Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Os tiros do Massacre de Pau D’Arco seguem matando
Por José Vargas Júnior
O advogado José Vargas Júnior, que acompanha o maior massacre no campo dos últimos 20 anos, fala sobre a potência destrutiva dos crimes estatais, sob um verniz de legitimidade construído pela justiça, sociedade e mídia
Dez camponeses foram assassinados pela polícia em Pau D’Arco, no Pará, em 24 de maio de 2017 l Foto: Arquivo/Agência Brasil
A violência do Estado é construída e tida sempre como legítima. Descobri isso muito antes de entrar na faculdade de Direito. Descobri ainda criança quando, assistindo o jornal local, fiquei atônito diante das cenas que mais tarde tomariam o mundo: Marisa Romão, repórter da afiliada do Sul do Pará da Rede Globo, acuada junto com sem terras dentro de um dos barracos de madeira existentes na curva do S, em Eldorado dos Carajás, abre uma fresta de porta e grita para os policiais militares que cercam os barracos: “Por favor, para, eu sou a repórter, só tem mulher e criança lá”. A imagem tem a estética da violência: o breu do barraco sendo iluminado por uma fresta que cega os olhos dos que fogem em pânico.
“Só tem mulher e criança” era a senha de que aquelas pessoas não estavam no rol das que podiam ser sumariamente executadas pelo Estado, ao menos não na frente das câmeras de TV. “A polícia só revidou” foi a versão oficial do Estado. “Fez uma limpa, só matou bandido” foi a versão extraoficial repetida à exaustão especialmente pelos distintos senhores do latifúndio.
A “justiça” aplicada em Eldorado dos Carajás já era descrita no primeiro parágrafo da obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault, quando cita os autos processuais que condenaram Robert-François Damiens no ano de 1757 a ser conduzido nu ao local de sua execução. Damiens também foi torturado com chumbo, azeite, piche, cera e enxofre derretidos. A partir daí, Foucault mostra como as reformas da lei penal vão décadas depois colocar fim aos suplícios, uma transformação onde o castigo vai começar a ceder lugar para um projeto humanista de recuperação do indivíduo. Mas será que algo de fato mudou?
Bem, após esta revolução do processo penal, a humanidade ainda conviveu com a escravidão negra e seus martírios, tendo o Brasil o nada honroso título de último país do mundo a abolir a escravidão. Conviveu na metade do século XX com o nazismo e todo o horror dos campos de concentração e sua máquina de moer gente. Conviveu com a segregação racial nos Estados Unidos que antecedeu e sucedeu o nazismo alemão e inspirou a política estatal do apartheid na África do Sul.
Embora a história sempre registre a existência de indivíduos que se rebelaram contra o que hoje julgamos violações contra a dignidade humana, a verdade é que elas só existiram porque adquiriram o status de “legal e justo”.
A ideia de que a justiça estava sendo feita também foi repetida naquele que foi o maior crime no campo desde as mortes em Eldorado dos Carajás, o Massacre de Pau D’Arco, em 2017. As forças policiais novamente optaram pela execução sumária de 10 trabalhadores rurais. A diferença é que agora eu não era mais um mero expectador chocado diante da TV: eu era o advogado dos trabalhadores assassinados e dos sobreviventes.
Dias difíceis antecederam o massacre, pois ele era anunciado na cidade. Dias ainda mais difíceis sucederam o massacre: acolher os sobreviventes; suportar o luto da perda de amigos; amparar a revolta de familiares que perderam pais, filhos, irmãos; afirmar a obviedade de que foi um massacre e não um confronto; tentar assegurar que o Estado investigasse seus próprios crimes.
O que quero dizer é que a violência do Estado é mais potente do que qualquer outra violência, não apenas por seu aspecto objetivo e cunho simbólico, mas porque desencadeia diversos tipos de violência.
Em 24 de maio de 2017, o Estado assassinou dez pessoas, mas muitas outras morreram naquele dia: G. aparenta estar vivo mas também foi morto, quando com 15 anos teve que enterrar seu pai, sua mãe e milhares de sonhos. Abandonou a escola, morou nas ruas, cometeu pequenos delitos para sobreviver e só recentemente saiu do abrigo para menores em que estava internado. Abrigo e internação que não passam de nomes palatáveis para a política estatal de encarceramento de jovens pobres em lugares que na maioria das vezes são infernos piores do que as prisões para adultos.
Verônica também morreu naquele dia. Ainda que tenha levado alguns meses para ser enterrada, permaneceu em pé para sepultar os dois filhos com quem morava e que cuidavam de sua saúde debilitada. Depois, deitou na cama e aguardou a morte se compadecer de seu corpo, que por um quadro de diabetes agravado por sessões de hemodiálises e depressão profunda, foi levando ela aos poucos. Primeiro perdeu uma perna, depois outra. Porém, quem a conheceu, como eu, sabe que a primeira coisa que a morte levou dela depois do assassinato dos filhos foi o brilho no olhar.
B. aguardava o pai para uma comemoração tripla: seu aniversário de seis anos, o da avó e o aniversário de casamento dos pais, todos dia 24 de maio. Ao invés disso, ela teve que enterrar seu pai. Sua avó enterrou o filho, e sua mãe o esposo. Um ano depois, enquanto deixávamos o cemitério ela me disse: “Acho que eu nunca mais vou poder acender vela de aniversário porque agora tenho que acender vela para meu pai, né?”.
Fernando Araújo dos Santos viu seu namorado ser assassinado ser morto e foi assassinado em janeiro de 2021 l Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil
Fernando não pôde enterrar o namorado assassinado em Pau d’Arco porque ele próprio era um sobrevivente, foi incluído no programa de proteção à testemunhas, abandonou o programa e voltou para a fazenda Santa Lúcia, local do massacre. Lutava contra a morte com bom humor, fazendo piadas e dando risada. A bala disparada contra ele naquele 24 de maio de 2017 era vagarosa, só o alcançou no dia 26 de janeiro de 2021. Ele foi encontrado morto com um tiro na nuca Um dia antes me deixou mensagem falando que mais uma vez estava indo embora da Fazenda Santa Lúcia pois estava com medo de morrer.
Mas a violência do massacre de Pau D’Arco não começou naquela manhã chuvosa de 24 de maio. O assassinato a sangue frio é só uma das formas de violência que o Estado encontra para impor sua vontade, e muitas vezes tem que abrir mão desse expediente outrora enaltecido por causa da perturbação da “turma dos direitos humanos”, como diria um deputado federal que correu para defender os executores do massacre.
Os “mandados de homicídio” de Pau D’Arco foram precedidos por mandados de prisão contra 14 pessoas, dentre elas Jane e Fernando – “vulgo Homossexual”, como consta escrito no mandado, ainda que Fernando nunca tenha carregado esse apelido antes ou depois do massacre. Também foi expedido mandado de prisão contra um pobre diabo que já havia sido morto pela própria polícia meses antes; talvez tenha faltado atualizar o banco de dados de pessoas que o Estado tem alvará para assassinar, e assim saiu a ordem para prender quem já era defunto, assassinado, sepultado e devidamente esquecido.
Meses depois do massacre, o Ministério Público do Estado do Pará concluiria pela obviedade da intenção de matar os ocupantes em vez de prendê-los, pois, segundo a própria denúncia ministerial contra os executores, a maioria dos destinatários dos mandados de prisão “apresentavam, apenas, a indicação de apelidos, sem o registro de qualquer outra característica que os pudessem individualizar enquanto pessoas”.
Na vida, assim como na arte, tragédia e comédia guerreiam pelo mesmo palco e não deixa de ser curioso que todos esses mandados de prisão foram expedidos pelo judiciário com a anuência do mesmo Ministério Público. Só depois do massacre causou estranheza ao órgão que eram mandados de prisão impossíveis de cumprimento?
Meu palpite é que o MP começa a assimilar a lição secular do fim dos castigos corporais e penas de morte sumárias, mas é ainda entusiasta da violência simbólica: a criminalização dos inimigos do Estado. É claro que temos dentro dos quadros do Ministério Público honrosas exceções, inclusive no próprio Ministério Público do Estado do Pará, como a Dra. Ana Cláudia Pinho, mas a estrutura dos Ministérios Públicos brasileiros é servil à estrutura do Estado brasileiro, que por sua vez é servil aos donos do poder, que são racistas, que são misóginos, que dependem da desigualdade social para manterem seus privilégios de classe.
Devo reconhecer que talvez a lógica do Ministério Público, revestida de humanidade e mais moderna, é mais inteligente e efetiva para a defesa dos interesses dos donos do poder do que a lógica da polícia.
Hoje, mais de 200 famílias ocupam a fazenda Santa Lúcia e o principal combustível para resistir às constantes ameaças de despejo é certamente a história dos mártires que tombaram no massacre. Tivesse a polícia cumprido os mandados de prisão, tal qual a equação tantas vezes usada “Ministério Público + ordem judicial + polícias Civil e Militar = criminalização legal do movimento social”, possivelmente a Fazenda Santa Lúcia estaria regularmente reintegrada ao latifúndio, a líder do movimento que hoje dá nome à ocupação, Jane Júlia, conduzida ao Tribunal do Júri, e os sobreviventes assustados em vez de encorajados.
O advogado José Vargas Júnior denunciou a polícia pelo massacre de Pau D’Arco l Foto: Lunaé Parracho/Repórter Brasil
Conseguimos indiciar os executores, mas é notório o desconforto que causa ao Ministério Público local todas as vezes em que é lançada a pergunta: “Doutor, mas e os mandantes?”. A resposta é sempre uma evasiva “não sabemos se existem mandantes”. Ora, os mandantes são os donos do poder. Não reconhecer a hipótese de que este sujeito (ou sujeitos) ainda que indeterminados, tenham cometido um crime já é uma afronta, pois a resposta também poderia ser mais dentro da realidade: “Infelizmente talvez não consigamos alcançar os mandantes”.
Os donos do poder sabem que seu sistema de privilégios está ruindo em todas as suas bases, o meio ambiente não aguenta mais seus assaltos, os camponeses não toleram mais produzir alimentos e passar fome, o trabalhador questiona o porquê de seus impostos que sustentam privilégios em detrimento de políticas públicas de saúde e educação.
Por isso acredito que a vitória só poderá ser nossa. Primeiro porque ou vencemos ou ninguém vencerá porque não haverá sobreviventes,nem vítimas de uma revolução social sangrenta, mas de uma inevitável revolução ambiental. Para além disso, a vitória será nossa porque a vida não desanima nunca para quem luta por justiça, porque aguentamos perseguições com coragem, porque não guardamos esperança na ressureição e sim ressuscitamos a esperança de viver, porque ouve melhor quem não é surdo para as desigualdades do mundo, porque resistir nos faz cada vez mais fortes. É penosa a solidão dos que lutam por um mundo de concentração de riquezas, de privilégios, de muito para poucos. Nada é mais radical do que nos reconhecermos impotentes quando sós, mas quase divinos quando juntos: ombro a ombro, passo a passo, sorriso a sorriso, abraço a abraço e venceremos. “Esperem sentados a rendição, nossa vitória não será por acidente”.
Celebramos e lembramos dos ativismos de 2021 que enfrentaram a morte e a destruição de frente
Listamos alguns momentos que mostram como ativistas atravessaram a dor e construíram e inventaram estratégias de solidariedade e luta
Falar do ano que agora termina é lembrar das dores das perdas que tivemos coletivamente e também dos ataques brutais que ativistas sofreram por todo o território. O presidente com seu projeto de “botar um ponto final em todos os ativismos” e a pandemia ainda estão aí. No entanto, 2021 seguiu mostrando que, por todo o país, a esperança e a luta do povo não cansaram de fazer frente ao autoritarismo, ao retrocesso e ao aprofundamento da miséria.
Evidentemente, não iremos conseguir exaurir as inúmeras formas de resistência. Mas queremos contribuir nesse esforço de memória de lembrar que, todo dia, há ativismo em nossas ruas, comunidades e territórios.
O movimento indígena, por exemplo, teve um ano de mobilizações históricas. Contra o PL 490, o Marco Temporal e o genocídio, mais de 6 mil indígenas, de 112 povos se reuniram em Brasília no acampamento Luta Pela Vida, na maior mobilização indígena já registrada desde a Constituinte.
