade das reivindicações das trabalhadoras do sexo cisgêneras, transexuais e travestis de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Com a morte da participante decidiram homenageá-la e o processo passou a se chamar Jornada Izadora. Amiga e colega de trabalho dessas mulheres, hoje homenageadas na Casa, Jade questiona a violência a que são submetidas: “‘Ah a Penha foi assassinada porque estava na zona, não estava em casa, não estava cuidando dos netos’. E a Izadora que estava em casa? Estava indo trabalhar e foi assassinada no ponto de ônibus? É como se nossa vida não nos pertencesse, qualquer pessoa acha que tem o direito de nos tirar a vida”.
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Guerra psicológica
Izadora Flor, ilustradora, acolhida pela Casa
Na medida do possível, as notícias sobre as mulheres da Guaicurus são “boas”: Jade não sabe de nenhum caso de morte por Covid-19. O assunto da infecção por coronavírus é muito delicado nos hotéis. Afinal, os estabelecimentos estão em constante risco de serem fechados por medidas de segurança sanitária. “Nós tivemos que ter jogo de cintura para não criar inimizade, não fechar as portas e a gente conseguir atender e acolher as trabalhadoras. Foi uma guerra psicológica com dono de hotel”, relata a coordenadora do coletivo Clã das Lobas.
A desconfiança dos proprietários do hipercentro também se estendeu à abertura da própria Casa de Acolhimento para Penhas e Izadoras, inicialmente visto como um local de concorrência na prostituição. “Durante meu trabalho na Guaicurus já fiquei doente e já vi mulheres ficarem doentes dentro dos quartos, porque não tinham para onde ir. A grande maioria delas são de outros estados, elas vão pra onde? Trabalham doente, o dono não quer saber, quer a diária dele. A gente não tinha esse suporte, mas agora, com a Casa, vai ter”, comemora.
O apoio do Estado é mínimo
Por parte do governo federal, as trabalhadoras sexuais e demais trabalhadores brasileiros prejudicados pela pandemia contam apenas com o auxílio emergencial que, se já não era ideal no valor de R$ 600, se tornou praticamente irrisório no valor de R$ 150. Voltado às famílias consideradas em situação de extrema pobreza, está para ser sancionado pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema, o Força Família. O auxílio emergencial pagará uma parcela única de R$ 600 para chefes de família registrados no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CADúnico).
Ajude a casa para Penhas e Izadoras
As doações e ofertas de parceria para a Casa de Acolhimento Provisório podem ser feitas para Jade ou Taís, também membra do Clã das Lobas. Entre em contato através dos telefones abaixo:
Jade: (31) 99549-5368
Taís Leão: (31) 97542-5392
Já a prefeitura de Belo Horizonte distribui, mensalmente, cestas básicas e kits de higiene para diversos grupos sociais enquanto durar a situação de Emergência em Saúde Pública por causa da pandemia. A Secretaria Municipal de Saúde mantém o Programa BH de Mãos Dadas Contra a AIDS com ações voltadas às profissionais do sexo. Desde março de 2020, o programa faz ações diárias de conscientização sobre as medidas de prevenção como uso de máscaras, distanciamento social e higienização constante das mãos, com abordagens nos hotéis, casas e pontos de prostituição em vias públicas. Foram distribuídas 16.691 máscaras até 21 de maio, quando a Secretaria foi contatada pela reportagem.
O Programa realizou ainda 228 testes em trabalhadores sexuais interessados, apenas no período de 17 a 31 de agosto de 2020. Atualmente, o BH de Mãos Dadas também busca por sintomáticos respiratórios em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de encaminhá-los para avaliação clínica nas unidades de saúde e posteriormente para o Serviço de Acolhimento Emergencial para isolamento social. O serviço é focado em infectados que não conseguem fazer o distanciamento social nos hotéis ou nas suas residências.
Assim, a Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), comandada por Cida Vieira; o Clã das Lobas, representada por Jade e o Coletivo Rebu, através da figura de Santuzza, são as principais organizações de trabalhadoras sexuais responsáveis pela assistência dessas mulheres e arrecadação de doações, que incluem fraldas e itens de higiene para as que são mães. Elas contam ainda com uma rede de apoio mais ampla de movimentos sociais, como o Projeto Compaixão, comandado por Delma Soares de Souza; o Projeto Mina, da Escola de Ativismo; e o Diálogos pela Liberdade, da Pastoral da Mulher.
