Apresentamos as mesmas questões para um conjunto de pesquisadores e ativistas sobre um tema inescapável de toda luta social: as ruas. O resultado dessa consulta TUÍRA publica, a partir de hoje, em blocos de três comentários.

Abaixo segue a reflexão de Anielle Franco (diretora do Instituto Marielle Franco), Rosimeri Dias (professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ) e Zenite (anarquista e morador de ocupação em Belo Horizonte).

Qual o significado da rua para a mobilização e as lutas sociais no Brasil? Esse significado está mudando agora?

ANIELLE FRANCO

As ruas sempre foram espaço de encontro da vida real e, portanto, são o palco do trabalho, da celebração e da reivindicação de direitos. Foi indo às ruas que muitos dos nossos direitos foram conquistados. Mesmo com a chegada da internet e das manifestações digitais, a ida para a rua muitas vezes ainda é o que caracteriza a materialização e a virada de chave de um movimento. No contexto da pandemia a rua continuou sendo o centro do debate, mas pela primeira vez, no lugar inverso: protestar era não ir às ruas. Mas como a realidade do povo preto e favelado consegue ser mais dura do que a própria pandemia, nós tivemos que continuar indo às ruas para organizar os mutirões de cestas básicas e garantir a sobrevivência do nosso povo. As pessoas doavam de casa assistindo às lives, mas era o povo nas favelas que tinha que se organizar para distribuir as ajudas. Pra piorar, com o Estado seguindo a política de invasão de casas e genocídio da população negra, no mês de junho foi necessário retornarmos às ruas (com todos os medos, cuidados e dúvidas que isso significava) para gritar: não queremos morrer nem de vírus, nem de fome e nem de tiro.

ROSIMERI DIAS

A rua tem um corpo social e um corpus de saberes forjados, de modo presencial, espacialmente. Digo isso porque a rua possui uma dimensão heterotópica de produção de corpos sociais e coletivos imensuráveis. No Brasil, ela ganha uma força ativa que liga corpos com gestos ético-estético-políticos de constituição de espaços outros, pela luta e presença intensiva. Penso que este sentido se transforma permanentemente. Hoje, com a pandemia e o pandemônio, vivemos ruas que produzem um sentido de coletivo e do cuidado ou não com a vida, uma vida, a de si e a de outros. Há uma exigência do presente em estar nas ruas… mas como? Com que dispositivos habitaremos as ruas novamente?

ZENITE

A rua é o principal palco da ação política popular. Vimos em 2013 as ruas tomarem novamente o centro da ação e da mudança social após uma década de cooptação e pacificação dos movimentos pelo governo do PT. Desde então, este ponto de encontro da (anti)política foi mais ou menos usado contra os megaeventos da era petista, contra os cortes em saúde, educação e cultura do governo Temer e depois para barrar a eleição de Bolsonaro. E vem sempre emergindo quase que rotineiramente contra despejos, contra a violência policial e outras formas de resistência e revolta. Nos últimos anos, vimos a direita tomar conta das ruas e chamar a atenção com atos comportados nos fins de semana, carreatas, panelaços e outras formas de fazer seus “protestos a favor”. Isso é o que acontece quando as pessoas deixam de ir para as ruas para lutar por mudanças sociais profundas e permitem que autoritários se apresentem como “rebeldes” que exigem reformas que apenas concentram a violência e a exclusão nos mesmos grupos historicamente marginalizados. Assim, o significado da ação na ruas está sempre em disputa. Se não agirmos, perderemos essa disputa e a imagem da revolta passará a ser a imagem das classes médias e altas demandando “mais ordem” e não o fim da ordem. O papel das ruas, quando ocupadas, é sempre o mesmo: ser o ponto de encontro das pessoas e de confronto com a política feita nos palácios e dos governos. Ela pode ser mais ou menos usada dependendo do período, mas é sempre onde as forças dos oprimidos se encontram e se ampliam.

Quais, na sua opinião, são os prós e contras de se ir às ruas hoje?

ANIELLE FRANCO

Ir às ruas é arriscado e necessário. Contraintuitivo e urgente. Vivemos uma realidade política tão surreal que estamos indo às ruas pelo nosso direito de ficar em casa em segurança.

ROSIMERI DIAS

Como disse, sou em prol da vida… uma vida! Penso que a questão não é simples para se expressar em binarismos, como uma listagem com duas colunas. O desafio é o de ampliar o grau de suportabilidade para viver o presente e ter a coragem para intensificar a força problemática que pode talvez, no debate, remoto, seguir forjando saídas para encontros que abrem espaço e tempos para uma heterotopia. Nessa linha, a favor de uma vida, penso que seja – sim – possível inventar modos outros de explicitar um levante coletivo para fazer emergir essa possibilidade de estar nas ruas remotamente, num primeiro momento e, em seguida, ganhar um corpo intensivo. Talvez a questão permaneça, mas como? Esse exercício de uma militância no presente exige de nós muitas conversas, tessituras, paciência, debate em uma dimensão ensaística, como uma experiência modificadora de si, para forjar caminhos, estratégias, análises de efeitos, práticas… Insisto, como? É possível dizer que não sabemos. Sim! O checklist, com prós e contras, não é ferramenta única para criar modos outros de estar na rua. Talvez ajude. Mas o que precisamos é afirmar um modo de vida que suporte a fricção permanente, como nos disse Aílton Krenak.  Ou também, como tenho dito regularmente, com uma formação inventiva de professores que lute por manter vivo um campo problemático. Com encontros e conversas teceremos, friccionando o presente, coletivamente, modos não conformados e não consensuais para a luta que é permanente por uma vida que se aproxime e nos aproxime de uma dimensão comum.  Com certeza, há muitos riscos. Mas é sempre bom lembrar que o risco é signo de liberdade!