Meses antes, estiveram no acampamento Levante pela Terra, também de enormes proporções. Em setembro, 4 mil mulheres indígenas fizeram a II Marcha das Mulheres Indígenas. A resistência em Brasília ecoava o que acontecia nos territórios, contra o avanço do agronegócio, do garimpo ilegal e da grilagem.
E esse resistir atravessou os mares também. Os indígenas denunciaram Bolsonaro em cortes internacionais por genocídio e tiveram a maior delegação da história na COP 26. Se o evento institucionalmente foi decepcionante, ele pôde reunir movimentos sociais de todo o mundo em articulações inéditas. Trouxemos em nosso blog 6 motivos para ter alguma esperança a partir da “COP fora da COP”.
Esperança na Escócia e também nas comunidades tradicionais do Pantanal. Porque se foi o ano da maior seca da história do bioma, também foi o ano de aprendermos com os quilombolas que defendem o Rio Jauquara e com os pescadores tradicionais que querem salvar o Rio Jauru. Eles são a linha de frente na luta contra as mudanças climáticas!
O ano de 2021 foi especialmente cruel para o povo brasileiro, amargando violências e mortes em massa por conta da pandemia. Mas também mostrou coragem e criatividade ao realizar atos massivos em todo o país pedindo “Vacina no braço, comida no prato e fora Bolsonaro”. E também arregaçou as mangas quando foi hora: o Brasil teve uma das maiores adesões ao programa vacinal e os números de casos e mortes caíram significativamente.
Durante as vacinações, as pessoas também aproveitaram para tirar fotos incentivando a imunização e convocando seus pares para a defesa do Sistema Único de Saúde. As hashtags #VivaOSUS e #DefendaOSUS ganharam as redes e ruas valorizando um cuidado de saúde pública coletivo. A gente lembrou a história de luta que está por trás do surgimento do SUS e ao seu lado até hoje.
A mobilização também se traduziu em solidariedade ativa, com campanhas de doação de alimentos massivas acontecendo em todo o país para enfrentar a crise. Em janeiro, as cenas do crime da falta de oxigênio em Manaus comoveram pessoas em todo o país que se uniram para enviar cilindros para os hospitais da capital do Amazonas. Em Minas Gerais, as trabalhadoras sexuais se auto-organizaram para garantir seu sustento de forma digna.
Seguimos também aprendendo com a luta das mulheres negras, que fazem a luta nos territórios quilombolas, nas salas de aula e até mesmo por fotografias e podcasts. Que bell hooks siga viva nelas e em todes nós!
Porque, se a luta é dura, que as nossas estratégias sejam sempre felizes, criativas, com o frescor do ativismo antiproibicionista, a possibilidade de acolher, lidar e transformar a dor, que as mães de vítimas da violência do Estado nos ensinam, e a esperança de que, por mais difícil que seja, precisamos resistir, como nos mostram os que lutam mesmo atrás das grades.
Em um ano tão difícil, foi essencial apostar na capacidade de resistir e inventar as nossas vidas. Seguiremos nessa tarefa em 2022.
Obrigada por acompanharem essa caminhada.
(Foto de capa: APIB)
Amplificar 2 – Comunicação para Resistência nas Águas
A cartilha Amplificar 2 – Comunicação para Resistência nas Águas é fruto do projeto de mesmo nome da Bigu Comunicativismo e da Escola de Ativismo, realizado no Cabo de Santo Agostinho no segundo semestre de 2021, com pescadoras das praias de Gaibu, Lagoa, Suape e Tiriri, e com apoio do Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral – Cadi Gaibu, Centro das Mulheres do Cabo e Fórum Suape.
A ideia é que a cartilha sirva tanto para as pescadoras cabenses, mas também para todo público interessado na temática da comunicação para direitos humanos e ativismo, a partir de conteúdos criados durante o projeto, em especial para os programas de rádio veiculados quinzenalmente na Rádio Calheta FM e na Rádio Mulher, do Centro de Mulheres do Cabo entre julho e outubro de 2021.
Assim, adaptamos um conjunto de dicas sobre como falar em público, melhorar o controle nas redes sociais, fotografar os produtos, usar o whatsapp nas vendas, e buscar e defender direitos, criadas pela nossa própria equipe, e também por ativistas e profissionais que pudessem trazer mais exemplos e aprofundar tais questões.
As dicas eram parte dos programas de rádio e sempre dialogavam com as conversas tidas com as pescadoras por meios digitais, como o mensageiro whatsapp, sempre tentando relacionar a aplicação delas na vida cotidiana desse público.
Agora, com a cartilha disponível, outros públicos poderão acessar e trazer as dicas para sua vida diária, mas também outros grupos e projetos ativistas poderão utilizar esse material em formações e projetos próprios. Nosso objetivo é que a publicação e a metolodogia do Amplificar 2 possam ser apropriadas pelos mais diversos produtores, ativistas e públicos!
Nós, da Bigu Comunicativismo e da Escola de Ativismo, gostaríamos ainda de agradecer outras parcerias fundamentais para que o projeto se desenrolasse: Rádio Mulher, Rádio Calheta FM,
Igreja Anglicana Jesus de Nazaré e às pescadoras e marisqueiras do município de Cabo de Santo Agostinho, que toparam entrar nessa aventura conosco!
Também agradecemos quem participou do programa Amplificar com explicações e dicas em áudio, como Joelma Costa, Larissa Santiago, Marília Nascimento, Pr. Ivaldo Sales, Rafaela Tabosa, Suelany Ribeiro, Fran Silva, Marileide da Mota e Laurineide Santana.
Ação Direta: manual detalha o que você precisa saber para planejar e fazer
Manual traz informações e instruções importantes para pensar sobre e executar ações de protesto não-violentas
O que é uma ação direta não-violenta? Qual a efetividade dela em promover e provocar mudanças na sociedade? Como planejar uma? Como escolher o melhor lugar e decidir a melhor forma de agir? Como garantir a segurança das pessoas envolvidas? Como fazer análise de risco, registrar a ação e montar a equipe?
Essas são algumas das questões – e respostas – que você encontra no manual “Ação Direta – Como Planejar e Fazer”, feita por ativistas do grupo Colativa a partir de experiências e acúmulos na luta social.
A cartilha elenca, inclusive, exemplos concretos de ações que conseguiram atingir objetivos e produzir impacto na opinião pública e gerar resultados concretos para comunidades envolvidas.
Ao longo de 26 páginas, o manual traz de maneira descomplicada questões importantes para cada protesto de ação direta, assim como elenca passos, precauções e procedimentos necessários.
Dentro e fora do território, a identidade e o reconhecimento quilombola nunca deixam de pisar o chão
A luta e o pertencimento quilombola, nas palavras de Nathalia Purificação da CONAQ, e nos passos da história de resistência de sua família
Por Nathalia Purificação*
A família de Vó Zezinha, de Joseílton, de Nathalia: “Construo, juntamente com minha família, pontes que nos aproximam mais do lugar onde nossos antepassados saíram” l Foto: Arquivo Pessoal
A consciência e identidade são componentes intrínsecos da luta dos movimentos sociais. É, por exemplo, a partir do meu reconhecimento como mulher negra que construo minha contribuição para a luta do povo preto desse país, a luta para o reconhecimento de territórios quilombolas, para reparação dos diversos direitos humanos que foram atravessados e atropelados pelo sistema capitalista e pela sociedade racista e adoecida com uma ideia colonial e elitista. No entanto, o caminho para alcançar essa identidade foi longo – mas também veio de longe.
A minha formação começa no berço. Na verdade, ela começa ainda antes com meus antepassados. Ela apenas me foi passada no berço, enquanto eu observava meu pai, Joseilton Purificação, se aproximar do movimento negro da Bahia por influencia do seu irmão mais vellho, Josemar Purificação, que também observou a minha avó paterna, Ivanildes de Oliveira Purificação se aproximar e atuar na luta pela educação na cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e liderar a escola que construiu para garantir seu sustento e dos seus filhos, por amor ao magistério e por um lugar mais justo e confortável com os seus.
As minhas andanças pelas comunidades negras rurais quilombolas se iniciaram antes mesmo de me reconhecer como uma mulher quilombola, enquanto acompanhava meu pai em sua militância. O meu bisavô paterno nasceu e cresceu num quilombo, mas para garantir acesso à educação para os seus filhos, a sua esposa, minha bisavó Lindaura, insistiu para que ele saísse da zona rural para a cidade mais próxima, Bom Jesus da Lapa, no oeste da Bahia. A comunidade quilombola Lagoa das Piranhas, que atualmente abriga 77 famílias, pertence ao território Velho Chico e fica a 18km da cidade de Bom Jesus da Lapa-BA, distante 778 quilômetros de Salvador. Sua maior fonte de renda advém de uma lagoa, abastecida pelo rio São Francisco.
De acordo com os relatos da minha avó Zezinha, foi uma boa escolha, mas não foi fácil. Eles se mudaram para um bairro periférico da cidade e o básico não chegava lá. Para consumir água precisavam abastecer as bacias e latas a alguns metros de distância da sua rua, no Velho Chico. O bairro Nova Brasília fica na região que beira o rio São Francisco e abriga centenas de famílias pobres e majoritariamente negras da cidade.
Foi ali que minha avó iniciou sua caminhada para a luta da educação. Se propôs a alfabetizar algumas crianças ali do bairro mesmo sem ter uma formação adequada. Quarenta anos depois ela é a proprietária do Centro Educacional 13 de Maio, onde seus filhos, netos e bisnetos já passaram e atuam na direção da escola.
Ela criou 11 filhos e se propôs a educar todos os conscientizando sempre do seu lugar. Foi a partir dos aprendizados dela que seu filho mais velho, Josemar Purificação, dedicou sua vida para a acadêmia e, posteriormente, para o movimento social. Ela apresentou a realidade de nosso povo para meu pai, que foi o grande responsável por me introduzir na luta. Eu o acompanhei por essas andanças e territórios e conheci a realidade dos quilombolas da zona rural e eu não tive muita escolha: precisava somar dali em diante e sentia que estava retornando às minhas origens. Construo, juntamente com minha família, pontes que nos aproximam mais do lugar onde nossos antepassados saíram para tentar uma vida melhor e que não retornaram para lá por falta de condições adequadas.

Conheça a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ)
Os objetivos da CONAQ são: lutar pela garantia de uso coletivo do território, pela implantação de projetos de desenvolvimento sustentável, pela implementação de políticas públicas levando em consideração a organização das comunidades de quilombo; por educação de qualidade e coerente com o modo de viver nos quilombos; o protagonismo e autonomia das mulheres quilombolas; pela permanência do (a) jovem no quilombo e acima de tudo pelo uso comum do Território, dos recursos naturais e pela em harmonia com o meio ambiente.
Voltar ao território
Por crescer em espaços de construção de políticas públicas e de movimentos sociais, meu acesso às discussões que permeiam temáticas relacionadas a gênero, raça, classe e território aconteceu muito cedo.
Foi assim que percebi e me descobri como mulher negra e quilombola e, consequentemente, passei a entender meus princípios a partir dessas percepções. O ambiente social construído pela minha família foi parte essencial da minha consciência.
Através de conversas e observações com meus familiares, pude compreender como é ser negro nessa sociedade.
Percebi que essa condição demanda muito mais que uma declaração de cor e raça e que, para além do reconhecimento, é preciso resistir a todo um sistema racista que se faz presente a cada dia em nosso cotidiano. A necessidade de traçar um tipo de organização veio com o tempo, depois de muito observar meus familiares. Também veio acompanhada de experiências desagradáveis que envolviam um racismo escancarado e cruel que sempre batia à minha porta.
Me mantenho em posição de defesa: do território, da vida, da segurança, saúde e educação do meu povo, para que mais nenhum sinta a necessidade de sair e não mais voltar para para o seu quilombo, assim como minha família precisou fazer tempos atrás.
Retorno para meu quilombo hoje com a sensação de estar cumprindo uma missão pelo meu bisavô e trago boas novas. Se não fosse a sua “ousadia”, não estaria aqui me formando em uma faculdade de comunicação e compartilhando o meu conhecimento para lutar na linha de frente e lado a lado com nosso povo, então em forma de gratidão, me mantenho em posição de defesa do meu quilombo.
