Apresentamos as mesmas questões para um conjunto de pesquisadores e ativistas sobre um tema inescapável de toda luta social: as ruas.

Confira abaixo a reflexão de Marco Baratto, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, o MST.

Qual o significado da rua para a mobilização e as lutas sociais no Brasil? Esse significado está mudando agora?

Na luta de classes – e para que a gente possa alterar a correlação de forças e avançar nas reais transformações sociais no Brasil ou em qualquer país do mundo –, a luta de massas, a luta de rua, a mobilização popular, é fundamental, é um instrumento poderoso. É algo que pode concretamente não só alterar governos, alterar as estruturas, mas também pode mudar a forma de se pensar política, de se construir política.

Se formos pensar o golpe contra a Dilma (mesmo sendo uma movimentação da classe média, um processo de guinada para o neofascismo e para o conservadorismo no Brasil, que sempre existiu mas se massificou), teve um elemento fundamental quando a classe média conseguiu chegar nos pobres e foi para as ruas. Se a gente buscar no passado a mobilização das Diretas Já, a luta contra a ditadura, as ruas também foram fundamentais pra que se reestruturassem processos políticos e estratégias políticas.

Com certeza, as lutas sociais, as lutas de rua, serão fundamentais para alterar essa correlação de forças,  e nós dos movimentos de esquerda, dos movimentos sociais, dos grupos, temos também que dar uma guinada novamente e tirar o Bolsonaro. Ou mesmo criar uma estratégia pra que o impeachment seja viável. Lembrando que qualquer processo de impeachment também se dá a partir do elemento da mobilização popular, da luta de massas nas ruas. A pressão popular é o estopim inicial para que se pressione os poderes e assim se possa avançar em processos de transformação, seja institucional, mas seja também do ponto de vista da luta popular.

Nós estamos falando isso em uma democracia burguesa como a brasileira. De outras formas, em outras sociedades, você tem condição de criar espaços de revoluções como já ocorreram em países no século XX. Mas ai é outro cenário, é outra forma de luta, é outra linha política.

Por causa da pandemia, as formas de se fazer luta têm que ser mais criativas, mais inteligentes. E o avanço da tecnologia faz com que também se mude um pouco o foco. As ruas vão ser sempre importantes, mas esse cenário atual das redes sociais, dos meios de comunicação, é fundamental na disputa das narrativas. E isso conectado obviamente com questões práticas, concretas.

O exemplo do MST, das ações simbólicas, ou das ações de solidariedade de produção de alimentos, no qual você atua em uma ação prática, para disputar um determinado ideário, da alimentação, da comida, tudo é potencializado quando consegue viralizar nas redes sociais, quando há instrumentos de comunicação que conseguem alcançar as massas. Hoje é uma tarefa nossa: não tem como, vamos ter que nos debruçar em cima dessas formas de se fazer lutas e de disputar consciência na sociedade.

Quais, na sua opinião, são os prós e contras de se ir às ruas hoje?

Hoje, com a pandemia, há movimentos prós e contras. Sempre pensando à esquerda, olhando por nós. É que a direita – os fascistas, os neofascistas, os conservadores – seguindo o discurso do seu presidente, não deixou as ruas. Eles estão indo pras ruas, estão fazendo manifestações.

A sociedade, de alguma forma, também está na rua, porque o trabalhador pobre nunca deixou de estar na rua. O isolamento e a quarentena, na real, não existe na essência. Porque os trabalhadores, no geral, estão na rua. No início, havia uma potencialidade muito grande; a gente vem defendendo o isolamento e a quarentena, e essa é a decisão correta. Porém, o discurso e a condição real dos trabalhadores é de ir ao trabalho. Na mineração, por exemplo, os trabalhadores explorados pela Vale estão trabalhando, nunca tiveram quarentena. Então quem é que fala com eles, quem é que conversa com esses trabalhadores?

A turma da direita, da ultradireita, está indo nesse discurso e esse discurso cola no conjunto de trabalhadores. O fato de termos feito, mesmo que com os cuidados necessários, manifestações de enfrentamento a isso foi importante. Em Brasília, os coletivos da periferia, dos times de futebol, o povo das quebradas, todos foram pra rua e o protagonismo é importante. Nós, os movimentos históricos, mais clássicos, temos que apoiar esse protagonismo e apoiar essa ida, mesmo entendendo que no MST a nossa decisão é manter o nosso povo em isolamento, em quarentena, e não fazer deslocamento de massa nesse período, para não contradizer nosso discurso. Mas, ao mesmo tempo, é importante a gente apoiar e criar uma nova correlação de forças: enfraquecer o governo, enfraquecer os movimentos de direita e, ao mesmo tempo, conversar com os trabalhadores, seja pelas ações simbólicas, seja pelas ações de solidariedade.

