Apresentamos as mesmas questões para um conjunto de pesquisadores e ativistas sobre um tema inescapável de toda luta social: as ruas. O resultado dessa consulta TUÍRA publica em blocos de três comentários.

Abaixo seguem as reflexões de Mikael Peric (biólogo e ativista), Áurea Carolina (deputada federal pelo PSOL-MG) e Salvador Schavelzon (antrópologo e professor da Universidade Federal de São Paulo).

MIKAEL PERIC

Qual o significado da rua para a mobilização e as lutas sociais no Brasil? Esse significado está mudando agora?

As lutas sociais são lutas comuns, coletivas, plurais. Elas não fazem sentido no espaço privado (em grande parte das vezes). A rua é nóis, como disse Emicida. Na rua a gente cresce e se cria. Na rua a gente disputa e demonstra a nossa força. São poucas as mobilizações que têm tanto impacto e poder quanto as paralisações, as greves e atos que concentram contingentes grandes demais pra contar. É a vontade do povo. É a voz das ruas.

Quantas vezes nós já lemos um chamado do tipo: “Está marcado para a próxima quarta-feira o ato pelo direito de ocupar”? Os atos de rua, as passeatas e as ocupações temporárias são talvez as táticas mais importantes para as lutas sociais que se dão em espaço urbano no Brasil. Isso porque é no espaço público que a gente exerce nossos direitos coletivos. Exerce e luta. Defende e avança.

Esses significados não mudam agora. Muitos de nós seguem nas ruas, sem opção de isolamento ou distanciamento social. Outros se retiraram pelo bem do coletivo. Acredito que as ruas seguem sendo o termômetro, ao menos um deles. A pandemia há de passar. Nós seguiremos nas ruas.

Quais, na sua opinião, são os prós e contras de se ir às ruas hoje?

Ocupar as ruas hoje é muito desafiador. Isso porque as aglomerações e os descuidos vão fatalmente levar a óbito algumas pessoas que, eventualmente, nem sequer saíram para protestar. Em ato recente pela democracia, em São Paulo, ficou bastante claro que não temos (ao menos até aqui) a organização necessária para dar conta de protestar com muita gente em segurança. O grande contra de se ir às ruas hoje é a pandemia e poucos ‘prós’ vão superar este gigantesco ‘contra’.

Entretanto, eu não deixo de pensar que se formos capazes de ocupar as ruas com disciplina, em grande número, poderemos alcançar uma força talvez muito superior ao que estamos acostumados a ver e fazer. Distanciamento real e concreto, uso de equipamentos de segurança adequado, equipes de apoio e suporte bem distribuídas, compromisso com um mesmo projeto. Isso é força. Força que pode ser muito bem-vinda para o país e, principalmente, para as populações e para os corpos historicamente violentados e excluídos.

O que pode ser feito fora das ruas neste momento?

O que não é rua? O ambiente privado? O espaço particular tem pouco efeito simbólico nas lutas sociais. Ainda assim, de fato muito pode ser feito remotamente. Articulações, pactos, alinhamentos e aproximações. O fortalecimento dos grupos e movimentos pode acontecer fora das ruas e está acontecendo. O chamado ‘advocacy’, a promoção de ideias, a inovação no comportamento. Muito se pode fazer em tempos de pandemia.

Em termos de protesto, ação direta, denúncia e cobrança, para além de panelaços, bandeiras nas janelas, projeções, intervenções sonoras, protestos digitais, carreatas etc, eu gosto de insistir que cinco ou seis pessoas podem fazer nas ruas tanto quanto uma multidão. Estratégia, lógica, planejamento e persistência. Margaret Mead já deu a letra: “Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, foi sempre assim que o mundo mudou”.

Um pequeno grupo de pessoas pode tomar todas as medidas de cuidado neste momento de pandemia enquanto realiza um ato simbólico tão potente que pode rodar o mundo ou derrubar um decreto presidencial em questão de horas. Existe uma diversidade de táticas enorme pra isso. Ação e ativismo tático podem ser quase qualquer coisa e podem alcançar, virtualmente, tudo.

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ÁUREA CAROLINA

[Uma única resposta para as três perguntas acima]

A rua é o espaço público por excelência. É onde encontramos as diferenças e experimentamos a convivência na diversidade. É, historicamente, o lugar onde as lutas confluem para defender direitos, pressionar o sistema político e buscar transformações sociais.
 
 O surgimento das redes sociais modificou e segue reconfigurando as formas de atuação individual e coletiva no espaço público. Isso acontece graças à presença de novos sujeitos e linguagens no ambiente online, mas não necessariamente em detrimento das ruas. São espaços distintos em suas especificidades, mas complementares para as lutas.
 
 No Brasil, pelo menos desde as Jornadas de Junho de 2013, a conexão entre o ambiente digital e as ruas trouxe para nós novos contornos, desafios e possibilidades para a democratização do espaço público. Agora, com a pandemia do novo coronavírus, as ruas precisaram ser repensadas para evitar o contágio da doença e o ambiente digital ganhou uma projeção ainda maior. As alternativas de organização política estão se diversificando, não sem limites e contradições. Ainda assim, eu acredito que não é possível abrir mão da mobilização presencial.
 