Hoje escrevo sobre ancestralidade, mas por muito tempo não foi assim. Não é fácil lidar com o racismo tão cedo, ainda mais quando se tem parte da sua família branca. Por isso a necessidade de me formar. Acredito que por ser fruto de um relaciomento interracial, estive exposta a uma série de violências “sutis”, mas nunca estive inconsciente. Minha mãe é uma mulher branca e é uma grande parceira na luta anti-racista, sua contribuição vem da segurança e apoio que me dá sempre que me proponho a bater de frente com o racismo. Meu pai é um homem negro e que me ensinou a me proteger e a me formar nesses espaços de luta.
É de extrema importância elucidar que os meus passos vieram de longe e vêm mesmo! Aliás, a exatamente 18 km de onde habito. Os meus passos vieram do quilombo e eu luto todos os dias para que eles possam retornar para lá.
*Nathalia Purificação é mulher quilombola de Lagoa das Piranhas – Território Velho Chico. Assessora de Comunicação da CONAQ e Graduanda em Comunicação Social pela UESB.
#DefendaoSUS: como a luta pela saúde pública criou o SUS e garante sua existência
Da ditadura à redemocratização, o ativismo pelo SUS mobiliza propostas e articulações que vão das bases populares à formação de médicas e médicos, em diferentes frentes.
Por Ana Soares, Cora Lima, Isabela Cordeiro, João Pinto do Coletivo Baru
Legendando muitas fotos e estampando diversos cartazes, a frase caiu na boca do povo: “Viva o SUS!”. É comum, em meio à pandemia do Covid-19, vermos pessoas que venceram a doença deixando o hospital com placas em defesa do Sistema Único de Saúde, assim como cidadãos e cidadãs a caminho dos postos de vacinação com máscaras, cartazetes e blusas que compartilham dos mesmo dizeres. No meio médico, também encontramos manifestações que pautam essa luta, como o protesto realizado em maio de 2020 por enfermeiros e profissionais da saúde na porta do Palácio do Planalto, em Brasília.
O SUS nunca esteve tanto em pauta como causa, como grito, como uma bandeira a se defender. Além do contexto de polarização política e de crise sanitária, a aprovação da Emenda Constitucional 95, também conhecida como a PEC do Teto dos Gastos, em 2016, e o subsequente desmonte das instituições democráticas e públicas, fizeram com que esse enfrentamento fosse ainda mais necessário. O grito pelo SUS é um grito pela democracia, da forma mais ampla possível.
“Os pilares do SUS são: igualdade, integralidade – que vê a saúde de forma integral; que une saúde física, mental e social e sua relação com o ambiente –, e equidade – que seria a promoção da saúde de forma prioritária para aqueles que mais precisam. Todo o pensamento do SUS se norteia na construção de políticas públicas de inclusão social”, comenta Sônia Lansky, médica, militante e ex-vereadora belorizontina.
Para Alisson Lisboa, médico de família e comunidade, militante e diretor Sinmed/RJ, é essencial ter a população, organizada e participativa, nas trincheiras do ativismo pela saúde. “Nesse momento eu acho que a gente precisa combinar diversas formas de luta. A luta social é extremamente importante. Em primeiro lugar, fazer trabalho de base, trazer os usuários do serviço de saúde para perto da luta em defesa do SUS”, defende Lisboa.
“Se a gente não tiver uma base social sólida, a gente vai ter apenas grandes ideias de personagens brilhantes, mas não vai ter força social de massas para implementar essas mudanças que precisam ser feitas”, acrescenta.
Mas não é de hoje essa luta. Esse grito já ecoa há anos em movimentos e organizações que têm como base de suas ações a defesa da saúde pública no Brasil e dos fundamentos que nortearam a criação do SUS. Os movimentos que deram origem à reforma sanitária e, consequentemente, ao Sistema Único de Saúde, e as mais recentes articulações que herdaram a luta e extrapolaram suas reivindicações ainda são pouco conhecidos. Desde o movimento dos médicos sanitaristas pré-Constituinte até coletivos e associações da sociedade civil ativos em 2021, a luta pela garantia da saúde pública no Brasil possui defensores espalhados por todo o país.
“A defesa da saúde pública ou coletiva é norteada e pautada pelo princípio da igualdade e da ação participativa”, destaca Sônia Lansky l Foto: Reprodução
Das famílias, bairros e municípios ao nacional
Eduardo Jorge, médico sanitarista, deputado constituinte e peça-chave na criação do Sistema Único de Saúde, conta que, durante a “primeira grande experiência de universalização” da saúde, entre as décadas de 1970 e 1980, as articulações comunitárias foram de grande importância tanto para o avanço de pautas relevantes quanto para a integração da população em causas que lhe diziam respeito. Em São Paulo, por exemplo, mais de 30 bairros periféricos realizaram eleições para compor conselhos comunitários naqueles anos.
Espaços de deliberação e consulta, os conselhos também cumpriam um papel significativo na formação política das comunidades, trazendo para o centro lideranças locais, em sua maioria mulheres, que encontraram nessa luta um importante espaço de participação e militância. “Queríamos fazer um investimento a longo prazo na formação política, visando a ação democrática e autônoma da população e dos trabalhadores mais pobres do Brasil”, lembra o médico.
Partindo da realidade local para pensar políticas de saúde pública, a territorialização ajudou a garantir a aderência da população aos mecanismos que começavam a ser pensados e implementados. Junto a isso, possibilita um processo de conscientização sobre os direitos sociais e uma espécie de canal direto de comunicação com os médicos sanitaristas e profissionais da saúde, horizontalizando o processo decisório.
Jorge enfatiza que a ideia era trazer a população das classes mais baixas, trabalhadores e donas de casa, como parceira naquele trabalho: “eles vão ser os líderes de seu processo de emancipação e de construção de políticas públicas. E nós entramos com os elementos técnicos, que são importantes e que nós dominamos, na área da saúde e do planejamento. Mas a decisão de como conduzir a luta é deles”.
Eduardo Jorge durante cerimônia de assinatura da nova constituição l Foto: Reprodução
A luta em defesa do sistema único de saúde hoje continua a seguir esse princípio participativo do Movimento Sanitário. “A defesa da saúde pública ou coletiva é norteada e pautada pelo princípio da igualdade e da ação participativa, isto é, a população é ativa e participa da construção das políticas públicas, protagonizando o curso do planejamento e das ações de saúde pública, de seguridade social e de direito à vida”, reforça Sônia Lansky.
A importância dessas articulações vai ainda além de seu papel comunicativo. As lideranças e conselhos locais e autônomos garantem que as ações, conquistas e aprendizados sejam mais perenes. Em primeiro lugar, não ficam à mercê de instâncias alheias à comunidade, como as secretarias, médicos e técnicos, ou as pastorais, cuja atuação varia de acordo com cada gestão.
“Assim eram mitigados os riscos de cooptação, de subordinação ao poder instituído. Eram mitigados pela união e pela amplitude do movimento”, diz Jorge.
Em segundo lugar, a orientação comunitária dessas organizações também permitiu que a militância seja mais orgânica e móvel, mais independente de decisões puramente técnicas ou burocráticas (ainda que estas desempenhem um papel importante) e, portanto, mais colada às dinâmicas próprias de cada território.
Essa atuação local se reflete no próprio modelo do SUS, baseado no núcleo familiar e nas especificidades territoriais para dar conta de atender a população de maneira mais integrada e mais sensível às diferentes realidades do país. “A gente conseguiu expandir o cuidado de saúde para o território. A saúde da família brasileira, primeiro como um programa e depois como uma estratégia, conseguiu ter orientação territorial, uma competência cultural de cada território, de cada comunidade e população que está sendo atendida. Isso é uma característica da atenção primária à saúde brasileira muito importante, que a distingue da APS de outros sistemas universais de saúde no mundo. A orientação familiar é uma característica muito importante da atenção primária brasileira”, observa Alisson Lisboa.
Essa atuação local se reflete no próprio modelo do SUS, baseado no núcleo familiar e nas especificidades territoriais para dar conta de atender a população de maneira mais integrada e mais sensível às diferentes realidades do país. “A gente conseguiu expandir o cuidado de saúde para o território. A saúde da família brasileira, primeiro como um programa e depois como uma estratégia, conseguiu ter orientação territorial, uma competência cultural de cada território, de cada comunidade e população que está sendo atendida. Isso é uma característica da atenção primária à saúde brasileira muito importante, que a distingue da APS de outros sistemas universais de saúde no mundo. A orientação familiar é uma característica muito importante da atenção primária brasileira”, observa Alisson Lisboa.
O trabalho conjunto, envolvendo os níveis federal, estadual e municipal em torno de um grande projeto de política pública, é outro elemento central da articulação pelo SUS. Eduardo Jorge aponta que esta foi a primeira vez em que existiu a proposição de um trabalho integrado, tendo no município “o principal artista dessa unificação” – mais um reflexo do esforço de territorialização que norteia sua atuação. “A ousadia do SUS foi: primeiro, propor o trabalho conjunto das três esferas (federal, estadual e municipal, com financiamento conjunto e uma articulação em torno do programa), e, segundo, levar essa execução do serviço principalmente para os municípios”, explica.

Está na lei
LEI Nº 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990 – Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
A criação do SUS, lado a lado com a redemocratização
Discussões sobre a necessidade de mudanças no setor de saúde brasileiro nos levam para o início da década de 1970, em meio à Ditadura Militar, quando a ideia da Reforma Sanitária começou a tomar forma. Em um contexto de profunda insatisfação, movimentos populares e políticos se organizaram em diversas regiões do país, unindo grupos de base, médicos, funcionários públicos e integrantes de partidos, sobretudo de esquerda, para propor novos mecanismos de funcionamento da área da saúde no Brasil.
Durante o regime militar, o sistema público de saúde era dividido, principalmente, entre medicina previdenciária, voltada para trabalhadores formais e urbanos, e saúde pública, de caráter preventivo e voltada para as zonas rurais e comunidades mais pobres. A divisão de investimentos mantinha desigualdades estruturais e favorecia as elites. “Ao longo do século XX, o Brasil concentrava a atenção a saúde em algumas categorias de trabalhadores consideradas mais importantes para o sistema econômico e deixava a grande maioria da população – entre 70% e 75%, que não tinha carteira assinada, não era servidor público civil e militar – amparada apenas pelas Santas Casas, que, apesar de importantes, faziam parte de uma rede precária”, salienta Eduardo Jorge.
Para além do desconforto crescente com as desigualdades de oportunidades e de acesso a serviços básicos, a intensa onda de repressão e censura difundida pelo regime militar provocou inquietação em diversos setores da sociedade.
“O que acontecia no país na década de 1970 era uma onda de insatisfação que gerou um pensamento crítico generalizado, tanto nos executivos quanto na população, e que nos levou a buscar uma solução mais universalista, sobretudo para a saúde”, conta Eduardo Jorge, que testemunhou e atuou junto nessa luta. “Esse contexto político é muito importante, porque grande parte de nós era militante de organizações revolucionárias contra a Ditadura Militar e, paralelamente, propúnhamos uma discussão do que fazer naquele momento de encruzilhada da redemocratização do país”, continua o médico.
Esses movimentos, apesar de plurais em táticas e concepções ideológicas, tinham como perspectiva central a luta contra a Ditadura e a melhoria das condições de vida da população, por meio da descentralização e universalização da saúde. Os conselhos comunitários sediados na cidade de São Paulo são exemplos do ativismo horizontal e efetivo pela transformação do sistema de saúde brasileiro.
Por meio da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, sobretudo na gestão do secretário Walter Leser, em parceria com a Universidade de São Paulo, a formação de médicos sanitaristas e a subsequente criação dos conselhos comunitários esboçaram o processo de expansão da rede de unidades básicas e planejadas nas periferias da capital paulista.
“Eu considero essa reforma proposta por Walter Leser como a primeira grande experiência de universalização da saúde no Brasil”, comenta Jorge, que se formou médico sanitarista nessa época e participou ativamente dos conselhos.
Uma das principais táticas utilizadas pelos médicos vinculados à secretaria estadual foi a inserção da comunidade local nas discussões e decisões do planejamento de saúde, bem como a articulação entre bairros próximos para a criação de uma rede de políticas públicas baseadas no direito à vida.
