Apresentamos as mesmas questões para um conjunto de pesquisadores e ativistas sobre um tema inescapável de toda luta social: as ruas. O resultado dessa consulta TUÍRA continua a publicar, agora num blocos de quatro comentários.

Abaixo seguem as reflexões de Alana Moraes (pesquisadora feminista), Gustavo Torrezan (artista e pesquisador), Larissa Santiago (comunicadora feminista) e Rafael Heiber (geógrafo e sociólogo).

Qual o significado da rua para a mobilização e as lutas sociais no Brasil? Esse significado está mudando agora?

ALANA MORAES

Sem dúvida o acontecimento pandêmico de alguma forma intensifica o conjunto de significados e implicações do que é estarmos juntos nas ruas. A pandemia faz intervir com bastante força uma consideração que sempre foi muito cara aos movimentos feministas: o fato de que nossas lutas são feitas de corpos e suas marcas, de que estamos vulneráveis uns aos outros, de que o combate não pode prescindir do cuidado coletivo, das formas de interdependência que sustentam as lutas sociais como possibilidade de vivermos juntos e de outra forma. 

Precisamos também reencontrar modos de estar na rua. Essa ideia de que a democracia se faz por demonstrações de grandes mobilizações de massas precisa ser questionada. De certa forma, a ideia de “maioria” serve muito ao fascismo. Os discursos do Bolsonaro são quase sempre amparados por esse lógica: “somos a maioria”. Precisamos ter coragem de recusar sermos maioria e todas essas ideias que supõem unidade, totalidade, universalidade. 

Ainda assim, não podemos abandonar as ruas ou assumir que estar nas ruas é “fazer o jogo” do bolsonaro. Isso seria  decretar para nós mesmos uma derrota infernal: se saímos, perdemos, se continuamos em casa, perdemos. A polícia em São Paulo vem intensificando sua prática genocida nas periferias, a pandemia radicalizou as muitas formas de racismo estatal e de funcionamento colonial da nossa sociedade. Os corpos mais expostos são os corpos negros ao mesmo tempo que são as mulheres negras que estão também nos trabalhos dos cuidados da saúde, amortecendo anos de precarização do SUS. É uma situação insuportável, não podemos permitir que o fascismo neocolonial se imponha como consenso – estar nas ruas é um modo de produzirmos ruídos, de dizer que a histórias não acabou e que não vamos seguir em silêncio diante do extermínio. 

GUSTAVO TORREZAN

No Brasil a rua é onde tudo pode acontecer. É o lugar do cruzo ou encruzilhada, digo a partir das proposições de Luiz Rufino. A rua é esse lugar do “entre”, da intersecção para e na sociedade brasileira. É onde historicamente se torna público, comum, algum tipo de festejo, de reivindicação, de luta, de caminhar. Então, a rua é mais que um lugar físico, pra mim ela é também uma ideia, um conceito que se faz em determinadas conjunturas.

A rua tem papel fundamental na constituição da sociedade brasileira, seja por pensá-la no lugar do comum, da socialização ou como expressão do inverso da casa (da posse privada e da higienização, só pra citar dois exemplos). Como consequência desse papel, a rua é também fundamental na e para a mobilização, nas e para as lutas sociais, embora isso venha mudando pouco a pouco. Digo que muda, não no sentido de diminuir sua importância, mas no sentido de ampliar o que se pode pensar por rua, ou seja, os espaços de tornar comum, de sociabilização, de construção de discursos, de afirmação de identidades e de reivindicações. Amplia-se o sentido de rua e de lugar para reivindicação porque essas encruzilhadas também se dão em outros meios, especialmente esses que costumamos simplificadamente chamar de “tecnológicos” (rádio, televisão, jornais, revistas e, nos dias de hoje, especialmente a internet).

Por outro lado, é impossível de dizer que a rua tal qual a pensamos no seu sentido literal deixa de ser palco importante para lutas sociais na atualidade. Aqui lembro por exemplo da luta dos ativistas de redução de danos no território da Cracolândia, em São Paulo. Lá, na rua do fluxo que é habitada pelos usuários, na rua Helvetia substancialmente, é onde acontece a ação e as lutas efetivas da população que lá vive e daqueles que compactuam com a causa. O significado de rua muda – e essa mudança não é de agora, mas intrínseca à sociedade brasileira e aos poderes que constituem o país. Onde há rua – em seus múltiplos sentidos que vão se expandindo, haverá disputa, expressão do poder e, por consequência, desejo de controle. Os sistemas de controle nas ruas têm aumentado mais e mais, seja pela polícia – braço armado do Estado e que cada vez mais se mostra como um poder paralelo ao Estado que a financia – seja pelos outros sistemas de controle, como câmeras de vigilância e outros tipos de normativas e gestão de governo publico ou privado. O controle se dá também nos outros meios. A internet, tal qual a rua, está cada vez mais privatizada e menos autônoma. Isso não significa que está tudo perdido e que as disputas não devem ser feitas, pois há muito o que disputar, e o campo de disputa só aumenta com a proliferação dos sentidos de ruas.