 O que está colocado agora é como manter as medidas sanitárias e de afastamento social recomendadas para evitar o contágio pela Covid-19 e, ao mesmo tempo, continuar movendo as lutas por direitos e contra as ameaças antidemocráticas no país. Não uma equação de fácil solução, mas é inevitável que as ruas sejam um lugar de atualização da luta política mesmo durante a pandemia.
 
 Os recentes levantes antirracistas que aconteceram nos Estados Unidos, em protesto após o assassinato brutal de George Floyd, tiveram ressonância em vários países no mundo e, aqui no Brasil, se juntaram às manifestações antifascistas. Tivemos atos em várias cidades, unindo atividade política online e presença nas ruas.
 
 Uma das novidades foi a greve dos entregadores de aplicativos. São trabalhadores que passaram a receber uma demanda muito maior durante a pandemia, o que aprofundou uma situação de precarização extrema do seu trabalho. Tudo indica que continuarão a ocupar a rua por direitos, politizando esse lugar que é parte da sua própria condição de trabalho.  
 
 Nas redes sociais, muito pode ser feito e está sendo feito. Temos dinamizado e potencializado o uso das plataformas digitais, mas isso não é tudo. Precisamos repensar e recriar formas seguras de convivência presencial para seguir impulsionando as lutas, durante e após esse período crítico de enfrentamento à pandemia.

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SALVADOR SCHAVELZON

[Uma única resposta para as três perguntas acima]

As ruas podem ser um espaço de abertura contra a natureza fechada das instituições. Toda instituição determina um cercadinho, uma definição restrita de cidadania, uma forma específica de excluir e representar a luta social. Mas não vejo as ruas como sempre e necessariamente abertura. As instituições e o disciplinamento aprenderam faz tempo a lidar com as ruas. Muitas ruas aparecem como desfiles enquadrados, nostalgia, expressão impotente de quem se sente bem manifestando mas não altera o funcionamento de um poder que percorre tudo, até mesmo à lógica de mobilizar. Os atos na Paulista, as palavras de ordem da esquerda, as marchas em Brasília financiada com milhões de estruturas políticas sem vida totalmente adequadas à paisagem do já estabelecido: são ruas ritualizadas, esperadas, cheias de verdades que não foram. 

Muito da oposição a Bolsonaro segue um padrão impotente, dos certos e civilizados que querem voltar ao governo contra a barbárie.  É triste ver como a máquina de horror que é Bolsonaro às vezes mostra mais energia contra o sistema do que uma esquerda que prefere ficar no lugar da razão a se aproximar do jogo político real. Só no jogo político real podemos conseguir vitórias na disputa mais ampla onde Bolsonaro e todos os governos se situam. Temos então de pensar nas ruas que explodem de repente, param a cidade, movimentam as peças do tabuleiro, ou se impõem contra empresas, contra o racismo interiorizado, contra impérios ou Estados militarizados. 

Junho de 2013 foi a rua da ruptura, da redefinição dos possíveis. E é sintomático como certa esquerda que hoje habita as ruas sem força questiona o acontecimento com desconfiança. O que teria aberto o caminho para a queda de um mundo que não fazia sentido para muitos não seria a falta de compromisso com o que Junho disse, mas a própria explosão da política nas ruas. Para esse pensamento, toda rua que não seja ritualística enquadrada é perigosa. São falas do poder, do estabelecido, mesmo que seus enunciadores se encontrem fora do governo. 

Precisamos sair dessa ideia de que quem está na rua quer ser governo um dia, um governo melhor. As ruas são fortes quando dizem algo no momento em que se manifestam. Não são “demandas” que alguém vai poder organizar e levar para o governo ou representar um dia.  Vemos nas ruas a construção de governos e representantes: o som alto do carro de som; as disputas de aparecer com a maior bandeira ou mais à frente, de “levar” tantos milhares; o líder que a mídia corre para entrevistar, ou inventar, se for preciso.   

A rua é forte e reorganiza o real quando não é traduzível, não é representável, não se reduz a demandas concretas que uma autoridade possa atender para que todos voltem para casa. É o que determina seu perigo, única forma de ser uma força real no jogo político, porque ela não é um cálculo político para uma institucionalidade posterior, ela tem força porque irrompe como mundo novo que só pela sua existência já redefine todo o anterior e o que virá. 

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Mikael Peric  é membro da Escola de Ativismo. Entre suas atividades, compõe o Núcleo de Ação e Não-violência que se dedica a pensar e realizar processos de aprendizagem em ação direta. Biólogo, mestre em Ciências pela EACH (USP), se dedica a pensar a Evolução do Comportamento Humano através da perspectiva darwinista. Budista, vive a Não-Violência como paradigma de ação e luta.

Áurea Carolina de Freitas e Silva é deputada federal por Minas Gerais pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), educadora popular, especialista em gênero e igualdade pela Universidade Autônoma de Barcelona e mestra em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Em 2016, foi a vereadora mais votada de Belo Horizonte.

Salvador Schavelzon é antropólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo.

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