“Os conselhos comunitários não eram um movimento paroquial, e o elemento técnico dos médicos sanitaristas ajudava no processo. Ou seja, mostravam a importância de se conseguir uma unidade de saúde para determinado bairro, mas também salientavam que, se não houvesse uma conexão com outros bairros, um processo completo que garanta recursos de saúde mais complexos não seria possível”, reflete o médico.
Paralelamente, em outras regiões do Brasil, o movimento da reforma sanitária se consolidava e alcançava as esferas institucionais, sobretudo na forma de alianças com parlamentares progressistas. Esse período coincide com a criação, pelos médicos sanitaristas da Universidade de São Paulo, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e, posteriormente, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Ambas as entidades foram essenciais para a organização e sintetização da identidade da reforma sanitária.
O documento aprovado no 1º Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, em 1979, e veiculado pelo Cebes indicava os princípios básicos defendidos pelos reformistas, como “o reconhecimento do direito universal e inalienável, comum a todos os homens, à promoção ativa e permanente de condições que viabilizem a preservação de sua saúde” e “o reconhecimento do caráter social deste Direito e tanto da responsabilidade que cabe à coletividade e ao Estado em sua representação, pela efetiva implementação e resguardo das condições supra mencionadas”.
A organização em nível nacional, englobando diferentes setores sociais, econômicos, políticos e técnicos, fez com que a reforma sanitária se mostrasse vitoriosa mesmo antes do fim da Ditadura Militar. “A discussão da necessidade de uma transformação no sistema de saúde do país foi muito forte no período pré Constituinte. Nós tínhamos acúmulo de conhecimento e projetos para a área da saúde em todas as correntes e, quando chegamos na Assembléia de 1988, nossa proposta estava completa e articulada”, comenta Eduardo.
Essa atuação estruturada também foi uma estratégia dos ativistas do Movimento Sanitário para garantir a participação social e a representatividade durante a Constituinte, que, juntamente com parlamentares, possibilitaram a criação de Subcomissões de Saúde para assegurar o debate junto à sociedade sobre suas propostas e reivindicações. De maneira inédita na história brasileira, emendas populares foram votadas e apresentadas para compor o texto constitucional.
Em 1988, foi aprovado, praticamente por unanimidade, o texto da reforma sanitária, garantindo a saúde como direito fundamental e criando o Sistema Único de Saúde, o SUS. “Eu considero essa reforma revolucionária. Criar um aparelho de Estado e uma política pública desse porte no Brasil é uma jornada épica. E nós fizemos isso”, diz Eduardo.
A luta em defesa do SUS ganhou expressão durante a pandemia do Covid-19 l Foto: Reprodução
O ativismo pelo SUS hoje
Sob a bandeira de garantir a saúde da população, a principal frente daqueles atuam em defesa do SUS —, se reúnem diversas outras causas. O enfrentamento pela manutenção dos direitos conquistados na Constituição de 1988 e a luta por mais direitos, congrega, além da categoria médica, diferentes frentes de ativismo debaixo do grande guarda-chuva das políticas públicas de saúde.
A reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, a redução de danos e a luta pela descriminalização e legalização das drogas, os movimentos por reforma agrária e agricultura familiar, a luta por direitos reprodutivos, a luta ambiental, a garantia de saneamento básico, o desarmamento da população, a defesa da pesquisa pública: a lista ainda pode continuar por vários parágrafos e serve para nos mostrar como o ativismo pela saúde pública é um ativismo multifacetado, heterogêneo e atrelado diretamente às pautas sociais.
“O SUS foi criado com a proposta de fazer uma integração entre diversas esferas do cuidado, com o objetivo de conseguir coordenar ações de cura, de promoção da saúde e prevenção de doenças e de recuperação”, lembra Alisson Lisboa. Assim, o ativismo pelo SUS abrange um grande conjunto de temas, movimentos e pautas, não necessariamente relacionadas entre si, mas certamente atreladas a uma mesma causa.
Eduardo Jorge aponta esse aspecto múltiplo como uma das grandes urgências da luta pelo SUS hoje: o trabalho conjunto, orquestrado pelas diferentes instâncias de gestão, em torno da promoção da saúde. E isso só é possível se entendemos a transversalidade dessa luta. É necessário deslocar a concepção de saúde de algo restrito à medicalização ou ao tratamento hospitalar, e trazer para dentro do ativismo outras pautas que circundam a saúde da população de maneira mais ampla, desde a alimentação à prevenção de acidentes, a reabilitação para inclusão social e o atendimento longitudinal ao longo da vida, por exemplo.
Diversos movimentos particulares do campo médico, como as associações e redes de profissionais da saúde, estabelecem relações com essas outras bandeiras aliadas. Ações educativas, a atuação dos movimentos sociais de base e a presença de grupos fortes que têm a luta antimanicomial ou a saúde popular como bandeiras, por exemplo, fazem com que existam conquistas importantes nos diferentes campos de atuação possível do sistema de saúde.
A “desinstitucionalização do cuidado, casada com a atenção primária, com a saúde da família e os Centros de Atenção Psicossocial (Caps)”, como lembra Alisson, são algumas dessas importantes conquistas, nascidas da aliança entre diferentes frentes de trabalho ativista.
“O SUS não pode ter a pretensão de fazer isso se não for ajudado pelas outras políticas públicas”, ressalta Eduardo Jorge. O lembrete é o de que ativismo se faz conjuntamente, a partir dos territórios e das reivindicações das mais diversas, de maneira heterogênea e a partir das bases.
Uma tática utilizada por ativistas em defesa e fortalecimento do SUS é a construção da consciência do valor coletivo de direito à saúde, luta que tangencia outros aspectos éticos que constituem uma vida digna. “A educação, tanto em saúde quanto de maneira geral, é uma forma das pessoas adquirirem autonomia e conhecimento sobre o uso dos recursos de forma mais potente. Por isso, é necessário que elas reconheçam que assegurar ações básicas de direito à moradia, à água limpa, ao tratamento de esgoto, à renda e ao acesso a alimentos saudáveis faz parte da luta pela saúde pública”, ressalta Sônia.
Assim, ganha grande importância a comunicação e a aliança entre profissionais da saúde e população atendida, dois lados de uma mesma luta. Alisson Lisboa observa que nas movimentações de militância pela defesa e aprimoramento do SUS há uma grande participação das pessoas envolvidas no dia-a-dia do sistema. Segundo ele, “todos os atores da área da saúde – gestores, trabalhadores da saúde e usuários – têm um grande envolvimento nessa luta pelo fortalecimento do SUS”.
Agentes populares de saúde fazem parte da raíz popular e democrática do SUS l Foto: Reprodução
Atuando “de dentro” da instituição do SUS, profissionais da saúde se organizam de diferentes maneiras, sem se restringir a espaços internos, e envolvendo também atividades de escuta e militância nos interiores e periferias, tanto geográficas quanto sociais. Entidades como redes e coletivos, partidos políticos, movimentos sociais de base e sindicatos “compõem a frente de articulação central para apresentar um projeto de saúde para o Brasil, tanto quanto um programa e orientações mais a curto prazo para enfrentar a pandemia, por exemplo, como foi apresentado no ano passado”, conta Alisson.
Um exemplo é a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMP), na qual Alisson é militante. Atuando em todas as cinco regiões brasileiras desde 2015, a RNMP é composta por “médicos que atuam em diversas regiões e setores do sistema de saúde, desde o sistema público e privado até a gestão e a linha de frente, professores universitários, educadores populares de saúde, movimentos populares urbanos e do campo, médicos formados no Brasil e no exterior e médicos que atuam no movimento sindical pelo país”, explica.
Essa aliança entre atendimento de saúde, movimentos populares e educação, a RNMP utiliza-se de uma série de ferramentas políticas: assembléias, manifestações, brigadas de solidariedade, campanhas informativas, cursos de formação política e educação popular em saúde são algumas delas. Enquanto a mobilização social articula-se em conjunto com os movimentos populares, conversando diretamente com a população e construindo-se em conjunto, ações educativas cumprem um importante papel do ativismo, voltadas para a categoria responsável pelo cuidado com pacientes.
Soma-se a essas estratégias de militância a atuação incisiva e necessária junto aos órgãos públicos, secretarias e instituições governamentais.
Um dos desafios enfrentados pelos ativistas que lutam pelo SUS é, como denomina Sônia Lansky, a “mercantilização da saúde”. Resquício da formação histórica brasileira, que sempre priorizou o direito à vida digna para uma pequena parcela da população, a concepção de saúde como mercadoria impede avanços e enfraquece o cumprimento de leis conquistadas pela reforma sanitária na Assembléia Constituinte em 1988. Mesmo que, do ponto de vista jurídico-constitucional, a saúde seja pública, universal e descentralizada, investidas de grupos civis e políticos neoliberais colocam em xeque o direito à vida. “Há uma concorrência cultural com as estratégias liberais do capitalismo que utiliza a saúde como mercadoria, como commodity, como um bem comerciável. Então, o entendimento de saúde como um produto ou bem é uma exploração nefasta que está incorporada no modo de organização da nossa sociedade”, comenta a médica.
Para além dos impactos sociais provocados pela desigualdade do acesso ao sistema privado de saúde, a exploração da “doença como negócio” leva a intervenções médicas desnecessárias e que colocam em risco o bem estar da população. Um exemplo é a discussão a respeito dos “modos de nascer”, que está pautada pela esfera do ativismo feminista pela saúde. Dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) referentes aos nascimentos em 2019 mostram que 58,8% do total de crianças nascidas vivas no país foram por cesarianas. “No sistema privado, o número é ainda mais alarmante: 83% dos partos são cesáreas. Isso interfere crucialmente na saúde da mulher e do bebê e é fruto de interesses econômicos e da ideia de comercialização da saúde”, reforça Sônia.
Dois outros aspectos que se sobressaem nas falas de ativistas pela saúde pública apontam para uma afinidade de suas táticas militantes com o próprio modelo de atuação do SUS. São a descentralização das instâncias decisórias, por meio da capilarização territorial, e o fortalecimento de agentes comunitários e autônomos, ambos fortemente conectados entre si.
Nesse sentido, Alisson sublinha que, “para avançar no sistema público de saúde, é necessário que o gasto privado caia e que a gente aumente os recursos públicos para a saúde pública”. Isso garante que ativismos importantes pela garantia da vida e da dignidade humanas, como a luta pelos direitos reprodutivos ou a luta antimanicomial, sejam pautados como políticas públicas. “E não é gasto, é o sentido social que a política pública tem que ter: de que não é gasto e sim cuidado da população brasileira. Não só os mais pobres, mas toda a população precisa ter um acesso universal e equitativo”, completa Alisson.
Assim, dos núcleos familiares aos conselhos e lideranças comunitárias, e daí para os municípios, e então estados e federação, o ativismo pelo SUS se articula em camadas que vão do “menor” para o mais geral. Essa forma de pensar e atuar a partir dos territórios garante, de certa forma, que o sistema seja de fato “público” e “universal”, e é uma das maiores inovações da atenção à saúde no Brasil (e também no mundo).
Conheça alguns dos movimentos de ativismo pelo SUS e pela saúde pública hoje:
- DENEM – Direção Executiva Nacional de Estudantes de Medicina: 35 anos – Desde 02 de agosto de 1986. (denem.org.br)
- Frente pela Vida: Frente pela Vida
- ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva: ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
- CEBES – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde: Cebes | Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
- CNS – Conselho Nacional de Saúde: Conselho Nacional de Saúde – Pagina Inicial (saude.gov.br)
- Associação Brasileira Rede Unida: Bem-vindo| Rede Unida
- SBB – Sociedade Brasileira de Bioética: SBB – Bioética (sbbioetica.org.br)
- RNMP – Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares: https://medicospopulares.org/
- FNE – Federação Nacional de Enfermeiros: FNE – Federação Nacional dos Enfermeiros (portalfne.com.br)
- FENAFAR – Federação Nacional dos Farmacêuticos: FENAFAR:: Federação nacional dos Farmacêuticos – Fenafar
- RENILA – Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial: Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial – Renila | Facebook
- SBMFC – Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade: SBMFC – Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
- Anis – Instituto de Bioética: Anis
Seis motivos para ter esperanças na luta contra a mudança climática na “COP fora da COP’
Povos indígenas, ativistas, juventudes, organizações e movimentos sociais na COP-26 apontam caminhos promissores para a luta por justiça climática e contra o racismo ambiental
Por Rebeca Lerer*
Marcha contra mudanças climáticas reuniu mais de 100 mil pessoa de todo o mundo nas ruas de Glasgow l Foto: via Greta Thunberg/Facebook
Acompanho reuniões e convenções da ONU desde 1997, quando cobri a Rio+5 como estagiária de comunicação da Fundação SOS Mata Atlântica. Quase 25 anos e dezenas de COPs e assembleias sobre Mudanças Climáticas, Direitos Humanos e Biodiversidade depois, sei bem que o sistema das Nações Unidas é limitado, imperfeito e insuficiente, funcionando como mais um espelho da crise socioambiental, humanitária e democrática proporcionada pelo modelo hiper capitalista que domina o planeta. No entanto, na COP que acontece fora da COP26, vi motivos que trazem esperança na construção de alternativas ao colapso climático em curso.