LARISSA SANTIAGO

As ruas têm um significado material para as lutas no mundo inteiro, mas especificamente no Brasil elas significam o pertencimento dos grupos que vão pra rua no espaço público. No Brasil a gente tem uma esfera pública reduzida a grandes conglomerados de empresas de comunicação  que são geridas por diferentes famílias que tem heranças coloniais bastante arraigadas, heranças racistas, patriarcais, etc. Então, institucionalmente, há uma esfera pública que não permite e que sistematicamente cerceia as vozes das diferentes populações, organizações e composições da sociedade civil brasileira. A rua se torna assim não só palco, mas o território central da expressão das lutas dos movimentos sociais brasileiros.

Todas as vezes em que a gente precisa combater ou enunciar pró-ativamente alguma coisa, nós vamos pra rua. Trazendo a perspectiva das mulheres desde 2012, com todas as primaveras (nós no Brasil fizemos várias primaveras, que culminaram em diferentes processos:  marcha das margaridas, marcha das mulheres negras, marcha das mulheres indígenas etc), a rua tem um significado de não ser só palco, mas ser território.

Com a pandemia, tudo muda um pouco. Muda o significado de estar na rua porque muda nosso comportamento diante de uns dos outros e diante do que representa essa saída agora. Quer dizer, estar em isolamento e depois perceber que se faz necessário estar na rua, ganha um outro significado para os encontros e as aglomerações.

RAFAEL HEIBER

A reconquista das ruas é um problema de forma e de função para a grande maioria das cidades e seus cidadãos. Hoje, a rua hoje poderia ser definida como espaço anônimo desenhado, sobretudo, para o fluxo de automóveis, que privatizam o espaço que ocupam e deixam para fora um lugar de ninguém. Por isso, é automática a ideia de que manifestar-se significa interromper o tráfego. Funciona para, por um momento, dar vazão a descontentamento coletivo acumulado.

Quais, na sua opinião, são os prós e contras de se ir às ruas hoje?

ALANA MORAES

Existe uma certa reivindicação do cuidado, por outro lado, que contribui para uma docilização ou pacificação dos corpos. O cuidado não pode ser uma prática que se realiza pelo medo, pelo medo do encontro, pelo medo do outro. Precisamos reencontrar maneiras de estarmos juntos, recriar uma atenção em relação a nós mesmos com o uso das máscaras, as distâncias ainda necessárias, recriar as nossas confianças, isso é o mais importante: sabermos trocar segurança por confiança nesse novo regime imunitário. Cuidado e combate estão juntos, não são opostos.  Precisamos ser solidárias a todas que não podem ir às ruas, que não sesentem bem para isso, os que estão cuidando ou próximos de pessoas que fazem parte do grupo de risco ao mesmo tempo que vamos precisar estar nas ruas com uma atenção nova ao cuidado com o outro. Mais uma vez: não podemos cair na armadilha das grandes

mobilizações. Podemos pensar em ações diretas com grupos menores, ações que se coordenam ou não, mas que vão criando um caldo para a revolta coletiva. Fazer aliança com as trabalhadoras e trabalhadores que estão agora sentindo na pele as muitas camadas de precarização e sofrimento intensificadas pela pandemia: como podemos nos aliar com as trabalhadoras da saúde? que tipo de ação é desejável? Como podemos nos aliar com os trabalhadores dos aplicativos de entrega? Como podemos nos aliar com pequenos produtores em redes de distribuição menores sem depender da intermediação de grandes corporações? Como podemos nos aliar às lutas dos movimentos negros e periféricos que estão incansavelmente denunciando o genocídio da população negra? 

Isso tudo nos exige abandonar o lugar de vanguardas, de “representantes” ou “responsáveis” por uma grande frente ampla que reúna condições ótimas para uma resistência – as lutas já estão acontecendo, existem muitas formas de resistir coletivamente e de criar outros modos de vida com autonomia e liberdade, precisamos saber reconstruir pequenas alianças, reativar nossa inteligência coletiva e seguir cozinhando o caldo da revolta em fogo brando até que ele possa entornar. 

GUSTAVO TORREZAN

Para pensar nos prós e contras de ir às ruas hoje, parto da possibilidade de pensar um mínimo autogoverno sobre si – fato que é para poucos nos dias de hoje. No ativismo, é preciso antes avaliar os prós e contras. É preciso, neste tempo de pandemia, saber quais são os reais riscos e os reais modos de se prevenir; saber também o porquê de ir às ruas, para quê e por qual causa. Ou seja, se perguntar com franqueza e avaliar os prós, os contras e qual é a urgência? Se for algo extremamente urgente e sendo possível tomar as medidas de segurança, é sim importante ir às ruas; mas se não for algo urgente, e havendo risco real, é possível utilizar outros tipos de sociabilização e reivindicação. Acho que hoje os prós e contras de ir às ruas estão relacionados a uma estratégia de ação e, sobretudo, a uma “análise probabilística” daquilo que acabo de mencionar. A rua é uma tecnologia assim como outras, e é uma encruzilhada onde tudo pode acontecer. Quando não se pode utilizar uma via é preciso utilizar outra para chegar onde se deseja chegar.