O nosso discurso é contrário ao discurso do governo. Enquanto o governo diz que a pandemia não existe, que é uma gripezinha, nós estamos dizendo “não, está matando milhões de pessoas, e não é nós que estamos dizendo, tá todo mundo dizendo, no mundo inteiro”. A gente mantém uma coerência no discurso e, ao mesmo tempo, enfrenta esse discurso de que tem que abrir tudo do governo Bolsonaro. Agora, não quer dizer que a esquerda que está indo pra rua está contradizendo o discurso. Por serem outros coletivos e organizações, estão experimentando esse instrumento de poder se colocar contra os fascistas. Eles são, em essência, coletivos, organizações e grupos autônomos, segmentos com outro tipo de organicidade, que também passam pela superexploração da força de trabalho, e é importante dar essa resposta.

O que pode ser feito fora das ruas neste momento?

É um pouco o que nós do MST estamos construindo, propondo e trabalhando com diversas outras organizações de esquerda e do campo popular ampliado. As ações de rua não são o único instrumento de enfrentamento, porque, a depender de como você se organiza pra ir pra rua, não tem muito efeito.

Vamos pegar um exemplo. Nos últimos anos, a forma de manifestação da esquerda (nós temos discutido isso com a própria esquerda), os instrumentos que são utilizados são instrumentos antigos, velhos, que não dialogam com o conjunto dos trabalhadores. É aquele formato: carro de som, um monte de gente falando, onde ninguém ouve, em centros onde não necessariamente os trabalhadores estão, em dias onde os trabalhadores também não estão. E um distanciamento e uma falta de diálogo, a falta de projeto claro para convencer os trabalhadores, para inserir os trabalhadores, para que os trabalhadores se sintam à vontade.

Já há algum tempo, nós do MST, há cinco ou seis anos, resgatamos da Revolução Russa, do Lênin, o instrumento de agitação e propaganda como uma ferramenta importantíssima de um trabalho de base, de trabalho das ideias, onde o que dá centralidade é a disputa da informação. Além de informar, você [pode] disputar narrativa, criar questões ou trazer questões à tona que no dia a dia os trabalhadores não enxergam e que as manifestações tradicionais também não dão conta – porque fica aquele carro de som, aqueles discursos, e não se apresenta claramente qual é a proposta e se dialoga fora da realidade. Porque a realidade do trabalhador é isso: é emprego, é a violência, é o genocídio da população negra, da juventude, é o transporte que não tem, é o buraco da rua, é a falta de água, são as coisas concretas, reais do dia a dia.

Trabalhar o instrumento da agitação e propaganda dá essa possibilidade, porque se consegue chegar ao povo de forma mais criativa, de forma mais inteligente, para problematizar determinadas situações. Com 10, 15, 20, 40 pessoas, é possível fazer uma atividade dessas, em uma parada de ônibus, em um supermercado, no metrô, nas feiras. Causa um impacto da informação, naquele momento faz as pessoas refletirem sobre determinado tema. Isso a gente chama de agitação e propaganda. São os faixaços, são os carros de som, que são as atividades-relâmpago, mas são também as ações de solidariedade onde você vai doar alimento. Quando você está doando alimento, você está disputando a narrativa, você está conversando com o povo sobre aquilo, você está combatendo o agronegócio, está falando que esse alimento é um alimento saudável, produzido por um camponês, por um agricultor da reforma agrária, que também foi explorado e hoje é um produtor. E está doando alimento para o povo pobre da periferia, e está discutindo racismo, homofobia, LGBTfobia;  enfim são vários elementos importantes que você pode trazer a tona e que as pessoas vivem na pele, no dia a dia.

É importante usar ações simbólicas ou ações rápidas e, ao mesmo tempo, conseguir expandi-las ao máximo pelas nossas formas de comunicação. Nós vamos ter que reaprendera fazer isso, vai ser muito importante no próximo período. Mesmo voltando às ruas, voltando às mobilizações, esse vai ser um instrumento importante. Se nós não começarmos a trabalhar isso, vamos ficar para trás na disputa. O fascismo entendeu isso, só que eles usam das fake news, usam desses elementos que são falsos, que desinformam, e nós precisamos fazer a disputa certa nesse sentido.

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Marco Baratto faz parte da coordenação nacional do MST, pela direção da região do Distrito Federal e entorno. O Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra existe há 35 anos e está organizado em 24 estados. No total, são cerca de 350 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais. O MST luta pela Reforma Agrária Popular, pelo direito à terra, pela agroecologia, em defesa do meio ambiente e por uma sociedade mais justa e igualitária.

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