Historicamente, essas reuniões burocráticas das convenções-quadro da ONU serviram como espaço de encontro e embate entre a pesquisa científica sobre o clima e as políticas macroeconômicas dos países. As COPs também direcionam o debate público e as narrativas oficiais sobre essa crise planetária. ONGs, movimentos sociais e ativistas participaram e disputaram esse processo desde o início. A sociedade civil, embora persistente, foi muitas vezes marginalizada e impedida de acessar os fóruns de tomada de decisão. A participação também foi desigual: COPs realizadas em países frios e distantes, dependendo de viagens muito caras, resultando em uma maioria de pessoas de padrão hegemônico branco, heteronormativo e ocidentalizado, perpetuando a lógica colonial que nos trouxe à atual #EmergênciaClimática.
A #COP26 começou no dia 06 de novembro e entrou em sua segunda semana na Escócia carregando vários desses ranços históricos e estruturais. Em termos gerais, a expectativa é que as metas de redução de emissões, o dinheiro alocado para financiar soluções e adaptação e a vontade política que constarão da declaração final da COP26 sejam bem menores do que o momento exige. Como disse a nossa amiga Greta, é puro #blahblahblah.
O Brasil bem que tentou performar imunizado em Glasgow porém o país está com o filme diplomático and as florestas queimadas – ninguém acredita mais no governo brasileiro (e tão errados?). No projeto Sinal de Fumaça – Monitor socioambiental, fizemos até um dossiê bilíngue chamado “Governo Bolsonaro: Menos 30 Anos em 3”, uma linha do tempo dos principais fatos da política anti-meio ambiente de Bolsonaro. Enviamos essa memória organizada aos delegados internacionais que participam da COP para que saibam o tamanho do desmonte bolsonarista e com quem estão lidando.
E se de onde nada se espera é que não vem nada mesmo, assistindo de longe esta #COP26, me peguei jogando o jogo do copo meio cheio, principalmente pelo que tem rolado do lado de fora e para além dos corredores da conferência. A “COP fora da COP26” me deu seis #RazõesParaAcreditar:
1. FINALMENTE a cobertura midiática sobre mudança climática se tornou diária, constante e abrangente – e não mais meras notícias perdidas nas editorias de ciência e meio ambiente. Chamadas em capas de grandes portais, centenas de correspondentes, comunicadores comunitários, influenciadores, formadores de opinião, especiais na TV – nunca a atenção foi tão grande, nunca se gerou tanto conteúdo sobre o tema, nunca as #s subiram tanto no twitter. Como era de se esperar, as campanhas de desinformação, fake news e greenwashing explodiram de forma inversamente proporcional no ambiente digital, modernizando a tradição de negacionismo da mudança do clima praticada por corporações até o verão analógico passado;
2. Por falar nisso, o termo GREENWASHING (maquiagem verde) voltou com tudo para a boca do povo. Quem viveu os anos 90 e o início dos 2000 lembra das aulas de propaganda enganosa promovidas por corporações poluidoras como Monsanto, Dow Chemical, Exxon e Bayer, entre muitas outras, que disfarçavam os efeitos da poluição tóxica com campanhas publicitárias vencedoras de troféus em Cannes além de criar prêmios, bolsas e institutos para passar pano na própria imagem. Aos poucos, o marketing corporativo foi consolidando o uso de termos como “sustentabilidade”, ” economia verde” e “responsabilidade social” para limpar a imagem dessas empresas. Não por acaso, na mesma época, aqui no Brasil, parou-se de falar em “latifúndio” e “reforma agrária” e passou-se a usar “agronegócio” e “regularização fundiária” – é estratégia de branding que chama. Nessa COP, iniciativas como o EcoBot.net estão rastreando e apontando greenwashing praticado por corporações nas redes digitais e dentro da própria conferência, que tem pavilhões e atividades financiadas por grandes poluidores. Não basta cobrar metas dos governos – as corporações também precisam ser responsabilizadas pela crise climática.
3. INDÍGENAS na linha de frente, formando a maior delegação brasileira na história, marcando presença na abertura da COP26 com o discurso certeiro da Txai Suruí, nas reuniões paralelas e marchas nas ruas de Glasgow com Sonia Guajajara, Joenia Wapichana, Célia Xakriaba, Puyr Tembé e outras mulheres indígenas da Apib e da ANMIGA, Alice Pataxó dando a letra sobre a luta pela terra na COY e todas elas, junto à centenas de lideranças africanas, asiáticas, das ilhas do Pacífico e da América do Norte, organizadas em resistência contra a destruição de seus territórios. A presença mais ampla de movimentos indígenas na COP26 também reflete maior financiamento e acesso à filantropia para esses grupos – como diz o ditado, “antes tarde do que mais tarde”;
Indígenas brasileiros estiveram em número recorde na COP-26. l Foto: Edvan Guajajara
4. A luta ANTI-RACISTA como vértice da busca por justiça climática, com participação direta de redes como o Black Lives Matter e a Coalizão Negra por Direitos, que mandou uma delegação para Glasgow e publicou um forte manifesto pela demarcação dos territórios quilombolas brasileiros. Ver os amigos Douglas Belchior, Raull Santiago pelo Perifaconnection, Marcelo Rocha pelo Fridays For Future Brasil, entre outras representações dos movimentos negros brasileiros, levantando as bandeiras do combate ao racismo ambiental e pela defesa da vida quilombola, periférica e favelada na COP26 em Glasgow é inspirador e um grande passo à frente para todxs nós;
5. O PROTAGONISMO JOVEM em um assunto tão complexo, a capacidade de auto-organização do #FridaysForFuture, os ícones Vanessa Nakate, do RiseUp Movement Africa, e Greta Thunberg dando o papo reto, a coragem da galera do Engajamundo e a sensatez fofa da pequena Holly Brown de apenas 8 anos, garotas que debatem com chefes de Estado ao mesmo tempo que formam enormes marchas populares do lado de fora da COP e em dezenas de países, são exemplos concretos de uma estética renovada, inspiradora e esperançosa na luta por justiça climática. Uma geração que já se cria sob as lentes do decolonialismo, do feminismo, da neurodiversidade, da ciência e da busca por igualdade. É muito emocionante viver esse momento histórico e precisamos apoiar essa juventude de todas as maneiras possíveis;
6. A transversalidade das lutas, o fortalecimento das redes e conexões entre esses movimentos e o engajamento da juventude parecem assustar mais as empresas e os governos do que eventos climáticos extremos como secas e enchentes. O tempo da política institucional e do mercado raramente acompanha o ciclo de evolução cultural da sociedade – são ritmos muito diferentes. Embora governos e empresas atuem na direção contrária, hoje, depois de décadas de muito trabalho de centenas de milhares de ativistas, pesquisadores, comunicadores, defensores de direitos humanos e cientistas, existe uma COMUNIDADE ampla, diversa, crítica e autônoma mobilizada contra a crise climática. Gente que sabe de quem é a culpa e o que é preciso fazer para manter o planeta habitável, e que isso só acontecerá com a redução da injustiça social e o fim do racismo. Os altos investimentos das grandes corporações e governos em tentar proteger sua imagem com slogans sofisticados e vazios como “net zero” e o envio de mais de 500 lobistas da indústria do petróleo à Glasgow, além do teatrinho do governo brasileiro promovido com apoio da agroindústria, indicam que eles estão sentindo a pressão. Quem produz bilhões de toneladas de CO2 tem que ter medo mesmo.
Apesar de tudo, o lado bom de ser veterana desse rolê é conseguir perceber que, em vários aspectos, nos organizamos, resistimos e evoluímos. Que a situação seria bem pior sem os esforços coletivos da sociedade civil. Que estamos em uma esquina da história planetária e ainda podemos fazer alguma diferença, na esperança equilibrista de quem sabe que só a luta muda a vida.
*Rebeca Lerer, 44, é jornalista, ativista de direitos humanos e coordenadora do Sinal de Fumaça- Monitor Socioambiental.
Sociocracia 3.0: a experiência do ativismo canábico com uma forma de gestão radicalmente orgânica
Ativista conta sobre seus aprendizados com o conceito da sociocracia aplicado em uma associação canábica
Por Keka Ritchie*
Quando iniciei meus trabalhos voluntários no ativismo canábico, há quase quatro anos, não tinha ideia do tamanho das transformações pessoais, profissionais, relacionais e até espirituais que aconteceriam a partir daquele momento em minha vida. Mesmo sendo usuária de cannabis há quase vinte anos, acho que, naquela época, eu também pré-julgava as pessoas maconheiras a partir daquele perfil que a sociedade desenhou: lesadas, irresponsáveis e menos comprometidas com o trabalho.
A verdade é que eu não só estava totalmente enganada, como me surpreendi ao descobrir que uma associação de maconha era o lugar mais organizado e motivador em que eu já havia trabalhado na vida. Fora meu trabalho no ativismo, atuo como produtora há mais de dez anos e passei por diversas agências, das menores às maiores do mercado. No entanto, foi ao ver aquela organização feita cem por cento por pessoas voluntárias engajadas somente pelo amor a uma planta, que fiquei realmente encantada e curiosa. Decidi então dedicar um tempo da minha vida para aquela associação e logo fui convidada a assumir o papel de líder de eventos.
Naquela época eu já vinha querendo me envolver com ações que gerassem um impacto positivo na sociedade frente à situação política desastrosa que vinha se desenhando desde o impeachment, mas confesso que toda essa energia densa de disputa que a política gera me causava uma certa repulsa e eu acabava deixando essa ideia pra depois.
Mas o lado bom da vida é que o universo é elegante quando a nossa intenção é boa e ele não só me levou até uma solução extremamente amorosa, bem diferente de como eu imaginava que seria, mas também tinha um detalhe apaixonante: era uma organização onde a maconha era legalaize, afinal, ela nasceu assim, livre! Seria perfeito? Sim! E assim, quando eu menos percebi, eu já tava envolvida até o pescoço em uma organização do terceiro setor. Essa organização é a ACuCa – Associação Cultural Cannábica de São Paulo, onde depois de um tempo ocupei a presidência, num mandato de dois anos, que se encerrou agora em abril de 2021. Hoje, ainda sigo na diretoria, como secretária, além de atuar também como coordenadora institucional suplente na FACT – Federação das Associações de Cannabis Terapêutica, fundada também em abril de 2021, tendo a ACuCa como uma de suas membro-fundadoras.
Na ACuca, me sentia realizando o desejo de contribuir ativamente para a reparação social histórica e para a construção de uma sociedade melhor. Isso porque acredito que a luta pela legalização da maconha é extremamente necessária em um país violentamente racista e desigual como o nosso. Mas teve outro fator que me encantou – e ainda encanta – na ACuCa: o sistema organizacional que ela adotou pra fazer sua gestão: a Sociocracia 3.0. E é sobre essa tal de Sociocracia 3.0 que a gente vai levar a prosa a partir daqui.