Conto meu exemplo, o exemplo de alguém privilegiado. Fui às ruas logo no início da quarentena para gerar e participar de uma comunidade e de uma luta nas construções de Equipamento de Proteção Individual (EPI) de rosto, viseiras para profissionais de saúde e para quem estava no front. Medimos juntos os riscos e consideramos que valia a pena estar nessa ação. O resultado foi que ela gerou milhares de protetores para pessoas que não tinham escolha de ficar em casa. Por outro lado, não fui a nenhuma manifestação. Não me senti seguro nessa “analise probabilística”. Optei por gerar e por participar de reflexões a partir de “outras ruas”, como a internet e o rádio. No meu caso, escolhi ter uma vida de luta ou melhor uma vida em luta, e que para isso é preciso cuidar da saúde para que a vida continue, seja a minha ou daqueles com quem posso colaborar nesse sentido.

LARISSA SANTIAGO

Eu acredito que ir para as ruas, independentemente dos contextos, tem mais prós do que contras. Semanas atrás, quando as manifestações se intensificaram aqui no Brasil, algumas medidas foram tomadas, movimentos inclusive incentivaram as pessoas de grupo de risco a não participar das manifestações. Houve uma ponderação. Na minha concepção de mulher negra, ir às ruas num momento pandêmico tem muito mais prós do que contra. De maneira nenhuma estamos fazendo um discurso de que a pandemia ela não é real, que os riscos não são reais; pelo contrário, os números têm crescido. Mas diante do combo que é crise pandêmica + crise política + crise econômica, existem mais vantagens de estar na rua,e essas vantagens são justamente promover a participação política, pressionar os governos e as instituições para as mudanças radicais e permitir que algumas vozes, que alguns corpos, sejam vistos e ouvidos e tenham a sua narrativa contada.

RAFAEL HEIBER

O desafio, provavelmente utópico, é reconverter as ruas em espaço verdadeiramente público, de movimento e também de permanência. Somente a substituição da energia fóssil por forças facilitadoras de coerção social poderiam redefinir as ruas como lugar de prática cidadã. 

O que pode ser feito fora das ruas neste momento?

ALANA MORAES

Teremos que reaprender como nos organizar em grupos menores, com nossas experiências e experimentações menores, criar uma comunicação e trocas entre pequenos grupos de ação. Aprender com os indígenas, os quilombos, as rádios comunitárias, as ocupações, as cozinhas coletivas. Todos esses praticam uma política que não é uma política de “maiorias mobilizadas” prontas para serem representadas por um líder no alto de um carro de som, mas é uma política que está na vida, que emerge de uma trama de confianças, relações, de autonomia e de muitas singularidades, de cuidado e combate. Agora, mais do que nunca, vamos ter que reaprender como criar nossas infraestruturas coletivas, nos perguntar se somos mesmo capazes de sustentar uma vida não fascista entre nós para além dos momentos épicos das grandes mobilizações.

GUSTAVO TORREZAN

Considero, de modo rápido e direto, que é possível fazer quase tudo na rua hoje desde que tomadas as devidas precauções neste contexto pandêmico. Porém, colocaria ênfase na importância de fazer e de participar de ações sociais no território. Entre os inúmeros exemplos que posso citar, digo dos combates aos injustos e irresponsáveis despejos que infelizmente tem sido feitos mesmo neste contexto de crise sanitária.

RAFAEL HEIBER

Além de rever paradigmas do planejamento urbano, não esqueçamos o papel das tecnologias de comunicação e seus algoritmos, para que não sejam eles as novas ruas de anonimato a definir nosso rumo, possivelmente ainda mais solitário que no interior de um automóvel e mais marginal que um pedestre na calçada.

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Alana Moraes é feminista, pesquisadora interessada em práticas não-proprietárias e tecnologias do Comum. Durante a pandemia, ativa um projeto de extensão chamado Zona de Contágio, uma  investigação coletiva sobre modos de conhecer contra-coloniais, autonomias e ciências de um mundo por vir: https://www.tramadora.net/category/zonadecontagio/

Gustavo Torrezan é artista, educador, pesquisador. Graduado em Artes Plásticas, mestre em Educação e doutor em Poéticas Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É pesquisador no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. /Crédito da foto: Dino Moura

Larissa Santiago é comunicadora, feminista negra e compõe o time da Escola de Ativismo.

Rafael Heiber é o cofundador do Common Action Forum.  Geógrafo, mestre em organização espacial e doutor em sociologia, sua área de especialização inclui mobilidades, climatologia, política e os vínculos entre território, tecnologia e cidadania.  Ele também é consultor, comentarista e colunista em diferentes meios de comunicação internacionais.

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