Quando o baque da pandemia veio, Jade já estava preparada. Ainda em março de 2020, ela conduziu uma série de reuniões com a Pastoral e Secretarias Municipais, como de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, tentando cobrir todas as frentes de assistência a mulheres, pessoas LGBT e imigrantes. “Todas as frentes foram cobertas, porque nós nos dividimos. Nós nos fortalecemos, isso foi bom pro movimento”, garante Jade.
Memes e Stickers sobre senhas
#JuntesnaRede, uma Campanha de Cuidados Digitais.
O uso da internet no Brasil cresceu entre 40% e 50% durante a pandemia de Covid-19, segundo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Com a crescente necessidade de utilizar serviços online, percebemos com mais nitidez como a tecnologia está presente em nossas vidas. No celular, computador, notebook ou tablet realizamos videoconferências, compras, procuramos qual o melhor caminho para chegar a um determinado local, guardamos nossos contatos, tiramos fotos, solicitamos auxílios, pagamos contas, criamos perfis em redes sociais. Quanto mais ficamos online e interagimos nas redes, também se torna mais fácil ficar exposto como nos identificamos e informações sobre nossos hábitos, gostos, opiniões e até nossos dados pessoais. Mesmo com tantas informações colocadas na rede, ainda realizamos poucas medidas para protegê-las.
Pensando nisso, a Escola de Ativismo iniciou a #JuntesnaRede, uma Campanha de Cuidados Digitais. O objetivo é estimular o debate e divulgar produções de materiais sobre ferramentas e práticas de cuidados cotidianos para diminuir vulnerabilidades comuns e melhorar nossos usos das tecnologias.
Para nós os cuidados digitais fazem parte dos cuidados integrais e do autocuidado, assim ao longo de quatro meses, a campanha irá divulgar na página Cuidados Integrais e nas redes sociais da Escola de Ativismo informações em formatos de texto, infográficos, memes, stickers, podcasts sobre temas como senhas, plataformas de videoconferências, mensageiros, cuidados com o celular e backup.
Em maio, o primeiro mês da Campanha, o tema será senhas! Tão presentes em nossas vidas que não há um dia sequer que não tenhamos que criar, digitar, lembrar, atualizar (ou até recuperar) senhas! E que tal fazer novas senhas de forma segura e inspiradoras? Acesse a página ativismo.org.br/cuidadosintegrais e siga a hashtag #JuntesnaRede nas nossas redes sociais (Facebook e Twitter) para acompanhar todas as dicas.
histórias de senhas
Histórias de senhas
Por Jacqlyn Phillips
Sarah escrevia suas senhas como se fossem histórias para lembrar melhor delas. Suas antigas senhas-histórias eram algo como:
A BURGUESIA NÃO USA BUFFETS
ELES SÃO EXPERTS EM COMIDA
ELES CONSIDERAM BUFFETS REPUGNANTES
APERITIVOS, POR EXEMPLO, NEM SÃO SERVIDOS
ENTÃO A BURGUESIA VAI À TCHECOSLOVÁQUIA
Ela construía suas senhas-histórias com palavras escritas de maneira errada, estrangeirismos, ou com palavras esquisitas como termômetro e presbiteriano. Seu raciocínio era de que hackers mal-intencionados ficaram tão dependentes do autocorretor que eles não saberiam como escrever bacharelado mesmo que isso os chutasse no cóccix.
Sua senha-história mudava a cada três anos por medidas de segurança. A mudança não era para ser uma grande coisa, entretanto, tendia a coincidir com um grande acontecimento em sua vida. Sua última senha-história havia terminado há dois anos, junto com um relacionamento que tinha durado tanto quanto a senha-história.
Sarah não gostava de pensar que o mundinho interno de suas senhas-histórias estava conectado ao mundo exterior. Isso significaria conexão e Sarah não gostava de conexão porque conexão significava profundidade e Sarah não caminhava bem por profundidades. Sarah queria que a vida fosse como a língua rosa de um cachorro feliz. Mas pensar que a vida seguia aquela língua rosa para dentro de processos profundos e obscuros era devastador.