Foto: Keka Ritchie/Arquivo Pessoal
Modos de fazer
Bem, o associativismo é a união de pessoas trabalhando juntas em prol de um objetivo em comum, mas isso não significa que ter esse objetivo faça com que todas as pessoas que compõem aquele coletivo pensem sobre tudo da mesma maneira. A realidade é bem diferente disso, na verdade. Sabemos que onde há um grupo de pessoas, há divergência de opiniões. Mas isso é bom, afinal a diversidade é a grande riqueza de um coletivo. Todavia, como é possível usar essa riqueza a nosso favor, organizando todas essas ideias diversas – muitas vezes até opostas – chegando num senso comum que permita ao coletivo tomar decisões onde todas as pessoas se sintam seguras com elas? Essa é justamente a proposta da Sociocracia 3.0. Vou tentar exemplificar usando as eleições presidenciais do Brasil:
Bolsonaro ganhou as eleições com 55% dos votos. Isso significa que ele foi eleito pelo desejo da maioria. Mas eu pergunto: e o que acontece com o desejo de 45% das pessoas que, embora componham a minoria, ainda representa uma parcela muito grande e considerável do todo? As vontades e desejos dessas pessoas são totalmente ignoradas por essa pessoa escolhida para representá-las? Infelizmente, na democracia exercida hoje no Brasil, sim.
Bem, embora a gente não perca oportunidades de criticar o atual (des)governo, a gente não tá aqui pra falar sobre isso. Mas esse exemplo serve para mostrar como a sociocracia ajuda um coletivo a se organizar para deixar não só 55% dele satisfeito.
Vamos fazer uma recapitulação histórica para contextualizar a origem desse sistema: A sociocracia clássica nasceu em 1851, com três regras básicas: os interesses de todas as pessoas deveriam ser considerados e indivídues deveriam respeitar o interesse do todo; Nenhuma ação poderia ser tomada sem uma solução que todes pudessem aceitar; Todas as pessoas deveriam aceitar as decisões de forma unânime, e se um grupo não fosse capaz de tomar uma decisão, a decisão deveria ser tomada pelo nível mais alto de representantes escolhides pelo grupo.
Ao longo dos anos, embora haja registros, a sociocracia foi pouco explorada até que no começo dos anos 2000 começou a se ouvir falar um pouco mais sobre Holocracia, que é um modelo de gestão com ideias semelhantes às da sociocracia, onde não há um sistema rígido de hierarquia, e o poder e a tomada de decisões é dividido entre todas as pessoas da entidade em questão. Em 2015 então, a Sociocracia 3.0 foi desenvolvida a partir da evolução da Sociocracia Clássica ao integrar influências da Holocracia e também da queridinha Comunicação Não-Violenta.
Princípios
Mas de que forma essa tal da Sociocracia 3.0 consegue organizar uma instituição, permitindo que pessoas trabalhem bem juntas, da forma mais eficiente possível? Respondendo objetivamente: nesse sistema, o poder e a soberania são exercidos pelo coletivo, que possui uma inteligência coletiva, sendo capaz de se auto-organizar e tomar decisões em grupo sem critérios hierárquicos, mas tendo agentes facilitadores que tomam decisões com base no consentimento do todo. Na sociocracia, as decisões são tomadas com base na opinião popular, de acordo com seus sete princípios:
Princípio da eficácia, que sugere que o tempo deve ser dedicado apenas naquilo que nos aproxima de nossos objetivos. Ou seja, reuniões desnecessárias que não geram insights são descartadas, o que é um grande incentivo para que as as pessoas aprendam a priorizar suas atividades;
Princípio do empirismo, que entende que mais importante que discutir hipóteses é nos pautar em evidências. Assim, tudo deve ser testado e avaliado de acordo com a realidade, e somente são consideradas as informações concretas da sua eficácia;
Princípio do consentimento, que sugere que as decisões sejam tomadas através de boas argumentações, ou seja: o poder está nas mãos dos bons argumentos, e não de líderes. Em suma, não é preciso que 100% do grupo esteja de acordo, mas após muita argumentação e esclarecimento de dúvidas, é possível chegar a uma conclusão que, embora não seja a preferência de algumas pessoas, pode ser tolerada por elas por ser coesa e não ameaçar a organização. Dessa forma, muito menos energia é gasta com discussões sobre preferências pessoais;
Princípio de melhoria contínua, que sugere que a organização é um organismo vivo e sua evolução é adaptável, ou seja, é necessário ter abertura para mudanças, se moldando conforme o tempo. Assim, é possível incorporar aprendizados, evitando falhas com a repetição de padrões antigos que deixaram de ser eficazes;
Princípio da equivalência, que garante o envolvimento de todas as pessoas que serão afetadas por aquela decisão. Afinal, se uma pessoa será afetada, isso significa que ela é a pessoa ideal para ser ouvida sobre aquele assunto;
Princípio da transparência total, que é um dos principais valores da Sociocracia 3.0, pede para que todas as informações sejam compartilhadas e estejam 100% acessíveis, porque só assim é possível que todas as pessoas possam contribuir positivamente com as decisões;
E, por fim, o princípio da responsabilidade, que entende que em um coletivo orgânico sem pessoas soberanas, só funciona com base na responsabilidade individual. Ou seja, cada pessoa precisa estar completamente ciente das suas funções para cumprir os próprios acordos e fazer a gestão de si mesma;
E, para garantir que esses princípios funcionem pra além da teoria, existe uma característica especial da sociocracia 3.0 que é a estrutura em círculos. Ou seja, ao invés de departamentos organizados através de uma estrutura hierárquica vertical/horizontal, como a gente costuma ver no organograma das instituições, a proposta aqui é que cada departamento seja um círculo – que pode ter ou não outros círculos dentro – que compõem o grande círculo que é a organização. E não existe uma hierarquia estabelecida entre esses círculos. Todos são fundamentais para o funcionamento do todo, exatamente como um organismo vivo. Pra exemplificar, abaixo a gente pode ver como uma instituição se organiza em círculos:
Os círculos existem pra organizar “o que”, “onde” e “por quem” as decisões são tomadas, sendo formados por grupos de pessoas com uma meta em comum, que deliberam pra tomar decisões sobre as mais diversas questões dentro do coletivo. Eles são autogestionáveis, ou seja, as pessoas que integram cada círculo estão ali porque são especialistas sobre aquela questão e, portanto, são as melhores pessoas para tomar uma decisão sobre. Isso é ótimo e otimiza demais o tempo, já que não faz sentido levar a tomada de decisão pro círculo principal, a não ser que isso vá influenciar no caminhar do coletivo como um todo.
Dentro de cada círculo existem os papéis que são energizados pelas pessoas especialistas pra executar as tarefas competentes a cada círculo. O que é diferente de um cargo, por exemplo. Na sociocracia, nada impede que uma pessoa que exerça um papel de liderança execute uma tarefa que, dentro de uma organização hierárquica, pode ser considerada simples demais. Nesse caso, é interessante observar que deixar de lado o ego do “cargo alto” faz com que o coletivo fique muito mais conectado e eficaz. Mas isso é, infelizmente, a razão pela qual é tão difícil implementar a sociocracia em grandes organizações já estabelecidas e, principalmente, nas privadas. Porque as lideranças que compõem os mais altos cargos não querem estar no mesmo nível das outras pessoas funcionárias e, como elas são as tomadoras da decisão final, acabam desistindo do processo de sociocratização no meio do caminho. O que não parece ser uma decisão muito eficaz, já que são nítidos os benefícios que a sociocracia oferece pra uma organização.
Engrenagens para ativistas
Listar todos esses benefícios deixaria esse texto muito extenso, mas acho válido destacar alguns. O primeiro deles é a governança inclusiva, que considera com profundidade os conceitos da democracia (poder do povo), trazendo a sensação de pertencimento a todes envolvides. Outra coisa muito legal de se destacar é que a sociocracia trabalha a flexibilidade das pessoas ao convidá-las a sair da preferência pessoal e decidir pelo que for tolerável, bom e suficiente por agora, sem botar a entidade em risco. Outro benefício incrível é que a sociocracia desenvolve o espírito empreendedor individual e da equipe porque estimula a criatividade, trazendo assim soluções muito mais inovadoras.
Esse sistema melhora também o tempo e a qualidade da entrega porque, segundo o princípio da eficácia, não perdemos mais tempo com atividades desnecessárias, o que nos deixa com mais tempo para executar as tarefas com maior atenção e também antes do prazo, aumentando muito mais a produtividade. Por fim, o meu favorito: através das técnicas da comunicação não-violenta (CNV) ela, naturalmente, estimula a escuta ativa das pessoas, aumentando a confiança, a motivação e o comprometimento das pessoas que se sentem valorizadas ao terem suas opiniões, dores e necessidades ouvidas pelo coletivo. Mais que isso, a CNV melhora as relações interpessoais dentro do coletivo, tornando o ambiente muito mais humanizado e amoroso.
Parece incrível, né? E é! Na minha humilde opinião, a Sociocracia 3.0 deveria ser peça fundamental da engrenagem de organizações sociais ativistas, garantindo transparência e equidade nas suas decisões, ações e intenções, de forma humanizada e amorosa.
E o mais legal disso tudo foi quando me veio a sacada que eu podia aplicar a sociocracia em todas as relações da minha vida, fossem elas profissionais ou não. Eu me perguntei: quanto tempo eu já perdi na vida tensionando uma situação buscando a perfeição, ao invés de relaxar e aplicar o mantra da sociocracia, que diz: “isso é bom e seguro o suficiente para ser testado agora?”. E tudo bem se o teste der errado! Porque a vida, assim como as organizações, é esse grande organismo vivo que está constantemente nos convidando a nos adaptar e aprender com os erros em busca do melhor, mas não da perfeição.
Te convido então a carregar esse poderoso mantra com você e passar a observar as maravilhas que podem acontecer toda vez que ele for entoado.
(E, pra quem quiser navegar mais pelos mares da sociocracia, indico o livro “Muitas Vozes Uma Canção – Autogestão por meio da Sociocracia” de Ted J. Rau e Jerry Koch-Gonzalez.)
Viva a sociocracia! Viva a maconha! E que nada nos distraia do amor. <3
* @kekaritchie é ativista pela regulamentação da maconha, usuária e paciente de cannabis terapêutica
Ensaio: Coletivo Revelar.si e a insubmissão de corpos femininos através da fotografia
*Mulheres da Comunidade do Coque, no Recife, se organizam para propor uma fotografia que se contraponha aos registros feitos pelo machismo e o racismo
Texto e fotos: Coletivo Revelar.si
Pensamos muito – e por muitos anos-, mas não há um modo de resumir ou definir o Revelar.si.
Somos muitas, somos diversas. Começamos como um coletivo de fotógrafas da comunidade do Coque (Recife/PE), mas hoje somos mais.
Somos um coletivo de fotografia e cuidado, que se iniciou com 5 jovens que tinham o desejo de aprender fotografia, mesmo com poucos recursos. Essa caminhada existe há quase cinco anos e não pretendemos nunca parar, pois o coletivo nos motiva e impacta nossas vidas.
Além de desenvolver as habilidades artísticas, atuamos com produção, fotografia, oficinas formativas, ensaios fotográficos, modelagem, desenho, colagem, artesanato e muitas outras coisas.
Somos todas mulheres, na maioria negras e moradoras do mesmo território. Foi através dessa condição compartilhada de ser mulher no Coque que resolvemos criar o coletivo. É a nossa forma de resistir às dificuldades que se impõem nas nossas vidas e de honrar nossas ancestrais, nossas mães e mulheres que ergueram nossa comunidade e a mantêm até hoje.
É uma das formas que encontramos de desconstruir o estigma que cerca esse lugar. É a nossa forma de comunicar, de mostrar ao mundo que existimos, resistimos e estamos cansadas de que falem por nós.
(Re)tratamos questões próprias à mulher, das mulheres que como nós habitam os territórios periféricos, sempre tendo cuidado e atenção às dores inerentes à essa condição. Aliamos nosso trabalho de criação, com nossa necessidade de nos relacionarmos com nossa comunidade e com o mundo. E, ao mesmo tempo, vamos nos construindo e reconstruindo nesse processo.
O trabalho do coletivo está permeado pelas nossas vidas, emoções, sensações, aprendizados, revoltas, dores e paixões. Utilizamos a fotografia e a colagem como ferramentas de criação, convertidas em instrumentos ético-políticos de construção de uma arte feminista negra periférica. Dessa forma, contamos nossa história utilizando uma narrativa própria que contesta o imaginário e o estigma aos quais temos sido submetidas por séculos.