ZENITE

Os contras são apenas um: nos expor ao risco de aglomeração nas ruas, no transporte ou, nos piores cenários, parar nos hospitais ou prisões devido à ação da polícia e seus capangas. No mais, ir pras ruas barrar os avanços do populismo e do fascismo é uma atividade essencial. Se as elites não veem problema em nos obrigar a nos aglomerar em ônibus lotados, em filas esperando o auxílio emergencial, nos subempregos e serviços de entrega que prosperam enquanto a maioria de nós não tem outra alternativa, então podemos nos reunir nas ruas para bloquear o fluxo de mão de obra e de mercadorias. Como qualquer atividade nesse momento, é preciso todo cuidado, respeitando as normas de distanciamento e usando máscaras, até porque isso é o que vai barrar os patrões de hylux querendo que o comércio reabra e que a tirania da “normalidade” volte a imperar.

O que pode ser feito fora das ruas neste momento?

ANIELLE FRANCO

É necessário experimentar. No Instituto Marielle Franco nós temos criado ações de ativismo para lutar por justiça, defender a memória, multiplicar o legado e regar as sementes de Marielle. No dia 14 de março, quando realizaríamos o Festival Justiça Por Marielle foi justo o fim de semana da chegada da pandemia. TIvemos que reorganizar toda a estratégia para ações online e propusemos que as pessoas amanhecessem nas suas janelas com flores e lenços amarelos. Ocupamos as redes. Foi lindo. Nos 25 meses sem respostas, organizamos a ação “Janelas por Marielle e Anderson”, pautando o panelaço de todas as noites, com projeções em todo o Brasil. Hoje temos um financiamento coletivo online onde as pessoas podem nos ajudar sem sair de casa para que consigamos organizar ações antirracistas nas eleições.

ROSIMERI DIAS

O que há para o presente é manter viva esta chama de problematização, de fricção contra o problema do presente que é o ódio ao raciocínio, ao pensamento, à vida livre para produzir saídas outras. No site da Escola de Ativismo, há uma frase de Noam Chomsky que diz: “Se você vai a um protesto e depois vai para casa, já fez algo. Mas aqueles que estão no poder podem sobreviver a isso. O que eles não suportam é pressão constante e crescente, organizações que não cessam, pessoas que seguem aprendendo com o que fizeram e fazendo melhor nas próximas vezes”. Desde 2012, a Escola de Ativismo segue com um trabalho ativo de luta e afirmação da vida, que fricciona e mantém a rua como princípio de força, de problematização e invenção de outros possíveis. Sigamos afirmando a vida e forjando vidas não conformadas.

ZENITE

Hoje, pela primeira vez, é saudável não tentar convencer todas as pessoas com velhos slogans de que é preciso ir para a rua e lutar ombro a ombro em multidões. É preciso considerar que, neste momento, cada pessoa, cada grupo ou família, deve debater entre si quais os riscos que podem assumir correr. Dessa forma, lembramos que há muito trabalho a ser feito fora das ruas. Nos educar, nos informar, produzir materiais (seja um panfleto ou uma máscara caseira), articular campanhas solidárias, cozinhar para muita gente, levantar recursos, descansar, cuidar de si e da saúde, são todas atividades essenciais. Da Grécia ao Chile, movimentos sociais que permanecem muito tempo nas ruas em confronto com a polícia ou ocupando espaços públicos só tem sucesso porque existem pessoas apoiando com recursos e formas de cuidado que permitem as pessoas se manterem com energia e saúde para o combate. Nas revoltas recentes no Chile, vizinhanças inteiras forneciam água e abrigo para as vítimas das armas químicas e da violência policial, ou mesmo materiais para incendiar nas barricadas. No Equador, cantinas populares organizadas pelos movimentos indígenas alimentavam milhares de pessoas nas praças ocupadas em 2019. Nos levantes da Grécia em 2008, os centros sociais em bairros de imigrantes e em dezenas de prédios das universidades eram fundamentais para que manifestantes comessem, descansassem e voltassem a ocupar as ruas. Há tantas formas de luta quanto há pessoas e capacidades de criar e experimentar formas de se organizar. A coordenação e a dinâmica entre elas é o que determina o sucesso dos movimentos sociais.

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Anielle Franco é cria da favela da Maré no Rio de Janeiro. É bacharel em Jornalismo e Inglês pela Universidade Central de Carolina do Norte e bacharel-licenciada em Inglês/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É mestra em Jornalismo e Inglês pela Universidade de Florida A&M, e atualmente é mestranda em uma universidade federal no Rio de Janeiro (Cefet) cursando relações étnico-raciais com o foco na identidade das mulheres negras através da mémoria e legado de Marielle Franco, sua irmã e inspiração diária. Recentemente publicou seu primeiro livro chamado Cartas para Marielle e tem participação importante em muitos outros livros, incluindo a autobiografia de Angela Davis. Hoje trabalha como professora, palestrante, escritora e é a atual diretora do Instituto Marielle Franco, curadora do Projeto Papo Franco e também do curso Marielles. Colunista convidada da revista Marie Claire e Midia Ninja.

Rosimeri de Oliveira Dias ama animais humanos e não humanos, tem dois cães, é professora associada do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atua com a temática da formação inventiva de professores, produção de subjetividade e estudos foucaultianos.  Autora de livros e editora da revista interinstitucional Artes de Educar.

Zenite é anarquista, morador de ocupação, editor e tradutor em diversos portais e publicações anticapitalistas.

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