Sua senha-história atual estava se desenrolando assim:
OS RINOCERONTES PRECISAM DE VIGILÂNCIA
SEU TERRITÓRIO BEIRA O DO GNU
O GNU NÃO É NECESSARIAMENTE VOYERISTA
MAS SEUS MESTRES ELFOS SÃO E
OS ELFOS USAM DACHSHUNDS COMO PRAGA
PARA DENTRO DE LUGARES APARENTEMENTE IMPENETRÁVEIS
DESTE MODO DIMINUINDO O OUTRORA VANTAJOSO TAMANHO
DE UM RINOCERONTE
Ela gostou. Continha todos os marcadores de uma boa história-senha: respeitável e bem cuidada; como roupa íntima limpa: se fosse para ela morrer e ser examinada por estranhos, isso falaria a seu favor postumamente.
O único problema com o processo da senha-história era trazer novas senhas à existência. Sarah não queria escrever uma senha-história ruim. Ela nunca havia escrito uma senha-história ruim na vida. Por mais que ela temesse um ataque malicioso de um hacker, ela temia mais escrever uma senha-história ruim.
Mas a dificuldade de criar novas senhas havia aumentado desde que Sarah foi morar com Kevin. Kevin apoiava a ideia de uma internet livre. Ele apoiava tanto a ideia de uma internet livre que ele se recusava a pagar por qualquer coisa. Por isso, Kevin não apenas assinava novos serviços o tempo todo, como ele também renovava essas assinaturas, criando novas contas antes que o período de trinta dias de teste expirasse. O fardo disso era enorme, e caiu sobre ambos igualmente, mas Sarah sentiu de forma mais intensa porque ela se fixava nos altos padrões de uma senha-história bem escrita.
E então subitamente era março. A monotonia das semanas de inverno havia se intensificado como a neve, e se transformado em um rosto rochoso e escorregadio que fez Sarah tropeçar através do tempo. Ela havia tropeçado de outubro para segunda e para domingo e para março sem saber como havia chegado lá. Ela se sentia bloqueada e o fio da história de sua senha deixava isso aflitivamente claro. As senhas pareciam estar canalizando o estresse de sua autora. Apenas na semana passada, Sarah abriu quatro novas contas, que a deixaram com a seguinte composição:
OS ELFOS TINHAM TOTAL CONTROLE SOBRE
OS RINOCERONTES, AS PRAGAS E OS DACHSHUNDS
E OS COLOCARAM UNS CONTRA OS OUTROS
PARA DISTRAÍ-LOS DO INEVITÁVEL…
Foi a elipse que a espantou. Ela quase cancelou a assinatura de HelloFresh para a qual ela criou a senha. Ela nunca usou elipse em suas senhas. A palavra ‘reticências’ poderia ser útil, mas gramaticalmente empregar uma elipse que deixasse uma senha-história em suspense mostrava uma falta de controle. Seu controle sobre sua senha-história interior estava afrouxando. Ela conseguia ver isso em sua acelerada falta de cuidado. Ela era como um cachorro assistindo malas se acumulando na sala de estar: algo estava prestes a acontecer e não havia nada que sua doce passividade pudesse fazer a respeito.
Então a festa. Todos amontoados ao seu redor. Eles queriam uma playlist de Lady Gaga, sem comerciais. Alguém precisava criar uma conta paga no Spotify, e era seu computador, sua festa, e seu namorado incitando o pedido:
“Amor, nós precisamos fazer isso”, ele disse.
Mas sua mente estava inebriada. Ela não conseguia lembrar onde havia parado em sua senha-história. Eles já haviam feito a coisa inevitável? Ou ainda estavam esperando?
Ela se sentou diante do computador. Um impulso expandiu seu peito. Ela abriu a boca para bocejar, encontrou-se à beira de um grito, fechou a boca e redirecionou o impulso para seus dedos.
“Meu Deus,” ela sussurrou, encarando o resultado na tela. “Isso é violento.”
Ela se virou para a festa. Eles a observavam como em um aquário. Ela se sentiu como um peixe.
“O quê? Sarah? O quê?”
Ninguém conseguia ler aquela horrível incriminação. A senha não estava visível, só apareciam os asteriscos. Ela estava protegida dos julgamentos. Ela se voltou para a senha. Graças a Deus. Asteriscos. Oh, merda. Asteriscos. O que era mesmo?
“O quê? Sarah! O quê?”
Alguém no fundo da sala pediu Bad Romance.
“Eu não sei!”, ela gritou.
Kevin foi até lá e terminou de preencher as informações de Sarah. Bad Romance berrava. Ela dobrou suas mãos em seu colo e fingiu estar bêbada, mas o tempo todo ela pensava: merda.