Para isso, nos reunimos ao menos uma vez por semana no Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis), organização social fincada no Coque há 26 anos. Esses encontros abordam temas como “mulher negra”, práticas de cuidado, técnicas de fotografia e edição de imagens, e reflexões sobre sexualidade. Nessa perspectiva, já fizemos reflexões sobre identidade (individual e coletiva), território, raça e racismo. A discussão sobre raça, nesse caso, é permeada pela dimensão de gênero, uma vez que ser negra no Brasil traz significados específicos para as mulheres.
Como profissionais do campo da fotografia, é um processo de empoderamento — entre nós e com as mulheres com quem atuamos. Numa cena dominada por homens, o Revelar.si coloca as mulheres em outro posicionamento na fotografia.
Ao invés de sermos apenas o produto delas, nos tornamos as produtoras. Um coletivo somente de mulheres para mulheres, no intuito de despertar e capturar aquilo que mais nos toca, com um olhar totalmente diferente do que habitualmente se costuma fotografar sobre a favela e sobre as mulheres negras.
Trazemos um olhar mais sensitivo, um olhar de dentro. Estamos propondo que não apenas nós possamos ocupar lugares outros na fotografia, mas também ir para que outras mulheres negras também percebam a possibilidade de ocupar esses outros lugares, que elas vejam beleza em seus corpos e em sua comunidade.
Em nossas oficinas e ensaios fotográficos, já tivemos a oportunidade de estar ao lado de mulheres potentes, mas que não se davam conta disso. Em outros casos, conhecemos mulheres que sabiam bem de sua força, mas estavam muito cansadas para parar e pensar sobre isso.
Em meio a tantas trocas, produzimos registros inundados de simplicidade e abundância, presença e ausência, mas, sobretudo, muita beleza. Em algumas de nossas oficinas, percebemos, no meio do caminho, que a missão seria mostrar a beleza oculta das mulheres.
Às vezes, as mulheres e meninas com quem trabalhamos não conseguiam enxergar essa beleza, por não serem tão bem representadas nas fotos que costumamos ver por aí afora. Se você não se vê e não é mostrado como belo, logo você não vai se achar!
Somos e trabalhamos com mulheres marcadas pela vida, com suas cicatrizes, fora dos padrões estéticos. Por isso é muito comum nas oficinas que realizamos ouvirmos frases como: “não quero foto minha não, que eu sou feia”, “eu tô feia”, “esse negócio de retrato não é pra mim não”. Queremos desconstruir isso.
Não somos referência na grande mídia. Mas podemos ser referência umas para as outras.
Quando estamos juntas, como mágica, as fotógrafas do coletivo conversam e mostram como existe beleza em nós. O nosso papel, nos ensaios fotográficos com outras mulheres, não é nem dizer que as mulheres são bonitas do jeito que são, cada uma do seu jeito. A função do Revelar.si é mostrar essa beleza e fazer com elas também enxerguem e se enxerguem por outra visão.
Quais histórias guardam as mulheres pobres? E se pudéssemos ver o que está inscrito nas marcas de sua pele? Se cada ruga, cada marca do tempo, nos permitisse captar tudo pelo que já passaram: todas as histórias de dor, de luta, de enfrentamento e de coragem?
Nosso trabalho com fotografia é afetivo e político: é a nossa ação política contra as diversas formas de violência que já enfrentamos e ainda vamos enfrentar nas nossas vidas. Não teríamos como fugir desse tema que nos atravessa como uma flecha e vai deixando marcas e perdas ao longo de sua passagem.
No contexto das diversas formas de violência que enfrentamos, o feminicídio é o nível mais extremo de controle sobre a vida — e a morte — das mulheres. O Brasil é o país com a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, tendo as mulheres negras como maiores vítimas. A cultura racista, machista e patriarcal em que vivemos, altamente perversa, subjugando as mulheres, nos coloca numa posição subalterna que se reflete no descaso como são tratados os casos de violência doméstica e contra as mulheres.
Dessa forma, quando ocupamos um lugar na arte, na cultura, na fotografia, estamos lutando contra o racismo que nos foi imposto, contra o machismo que nos reserva lugares à sombra ou de objetificação dos nossos corpos.
Temos realizado, ao longo de nossa trajetória, reflexões e trabalhos sobre racismo, machismo, homofobia, lesbofobia, sempre pensando em como implementar práticas anti-racistas nas nossas vidas, na nossa comunidade, através da arte, do nosso trabalho, do nosso olhar e das nossas lentes.
O Revelar.si se transmuta a cada período, se multiplica e se divide a cada ano, mas permanece, resiste, e se perpetua nas suas ações buscando sempre, sempre, trazer nossa visão de mundo.
Resistir, portanto, seria também um ato de acreditar numa resistência possível ou que a resistência ainda é possível. E acreditando, tentar construir essas formas de resistência no cotidiano.
Acreditamos dessa maneira, na reconstrução das formas de resistência coletivas, numa micropolítica cotidiana que vem sendo construída “clandestinamente” pelas mulheres negras, pelas mulheres pobres, onde construímos nós mesmas nossos processos formativos, nossas experiências culturais e coletivas no exercício do viver.
O Revelar.si é a busca pela concretização de um sonho feminista e coletivo de uma sociedade melhor, mais segura, justa e mais feliz para nós mulheres. Resolvemos começar pelo lugar que ocupamos no mundo, enquanto mulheres negras. É no Coque que estamos construindo nosso sonho feminista. Onde ele irá nos levar, não sabemos. Sabemos apenas da potência desse sonho quando sonhamos juntas.
O Revelar.si é construído por Katarina Scervino,Rayane Larissa, Layane Fabíola, Eduarda Salomé, Julia Oliveira, Laryssa Eduarda, Erica Cileide, Mariana Cristina, Nilza Souza, Ana Beatriz, Ana Flávia Catarina, Auta Azevedo, Amanda Martinez, Mariana Medeiros.
*Texto produzido coletivamente pelas mulheres do Revelar.si
Ficha Técnica das fotos:
Autoria: Revelar.si – Coletivo de Fotógrafas do Coque
1) Mulher do Pilar (2019)
2) Afroameríndia Periférica (2020)
3) Afrontosa (2017)
4) Derramar-se (2020)
5) Coque Gigante (2019)
6) Insubmissão de corpos retalhados (2020)
7) Crianças na Maré (2017)
8) Deusa das Águas (2018)
9) Kaliotica (2020)
Ferrugem na engrenagem do sistema: militância atrás e após as grades
Cristiano Silva escreve sobre sua passagem pelo “sistema” e a fundação do coletivo de sobreviventes que quer corroer as engrenagens das prisões
Por Cristiano Silva*

Iniciar este texto requer estrutura. Cada lembrança que acesso reflete diretamente no meu corpo e traz à tona memórias de dor e sofrimento. Os efeitos dessas recordações disparam diversos gatilhos. Enquanto digito cada palavra que vai neste breve artigo, meus olhos ficam marejados, minha garganta forma um nó e resseca. As longas vias penais percorridas me trouxeram sofrimento, experiências intensas, dolorosas, traumatizantes e provocaram feridas profundas que vão para além da concretude do corpo.
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Tudo começou em 12 de junho de 2010. Depois de chegar do trabalho, fui abordado por policiais civis com um mandado de prisão na entrada do prédio onde meus pais moram. Acusado de um crime de ordem financeira enquadrado nos artigos de furto qualificado e formação de quadrilha.
No momento da prisão, minha companheira, meus filhos, meus pais e vizinhos assistiram àquelas cenas perplexos e desesperados.
Meu filho, com sete anos na época, teve uma crise de choro ao ver o policial me algemar; esse choro ecoa na minha mente até hoje.
Minha filha tinha apenas um ano de vida, a tenra idade a poupou daquele momento traumatizante, mas quase apagou de sua memória a minha presença paterna, por causa do longo cumprimento da pena.
Quando meus olhos encontravam suas expressões faciais, via que eram de pura tristeza e dor. Lembro dos olhos da minha companheira e dos meus pais. Eles doíam mais do que tudo. As algemas que apertavam e cortavam os meus pulsos, a vergonha e as humilhações na presença de todos, tudo isso não era nada diante daqueles olhares desolados.
“Sobreviver aos ataques letais do sistema penal brasileiro é uma missão quase impossível“
Embora seja terapêutico dividir as cargas emocionais advindas daquele momento — por meio de uma escrita viva e memorial —, minha proposta não é me deter somente no momento da minha prisão. Pretendo discorrer brevemente sobre a permanência e focar mais nas questões pós-cárcere e os inúmeros desafios impostos pela ressocialização e como transformar a dor em luta. Nesse ponto falarei também do coletivo de egressos EuSouEu – A Ferrugem, que visa corroer as estruturas do sistema prisional, fortalecer famílias, egressos e presidiários.
Estrutura desigual
O encarceramento causa danos duradouros. Ressalto três: a criminalização do sujeito e de seus familiares; a sentença; e a segregação social. Essa tríplice penitência opera com eficácia em todos os campos existenciais do(a) penitente e de seus familiares, que sofrem perenemente os danos da prisão.
A prisão é um ambiente estigmatizante de desesperança e reducionismo, de contágio patológico, de morte e sofrimento.
Sobreviver aos ataques letais do sistema penal brasileiro é uma missão quase impossível e muitos sucumbem diante da sentença aplicada por um conjunto jurídico que vai desde os modus operandi das polícias até as decisões dos tribunais de justiça.
Todo rigor da lei e ordem estão ancorados no racismo, machismo, no patriarcado e na seletividade penal. Essas superestruturas definem a tipificação do sujeito de acordo com a cor da sua pele, renda, endereço e gênero.
Eu, no entanto, antes daquele momento aterrorizante da prisão, levava uma vida comum.
Eu, um homem afrodescendente, fruto de uma relação miscigenada entre um pai branco e uma mãe preta, vivia as restrições impostas pelas dificuldades socioeconômicas e com uma visão crítica, mas pouco aprofundada. Seguia o fluxo do capital e não me envolvia muito com a militância.
Sabemos, e isto é fato, que milhares de famílias pretas, periféricas e empobrecidas não puderam dar os suportes necessários aos seus por causa de políticas desiguais na terra dos privilégios, das classes dominantes e do genocídio.
No meu caso, ainda que debaixo de muito sacrifício obtive apoio e graças aos esforços contínuos dos meus pais. Então pude seguir com meus estudos e, concluí o ensino médio em uma escola estadual na zona oeste do Rio de janeiro, no bairro de Realengo, onde moro.

Prisão
Quando fui preso havia dois equipamentos prisionais, um sob gestão da Polícia Civil (Polinter) e o outro da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Tudo é prisão, mas com algumas especificidades. Na Polinter, os papos de melhoria aconteciam com mais facilidade, as negociações não exigiam muitos critérios para chegar até os gestores da carceragem, era só ter grana. Quanto mais cheia a carceragem, maiores eram os lucros. Afinal, tudo estava pautado no poder de compra do apenado. Mas também, não faltavam os desenrolados — esse termo pode significar muitas coisas diferentes dentro da realidade prisional e, no decorrer do texto, explicarei seus diversos significados.
Imagine só: era um espaço, que mais parecia uma masmorra da Idade Média, projetado para 100 pessoas, mas era ocupado pelo triplo. Só de lembrar, sinto o cheiro daquele lugar. Diversos corpos pendurados e sustentados por lençóis amarrados na grade. No chão da carceragem formava uma espécie de tapete humano. Para chegar no boi, o banheiro da cela, inevitavelmente pisávamos nos corpos espremidos. Recentemente, todas as carceragens foram desativadas por causa da insalubridade aguda.
O Complexo de Gericinó abriga um dos maiores conjuntos prisionais do país, com mais de 25 unidades. As mais conhecidas pelo senso popular são as unidades de, Bangu I, II e III. Lá o desenrolado e os papos de melhoria são mais criteriosos, a hierarquia lá dentro é levada ao pé da letra. Alcançar acordos no interior dos anéis penitenciários não é uma tarefa fácil, exige influência e muita grana.
Vivenciar esses dois espaços e presenciar diversas situações sinistras me conduziram a entender cada vez mais como nós somos um produto, um objeto. Não somos donos nem mesmo dos nossos corpos, das nossas vidas. Além disso, percebi quem é o verdadeiro criminoso nessa história toda: “o Estado”, que ao longo da história tortura, mata, some com vidas, apaga memórias, viola e nega direitos. E dentro da prisão, o crime institucionalizado é legitimado pelas diversas instituições de controle social. E assim a legalidade bate palma com as mãos sujas de sangue.
Nós, resistimos
Quanto mais eu entendia as verdadeiras intenções desses equipamentos, mais eu queria alertar os meus companheiros de sofrimento do plano tenebroso arquitetado para prender e dizimar nosso povo. Foi então que nos organizamos em um pequeno grupo para discutir e pensar como poderíamos confrontar e danificar tais engrenagens. Carregamos nossa utopia, sabíamos o tamanho das dificuldades. Afinal, mudar completamente todo um sistema leva anos ou até mesmo séculos, na melhor das hipóteses. Contudo, percebemos que a revolução estava ocorrendo na nossa forma de pensar. O desafio era como agir dentro daquelas estruturas triturantes.
Éramos apenas números, e arrumar problemas com a massa carcerária ou com a gestão da unidade é sinônimo de desenrolado. Esse conceito dentrodo sistema tem diversos significados. Por exemplo, as leis e os estatutos internos regem as relações entre os presos e a gestão da unidade e a quebra dessas regras leva o infrator para uma espécie de tribunal, liderado por presos que constituem a hierarquia interna, é uma comissão que define o perdão ou a culpabilidade e o tipo da sanção a ser imposta sobre o réu. Isso é desenrolado.
Darei alguns exemplos: ninguém acha nada na cadeia, sempre tem um dono, caso alguém ache um o objeto e não comunique nas galerias isso dá um maior problemão; no pátio de visita cada preso tem que ficar focado na sua família, caso contrário alguém poderá se sentir invadido por atitudes ou olhares, que podem ser entendidos e julgados como ações libidinosas. Citei duas, mas são diversas situações que podem levar um preso ao tribunal.
“Quanto mais eu entendia as verdadeiras intenções desses equipamentos, mais eu queria alertar meus companheiros de sofrimento do plano arquitetado para prender e dizimar nosso povo”
Mas o desenrolado não é só sobre sentenças. Ele pode ser convocado para anunciar mudanças de regras nas leis e nos estatutos regimentais. Na maioria das vezes esses desenrolados aconteciam no miolo, que é o centro da cela, de onde assistíamos os desdobramentos e os resultados finais. E estar no miolo por causa de alguma quebra de regras, é pânico total e os desfechos na maioria das vezes eram catastróficos.
Então segui com minha luta de sobrevivência, levando comigo meu projeto político de como poderia ajudar do lado de fora dos muros pessoas egressas e seus familiares. Mesmo com tantas questões, eu já tinha rompido com a minha inércia.
Minha família me ajudou muito a manter meus projetos pós-cárcere e ao me visitar traziam livros. Alguns eram barrados por causa do volume de páginas e espessura, não me recordo dos títulos que foram impedidos de entrar. Mas, na cabeça dos guardas, e em nome da segurança subjetiva de cada plantão, a preocupação não era com o conteúdo do livro e sim com algum objeto ilícito que poderia estar escondido dentro.
Mesmo assim, eu continuava a minha busca por conhecimento. O livro que eu mais li e pesquisei foi o Vade Mecum, um compilado de leis, assim como outras publicações na área das ciências jurídicas. Meu intuito de confrontar o massacre legitimado pelo poder público nutria minha gana em aprender a enfrentá-lo. Entretanto, nessas visitas, os desgastes emocionais eram gigantescos e tão severos que em muitas das vezes eu achava melhor ficar na menor (gíria usada para expressar mais observação e menos reação).
Visitas no sistema prisional fluminense são totalmente estressantes. Os esculachos, os constrangimentos e tantas outras coisas transformam esse dia marcado no calendário de cada visitante em “o dia do massacre”. Repito, lutar por direitos estando dentro do sistema prisional é bem complicado, e é preciso analisar se isso encurtará os espaços conquistados pelos presos junto à gestão da unidade. O sistema prisional fundamentou-se em códigos e regras sociais, só que lá dentro é muito mais (in)tenso e neurótico.
O processo
Nesse ínterim, no meu cotidiano prisional, resolvi agir em relação ao meu processo. Após o confere, momento em que os guardas fazem a contagem dos presos, e no bater dos cadeados, peguei uma folha de papel ofício — isso já dentro do cubículo onde estava cumprindo a pena — e montei uma peça a próprio punho, solicitando minha progressão de regime. Tudo isso, após trocar ideias sobre os possíveis caminhos jurídicos em direção a liberdade, as longas leituras sobre direito constitucional e criminal e o auxílio dos presos mais antigos e experientes no assunto.
Alguns companheiros não acreditavam nessa possibilidade, mas eu estava cansado de esperar pela Defensoria Pública, os rodízios de atendimento às vezes chegavam a ser trimestrais e minha progressão para o semifechado (uso este termo porque as prisões fluminenses semiabertas não são tão diferentes das totalmente fechadas) já tinha vencido. Entreguei o documento à minha companheira e a instruí. Ela levou na seção de protocolos na vara de execuções penais no Centro do Rio de Janeiro e protocolou o pedido. Compartilhei essas informações e muitos fizeram o mesmo procedimento, pois boa parte dos presos da galeria estavam também com suas progressões vencidas.
Era um dia igual aos outros, o dia a dia na prisão parece uma fita que é rebobinada o tempo todo e traz uma sensação de que o relógio trabalha de forma diferente. Por isso, o dia da visita é a maior responsa e é importantíssimo, mesmo para quem não recebe alguém. Então fui encher minhas garrafas pet e os baldes para armazenar água; na cadeia a água só cai duas vezes ao dia, perder esses dois momentos é ficar na sequidão até o próximo dia.
De repente, ouvi chamar meu nome, estava próximo de cair a brilhosa (quentinha fornecida nos presídios do Rio de janeiro). Informaram que minha transferência tinha chegado. Os demais companheiros de cela e galeria vibravam e entenderam a potencialidade do conhecimento.
Da escrita até chegar à transferência para o regime semifechado levou cerca de 20 dias. Ali percebi o quanto eu poderia auxiliar e ajudar muitos deles nessas questões e em outras, conforme as possibilidades.
Na longa travessia penal, passei pela visita periódica familiar e pelo trabalho extramuro e então alcancei a condicional, depois de 5 anos e dois meses. Por onde passei levei esses argumentos, que o conhecimento pode arrebentar grades e cadeados. Finalmente senti a suposta brisa da liberdade e eu estava de volta à correria social.

Liberdade cantou?
Nos primeiros momentos anestesiado, fora de órbita, festejei com toda família, tentando recuperar os anos sequestrados pelo sistema. Por algumas horas esqueci os desafios, as lutas e as barreiras que teria de enfrentar. Mas é assim, a cadeia é tão sinistra que ela é capaz de assumir todas as possibilidades da sua existência. Sua extensão aparece na ressocialização, na sentença social e na velha dialética punitiva do “CPF cancelado” e do “bandido bom é bandido morto”.
Veja, eu, homem preto e periférico, casado e com dois filhos, marcado pelo carimbo da ressocialização, na condicional, sem emprego e sem renda, carregando os efeitos nocivos da prisão. Nos percursos da vida reencontrei algumas pessoas que tiraram uma etapa (tempo de prisão), comigo no conjunto prisional. Dialogamos muito sobre as imensas dificuldades de empregabilidade. Como alguns já tinham conseguido um emprego, compartilharam como é difícil mantê-lo. Para quem está na condicional ou monitorado eletronicamente é preciso ir ao patronato da Seap de três em três meses para marcar presença. A cada ida para assinatura era necessário um atraso ou inventar uma história no emprego.
A saga da ressocialização é presente em todos os momentos. Tem uma galera que vem do interior do Estado do Rio de Janeiro trimestralmente para assinar. Quantas pessoas não conseguem cumprir as medidas por causa das restrições econômicas, habitacionais, culturais, sociais e acabam tendo um novo mandado de prisão expedido para regressão de regime. Essa tal ressocialização é um termo expectorado pelos pulmões da hipocrisia social, onde a sociedade narcótica consome abusivamente esta crença de que cadeia é ressocialização. Nesses termos, esquecem o tipo de socialização que o Estado aplica sobre a população mais vulnerabilizada — uma sociabilidade carregada de racismo, violência, segregacionismo e preconceitos, tudo fora dos preceitos da isonomia institucional.
A ferrugem
Em meio a tantos horrores, eu precisava colocar em prática aquele projeto político pensado nos intramuros, ajudar pessoas egressas e seus familiares. Apesar de que quando saímos da cadeia não queremos tocar muito no assunto e nem ser identificados como ex-presidiários. As exposições geram fragilidades emocionais, o cenário punitivista e o clamor social contribuem impiedosamente e sempre manifestarão dúvidas, desconfiabilidade, ódio, medo, insegurança e indignação contra os(as) etiquetados(as).
É nesse cenário que eu e mais alguns irmãos e irmãs de sofrimento, aproximadamente umas vinte e seis pessoas, passamos a nos encontrar quinzenalmente na Praça da República, no Centro do Rio de Janeiro, para colocarmos em prática nosso projeto político e nos organizarmos.
A partir de nossas construções, em 18 de janeiro de 2017, formamos o coletivo EuSouEu- reflexos de uma vida na prisão.
Nossa proposta estava ancorada em amenizar os sofrimentos dos familiares quando o assunto era a falta de informações sobre o(a) preso(a).
Além disso, nosso objetivo era facilitar o entendimento nas leituras de processos, construir uma rede de apoio para evitar maiores transtornos emocionais, viabilizar acesso à justiça de forma descomplicada e fornecer o maior número possível de informações aos familiares sobre seus direitos e os dos(as) custodiados(as). Atualmente passamos de “reflexos de uma vida na prisão” para EusouEu – A ferrugem.
Sem perder de vista o nosso foco inicial, assumimos uma postura de maior incidência política e educacional, pois queremos enferrujar as engrenagens de um Estado penal e mortífero, que ceifa diariamente vidas e sonhos. Nossa meta é interromper esse fluxo encarcerador e promover novas possibilidades e compartilhar conhecimento para todos(as) aqueles(as) que foram atravessados(as) pelo sistema prisional.
“Queremos enferrujar as engrenagens de um Estado penal e mortífero, que ceifa diariamente vidas e sonhos.”
No campo político participamos de audiências públicas para ampliarmos o debate e trazer um olhar empírico de dentro do sistema para fora e propor ideias colaborativas e de protestar contra decretos e projetos de lei que ferem os direitos dos entes privados de liberdade e de seus familiares. Já no educacional elaboramos um projeto chamado de “Educação Que Liberta”, no bairro de São Gonçalo, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, para atender pessoas que foram atravessadas direta ou indiretamente pelo sistema prisional fluminense. O intuito é fortalecer esse público por meio de um ensino emancipatório, o objetivo do projeto é prepará-los(as) para a prova do Encceja e obter a certificação de conclusão dos ensinos fundamental e médio.
Por fim, encerro este extenso texto reafirmando a ineficácia da prisão. Ela afeta mentes e corpos, fragmenta identidades e criminaliza familiares. Seus agentes ressocializadores orquestram uma sinfonia da morte entre as ciladas sutis da reincidência e do brutal dogma estatal. Todos esses aparatos violadores e violentos estão precisamente expressos no verso penal “ressocializar para o futuro conquistar”. Essa frase que chamo de verso penal, esconde um projeto político racista e bem estruturado, consolidado em interesses lucrativos. Afinal, a cadeia é um órgão público e como toda máquina pública necessita de capital e a fonte desses recursos somos nós, os indesejáveis, os matáveis e os economicamente inviáveis. E é justamente nesta perspectiva ressocializadora, que o Estado segue negando e violando direitos. Suas políticas seguem pautadas na certeza da reincidência. De modo que, investem agressivamente e maciçamente nos contêineres da privação, para manter a lógica do poder e do controle de corpos carimbados por uma subcidadania.
*Cristiano Silva é cofundador da associação EuSouEu-A Ferrugem.