No próximo dia, domingo, a conta do Netflix do casal atingiu seu vigésimo nono dia de atividade, e foi pedido à Sarah que criasse uma nova.
Kevin estava ávido:
“Amor, precisamos fazer isso agora.”
Sarah se moveu automaticamente para o computador. Ela levou suas mãos ao teclado, esperando a sonata, quando ela se deu conta: merda.
NADA — ela pensou — AQUI NÃO TEM NADA
Ela se levantou em um sobressalto.
“Vou tomar banho primeiro.”
Ela ligou o chuveiro e se confinou no banheiro, observando o vapor inundar o espelho e tentando evitar imaginar a mesma coisa acontecendo dentro de seu cérebro.
“Merda,” ela sussurrou. “O que eu escrevi?”
Ela recapitulou a noite: havia vinho. Ela bebeu o vinho. O rótulo era lindo e ela queria apreciá-lo mais, então ela continuou bebendo. Depois, ela foi para a sala de estar. Uma tranquilidade. Eles se voltaram para ela e ela se sentiu como um peixe e então:
“Merda!”
O espelho embaçou. Ela desenhou dois olhos e sobrancelhas franzidas.
“Violência,” ela sussurrou repentinamente.
Ela correu para o computador:
OS ELFOS CORTARAM MEMBROS E SOLDARAM FERIDAS
Negado.
Ela adicionou um ponto de exclamação.
Negado.
Ela tentou um ponto final.
Negado.
Ela colocou ‘12345’ depois.
Negado. Tudo era negado. A vida era negada.
“Amor, você está fazendo a conta?”
“Não!”
Ela voltou para o banheiro.
“Que coisa, Sarah,” ela sussurrou para o espelho. “Por que você teve que ficar bêbada ontem e bancar a heroína? Violência. Alguma vez usamos violência? Quando? Como vou recuperar isso?”
Suas senhas-histórias nunca haviam sido violentas. Sua opção por elfos foi mais romântica do que violenta. Na época, ela vinha sofrendo com a falta de romance, e elfos magicamente entraram em sua mente. Ela estava abrindo uma conta do Paypal. Depois, ela foi morar com Kevin.
Mas aquilo tinha sido de uma violência absoluta. O que houve? Seu apetite por romance havia se transformado nisso? Isso iria ficar sexual? Ela deveria avisar Kevin?
Essas eram as perguntas profundas que ela abominava e evitava.
“Merda.”
Depois do banho ela voltou para a cozinha. Quesadillas da noite anterior estavam ainda em um prato. Seu estômago encolheu. Quesadillas nunca deveriam ficar frias. Muito pouco separa uma quesadilla fria de uma pizza fria e, ainda assim, os princípios que dividem suas comestibilidades se estendem além de oceanos. Era nojento. Ela franziu a testa.
Kevin entrou:
“Você fez?”
“Quem pediu quesadillas?”
“Você.”
“Eu não.”
“Você as fez.”
“Do que você está falando? Eu nunca faço quesadillas. Eu odeio quesadillas.”
“Você fez ontem à noite.”
“Merda.”
Sarah bateu no duro mármore da pequena cozinha. Kevin amontoou suas sobrancelhas como amontoa suas cuecas, ou pelo menos, neste momento, é como Sarah interpretou.
“Você fez?”, ele perguntou.
“Você acabou de dizer que eu fiz!”
“A conta, Sarah. Você fez a conta?”
“Não posso agora.”
“Olha,” ele disse, “você precisa tomar um Advil.”
“Não me fale isso. Você sabe que eu odeio quando as pessoas me dizem o que eu preciso tomar.”
“Amor, eu não posso fazer a conta. Se eu fizer a conta, eu terei que fazer um endereço novo de e-mail e eu já tenho e-mails demais.”
“Apague alguns.”
“Isto é impossível. Eu teria que separar um dia inteiro para resolver quais guardar e quais jogar fora e hoje é domingo. Então, ou eu gasto nosso domingo fazendo isso, ou nós podemos curtir o dia juntos. Você decide.”
“Que merda, Kevin.”
“Me fala quando você tiver feito a conta.” Ele pegou o prato de quesadilla. “Eu não sabia que isso seria um problemão.”
Ele arregalou seus olhos ao falar problemão, um claro antagonismo, que Sarah absorveu. Ela absorveu muitos antagonismos. Absorver antagonismos permitia a ela tolerar mais chateações do que as pessoas geralmente toleram — algo que ela achava fazê-la uma pessoa Zen e ela gostava de se imaginar Zen. Mas ela não era boa em liberar as coisas que absorvia. Elas tinham a tendência de inflamar. Então, ao invés de envelhecer lentamente como uma princesa Buda de expressão tranquila, ela se sentia lentamente inchando, virando um peixe balão.
Ela bateu no mármore duro da pequena cozinha novamente.
“Merda.”
Ela se sentou em frente ao computador. Ela odiava seu computador. Era como um primo do gato de Alice no País das Maravilhas em forma de caixa, sempre com um sorriso dentado ostentando seus segredos, uma cornucópia de fruta moderna, flutuando em éter— merda— merda— merda.
OS RINOCERONTES EMPALARAM ANALMENTE OS ELFOS
Negado.
AS PRAGAS SENTARAM NOS DACHSHUNDS
Negado.
AS PRAGAS CAGARAM NOS DACHSHUNDS
Negado.
BESTIAL TODO MUNDO FICOU BESTIAL 12345
Negado.
“Que merda!”
“Você está fazendo a conta?”, veio a voz de Kevin.
“Não! Por que violência?!”
Violência nunca esteve em questão. Que influência a havia levado a escolher violência? Ela tinha visto algo que não sabia que viu? Ela estava com raiva? O que estava acontecendo?
Kevin entrou na sala:
“Você fez?”
“O que eu acabei de te dizer, Kevin? Eu disse não.”
“Jesus.”
Ele bateu a porta.
Isso era ruim. Se Sarah não conseguisse lembrar isto, então ela teria que escrever uma nova senha-história do zero. Ela teria não apenas que passar por todo o arame farpado emocional de mudar anos de informação de contas e mais incontáveis frivolidades de Kevin, como teria também que pensar em uma história inteiramente nova para contextualizar tudo, de modo que ela se lembraria depois. Ela não estava pronta para isso. Isso significava merda profunda. Isso significava mudar.
“Merda. Merda. Merda. Merda.”
Ela foi para a varanda e pegou seu tapete de yoga. Ela fez a posição de Lótus. Ela tentou ficar Zen — Gaga— Bad Romance estava vindo alto da sala de estar.
“Como você está ouvindo isso?”, ela disse, correndo para dentro.
“Amor, é Gaga,” Kevin respondeu, “Quem não está ouvindo isso?”
“Não, a conta! Como você voltou para a conta do Spotify!?”
“Eu não voltei. Nós estávamos nela o tempo todo.”
“Nós não desconectamos?”
“Nós nunca desconectamos. Você sabe disso.”
“Então, já estamos conectados,” ela empurrou Kevin para fora da cadeira. “Por isso nada funcionou quando eu digitei hoje de manhã. Nós já estávamos logados com este e-mail. Meu Deus— espera. Então, eu posso apenas… pedir para mudar de senha?
AMOR ENTRE DIVERSOS
Feito. A senha foi modificada. Ela imediatamente abriu o site do Netflix:
AS CRIANÇAS DO AMOR ENTRE DIVERSOS
Outras senhas vieram como dominós para uso futuro:
MELHORARAM AS RELAÇÕES ENTRE AS ESPÉCIES DE MODO QUE
OS RINOCERONTES, AS PRAGAS E OS DACHSHUNDS
SE TORNARAM UMA ESPÉCIE DE SUPER AMOR
ISSO SUBSTITUIU A SUPREMACIA DOS ELFOS
E A PAZ REINOU COM PULSO DE FERRO
Eles passaram o resto do domingo com uma alegria caseira. Sarah se sentiu bem. Mas, uma vez de volta à cozinha, ela viu o prato de quesadilla vazio e seu estômago encolheu: ela não havia corrigido seu erro. Ela apenas teve sorte. E sorte não muda uma pessoa. Apenas muda a direção de uma pessoa. A violência de sua indiscrição bêbada era um resultado de algo que ela ainda possuía. A única diferença é que agora ela sabia que estava lá. Isso era bom ou ruim?
“Merda.”
Ela se sentou no sofá e tremeu.
“Com frio, amor?”
Kevin pegou um cobertor e esparramou sobre eles. Ela o beijou na bochecha. Eles iniciaram uma série nova.
E A PAZ REINOU COM PULSO DE FERRO.